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Reutilização do dialisador: é seguro e vale a pena?

A reutilização de dialisadores, a prática de usar o mesmo dialisador para múltiplos tratamentos de hemodiálise, existe desde a década de 1960.11 Lacson E Jr, Lazarus JM. Dialyzer best practice: single use or reuse? Semin Dial 2006;19:120-8.,22 Upadhyay A, Sosa MA, Jaber BL. Single-use versus reusable dialyzers: the known unknowns. Clin J Am Soc Nephrol 2007;2:1079-86. Embora tenha ocorrido um declínio constante da reutilização de dialisadores nos Estados Unidos e na Europa desde o final da década de 1990, tal prática permanece predominante na maior parte do mundo em desenvolvimento.33 Dhrolia MF, Nasir K, Imtiaz S, Ahmad A. Dialyzer reuse: justified cost saving for south Asian region. J Coll Physicians Surg Pak 2014;24:591-6.

4 Prasad N, Jha V. Hemodialysis in Asia. Kidney Dis (Basel) 2015;1:165-77.

5 Cusumano A, Garcia GG, Di Gioia C, Hermida O, Lavorato C; Latin American Registry of Dialysis and Transplantation. The Latin American Dialysis and Transplantation Registry (RLDT) annual report 2004. Ethn Dis 2006;16:S2-10-3.
-66 Upadhyay A, Jaber BL. Reuse and Biocompatibility of Hemodialysis Membranes: Clinically Relevant? Semin Dial 2017;30:121-4.

A reutilização do dialisador envolve um complicado processo de várias etapas que inclui enxágue, limpeza, teste de desempenho e desinfecção de dialisadores antes da reutilização. O processo requer o uso de agentes de limpeza e germicidas potencialmente tóxicos, e o contato acidental com esses agentes pode expor os pacientes e a equipe de diálise a riscos à saúde.11 Lacson E Jr, Lazarus JM. Dialyzer best practice: single use or reuse? Semin Dial 2006;19:120-8.,77 Vanholder R, Noens L, De Smet R, Ringoir S. Development of anti-N-like antibodies during formaldehyde reuse in spite of adequate predialysis rinsing. Am J Kidney Dis 1988;11:477-80.

8 Ng YY, Yang AH, Wong KC, Lan HY, Hung TL, Kerr PG, et al. Dialyzer reuse: interaction between dialyzer membrane, disinfectant (formalin), and blood during dialyzer reprocessing. Artif Organs 1996;20:53-5.
-99 Schoenfeld PY. The technology of dialyzer reuse. Semin Nephrol 1997;17:321-30. Há também relatos de surtos de bacteremia por bactérias Gram-negativas no devido a falhas em sistemas de controle de infecção,1010 Oyong K, Marquez P, Terashita D, English L, Rivas H, Deak E, et al. Outbreak of bloodstream infections associated with multiuse dialyzers containing O-rings. Infect Control Hosp Epidemiol 2014;35:89-91.

