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Ascite refratária e disfunção do enxerto no pós-transplante renal precoce

Resumo

A ocorrência de ascite no pós-Transplante Renal (TR) é infrequente, podendo ser consequência de complicações cirúrgicas ou médicas. Caso clínico: 61 anos, masculino, antecedentes de hipertensão arterial, carcinoma da língua e hábitos alcoólicos 12-20g/dia. Doença renal crônica secundária à doença renal poliquística autossômica dominante, sem poliquistose hepática. Submetido a TR de doador cadáver em setembro de 2017. Atraso na função de enxerto por estenose da artéria renal, corrigida cirurgicamente. Internado em janeiro de 2018 por ascite de novo, sem resposta a diuréticos. Circulação colateral abdominal visível. Disfunção do enxerto, tacrolinemia adequada. Sedimento urinário inocente. Anemia ligeira, sem trombocitopenia. Albumina sérica 4,0g/dL. Bioquímica hepática normal. Líquido peritoneal com características de transudado e gradiente sero-ascítico de albumina > 1,1. Ecografia com hepatomegalia, eixos vasculares permeáveis, sem esplenomegalia. Suspendeu micofenolato mofetil, reduziu restante imunossupressão. Manteve ascite refratária: excluídas etiologias infecciosas, metabólicas, autoimunes e neoplásicas. Sem proteinúria nefrótica e sem insuficiência cardíaca. RM: micronódulos compatíveis com quistos biliares. EDA sem varizes gastroesofágicas. Linfocintigrafia abdominal normal. Submetido a laparoscopia exploradora com biópsia hepática: cirrose septal incompleta de provável etiologia vascular, alguns ductos biliares dilatados. Manteve disfunção progressiva do TR, reiniciou hemodiálise. Proposta medição direta da pressão portal, protelada por resolução da ascite. Recuperação posterior da função de enxerto. Discussão: A cirrose septal incompleta é uma causa incomum de hipertensão portal não cirrótica. A sua definição é morfológica e a fisiopatologia, pouco conhecida. Não encontramos publicados casos de ascite pós-TR secundária a esta patologia, descrita como possivelmente associada a fármacos, alterações imunitárias, infecções, hipercoagulabilidade e predisposição genética.

Palavras-chave:
Transplante de Rim; Ascite; Fibrose; Preparações Farmacêuticas.

Abstract

The occurrence of ascites after Renal Transplant (RT) is infrequent, and may be a consequence of surgical or medical complications. Case report: 61 year-old, male, history of arterial hypertension, tongue carcinoma and alcoholic habits 12-20g/day. He had chronic kidney disease secondary to autosomal dominant polycystic kidney disease, without hepatic polycystic disease. He underwent cadaver donor RT in September 2017. He had delayed graft function by surgically corrected renal artery stenosis. He was admitted in January 2018 for ascites de novo, with no response to diuretics. HE had visible abdominal collateral circulation. Graft dysfunction, adequate tacrolinemia, Innocent urinary sediment, mild anemia, without thrombocytopenia. Serum albumin 4.0g / dL. Normal hepatic biochemistry. Peritoneal fluid with transudate characteristics and serum albumin gradient > 1.1. Ultrasound showed hepatomegaly, permeable vascular axes, without splenomegaly. Mycophenolate mofetil was suspended, with reduced remaining immunosuppression. He maintained refractory ascites: excluded infectious, metabolic, autoimmune and neoplastic etiologies. No nephrotic proteinuria and no heart failure. MRI: micronodules compatible with bile cysts. Upper Digestive Tract Endoscopy did not show gastroesophageal varicose veins. Normal abdominal lymphoscintigraphy. He underwent exploratory laparoscopy with liver biopsy: incomplete septal cirrhosis of probable vascular etiology some dilated bile ducts. He maintained progressive RT dysfunction and restarted hemodialysis. The proposed direct measurement of portal pressure was delayed by ascites resolution. There was further recovery of the graft function. Discussion: Incomplete septal cirrhosis is an uncommon cause of non-cirrhotic portal hypertension. Its definition is not well known, morphological and pathophysiological. We have not found published cases of post-RT ascites secondary to this pathology, described as possibly associated with drugs, immune alterations, infections, hypercoagulability and genetic predisposition.

