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Impacto da telemedicina no controle metabólico e hospitalização de pacientes em diálise peritoneal durante a pandemia de COVID-19: um estudo de coorte multicêntrico nacional

Resumo

Introdução:

A pandemia do coronavírus-19 ameaça a vida de todas as pessoas, mas resulta em uma alta taxa de mortalidade em pacientes com doença renal em estágio terminal (DRET), incluindo aqueles em diálise peritoneal (DP). A telemedicina foi a principal alternativa para reduzir a exposição ao vírus, mas foi introduzida no Brasil sem treinamento adequado.

Objetivo:

Investigar o impacto da telemedicina no controle metabólico, taxas de peritonite e hospitalização em pacientes em DP na pandemia.

Métodos:

Estudo de coorte multicêntrico retrospectivo. Incluímos todos os pacientes adultos em DP crônica de 9 clínicas selecionadas por conveniência durante a pandemia. Desfechos de interesse foram medidos e comparados entre antes e depois da mudança para telemedicina usando análise de medidas repetidas e regressão multinível de Poisson.

Resultados:

Incluiu-se 747 pacientes com idade média de 59,7±16,6 anos, sendo 53,7% homens e 40,8% diabéticos. Parâmetros bioquímicos, incluindo níveis séricos de hemoglobina, potássio, fosfato, cálcio e ureia não mudaram significativamente após transição para telemedicina. Não houve associação entre telemedicina e taxas de peritonite. Em contraste, taxas de hospitalização aumentaram significativamente no período de telemedicina. A razão de taxas de incidência (RTI) para internação no período de telemedicina foi 1,54 (IC95% 1,10-2,17; p 0,012) e 1,57 (IC95% 1,12-2,21; p 0,009) na regressão multinível de Poisson antes e após ajuste para presença de fatores de confusão. As internações por hipervolemia e infecções não relacionadas à DP dobraram após transição para telemedicina.

Conclusão:

A implementação da telemedicina sem treinamento adequado pode levar ao aumento de eventos adversos em pacientes em DP.

Descritores:
Falência Renal Crônica; Biomarcadores; Peritonite; Mortalidade

Abstract

Introduction:

The coronavirus-19 pandemic threatens the lives of all people, but results in higher mortality rates for patients with end-stage kidney disease (ESKD) including those on peritoneal dialysis (PD). Telemedicine was the main alternative to reduce exposure to the virus, but it was introduced in the Brazil without proper training.

Objective:

To investigate the impact of telemedicine on metabolic control, peritonitis rates, and hospitalization in PD patients during the pandemic.

Methods:

This was a retrospective multicenter cohort study. We included all adult patients on chronic PD from 9 clinics selected by convenience during the pandemic. The outcomes of interest were measured and compared between before and after switching to telemedicine using repeated measure analysis and multilevel Poisson regression.

Results:

The study included 747 patients with a mean age of 59.7±16.6 years, of whom 53.7% were male and 40.8% had diabetes. Biochemical parameters including hemoglobin, potassium, phosphate, calcium, and urea serum levels did not change significantly after transition to telemedicine. There was no association between telemedicine and peritonitis rates. In contrast, hospitalization rates increased significantly in the telemedicine period. The incidence rate ratio (IRR) for hospitalization in the telemedicine period was 1.54 (95%CI 1.10-2.17; p 0.012) and 1.57 (95%CI 1.12-2.21; p 0.009) in the mixed-effects Poisson regression before and after adjustment for the presence of confounders. Admissions for hypervolemia and infections not related to PD doubled after transition to telemedicine.

Conclusion:

The implementation of telemedicine without proper training may lead to an increase in adverse events in PD patients.

