Covid-19 e os rins acometidos com lesão aguda ou crônica: um aprendizado crescente

A pandemia de Covid-19 avassalou o mundo no início de 2020 e trouxe progressivamente o conhecimento de que a doença é multissistêmica, decorrente de processo inflamatório generalizado e que pode se manifestar com formas graves, resultando, nesses casos, em alta morbidade e mortalidade. Frequentemente, nos pacientes em regime de internação e com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), entre os órgãos adicionais mais acometidos encontram-se os rins, que podem apresentar alterações compatíveis com lesão renal aguda (LRA), em indivíduos com função renal previamente normal, ou em pacientes com doença renal crônica precedente, que evoluem com piora da função renal¹. No exame histopatológico foram encontradas lesões de natureza tubular, especialmente necrose tubular aguda; vascular, com microangiopatia trombótica; intersticial; e, em alguns casos, glomerular, notadamente com a forma colapsante da glomerulosclerose segmentar e focal, compatíveis com a apresentação mais frequente, clínica e laboratorial, de lesão renal aguda (LRA)²,³. Os principais fatores associados ao desenvolvimento da LRA são diabetes, hipertensão e/ou dislipidemia e esses pacientes evoluem com maior tempo de internação e pior prognóstico³, desenvolvendo mais frequentemente tempestade de citocinas e apresentando maior mortalidade⁴. Por outro lado, também é instigante a situação dos pacientes com doença renal crônica (DRC), por serem mais vulneráveis ao acometimento de casos graves de Covid-19⁵. Um estudo recente mostrou que esses pacientes evoluíram com maior necessidade de terapia renal substitutiva e que a mortalidade aumentou proporcionalmente nos estágios IV e V de DRC⁶.

Dois estudos de grupos portugueses são apresentados nesse fascículo do JBN⁷,⁸. Um deles⁷ investigou retrospectivamente os impactos transitórios e permanentes da LRA na mortalidade intra-hospitalar de 544 pacientes com Covid-19, dos quais 330 desenvolveram LRA, segundo critérios do KDIGO, sendo 166 de forma persistente e 164 transitoriamente. Os fatores de risco mais importantes para alteração temporária da função renal foram idade, presença de comorbidades, uso de inibidores do sistema renina angiotensina aldosterona (63,4% eram hipertensos), maiores níveis de creatinina, mais acidemia na admissão, necessidade de ventilação mecânica e uso de vasopressor. LRA persistente, por outro lado, se associou a maior nível de creatinina (1,71 mg/dL vs. 1,25 mg/dL) na admissão hospitalar. A mortalidade hospitalar foi de 14,0% e maior nos pacientes com LRA (18,5% vs. 7,0%). Doença renal crônica prévia e ferritina sérica, em análise multivariada, foram preditores independentes de LRA. Injúria renal aguda transitória não foi capaz de predizer mortalidade, mas a alteração persistente da função renal sim, bem como idade mais avançada, níveis de lactato e de ferritina.

O outro estudo analisou retrospectivamente 130 pacientes com doença renal crônica (DRC)⁸, dos quais 60% são homens, com idade média de 73,9 anos. Destes, 81,5% são hipertensos; 54,6%, diabéticos; e 36,2% têm doença cardiovascular prévia. Um total de 80% desenvolveu LRA e 16,2% necessitaram de unidade de terapia intensiva na admissão. Os 34 pacientes que morreram eram mais velhos e mais propensos a insuficiência cardíaca. Idade avançada, ferritina mais alta e níveis mais altos de LDH foram fatores de risco independentes para a mortalidade.

Embora os resultados em longo prazo da LRA associada à Covid-19 ainda não tenham sido descritos, vários estudos⁹,¹⁰ nos alertam para a necessidade de acompanhamento em longo prazo dos pacientes após a alta, pois um percentual importante não recuperará a função renal e, mesmo aqueles que teoricamente normalizam a creatinina e o ritmo de filtração glomerular estimado, não têm quaisquer garantias de que essa melhora seja duradoura. Essa preocupação se deve ao fato de que alguns estudos mostraram um declínio da função renal após 6 a 12 meses de acompanhamento, mesmo em pacientes que não apresentaram sinais de LRA durante a fase aguda¹⁰.

Uma revisão sistemática com metanálise que incluiu 36 estudos e um total de 6.395 pacientes com Covid-19 mostrou que DRC preexistente mais que triplica a chance de gravidade de doença (OR = 3,28) e que a complicação de LRA foi notavelmente mais elevada no grupo de pacientes críticos em comparação aos graves (OR = 13,92), assim como quando comparados os graves com os menos graves (OR=11,02)¹¹.

Não importa, na verdade, se a doença se estabelece de uma forma aguda em um paciente sem déficit de função renal prévio ou se torna aguda em um paciente já crônico, pois as duas situações são graves e conferem risco adicional significante de morbidade e de morte. Como o pós-Covid em longo prazo (anos) ainda é uma incógnita, não havendo diretrizes que indiquem o tempo necessário de acompanhamento da função renal após a infecção aguda¹⁰, é necessário que políticas públicas de acompanhamento dos pacientes que necessitaram de internação devido a formas graves sejam desenvolvidas em todo o mundo, de tal sorte a que fossem exequíveis indistintamente, diminuindo assim a disparidade entre os indivíduos em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.