Keywords:
Kidney Transplantation; Ascites; Fibrosis; Pharmaceutical Preparations.

Introdução

O termo "ascite" refere-se a uma acumulação patológica de líquido na cavidade peritoneal. Associa-se à sintomatologia e alterações no exame físico quando o volume é superior a 1,5 L, sendo volumes menores diagnosticados imagiologicamente.11 Sood R. Ascites: Diagnosis and Management. J Indian Acad Clin Med 2004;5:81-9.,22 Tsochatzis EA, Gerbes AL. Diagnosis and treatment of ascites. J Hepatol 2017;67:184-5. DOI: 10.1016/j.jhep.2017.01.011
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Na sua etiologia, podem estar condições que envolvam diretamente o peritoneu (infecção, neoplasia), ser consequência de alterações de outro órgão, ou sistêmicas. No Ocidente, a cirrose é a principal causa de ascite (75%), seguida de neoplasia peritoneal (12%), insuficiência cardíaca (5%) ou tuberculose peritoneal (2%).33 Garcia-Tsao G. Ascites. In: Dooley JS, Lok ASF, Burroughs AK, Heathcote MB, eds. Sherlock's Diseases of the Liver and Biliary System. 12th ed. Hoboken: Backwell; 2011. p. 210-33. A ascite pode ainda classificar-se como associada à hipertensão portal (da qual são exemplo a cirrose hepática, insuficiência cardíaca ou síndrome de Budd-Chiari) ou não associada à hipertensão portal (peritonite ou metastização peritoneal).44 Markov M, Van Thiel DH, Nadir A. Ascites and kidney transplantation: case report and critical appraisal of the literature. Dig Dis Sci 2007;52:3383-8. DOI: 10.1007/s10620-006-9727-7
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Outra etiologia, pouco comum nos países ocidentais, é a hipertensão portal não cirrótica idiopática, sendo por isso raramente considerada nos diagnósticos diferenciais.55 Hübscher SG. Pathology of non-cirrhotic portal hypertension and incomplete septal cirrhosis. Diagn Histopathol 2011;17:530-8. DOI: 10.1016/j.mpdhp.2011.10.003
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Pouco se sabe sobre a fisiopatologia dessa entidade, que se define pela presença de um quadro clínico de hipertensão portal na ausência de cirrose ou doença hepática conhecida.66 Ibarrola C, Colina F. Clinicopathological features of nine cases of non-cirrhotic portal hypertension: current definitions and criteria are inadequate. Histopathology 2003;42:251-64.

Num paciente com quadro clínico inaugural de ascite, devem ser realizados uma história clínica e exame físico detalhados, bem como avaliação analítica e imagiológica.22 Tsochatzis EA, Gerbes AL. Diagnosis and treatment of ascites. J Hepatol 2017;67:184-5. DOI: 10.1016/j.jhep.2017.01.011
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A paracentese diagnóstica é o exame que isoladamente oferece mais informação e deve ser realizada precocemente.11 Sood R. Ascites: Diagnosis and Management. J Indian Acad Clin Med 2004;5:81-9. Um gradiente sero-ascítico de albumina (GSAA) superior a 1,1 g/dL tem 97% de acuidade diagnóstica para ascite secundária à hipertensão portal.22 Tsochatzis EA, Gerbes AL. Diagnosis and treatment of ascites. J Hepatol 2017;67:184-5. DOI: 10.1016/j.jhep.2017.01.011
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,33 Garcia-Tsao G. Ascites. In: Dooley JS, Lok ASF, Burroughs AK, Heathcote MB, eds. Sherlock's Diseases of the Liver and Biliary System. 12th ed. Hoboken: Backwell; 2011. p. 210-33.

