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A Sociedade Brasileira de Nefrologia e a pandemia pela Covid-19

Em dezembro de 2019, a Covid-19, doença causada pelo novo betacoronavírus SARS-CoV-2, foi identificada pela primeira vez na China11. Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A novel coronavirus from patients with pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020 Feb;382:727-33. doi:10.1056/NEJMoa2001017
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. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a epidemia pela Covid-19 constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII)22. Sohrabi C, Alsafi Z, O’Neill N, Khan M, Kerwan A, Al-Jabir A, et al. World Health Organization declares global emergency: a review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). Int J Surg. 2020 Apr;76:71-76. doi: 10.1016/j.ijsu.2020.02.034.
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. No Brasil, em 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde (MS) declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN)33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV) [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília (DF), 2020 fev; Seção Extra: 1. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388 .
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. Nesse momento, ainda não tinham sido notificados casos no país, o que veio a ocorrer em 26 de fevereiro de 2020, com a confirmação do primeiro caso importado, vindo da Itália44. Oliveira WK, Duarte E, França GVA, Garcia LP. How Brazil can hold back COVID-19. Epidemiol Serv Saude . 2020;29(2):e2020044. doi:10.5123/s1679-49742020000200023.
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. No dia 11 de março de 2020, um dia antes do Dia Mundial do Rim, a OMS declarou tratar-se de uma pandemia. Poucos dias depois, em 20 de março de 2020, a transmissão comunitária no Brasil foi reconhecida pelo MS em todo o território nacional55. Ministério da Saúde (BR). Ministério da Saúde declara transmissão comunitária nacional [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/%20agencia-saude/46568-ministerio-da-saude-declaratransmissao-comunitaria-nacional
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A infecção tem sido reportada em todas as faixas etárias, com espectro de gravidade variável. A maior parte dos pacientes que evolui de forma mais grave tem doenças pré-existentes ou é idosa. Cerca de 80% dos casos são assintomáticos ou apresentam sintomas leves, semelhantes aos da gripe66. Guan WJ, Ni ZY, Hu Y, Liang WH, Ou CQ, He JX, et al. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1056/NEJMoa2002032 .
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. Cerca de 20% dos casos são mais graves, evoluindo com pneumonia severa, necessitando de hospitalização. Destes, 5% são críticos, evoluindo com Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo e necessidade de suporte intensivo77. Zhou F, Yu T, Du R, Fan G, Liu Y, Liu Z, et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult in patients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020 Mar 28;395(10229):1054-1062. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30566-3.
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Do ponto de vista nefrológico, a Covid-19 tem diversas e importantes implicações. A primeira é o próprio acometimento renal pela doença, podendo ocorrer hematúria, proteinúria, e insuficiência renal aguda (IRA). A IRA ocorre principalmente nos pacientes críticos, que podem vir a necessitar de diálise. Outra implicação é que grande parte dos pacientes nefrológicos faz parte do grupo de risco para complicações da doença. Além disso, há implicações no tratamento dialítico dos pacientes em regime de diálise crônica. Tal tratamento precisa ser mantido no período da pandemia, o que envolve cuidados e procedimentos a serem adotados pelos pacientes, profissionais de saúde, gestores de centros de diálise e autoridades sanitárias.

Nesse novo cenário mundial, a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) procurou atuar prontamente, traçando um planejamento de recomendações, que foram elaboradas com o apoio dos seus diversos departamentos e comitês para auxiliar o nefrologista e as autoridades sanitárias no enfrentamento das diversas situações clínicas decorrentes dessa nova doença. Nossa primeira recomendação, relativa ao cuidado dos pacientes em diálise, foi publicada em 1 de março de 2020, precedendo a declaração pela OMS de que a Covid-19 era uma pandemia. Por se tratar de um vírus novo no Brasil e no mundo, as recomendações caminharam juntas com a evolução do conhecimento da doença e acompanharam as recomendações e determinações do Conselho Federal de Medicina (CFM) e as do Ministério da Saúde (MS). Além disso, a SBN procurou congregar outras sociedades de especialidades, de forma a tornar os documentos mais robustos cientificamente. Foram publicados treze recomendações e posicionamentos envolvendo as diversas áreas de atuação do nefrologista.