11 Flaherty JP, Garcia-Houchins S, Chudy R, Arnow PM. An outbreak of gram-negative bacteremia traced to contaminated O-rings in reprocessed dialyzers. Ann Intern Med 1993;119:1072-8.
-1212 Welbel SF, Schoendorf K, Bland LA, Arduino MJ, Groves C, Schable B, et al. An outbreak of gram-negative bloodstream infections in chronic hemodialysis patients. Am J Nephrol 1995;15:1-4. e até mesmo um baixo nível de exposição a toxinas e contaminação microbiológica podem contribuir para inflamação crônica. Apesar desses riscos potenciais, não há nenhum ensaio clínico controlado randomizado comparando as práticas de uso único e reutilização, e as evidências de estudos observacionais são inconsistentes.66 Upadhyay A, Jaber BL. Reuse and Biocompatibility of Hemodialysis Membranes: Clinically Relevant? Semin Dial 2017;30:121-4.,1313 Galvao TF, Silva MT, Araujo ME, Bulbol WS, Cardoso AL. Dialyzer reuse and mortality risk in patients with end-stage renal disease: a systematic review. Am J Nephrol 2012;35:249-58. Há também uma preocupação com conflitos de interesse, já que estudos patrocinados por fabricantes de desinfetantes tendem a mostrar práticas de uso único e reutilização com resultados similares, enquanto aquelas patrocinadas por fabricantes de dialisadores são mais propensas a apresentar risco reduzido com uso único.1313 Galvao TF, Silva MT, Araujo ME, Bulbol WS, Cardoso AL. Dialyzer reuse and mortality risk in patients with end-stage renal disease: a systematic review. Am J Nephrol 2012;35:249-58.,1414 Lowrie EG, Ofsthun NJ. To reuse or not to reuse: a tale of 2 studies. Am J Kidney Dis 2006;47:372. Não obstante as evidências disponíveis, dados os 50 anos de experiência clínica com reutilização de dialisadores, existe um consenso geral de que o processo de reutilização é provavelmente seguro quando há adesão estrita aos padrões estabelecidos pela Associação para o Avanço da Instrumentação Médica (AAMI).1515 American National Standards Institute/Association for the Advancement of Medical Instrumentation (ANSI/AAMI). ANSI/AAMI RD: 2008/(R)2013 - Reprocessing of Hemodialyzers. Washington: ANSI/AAMI; 2013.

Tradicionalmente, a reutilização do dialisador foi empregada para melhorar a biocompatibilidade da membrana do dialisador, particularmente das membranas de celulose, e diminuir o risco de síndrome do primeiro uso observadas em dialisadores esterilizados com óxido de etileno. Essas vantagens da reutilização são agora discutíveis devido à ampla disponibilidade de membranas de dialisadores biocompatíveis e técnicas favoráveis de esterilização.66 Upadhyay A, Jaber BL. Reuse and Biocompatibility of Hemodialysis Membranes: Clinically Relevant? Semin Dial 2017;30:121-4. As considerações econômicas, por outro lado, continuam a tornar a reutilização de dialisadores atraente para muitos provedores de serviços de diálise. Considerações econômicas, no entanto, não são uniformes em todo o mundo ou, em muitos lugares, mesmo dentro do mesmo país. Há um argumento de que o custo-benefício com reutilização pode ser insignificante em áreas do mundo onde os custos relacionados ao pessoal que manipula o reuso e ao espaço de armazenamento seguro são altos.66 Upadhyay A, Jaber BL. Reuse and Biocompatibility of Hemodialysis Membranes: Clinically Relevant? Semin Dial 2017;30:121-4. Essa relativa economia de custos, no entanto, deve ser maior em áreas onde os custos com pessoal e espaço são baixos.33 Dhrolia MF, Nasir K, Imtiaz S, Ahmad A. Dialyzer reuse: justified cost saving for south Asian region. J Coll Physicians Surg Pak 2014;24:591-6.,55 Cusumano A, Garcia GG, Di Gioia C, Hermida O, Lavorato C; Latin American Registry of Dialysis and Transplantation. The Latin American Dialysis and Transplantation Registry (RLDT) annual report 2004. Ethn Dis 2006;16:S2-10-3.,1616 Qureshi R, Dhrolia MF, Nasir K, Imtiaz S, Ahmad A. Comparison of total direct cost of conventional single use and mechanical reuse of dialyzers in patients of end-stage renal disease on maintenance hemodialysis: A single center study. Saudi J Kidney Dis Transpl 2016;27:774-80. Até mesmo uma redução marginal de custos seria importante em sistemas de saúde sobrecarregados financeiramente, ou em casos em que os pacientes pagam de forma participativa o custo de seus tratamentos de diálise.

