Acessibilidade / Reportar erro

Registro brasileiro para eliminação da hepatite C nas unidades de diálise: um chamado para a Nefrologia

Resumo

A infecção pelo vírus da hepatite C é mais prevalente em pacientes em diálise do que na população geral no Brasil e implica um pior prognóstico. O tratamento atual para hepatite C é altamente eficaz, seguro e disponível no país, inclusive para a população de pacientes crônicos em diálise, o que torna a eliminação do vírus da hepatite C uma meta viável. A Sociedade Brasileira de Nefrologia, a Sociedade Brasileira de Hepatologia e o Instituto Brasileiro do Fígado desenvolveram o “Registro Brasileiro para Eliminação da Hepatite C nas Unidades de Diálise”. O projeto visa identificar pacientes em diálise crônica com vírus da hepatite C no Brasil, além de tratar e monitorar a resposta virológica após o tratamento. Este breve artigo apresenta o problema e convida os nefrologistas brasileiros a unirem forças nesse objetivo comum.

Descritores
Diálise; Diálise Renal; Hepatite C; Hepatite Crônica; Hepacivirus; Hepatite Viral Humana; Erradicação de Doenças

Abstract

Infection by the hepatitis C virus is more prevalent in patients on dialysis than in the general population in Brazil, and has been associated with worse outcomes. Current therapy for hepatitis C is highly effective, safe, and widely available in Brazil, with coverage provided to dialysis patients with chronic kidney disease, which makes the elimination of hepatitis C a viable target. The Brazilian Society of Nephrology, the Brazilian Society of Hepatology, and the Brazilian Liver Institute developed the “Brazilian Registry for the Elimination of Hepatitis C in Dialysis Units”. This project aims to identify, treat, and monitor the response to treatment of patients on chronic dialysis infected with the hepatitis C virus in Brazil. This article presents the issue and invites Brazilian nephrologists to rally around the achievement of a significant goal.

Keywords
Dialysis; Kidney Dialysis; Hepatitis C; Chronic Hepatitis; Hepacivirus; Hepatitis, Viral, Human; Disease Eradication

A hepatite C é uma causa importante de doença hepática e um grave problema de saúde pública no mundo. Apesar de o vírus ter sido isolado apenas em 198911 Choo QL, Kuo G, Weiner AJ, Overby LR, Bradley DW, Houghton M. Isolation of a cDNA clone derived from a blood-borne non-A, non-B viral hepatitis genome. Science. 1989 Apr;244(4902):359-62. - antes disso a doença era denominada hepatite não-A, não-B -, a hepatite C destacou-se recentemente no cenário internacional. Em outubro de 2020, três médicos foram laureados com o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina por pesquisas relacionadas ao vírus da hepatite C (HCV)22 Alter HJ, Houghton M, Rice CM; The Nobel Assembly at Karolinska Institutet. Press release: the Nobel Prize in Physiology or Medicine 2020 [Internet]. Stockholm: Nobel Media AB; 2021 . Available from: https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2020/press-release/
https://www.nobelprize.org/prizes/medici...
.

A prevalência de infecção pelo HCV no mundo é cerca de 1%, com ampla variedade entre as regiões. A hepatite C, que confere aos seus portadores maior risco de carcinoma hepatocelular e cirrose hepática, acomete mais de 70 milhões de indivíduos. Apenas em 2015, a hepatite C foi responsável por 1,34 milhão de mortes, número que vem crescendo e já é superior ao número de óbitos provocadas pelo HIV, globalmente. Apesar de a terapia atual ser capaz de curar mais de 95% dos indivíduos com hepatite C, a Organização Mundial da Saúde reconhece que o acesso ao diagnóstico e ao tratamento adequado ainda é insuficiente33 World Health Organization (WHO). Global hepatitis report 2017 [Internet]. Geneva: WHO; 2017. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255016/9789241565455-eng.pdf;jsessionid=A1E5CF10018D99C7C1291A9BCA6F05A9?sequence=1
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl...
.