Keywords:
Kidney Failure; Chronic; Biomarkers; Peritonitis; Mortality

Introdução

A pandemia da COVID-19 causou mudanças drásticas no mundo. A doença causada por um vírus de contagiosidade extremamente alta pode ter elevada letalidade, dependendo das condições médicas predisponentes do paciente11 Wolff D, Nee S, Hickey NS, Marschollek M. Risk factors for Covid-19 severity and fatality: a structured literature review. Infection. 2021 Feb;49(1):15-28.. Indivíduos com doença renal crônica (DRC), particularmente aqueles com doença renal em estágio terminal (DRET), apresentam um maior risco de desenvolver complicações respiratórias graves, como hospitalização, permanência por longos períodos na unidade de terapia intensiva e até mesmo óbito22 Jager KJ, Kramer A, Chesnaye NC, Couchoud C, Sánchez-Álvarez JE, Garneata L, et al. Results from the ERA-EDTA registry indicate a high mortality due to COVID-19 in dialysis patients and kidney transplant recipients across Europe. Kidney Int. 2020 Dec;98(6):1549-8.,33 Ng JH, Hirsch JS, Wanchoo R, Sachdeva M, Sakhiya V, Hong S, et al. Outcomes of patients with end-stage kidney disease hospitalized with COVID-19. Kidney Int. 2020.. Neste contexto, a diálise peritoneal (DP) tem chamado mais atenção durante este período uma vez que, como tratamento domiciliar, reduz a exposição do paciente ao vírus. Entretanto, pacientes em DP também podem ser expostos ao vírus, e o momento mais crítico para esses pacientes é a consulta de rotina mensal à clínica. Portanto, foi proposta a implementação da telessaúde.

Em todo o mundo, equipes médicas se sentiram compelidas a adotar medidas pragmáticas a fim de minimizar a exposição de pacientes em DP à COVID-19 e começaram a utilizar a telemedicina para minimizar este risco44 Blandford A, Wesson J, Amalberti R, AlHazme R, Allwihan R. Opportunities and challenges for telehealth within, and beyond, a pandemic. Lancet Glob Health. 2020 Nov;8(11):e1364-e5.

5 Lew SQ, Wallace EL, Srivatana V, Warady BA, Watnick S, Hood J, et al. Telehealth for home dialysis in COVID-19 and beyond: a perspective from the American Society of Nephrology COVID-19 home dialysis subcommittee. Am J Kidney Dis. 2021 Jan;22(1):142-8.
-66 Ikizler TA. COVID-19 and dialysis units: what do we know now and what should we do? Am J Kidney Dis. 2020 Jul;76(1):1-3.. No entanto, no Brasil, o uso da telemedicina era restrito por lei antes da COVID-19 e não havia experiência com esta nova abordagem de atendimento ao paciente. Neste contexto, períodos mais longos sem atendimento presencial e falta de treinamento em telemedicina podem retardar a identificação de problemas clínicos que, de outra forma, poderiam ser imediatamente diagnosticados em tempo hábil com um atendimento presencial. Além disso, faltar às consultas pode dar aos pacientes em DP a falsa impressão de que suas condições são menos graves do que realmente são, e podem surgir problemas relacionados à dieta e adesão a medicamentos.

Apesar desta iniciativa importante e potencialmente salvadora de vidas para reduzir o risco de uma infecção por COVID-19, segundo nosso conhecimento, nenhum estudo avaliou o impacto da telemedicina nos desfechos em pacientes em DP. O objetivo de nosso estudo foi analisar a incidência em curto prazo de distúrbios metabólicos e taxas de hospitalização com o uso da telemedicina durante a pandemia.

Métodos

Esta foi uma coorte multicêntrica e retrospectiva de 9 centros brasileiros de DP. Os dados foram recuperados dos registros de pacientes em DP crônica entre Janeiro de 2020 e Junho de 2020. Para fins científicos, o estudo foi dividido em 2 fases: a primeira fase correspondeu ao período de 2 meses antes da clínica adotar a telemedicina e a fase 2 foram os 2 meses após a transição para a telemedicina. Ambas as fases são divididas por um período de 1 mês durante o qual ocorreu a transição. O mês de “transição” foi caracterizado por alguns pacientes sendo atendidos presencialmente em clínicas, enquanto outros já haviam iniciado a telemedicina, e um grupo que simplesmente não compareceu à consulta daquele mês por medo da pandemia.