A ocorrência de ascite no pós-transplante renal é rara e pode surgir tanto com função de enxerto preservada ou em situações de sua disfunção.44 Markov M, Van Thiel DH, Nadir A. Ascites and kidney transplantation: case report and critical appraisal of the literature. Dig Dis Sci 2007;52:3383-8. DOI: 10.1007/s10620-006-9727-7
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Estão descritos casos associados a problemas como rejeição, descapsulação do enxerto, leak urinário ou vascular, linfocelo, transudação ou infecção.77 Castro G, Freitas C, Beirão I, Rocha G, Henriques AC, Cabrita A. Chylous ascites in a renal transplant recipient under sirolimus (rapamycin) treatment. Transplant Proc 2008;40:1756-8. DOI: 10.1016/j.transproceed.2008.02.074
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,88 Kawaguchi S, Nohara T, Shima T, Matsuyama S, Nose C, Yamahana J, et al. Massive Ascites in a Renal Transplant Patient after Laparoscopic Fenestration of a Lymphocele. Case Rep Transplant 2016;2016:7491627. DOI: 10.1155/2016/7491627
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Ainda raros casos reportados associam a presença de ascite e hepatotoxicidade a fármacos imunossupressores, como o micofenolato de mofetil, azatioprina e sirolimus.77 Castro G, Freitas C, Beirão I, Rocha G, Henriques AC, Cabrita A. Chylous ascites in a renal transplant recipient under sirolimus (rapamycin) treatment. Transplant Proc 2008;40:1756-8. DOI: 10.1016/j.transproceed.2008.02.074
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,99 Weber NT, Sigaroudi A, Ritter A, Boss A, Lehmann K, Goodman D, et al. Intractable ascites associated with mycophenolate in a simultaneous kidney-pancreas transplant patient: a case report. BMC Nephrol 2017;18:360. DOI: 10.1186/s12882-017-0757-5
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,1010 Gane E, Portmann B, Saxena R, Wong P, Ramage J, Williams R. Nodular regenerative hyperplasia of the liver graft after liver transplantation. Hepatology 1994;20:88-94. A ascite nefrogênica deve também ser considerada em casos de disfunção renal avançada ou terminal. A sua fisiopatologia é desconhecida, mas admite-se que exista um aumento da permeabilidade da membrana peritoneal com consequente exsudação, caracterizando-se por GSAA inferior a 1,1 g/dL.1111 Han SH, Reynolds TB, Fong TL. Nephrogenic ascites. Analysis of 16 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore) 1998;77:233-45.

Caso clínico

Doente de 61 anos, sexo masculino, com antecedentes de hipertensão arterial, carcinoma da língua, submetido a glossectomia parcial 8 anos antes. Hábitos tabagistas inativos e hábitos alcoólicos de cerca de 12-20 g/dia. História pessoal e familiar de doença renal crônica secundária à Doença Renal Poliquística Autossômica Dominante, sem atingimento hepático diagnosticado. Período de 4 anos em hemodiálise, sem intercorrências. Realizou nefrectomia do rim direito em preparação para o transplante renal (TR). Sem história conhecida de transfusões sanguíneas ou eventos hiperssensibilizantes. Submetido a TR de doador cadáver quatro meses antes do quadro atual, com três incompatibilidades HLA Classe I e uma Classe II, sem anticorpos antidoador. Doador e receptor com imunidade previamente adquirida para CMV (IgG positiva nas serologias de ambos).

Fez imunossupressão de indução com Basiliximab, tacrolimus, micofenolato de mofetil (MMF) e metilprednisolona. Atraso na função de enxerto por estenose da artéria renal, corrigida cirurgicamente no pós-TR imediato. À data de alta Creatinina Sérica (CrS) 2,6 mg/dL. Sem necessidade de realização de transfusão de concentrado eritrocitário no período pós-TR. Manteve seguimento em ambulatório, com CrS basal 2,6-2,8 mg/dL. Medicado habitualmente com tacrolimus, prednisolona, micofenolato de mofetil, pantoprazol, furosemida, amlodipina, carvedilol, lisinopril, tansulosina, ácido fólico, vitaminas do Complexo B e análogo da eritropoetina. Foi internado em decorrência de quadro de ascite de novo, de agravamento progressivo, sem resposta a incremento da terapêutica diurética. Sem dispneia, ortopneia. Circulação colateral abdominal visível e ligeiros edemas periféricos no exame físico, sem outras alterações de relevo. Analiticamente apresentava agravamento da função de enxerto (CrS 4,5 mg/dL), com níveis de tacrolinemia adequados (Tacrolimus 8,9 ng/mL). Anemia ligeira (Hb 10,7 g/dL), sem trombocitopenia (Plaquetas 154.000). Albumina sérica 4,0 g/dL, LDH 266 U/L. Bioquímica hepática sem alterações (TGO 24 U/L, TGP 15 U/L, GGT 32 U/L, fosfatase alcalina 55 U/L, Bilirrubina total 0,25 mg/dL). Estudo da coagulação normal. Sedimento urinário inocente, com ratio P/CrU 0,33. Submetido a paracentese diagnóstica e evacuadora, com drenagem de líquido peritoneal (LP) de aspecto ligeiramente leitoso, mas sem celularidade diagnóstica de peritonite, com características bioquímicas de transudado (por proteínas totais e LDH), GSAA > 1,1 g/dL e triglicéridos no limite superior do normal (210 mg/dL, sendo o limite superior 200 mg/dL), o que poderia justificar o aspecto macroscópico do LP. Ecografia abdominal mostrou hepatomegalia (16,3 cm; altura do doente 165 cm), com fígado de contornos regulares e aumento da ecogenicidade do parênquima. Eixos vasculares permeáveis e ausência de esplenomegalia. Suspendeu MMF e reduziu restante imunossupressão. Manteve ascite refratária, com necessidade de paracenteses evacuadoras frequentes e drenagens superiores a 3 L (administrada albumina i.v. quando ≥ 5 L).