Na população de pacientes em diálise, a prevalência tende a ser muito superior à descrita na população geral. Dados do Censo de Diálise da Sociedade Brasileira de Nefrologia de 2020 estimam que 2,8% dos pacientes em diálise no Brasil têm sorologia positiva para o HCV44 Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). Censo da SBN 2020 [Internet]. São Paulo: SBN; 2020. Available from: http://www.censo-sbn.org.br/
http://www.censo-sbn.org.br/...
. De acordo com a mesma fonte, isso significa que cerca de 4 mil pacientes em diálise, de um total estimado de 144.795, são portadores do HCV. Comparativamente, a prevalência da sorologia positiva para HCV nas unidades de diálise era de 4,2% em 201355 Neves PMM, Sesso RCC, Thomé FS, Lugon JR, Nascimento MM. Brazilian dialysis census: analysis of data from the 2009-2018 decade. Braz J Nephrol. 2020 May;42(2):191-200.. Apesar da tendência de queda, esperava-se um declínio mais acentuado em razão da existência e disponibilidade do tratamento. A prevalência do vírus da hepatite B, por exemplo, reduziu de 1,4% para 0,7% no mesmo período44 Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). Censo da SBN 2020 [Internet]. São Paulo: SBN; 2020. Available from: http://www.censo-sbn.org.br/
http://www.censo-sbn.org.br/...
,55 Neves PMM, Sesso RCC, Thomé FS, Lugon JR, Nascimento MM. Brazilian dialysis census: analysis of data from the 2009-2018 decade. Braz J Nephrol. 2020 May;42(2):191-200.. De fato, pacientes portadores do HCV são subtratados em unidades de diálise66 Goodkin DA, Bieber B, Gillespie B, Robinson BM, Jadoul M. Hepatitis C infection is very rarely treated among hemodialysis patients. Am J Nephrol. 2013 Oct;38(5):405-12. DOI: https://doi.org/10.1159/000355615
https://doi.org/10.1159/000355615...
. Dificuldades logísticas, de acesso à investigação e às drogas, custo e pouca informação podem ser causas do baixo percentual de tratamento. Ademais, há a possibilidade de esses dados estarem subdimensionados, já que menos de 30% das unidades de terapia renal substitutiva no Brasil responderam de forma voluntária ao Censo de Diálise mais recente. A pouca participação e o engajamento das unidades de diálise pode representar um viés de seleção (viés de participação ou de não respondente), o que tornaria o cenário potencialmente mais grave. De fato, há levantamento no país que aponta até 6,5% de prevalência de sorologia positiva77 Silva DR, Vieira CKS, Bruno RM, Castro Filho JBS. Prevalência de infecção por HCV em pacientes dialíticos no Rio Grande do Sul. Braz J Nephrol. 2020;42(3 Suppl 1):88-9..

Transmitida através da exposição percutânea a sangue e hemoderivados, ou a órgãos de transplante prévio com doador contaminante, a hepatite C com viremia impõe risco definido a pacientes soronegativos que recebem tratamento dialítico no mesmo local, além de representar risco ocupacional aos trabalhadores da saúde. Pacientes em diálise, por sua vez, apresentam maior mortalidade quando comparados à população geral. Adicionalmente, a presença de sorologia positiva para HCV em pacientes em hemodiálise de manutenção associa-se a um número de mortes por causa cardiovascular significativamente mais alto88 Kalantar-Zadeh K, McAllister CJ, Miller LG. Clinical characteristics and mortality in hepatitis C-positive haemodialysis patients: a population based study. Nephrol Dial Transplant. 2005 Aug;20(8):1662-9..

Por tratar-se de doença de transmissão parenteral, através da exposição percutânea ao sangue e hemoderivados contaminados, a hepatite C representa risco ocupacional aos trabalhadores da saúde, além da possibilidade de contágio de outros pacientes nas unidades de diálise.