Os dados demográficos foram coletados no início do estudo (primeiro mês da fase 1). Os dados clínicos e laboratoriais foram coletados ao longo do estudo até o final do acompanhamento. Os biomarcadores selecionados para o estudo foram hemoglobina, potássio, fosfato, cálcio e ureia. Estes exames foram selecionados por fazerem parte dos exames de rotina mensais exigidos pelas políticas de regulamentação locais. Estes biomarcadores foram tratados como variáveis contínuas, mas também categorizados da seguinte forma: (a) para hemoglobina: porcentagem de pacientes abaixo de 10 g/dL; (b) para fosfato: porcentagem de pacientes com P >5,5 mg/dL; (c) para potássio: porcentagem de pacientes abaixo de 3,5 mEq/L e acima de 5,5 mEq/L.

Também foram coletados dados sobre as características dos centros, que incluíram o tamanho do centro (medido pelo número total de pacientes em DP crônica), a penetrância de DP (porcentagem de pacientes em DP e HD), o percentual de pacientes com hemodiálise prévia, a presença de um enfermeiro dedicado apenas à DP (sim ou não), a relação enfermeiro/pacientes, o percentual de pacientes em DPA, o tipo de contato com o paciente durante o período de telemedicina (telefone ou teleconferência com vídeo), e o suporte fornecido pela equipe multidisciplinar durante a pandemia (sim ou não). Os tópicos avaliados em cada centro, em cada consulta online, são mostrados na Tabela S1.

Informações coletadas durante o contato online

Cada centro adaptou-se à telemedicina da melhor maneira possível. Dada a urgência de evitar a exposição do paciente à COVID-19, não houve tempo para padronizar os procedimentos. As entrevistas de rotina foram realizadas mensalmente, e tanto nefrologistas como enfermeiros entrevistaram pacientes em todos os centros, exceto em um, no qual apenas nefrologistas realizaram as entrevistas. As perguntas aos pacientes estavam relacionadas a: (a) adesão à medicação e prescrição de DP (por exemplo, você está fazendo sua diálise e tomando seus medicamentos conforme prescrito?; Você pulou algum dia de diálise durante o último mês?); (b) taxa de ultrafiltração (os pacientes foram solicitados a fornecer dados sobre a UF diária em mililitros); (c) volume de diurese em 24 h de um dia aleatório do mês; (d) presença de edema (sim ou não); (e) presença de dispneia/dificuldade em respirar (sim ou não); (f) presença de secreção purulenta no sítio de saída (sim/não); (g) controle glicêmico para pacientes diabéticos (episódios de hipoglicemia/ níveis elevados de glicose?); (h) controle da pressão arterial (episódios de hipotensão/ hipertensão não controlada?); (i) ingestão de água/líquidos (você está aderindo à restrição de água e sal?); (j) manejo dietético; (k) ganho/perda de peso; (l) dor abdominal (sim ou não; se sim, características clínicas da dor e aparência do dialisato; e (m) presença de qualquer outro sintoma não abordado nas questões anteriores (Você tem algum outro sintoma interferindo em suas atividades diárias?).

Este estudo foi realizado de acordo com a Declaração de Helsinque e aprovado pelo Comitê de Ética local (aprovação n° 4.089.635).

Estatísticas

As variáveis contínuas foram expressas como média ± DP ou mediana e intervalo interquartil, enquanto as variáveis categóricas foram expressas como frequências e porcentagens. Para comparação de variáveis contínuas entre antes e depois da telemedicina, foi utilizado o teste T pareado, e quando as variáveis foram categorizadas em variáveis binárias, foi utilizado o teste Qui-quadrado. Para a hospitalização, como um evento que pode ocorrer mais de uma vez, foi utilizado um modelo de Poisson.

Foi utilizada uma análise de regressão multinível de Poisson (paciente no primeiro nível e clínica no segundo nível) para identificar fatores associados à prática clínica. Para o modelo multivariável, selecionamos variáveis com um nível alfa abaixo de 0,10 na análise univariada (Tabela S1). Em seguida, realizamos uma eliminação regressiva, removendo um de cada vez, caso a variável não contribuísse para a equação de regressão. A significância estatística foi estabelecida em p<0,05. Todas as análises foram realizadas com o STATA14.