A disfunção do enxerto foi interpretada no contexto de depleção de volume intravascular efetivo por perdas para o terceiro espaço e aumento marcado da pressão intra-abdominal (ascite de grande volume sob tensão), o que foi corroborado pela melhoria transitória da função de enxerto objetivada imediatamente após realização de paracenteses evacuadoras (CrS mínima 3,1 mg/dL). Os resultados dos exames microbiológico, micológico e micobacteriológico do LP foram negativos. Serologias de hepatites virais e HIV negativas. Alfa-fetoproteína, cobre, ceruloplasmina, alfa-1-antitripsina e marcadores de autoimunidade hepática negativos. Ferritina ligeiramente aumentada (467 mg/dL). Citometria de fluxo do sangue periférico e LP normal. Exame parasitológico das fezes negativo. TAC contrastado revelou nódulos hepáticos hipervasculares milimétricos dispersos e pequenos quistos biliares simples. RM com contraste hépato-específico mostrou múltiplos micronódulos com características sugestivas de quistos biliares. Endoscopia digestiva alta sem varizes gastroesofágicas. Linfocintigrafia abdominal sem alterações. Ecocardiograma transtorácico sem alterações relevantes.

O presente caso foi discutido em Reunião Multidisciplinar: pela ausência de dados orientadores do diagnóstico, foi sugerida realização de laparoscopia exploradora. Intraoperatoriamente, fígado com aspecto macroscópico nodular. Foi realizada no mesmo ato operatório, biópsia hepática cirúrgica, em cunha, cuja leitura anatomopatológica revelou achados de cirrose septal incompleta de provável etiologia vascular (doença veno-oclusiva) e dutos biliares dilatados em alguns espaços porta (Figuras 1 e 2). O doente evoluiu com disfunção progressiva do TR e necessidade de iniciar hemodiálise regular. Em consulta posterior de Gastroenterologia, foi proposta medição directa da pressão portal, com vista a eventual realização de shunt porto-sistémico intra-hepático transjugular, que no entanto foi protelada por resolução completa da ascite. Dada a evolução favorável, não foi também realizado o estudo de distúrbios de hipercoagulabilidade. Após um mês em diálise regular, o doente recuperou função de enxerto. Manteve função de TR estável, com CrS 1.9mg/dL, sob imunossupressão dupla (tacrolimus e prednisolona). Aos 6 meses de follow-up, sem recidiva da ascite.

Figura 1
Histologia hepática. Coloração Reticulina 100 x. Observamse septos fibrosos que esboçam de forma incompleta um nódulo.

Figura 2
Histologia hepática. Tricrômio de Masson 200 x. Observa-se veia centrolobular com alterações sugestivas de doença veno-oclusiva.