Em razão da complexidade que envolve a eliminação do HCV, a Associação Europeia para o Estudo do Fígado sugeriu em 2017 desdobrar a meta global em objetivos menores. Essa estratégia de política pública para eliminação do HCV na população é conhecidaconfli como “micro-eliminação”99 Lazarus JV, Safreed-Harmon K, Thursz MR, Dillon JF, El-Sayed MH, Elsharkawy AM, et al. The micro-elimination approach to eliminating hepatitis C: strategic and operational considerations. Semin Liver Dis. 2018 Aug;38(3):181-92., e a diálise é um dos subgrupos que deve ser alvo de intervenção1010 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Microeliminação da hepatite C nas clínicas de hemodiálise [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020 Jul; 51(29):1-5. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be-vol51-no-29-microeliminacao-da-hepatite-c-nas-clinicas-de-hemodialise-consumo-abusivo-de
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be...
.

Por não existir vacina, a prevenção e o tratamento constituem as bases da política de saúde pública para eliminar o HCV. Recentemente, o Glecaprevir/Pibrentasvir, uma combinação de drogas pangenotípicas, demonstrou ser seguro e eficaz em pacientes com disfunção renal1111 Gane E, Lawitz E, Pugatch D, Papatheodoridis G, Bräu N, Brown A, et al. Glecaprevir and pibrentasvir in patients with HCV and severe renal impairment. N Engl J Med. 2017 Oct;377(15):1448-55.. O baixo risco de efeitos colaterais associado ao perfil de poucas interações medicamentosas favorecem o uso na população em diálise, e a droga foi incorporada ao protocolo de tratamento, tornando-se disponível no Sistema Único de Saúde. O Protocolo Clínico e as Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para hepatite C e coinfecções, aprovado pela Portaria nº 84 de 19 de dezembro de 2018, e a Nota Informativa nº 13/2019 orientam o tratamento da hepatite C nessa população. Para pacientes portadores de doença renal crônica em estágio avançado, com taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) inferior a 30mL/min/1,72m2, recomenda-se o uso de três comprimidos de Glecaprevir/Pibrentasvir 100 mg/40 mg por via oral, em uma tomada diária. A duração do tratamento é de oito semanas para pacientes sem cirrose hepática, ampliando para doze semanas em pacientes portadores de cirrose Child-A. Entretanto, apesar da disponibilidade da droga no Sistema Único de Saúde desde 2019, ainda existem dificuldades. No primeiro semestre de 2020, apenas 211 tratamentos foram solicitados pelos estados ao Ministério da Saúde - o que corresponde a menos de 10% da população estimada portadora de HCV em diálise no Brasil nesse período (Figura 1)1010 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Microeliminação da hepatite C nas clínicas de hemodiálise [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020 Jul; 51(29):1-5. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be-vol51-no-29-microeliminacao-da-hepatite-c-nas-clinicas-de-hemodialise-consumo-abusivo-de
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be...
. Além disso, há heterogeneidade no acesso ao exame de PCR para HCV e à terapia, e a maior parte dos tratamentos (74%) foi destinada a pacientes do Sul e Sudeste. Os dados também preocupam por demonstrar uma desaceleração após março, talvez um impacto decorrente (mas não justificável) da pandemia da covid-19.

Figura 1
Número de tratamentos solicitados ao Ministério da Saúde para pacientes portadores de hepatite C e Doença Renal Crônica em estágio avançado (Taxa de filtração glomerular < 30mL/min/1,72m2), entre janeiro e junho de 20201010 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Microeliminação da hepatite C nas clínicas de hemodiálise [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020 Jul; 51(29):1-5. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be-vol51-no-29-microeliminacao-da-hepatite-c-nas-clinicas-de-hemodialise-consumo-abusivo-de
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be...
.