Resultados

Características gerais

O estudo incluiu 747 pacientes de 9 clínicas de DP. A média de idade dos participantes do estudo foi de 59,7±16,6 anos, 53,7% eram homens, e 40,8% tinham diabetes. Os dados demográficos da nossa população de estudo são semelhantes aos da população do país em DP77 Moraes TP, Figueiredo AE, Campos LG, Olandoski M, Barretti P, Pecoits-Filho R, et al. Characterization of the BRAZPD II cohort and description of trends in peritoneal dialysis outcome across time periods. Perit Dial Int. 2014 Nov/Dec;34(7):714-23.. A Tabela 1 mostra as características demográficas e clínicas gerais de nossa população. O tamanho das clínicas participantes variou de 18 a 256 pacientes, a penetrância de DP variou de 17 a 78%, 95% tinham enfermeiros envolvidos em tempo integral com a DP, e em relação à telemedicina, apenas 2 clínicas utilizaram videoconferência com seus pacientes, enquanto as 7 clínicas restantes realizaram os acompanhamentos regulares por telefone. Durante o curso do estudo, 8 pacientes (1%) foram diagnosticados com COVID, 50% dos quais (n=4) foram a óbito em decorrência do vírus.

Tabela 1
Características gerais da população

Parâmetros metabólicos

A proporção de pacientes com níveis de hemoglobina abaixo de 10 g/dL foi de 27% no início do estudo e diminuiu para 19% ao final do acompanhamento. Os níveis médios de hemoglobina foram 11,0±1,8 g/dL no início do estudo e 11,2±1,9 no final do mesmo (Figuras 1 to 2).

Figura 1
Variação dos valores médios de parâmetros metabólicos após a transição para a telemedicina.

Figura 2
Prevalência de parâmetros metabólicos anormais após a transição para a telemedicina.

Em contrapartida, as variações dos níveis de potássio e fosfato foram muito pequenas (Figura 3). A média de potássio foi de 4,6±0,8 no início do estudo e 4,6±0,7 ao final do mesmo, enquanto o valor médio de fosfato foi de 5,9±1,9 g/dL no início e permaneceu estável em 5,9±1,8 g/dL durante o estudo. Em termos de distúrbios metabólicos, a hipercalemia foi identificada em 10% no início do estudo e 12% ao final do acompanhamento, enquanto a hipocalemia foi de 4 e 5%, respectivamente. Para o fosfato, 20% apresentaram valores acima de 5 mg/dL no início do estudo e 21% no final do mesmo. Por fim, avaliamos os níveis séricos de ureia, e foi encontrada uma pequena alteração de 116 para 112 mg/dl.

Figura 3
Variação dos valores médios dos parâmetros metabólicos após a transição para a telemedicina por centros.

Taxas de hospitalização

Houve 55 internações em 50 pacientes (5 pacientes foram admitidos duas vezes) durante a primeira fase do estudo, enquanto na segunda fase, os números aumentaram para 91 internações em 82 pacientes (9 pacientes foram admitidos duas vezes). A taxa geral de hospitalização foi de 17,8 (15,0 - 21,1) internações por 1000 pacientes-meses. Em ambas as fases do estudo, as internações foram consideradas em todos os hospitais possíveis, não apenas nos hospitais com programas de DP.

O risco de hospitalização aumentou após a transição para a telemedicina antes e depois da exclusão das internações relacionadas à COVID-19. A RTI não ajustada foi de 1,65 (1,18-2,31) considerando as internações por COVID-19 e 1,54 (1,10-2,16) após excluir as internações por COVID-19. Quanto às causas de hospitalização (Tabela 2), o maior aumento ocorreu devido aos casos associados à hipervolemia e infecções não relacionadas à DP (ou seja, peritonite). O número absoluto de casos para ambas as causas dobrou após a transição para a telemedicina. Os detalhes sobre as causas de hospitalizações são mostrados no material suplementar (Tabela S2). Dos 16 casos de infecções não relacionadas à DP, apenas 3 foram causadas por pneumonia bacteriana.