Discussão

O termo cirrose septal incompleta (CSI) foi primeiramente introduzido por Popper em 1966.1212 Bernard PH, Le Bail B, Cransac M, Barcina MG, Carles J, Balabaud C, et al. Progression from idiopathic portal hypertension to incomplete septal cirrhosis with liver failure requiring liver transplantation. J Hepatol 1995;22:495-9. Estudos de revisão de biópsias hepáticas revelaram uma frequência de CSI de 0,74-1,4%.1313 Schinoni MI, Andrade Z, de Freitas LA, Oliveira R, Paraná R. Incomplete septal cirrhosis: an enigmatic disease. Liver Int 2004;24:452-6. DOI: 10.1111/j.1478-3231.2004.0989.x
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Histologicamente caracteriza-se por nodularidade do parênquima hepático, existência de septos finos e incompletos, espaços porta hipoplásicos, aumento da vascularização venosa, acumulação de reticulina entre zonas de parênquima hiperplásico, dilatação sinusoidal e hiperplasia hepatocitária.1414 Barnett JL, Appelman HD, Moseley RH. A familial form of incomplete septal cirrhosis. Gastroenterology 1992;102:674-8. Um dos mecanismos fisiopatológicos sugeridos foi a existência de venopatia portal obliterativa, com consequente heterogeneidade na irrigação portal do parênquima hepático.1212 Bernard PH, Le Bail B, Cransac M, Barcina MG, Carles J, Balabaud C, et al. Progression from idiopathic portal hypertension to incomplete septal cirrhosis with liver failure requiring liver transplantation. J Hepatol 1995;22:495-9.

A CSI é um dos padrões de apresentação histológica da hipertensão portal não cirrótica idiopática (HPNCI), e é considerada por vários autores como um estágio de manifestação da doença.1212 Bernard PH, Le Bail B, Cransac M, Barcina MG, Carles J, Balabaud C, et al. Progression from idiopathic portal hypertension to incomplete septal cirrhosis with liver failure requiring liver transplantation. J Hepatol 1995;22:495-9.,1515 Schouten JN, Garcia-Pagan JC, Valla DC, Janssen HL. Idiopathic noncirrhotic portal hypertension. Hepatology 2011;54:1071-81. DOI: 10.1002/hep.24422
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A nomenclatura internacional da HPNCI é ambígua. Na Ásia, onde é mais frequente, é conhecida por fibrose portal não cirrótica (Índia) e por hipertensão portal idiopática (Japão). Já no Ocidente, tem sido apelidada de esclerose hepatorrenal, hipertensão portal idiopática, cirrose septal incompleta e hiperplasia nodular regenerativa.1515 Schouten JN, Garcia-Pagan JC, Valla DC, Janssen HL. Idiopathic noncirrhotic portal hypertension. Hepatology 2011;54:1071-81. DOI: 10.1002/hep.24422
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As principais etiologias propostas para a HPNCI são: infecciosas (infecções bacterianas do aparelho gastrointestinal e piemia umbilical com embolização séptica repetida para a circulação portal, schistosomíase e HIV); imunológicas (esclerose sistêmica, lúpus eritematoso sistêmico, hipogamaglobulinemia); exposição a fármacos e toxinas (arsênio, azatioprina); estados pro-trombóticos.1616 Sarin SK, Kumar A, Chawla YK, Baijal SS, Dhiman RK, Jafri W, et al.; Members of the APASL Working Party on Portal Hypertension. Noncirrhotic portal fibrosis/idiopathic portal hypertension: APASL recommendations for diagnosis and treatment. Hepatol Int 2007;1:398-413. DOI: 10.1007/s12072-007-9010-9
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São descritas ainda raras formas de predisposição genética e familiares.1414 Barnett JL, Appelman HD, Moseley RH. A familial form of incomplete septal cirrhosis. Gastroenterology 1992;102:674-8.,1515 Schouten JN, Garcia-Pagan JC, Valla DC, Janssen HL. Idiopathic noncirrhotic portal hypertension. Hepatology 2011;54:1071-81. DOI: 10.1002/hep.24422
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Os critérios diagnósticos da HPNCI são a presença de um sinal clínico de hipertensão portal (esplenomegalia/hiperpesplenismo, varizes esofágicas, ascite, aumento do gradiente de pressão venosa hepática ou presença de colaterais porto-venosos), após ter sido excluída a existência de cirrose, trombose vascular da veia porta e hepática, e condições que possam estar associadas à doença hepática crônica (infecciosas, autoimunes, metabólicas, etc.).1515 Schouten JN, Garcia-Pagan JC, Valla DC, Janssen HL. Idiopathic noncirrhotic portal hypertension. Hepatology 2011;54:1071-81. DOI: 10.1002/hep.24422
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,1717 Dhiman RK, Chawla Y, Vasishta RK, Kakkar N, Dilawari JB, Trehan MS, et al. Non-cirrhotic portal fibrosis (idiopathic portal hypertension): experience with 151 patients and a review of the literature. J Gastroenterol Hepatol 2002;17:6-16.