Até o presente momento, ainda não se tem clareza de respostas que dependem de tempo de seguimento, com protocolos bem estabelecidos, que utilizem os mesmos parâmetros de avaliação e de desfechos para que se permitam comparações, sendo necessário o desenvolvimento de estudos prospectivos que avaliem em longo prazo a função renal através de diversos parâmetros, como biópsia renal, urinanálise, medidas indiretas e diretas do ritmo de filtração glomerular e avaliação da função tubular¹⁰.

Certamente, o entendimento da doença e de suas consequências tem sido crescente mundialmente, mas novas variantes virais são identificadas e há variabilidade genética de respostas, e fatores de risco consagrados incluem comorbidades, idade avançada, mas também etnia e vulnerabilidade social. Não se sabe ainda como esse complexo emaranhado impacta os diferentes órgãos e sistemas, incluindo os rins, deixando espaço para muito aprendizado¹⁰.

References

• ¹
  Aroca-Martínez G, Musso CG, Avendaño-Echavez L, Vélez-Verbel M, Chartouni-Narvaez S, Hernandez S, et al. Differences between COVID-19-induced acute kidney injury and chronic kidney disease patients. Braz. J. Nephrol. 2022 Feb 28; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0161
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0161
• ²
  Pecly IMD, Azevedo RB, Muxfeldt ES, Botelho BG, Albuquerque GG, Diniz PHP, et al. A review of Covid-19 and acute kidney injury: from pathophysiology to clinical results. Braz. J. Nephrol. 2021 Oct/Dec;43(4):551-71. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2020-0204
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2020-0204
• ³
  Sabaghian T, Kharazmi AB, Ansari A, Omidi F, Kazemi SN, Hajikhani B, et al. COVID-19 and acute kidney injury: a systematic review. Front Med. 2022;9:705908. DOI: https://doi.org/10.3389/fmed.2022.705908
  » https://doi.org/10.3389/fmed.2022.705908
• ⁴
  Kanbay M, Medetalibeyoglu A, Kanbay A, Cevik E, Tanriover C, Baygul A, et al. Acute kidney injury in hospitalized COVID-19 patients. Int Urol Nephrol. 2022;54(5):1097-104. DOI: https://doi.org/10.1007/s11255-021-02972-x
  » https://doi.org/10.1007/s11255-021-02972-x
• ⁵
  Pecly IMD, Azevedo RB, Muxfeldt ES, Botelho BG, Albuquerque GG, Diniz PHP, et al. COVID-19 and chronic kidney disease: a comprehensive review. Braz. J. Nephrol. 2021 Jul/Sep;43(3):383-99. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2020-0203
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2020-0203
• ⁶
  Gur E, Levy D, Topaz G, Naser R, Wand O, Kitay-Cohen Y, et al. Disease severity and renal outcomes of patients with chronic kidney disease infected with COVID-19. Clin Exp Nephrol. 2022 Mar;26(5):445-52. DOI: https://doi.org/10.1007/s10157-022-02180-6
  » https://doi.org/10.1007/s10157-022-02180-6
• ⁷
  Bernardo J, Gonçalves J, Gameiro J, Oliveira J, Marques F, Duarte I, et al. The impact of transient and persistent acute kidney injury in-hospital mortality in COVID-19 patients. Braz J Nephrol. 2022 Sep 12; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0123
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0123
• ⁸
  Branco CG, Duarte I, Gameiro J, Costa C, Marques F, Oliveira J, et al. Presentation and outcomes of chronic kidney disease patients with COVID-19. Braz J Nephrol. 2022 Nov 11; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0071
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0071
• ⁹
  Huang C, Huang L, Wang Y, Li X, Ren L, Gu X, et al. 6-month consequences of COVID-19 in patients discharged from hospital: a cohort study. Lancet. 2021 Jan;397(10270):220-32. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32656-8
  » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32656-8
• ¹⁰
  Copur S, Berkkan M, Basile C, Tuttle K, Kanbay M. Post-acute COVID-19 syndrome and kidney diseases: what do we know? J Nephrol. 2022 Mar;35(3):795-805. DOI: https://doi.org/10.1007/s40620-022-01296-y
  » https://doi.org/10.1007/s40620-022-01296-y
• ¹¹
  Liu YF, Zhang Z, Pan XL, Xing GL, Zhang Y, Liu ZS, et al. The chronic kidney disease and acute kidney injury involvement in COVID-19 pandemic: a systematic review and meta-analysis. PLoS One. 2021 Jan;16(1):e0244779. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0244779
  » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0244779

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  29 Jul 2022
• Data do Fascículo
  Jul-Sep 2022

Histórico

• Recebido
  05 Maio 2022
• Aceito
  08 Maio 2022