Tabela 2
Causas de hospitalização

Na análise univariada (Tabela S2), identificamos uma série de fatores associados a um aumento do risco de hospitalização, que incluíram: pacientes com um cuidador (RTI 1,54; IC 95% 1,07-2,22); diabetes (RTI 1,49; IC 95% 1,05-2,12), e raça branca (RTI 1,48; IC 95% 1,00-2,18) (Figura 4). Nenhuma variável relacionada ao centro foi associada à hospitalização. Elas foram incluídas na análise multivariada inicial (modelo completo), e após a eliminação regressiva, o modelo final contou como única covariável a presença ou não de um cuidador. A RTI para o período de telemedicina foi de 1,54 (IC 95% 1,10-2,17) e a RTI para a presença de um cuidador foi de 1,57 (IC 95% 1,07-2,28).

Figura 4
Regressão multinível de Poisson: fatores de risco para hospitalização.

Peritonite e taxas de infecção no sítio de saída

Constatamos que 33 (4%) dos 747 pacientes foram diagnosticados com peritonite na primeira fase do estudo e 37 (5%) tiveram peritonite durante os 2 meses após a implementação do monitoramento remoto. Não houve diferença significativa entre a taxa de peritonite em ambos os períodos (p=0,60). Também descobrimos que 2% dos pacientes em DP foram diagnosticados com infecção no sítio de saída nos 2 meses anteriores à transição para a telemedicina, e este número permaneceu estável em 2% durante os 2 meses seguintes à transição. A diferença entre os dois períodos também não foi significativa (p=0,69).

Discussão

Segundo nosso conhecimento, este é o primeiro estudo a analisar o impacto da telemedicina nos desfechos de pacientes em DP. Em resumo, ocorreu um aumento significativo nas taxas de hospitalização com o uso da telemedicina durante a pandemia de COVID-19 em uma grande coorte multicêntrica de pacientes em DP crônica.

No início de 2020, o mundo foi atingido pela pandemia da COVID-19. Até Outubro, de acordo com a OMS, mais de 72 milhões de pessoas haviam sido infectadas e diagnosticadas e mais de 1,6 milhões tinham ido óbito. No Brasil, mais de 5 milhões de casos haviam sido detectados até o final do mesmo período causando o óbito de cerca de 155.000 pessoas. A maioria dos casos são pacientes com doença leve ou assintomática, mas apresentações graves e com risco de vida não são incomuns em números absolutos, devido à alta transmissibilidade e consequente alto número de pessoas contaminadas com o vírus11 Wolff D, Nee S, Hickey NS, Marschollek M. Risk factors for Covid-19 severity and fatality: a structured literature review. Infection. 2021 Feb;49(1):15-28.. Em particular, a presença de algumas condições e comorbidades predispõe os pacientes a uma apresentação grave11 Wolff D, Nee S, Hickey NS, Marschollek M. Risk factors for Covid-19 severity and fatality: a structured literature review. Infection. 2021 Feb;49(1):15-28.

2 Jager KJ, Kramer A, Chesnaye NC, Couchoud C, Sánchez-Álvarez JE, Garneata L, et al. Results from the ERA-EDTA registry indicate a high mortality due to COVID-19 in dialysis patients and kidney transplant recipients across Europe. Kidney Int. 2020 Dec;98(6):1549-8.
-33 Ng JH, Hirsch JS, Wanchoo R, Sachdeva M, Sakhiya V, Hong S, et al. Outcomes of patients with end-stage kidney disease hospitalized with COVID-19. Kidney Int. 2020..