No caso clínico aqui descrito, o aparecimento de ascite parece estar temporalmente relacionado com o TR. Foram por isso excluídas complicações cirúrgicas tardias por meio de exames de imagem. A análise bioquímica do LP revelou um GSAA > 1,1 g/dL, o que é sugestivo de hipertensão portal e é corroborado pela presença de circulação venosa colateral exuberante na parede abdominal, e hepatomegalia. Apesar de não coexistirem esplenomegalia e varizes esofágicas, o quadro clínico, à data do diagnóstico, apresentava pouco tempo de evolução, o que poderá justificar a ausência destes achados. Um GSAA >1,1 g/dL torna pouco provável etiologias como a ascite secundária à peritonite infecciosa, nefrogênica ou neoplásica, que ainda assim foram investigadas e excluídas. Orientando a investigação diagnóstica para as principais causas de ascite associada à hipertensão portal, foram excluídas a trombose de eixos vasculares intra-abdominais, a presença de cirrose hepática ou doença hepática (metabólica, autoimune e viral), bem como a existência de insuficiência cardíaca ou síndrome nefrótica que pudessem justificar o quadro clínico.

Os autores chegaram assim ao diagnóstico histológico de cirrose septal incompleta, após laparoscopia exploradora e biópsia hepática cirúrgica. As principais causas que se pensam estar associadas a essa entidade foram acima descritas e também maioritariamente excluídas ao longo da investigação diagnóstica. Permanece, contudo, a hipótese de a CSI, no caso do nosso doente, poder estar associada à exposição farmacológica, nomeadamente ao MMF. Existe na literatura apenas um caso descrito de ascite refratária, após transplante rim-pâncreas, cuja associação ao ácido micofenólico foi confirmada após reaparecimento da ascite com a sua reintrodução. Neste caso, contudo, não foi realizada biopsia hepática.99 Weber NT, Sigaroudi A, Ritter A, Boss A, Lehmann K, Goodman D, et al. Intractable ascites associated with mycophenolate in a simultaneous kidney-pancreas transplant patient: a case report. BMC Nephrol 2017;18:360. DOI: 10.1186/s12882-017-0757-5
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A doença veno-oclusiva, que foi descrita como possível etiologia da Cirrose Septal Incompleta no nosso caso clínico, caracteriza-se por perda da integridade da parede sinusoidal e venulite obliterativa, e tem sido amplamente descrita como associada aos esquemas mielo-ablativos utilizados no transplante de células hematopoiéticas. Contudo, foi também descrita como secundária a outros esquemas de quimioterapia, radioterapia, chás/produtos de ervanária e a outras terapêuticas farmacológicas, entre as quais se destaca, com interesse para o nosso caso, o fármaco antimetabólito Azatioprina.1818 Fan CQ, Crawford JM. Sinusoidal obstruction syndrome (hepatic veno-occlusive disease). J Clin Exp Hepatol 2014;4:332-46.,1919 European Association for the Study of the Liver. Electronic address: easloffice@easloffice.eu. EASL Clinical Practice Guidelines: Vascular diseases of the liver. J Hepatol 2016;64:179-202.

No nosso doente, após um mês em programa regular de hemodiálise, houve resolução da ascite e recuperação da função de enxerto. Após 6 meses de follow-up, com imunossupressão dupla (prednisolona e tacrolimus [tacrolinemia baixa, entre 5-6 ng/mL]), o doente não apresentava evidência de recidiva da ascite, confirmada imagiologicamente, o que é mais um dado a favor da possível associação entre o MMF, ascite refratária e cirrose septal incompleta/HPNCI, descrita neste caso clínico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2018
  • Aceito
    31 Jan 2019
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