A grande preocupação que se estabeleceu, no início dos primeiros casos em nosso país, foi a respeito do comportamento da Covid-19 dentro das unidades de hemodiálise (HD), já que o confinamento social não poderia ser aplicável a essa população extremamente susceptível a complicações da doença. Em vista disso, o Departamento de Diálise da SBN elaborou as “Recomendações de boas práticas da SBN às unidades de diálise em relação à epidemia do novo coronavírus (Covid-19)”, elencando as principais medidas para evitar a propagação do vírus, e assim propiciar maior segurança aos pacientes e profissionais envolvidos no atendimento dentro dessas unidades. Outra recomendação que abordou aspectos específicos da HD foi a de “Manutenção de acessos vasculares na pandemia da Covid-19” , elaborada pelo Comitê de Nefrologia Intervencionista da SBN. Nessa nota, o comitê propõe condutas quanto à necessidade de confecção de novos acessos, ao manejo de sua disfunção e aos procedimentos de intervenção que podem ser considerados de emergência ou eletivos durante a pandemia.

Ainda em relação à diálise crônica, o Comitê de Diálise Peritoneal confeccionou as “Recomendações de boas práticas da SBN aos serviços de diálise peritoneal em relação à epidemia do novo coronavírus (Covid-19)” , que orientam as condutas relativas a esse grupo de pacientes, tanto no que tange aos cuidados médicos e de enfermagem durante o tratamento domiciliar quanto aos cuidados nas consultas presenciais. Destaca-se, nessa recomendação, a adoção da telemedicina (teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta) como importante ferramenta, após ofício emitido pelo CFM (Ofício CFM nº 1.756/2020) reconhecendo a possibilidade da prática, dado o contexto da pandemia.

Desde o início da pandemia, a realização e interpretação de exames dentro das unidades de hemodiálise foram, e continuam sendo, uma importante preocupação dos nefrologistas. As “Recomendações da SBN para abordagem de exames diagnósticos da Covid-19 nas unidades de hemodiálise” orientam as unidades quanto aos testes laboratoriais para Covid-19 sobre os critérios clínicos para tomada de decisão na descontinuação do isolamento de pacientes e retorno às atividades de profissionais de saúde e colaboradores com suspeita ou confirmação da doença. Foram elaborados fluxogramas práticos que auxiliassem na rotina das diálises, para que esses exames pudessem ser interpretados de maneira prática e objetiva dentro das unidades.

No campo da prevenção, muitas das recomendações englobaram aspectos importantes relativos ao contágio do vírus, adaptando as recomendações do MS para a população geral e os pacientes nefrológicos, assim como para a equipe de profissionais envolvidos nas diferentes áreas da nefrologia. O uso de máscaras, desde o início da pandemia, foi objeto de intenso debate na comunidade científica e leiga. A Nota Informativa nº 3/2020- CGGAP/DESF/SAPS/MS, na qual o MS recomendou o uso de máscara de pano por toda a população fora do domicílio, foi objeto de manifestação de nossa entidade por meio das “Recomendações da SBN quanto ao uso de máscaras de pano por pacientes renais crônicos em diálise, durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19)” . Tais recomendações foram elaboradas com a colaboração de membros da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), o que agregou maior respaldo científico nesse tema que tomou conta tanto da mídia quanto do público em geral. Ressalta-se que tal recomendação foi contextualizada no cenário de necessária priorização de máscaras cirúrgicas para profissionais de saúde e pacientes com suspeita ou confirmação da doença.

No campo das condutas clínicas com os pacientes nefrológicos em época de pandemia, foram também elaboradas recomendações envolvendo diversas áreas da especialidade. Nas “Informações para pacientes com Doença Renal Crônica (DRC) sobre a infecção pela Covid-19” , foram descritas importantes orientações para esses pacientes, contextualizados na nefrologia clínica, quanto à prevenção e ao tratamento, e inclusive quanto ao uso de imunossupressores. No “Protocolo de orientação para colegas que cuidem de pacientes portadores de doenças renais raras em virtude da epidemia da SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome, Coronavirus 2)”, foram elaboradas medidas gerais de recomendação a pacientes e nefrologistas quanto à condução de pacientes clinicamente estáveis e quanto ao manejo do tratamento imunossupressor quando necessário, dentre outras orientações. Também no campo das condutas clínicas, os leitores poderão encontrar as recomendações de “Cuidado paliativo e a pandemia Covid-19” , que abordam importantes conceitos relativos à tomada de decisão compartilhada (equipe, paciente e família), ao prioritário manejo dos sintomas e à assistência ao luto.