Diante disso, e alinhada a estratégia nacional de micro-eliminação do HCV, a Sociedade Brasileira de Nefrologia, a Sociedade Brasileira de Hepatologia e o Instituto Brasileiro do Fígado uniram-se para criar o “Registro Brasileiro para Eliminação da Hepatite C nas Unidades de Diálise”. O projeto tem o intuito de identificar pacientes portadores do HCV em tratamento dialítico no Brasil, tratar, acompanhar e registrar a cura virológica. Para isso, pretende-se operacionalizar um fluxo de cuidado efetivo, viável e acessível, com adaptações ao contexto e às particularidades de cada região. Trata-se de uma iniciativa de abrangência nacional que envolverá o esforço coordenado de lideranças nacionais e regionais da nefrologia e hepatologia, com o apoio dos gestores públicos.

Há algum tempo clama-se por mais união na nefrologia brasileira. Esse projeto oferece uma oportunidade e um propósito para tal. Unidades de diálise e nefrologistas de todos os estados brasileiros, sem conflito de interesse, unidos para o benefício da razão de existir dessa (e de qualquer outra) especialidade: o paciente.

References

  • 1
    Choo QL, Kuo G, Weiner AJ, Overby LR, Bradley DW, Houghton M. Isolation of a cDNA clone derived from a blood-borne non-A, non-B viral hepatitis genome. Science. 1989 Apr;244(4902):359-62.
  • 2
    Alter HJ, Houghton M, Rice CM; The Nobel Assembly at Karolinska Institutet. Press release: the Nobel Prize in Physiology or Medicine 2020 [Internet]. Stockholm: Nobel Media AB; 2021 . Available from: https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2020/press-release/
    » https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2020/press-release/
  • 3
    World Health Organization (WHO). Global hepatitis report 2017 [Internet]. Geneva: WHO; 2017. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255016/9789241565455-eng.pdf;jsessionid=A1E5CF10018D99C7C1291A9BCA6F05A9?sequence=1
    » http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255016/9789241565455-eng.pdf;jsessionid=A1E5CF10018D99C7C1291A9BCA6F05A9?sequence=1
  • 4
    Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). Censo da SBN 2020 [Internet]. São Paulo: SBN; 2020. Available from: http://www.censo-sbn.org.br/
    » http://www.censo-sbn.org.br/
  • 5
    Neves PMM, Sesso RCC, Thomé FS, Lugon JR, Nascimento MM. Brazilian dialysis census: analysis of data from the 2009-2018 decade. Braz J Nephrol. 2020 May;42(2):191-200.
  • 6
    Goodkin DA, Bieber B, Gillespie B, Robinson BM, Jadoul M. Hepatitis C infection is very rarely treated among hemodialysis patients. Am J Nephrol. 2013 Oct;38(5):405-12. DOI: https://doi.org/10.1159/000355615
    » https://doi.org/10.1159/000355615
  • 7
    Silva DR, Vieira CKS, Bruno RM, Castro Filho JBS. Prevalência de infecção por HCV em pacientes dialíticos no Rio Grande do Sul. Braz J Nephrol. 2020;42(3 Suppl 1):88-9.
  • 8
    Kalantar-Zadeh K, McAllister CJ, Miller LG. Clinical characteristics and mortality in hepatitis C-positive haemodialysis patients: a population based study. Nephrol Dial Transplant. 2005 Aug;20(8):1662-9.
  • 9
    Lazarus JV, Safreed-Harmon K, Thursz MR, Dillon JF, El-Sayed MH, Elsharkawy AM, et al. The micro-elimination approach to eliminating hepatitis C: strategic and operational considerations. Semin Liver Dis. 2018 Aug;38(3):181-92.
  • 10
    Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Microeliminação da hepatite C nas clínicas de hemodiálise [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020 Jul; 51(29):1-5. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be-vol51-no-29-microeliminacao-da-hepatite-c-nas-clinicas-de-hemodialise-consumo-abusivo-de
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/be-vol51-no-29-microeliminacao-da-hepatite-c-nas-clinicas-de-hemodialise-consumo-abusivo-de
  • 11
    Gane E, Lawitz E, Pugatch D, Papatheodoridis G, Bräu N, Brown A, et al. Glecaprevir and pibrentasvir in patients with HCV and severe renal impairment. N Engl J Med. 2017 Oct;377(15):1448-55.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2021
  • Aceito
    15 Abr 2021
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com