Nesse contexto, o Dr. Ribeiro e colegas relatam os achados de seu pequeno estudo transversal, analisando as diferenças nos parâmetros clínicos e microbiológicos em situações de uso único e reutilização.1717 Ribeiro IC, Roza NAV, Duarte DA, Guadagnini D, Elias RM, Oliveira RB. Clinical and microbiological effects of dialyzers reuse in hemodialysis patients. Braz. J. Nephrol 2019;24:pii: S0101-28002019005004103. Dez pacientes foram selecionados para se submeterem a um tratamento de hemodiálise usando o sistema de uso único, e doze foram selecionados para tratamentos de hemodiálise utilizando a prática de reutilização. Parâmetros clínicos, laboratoriais e microbiológicos foram coletados durante o tratamento de uso único (N = 10 sessões) e durante o 1º, 6º e 12º tratamentos com reutilização (N = 30 sessões). Foram utilizados dialisadores de polisulfona de alto fluxo que foram esterilizados a vapor, e o reprocessamento foi feito manualmente usando o protocolo institucional que foi baseado nos padrões da AAMI. Os dialisadores foram limpos usando a solução composta de ácido peracético, peróxido de hidrogênio, ácido acético e oxigênio ativo (Peroxide P50, Bell Type Industries, Brasil). Biomarcadores inflamatórios, proteína C-reativa (PCR) e ferritina estavam em altos valores basais e aumentam após a hemodiálise em tratamentos de uso único e reutilização. Os níveis de endotoxina foram semelhantes antes e depois dos tratamentos de uso único e reutilização. A mediana dos níveis séricos de PCR e endotoxinas, tratamentos pré e pós-hemodiálise, não foram significativamente diferentes entre as sessões de uso único e reutilização. Resíduos de sangue e proteína foram encontrados na maioria dos dialisadores após as sessões de reutilização, mas as amostras do líquido sanitizante armazenado na câmara de sangue do dialisador estavam livres de contaminação bacteriana e endotoxinas.

Embora os achados deste estudo forneçam garantias sobre a segurança da reutilização do dialisador, existem ressalvas importantes. Primeiro, não houve fase de wash-out no estudo, e os pacientes estavam usando dialisadores reutilizados antes de seu primeiro e único tratamento de uso único. Portanto, se houver algum benefício para o dialisador de uso único, um tratamento isolado pode não ser adequado para observar uma alteração nos parâmetros clínicos e laboratoriais. Segundo, as consequências adversas da reutilização tendem a ocorrer quando há erros humanos na implementação dos padrões da AAMI. Portanto, mesmo sendo um achado reconfortante em um estudo com dez pacientes, ainda há a questão de saber se a prática de reutilização é segura em grandes sistemas de saúde, onde qualquer falha na execução de padrões de reprocessamento pode levar a resultados adversos para o paciente. Terceiro, os resultados deste estudo são válidos apenas para o tipo de dialisadores e agentes de limpeza usados no estudo, a saber, dialisadores de polissulfona de alto fluxo esterilizados a vapor e o sistema de limpeza à base de ácido peracético. Não seria, portanto, aconselhável extrapolar esses achados para dialisadores de celulose modificada, dialisadores que usam outras práticas de esterilização além do vapor, ou para a reutilização de sistemas que não usam agentes de limpeza à base de ácido peracético.

Em conclusão, o estudo do Dr. Ribeiro e colegas reforça a noção de que a prática de reutilização do dialisador é provavelmente segura quando realizada de acordo com os padrões estabelecidos pela AAMI. O raciocínio médico para a reutilização de dialisadores, no entanto, é obsoleto na era atual dos dialisadores biocompatíveis, e o potencial de economia de custos é a única razão para sua prática continuada. Agora é imperativo realizar uma análise sistemática de custo-benefício das práticas de reutilização nos países em desenvolvimento, onde qualquer economia de custos pode ter um impacto importante na disponibilidade dos tratamentos de hemodiálise.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2019
  • Aceito
    02 Jul 2019
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