As condutas relativas aos pacientes da nefrologia pediátrica também estão contempladas nesse suplemento por meio do Departamento de Nefrologia Pediátrica, que elaborou as “Recomendações para pacientes pediátricos em hemodiálise, diálise peritoneal e transplantados renais na pandemia Covid-19 (SARS-CoV-2)” e as “Recomendações da SBN para pacientes pediátricos em diálise durante a pandemia de Covid-19” . Nessas recomendações, estão descritas orientações quanto ao manejo de crianças em diálise, no pré e pós-transplante renal, assim como na diálise peritoneal. Orientações para profissionais de saúde e para clínicas e centros de transplante também foram englobadas, além de um modelo de fluxograma proposto para centros de diálise.

Além das recomendações descritas, a SBN precisou se posicionar em dois momentos distintos quanto à prescrição de medicamentos específicos. No primeiro caso, o Departamento de Hipertensão Arterial da SBN se manifestou sobre “O uso de bloqueadores do SRAA, especialmente inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) e antagonistas dos receptores AT1 da AII, durante o curso de Infecção pela Covid-19” . Tal posicionamento foi necessário por causa da ampla discussão na comunidade científica quanto à possível associação desses medicamentos ao maior risco de infecção grave por Covid-19. Diante do devido respaldo científico, e indo ao encontro de diversos posicionamentos nacionais e internacionais, foi recomendada a manutenção dessas classes de medicamentos, mesmo em suspeitas de infecção ou infectados pela Covid-19, exceto em casos de hipotensão.

No segundo caso, com a aprovação do Parecer nº 04/2020 pelo CFM, no qual se estabeleciam critérios e condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina a pacientes com diagnóstico confirmado de Covid-19, foi publicada a “Nota da SBN em relação ao ajuste das drogas cloroquina e hidroxicloroquina pela função renal” para orientar quanto ao necessário ajuste de dose para pacientes com doença renal crônica, ressaltando a falta de estudos, até o momento, que deem amparo científico na utilização da droga no tratamento da Covid-19.

O impacto da pandemia pela Covid-19 nas unidades de terapia intensiva em nosso país está sendo muito intenso. O desenvolvimento de IRA em pacientes críticos é uma complicação cada vez mais frequente, envolvendo aspectos de diagnóstico e terapêutica, que foram motivos para a manifestação do Departamento de IRA da SBN, publicada aqui sob a forma de “Nota técnica e orientações sobre a Injúria Renal Aguda (IRA) em pacientes com Covid-19”. Trata-se de um documento robusto, elaborado em conjunto com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), que contempla recomendações referentes ao diagnóstico de IRA e ao acesso vascular, bem como às modalidades aplicáveis para a terapia substitutiva renal à beira do leito, contextualizadas à realidade de cada local.

Desejamos agradecer a todos os departamentos e comitês da SBN pelo intenso trabalho na formulação dessas recomendações e desses posicionamentos que agora tomam corpo na forma de artigos neste suplemento especial do nosso Brazilian Journal of Medicine . Esse trabalho não termina aqui, é na verdade o início de um contínuo esforço de aperfeiçoamento dessas recomendações, que deverão ser periodicamente atualizadas em virtude da velocidade de publicações e do desvendamento dos mecanismos fisiopatológicos da Covid-19. Este suplemento é um exemplo do esforço da SBN, que espelha o de toda a comunidade científica nacional e internacional no enfrentamento dessa pandemia, que haverá de ser superada.

Uma ótima leitura a todos.

REFERENCES

  • 1
    Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A novel coronavirus from patients with pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020 Feb;382:727-33. doi:10.1056/NEJMoa2001017
    » https://doi.org/10.1056/NEJMoa2001017
  • 2
    Sohrabi C, Alsafi Z, O’Neill N, Khan M, Kerwan A, Al-Jabir A, et al. World Health Organization declares global emergency: a review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). Int J Surg. 2020 Apr;76:71-76. doi: 10.1016/j.ijsu.2020.02.034.
    » https://doi.org/10.1016/j.ijsu.2020.02.034
  • 3
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    » http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388
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  • 5
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  • 6
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    Zhou F, Yu T, Du R, Fan G, Liu Y, Liu Z, et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult in patients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020 Mar 28;395(10229):1054-1062. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30566-3.
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30566-3

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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