Pacientes com DRC apresentam um alto risco de desenvolver COVID-19 grave, como demonstrado em uma meta-análise de 73 estudos (OR=1,84; IC 95% 1,47-2,30)88 Wu T, Zuo Z, Kang S, Jiang L, Luo X, Xia Z, et al. Multi-organ dysfunction in patients with COVID-19: a systematic review and meta-analysis. Aging Dis. 2020 Jul;11(4):874-94.. Não apenas o risco de uma apresentação grave é maior, mas também o óbito relacionado à COVID-19 é maior em pacientes com DRC e especialmente em indivíduos com DRET99 Williamson EJ, Walker AJ, Bhaskaran K, Bacon S, Bates C, Morton CE, et al. Factors associated with COVID-19-related death using OpenSAFELY. Nature. 2020 Jul;584(7821):430-6.,1010 Pio-Abreu A, Nascimento MM, Vieira MA, Neves PDM, Lugon JR, Sesso R. High mortality of CKD patients on hemodialysis with Covid-19 in Brazil. J Nephrol. 2020 Oct;33(5):875-7.. A razão de riscos para mortalidade foi de 3,69 (IC 95% 3,09-4,39) em uma grande coorte de quase 24.000 pacientes em diálise99 Williamson EJ, Walker AJ, Bhaskaran K, Bacon S, Bates C, Morton CE, et al. Factors associated with COVID-19-related death using OpenSAFELY. Nature. 2020 Jul;584(7821):430-6.. Em uma descrição recente de desfechos em pacientes em hemodiálise do Brasil, a taxa de letalidade associada à COVID-19 foi de quase 28%1010 Pio-Abreu A, Nascimento MM, Vieira MA, Neves PDM, Lugon JR, Sesso R. High mortality of CKD patients on hemodialysis with Covid-19 in Brazil. J Nephrol. 2020 Oct;33(5):875-7.. Na DP, os dados são mais escassos. Em uma coorte de 848 pacientes de Wuhan, a incidência de COVID-19 sintomática foi semelhante à da população em geral, mas a taxa de letalidade foi de 25% (2 em cada 8 pacientes)1111 Jiang HJ, Tang H, Xiong F, Chen WL, Tian JB, Sun J, et al. COVID-19 in peritoneal dialysis patients. Clin J Am Soc Nephrol. 2020 Dec;16(1):121-3.. Em nosso estudo, 8 dos 747 pacientes incluídos foram infectados por COVID-19 e a taxa de letalidade foi de 50% (4 em cada 8 pacientes).

Na esperança de conter o risco da COVID-19, foram tomadas diversas medidas em todo o mundo, seja com base em experiências anteriores com outros vírus mortais, seja simplesmente com base no bom senso na ausência de evidências. Medidas como desinfecção do ambiente, uso de equipamento de proteção individual, triagem de pacientes potencialmente infectados e esforços para isolá-los têm sido amplamente utilizadas1212 Kliger AS, Silberzweig J. Mitigating risk of COVID-19 in dialysis facilities. Clin J Am Soc Nephrol. 2020 May;15(5):707-9.. Para pacientes em DP, vários centros também optaram pelo uso da telemedicina para reduzir ainda mais a exposição ao vírus44 Blandford A, Wesson J, Amalberti R, AlHazme R, Allwihan R. Opportunities and challenges for telehealth within, and beyond, a pandemic. Lancet Glob Health. 2020 Nov;8(11):e1364-e5.

5 Lew SQ, Wallace EL, Srivatana V, Warady BA, Watnick S, Hood J, et al. Telehealth for home dialysis in COVID-19 and beyond: a perspective from the American Society of Nephrology COVID-19 home dialysis subcommittee. Am J Kidney Dis. 2021 Jan;22(1):142-8.
-66 Ikizler TA. COVID-19 and dialysis units: what do we know now and what should we do? Am J Kidney Dis. 2020 Jul;76(1):1-3..

A telemedicina, definida como a troca de informações médicas entre diferentes localidades, permite que os pacientes e a equipe médica estejam em diferentes salas e até mesmo em diferentes cidades. Idealmente, a telemedicina deve ser realizada por meio de uma videoconferência, que requer uma conexão à internet boa e estável, um computador com bom desempenho e um software específico para a troca de informações em tempo real. No entanto, nos países em desenvolvimento, tais equipamentos não estão disponíveis para a maioria das pessoas. Uma alternativa é entrar em contato com os pacientes por telefone e confiar somente nas informações dos mesmos, sem vê-los de fato. Esta tem sido a alternativa para a maioria dos pacientes em DP no Brasil.

Nosso estudo descobriu que o monitoramento e controle de parâmetros bioquímicos básicos importantes para todos os pacientes em diálise é relativamente simples de obter. Não foi observada nenhuma alteração de significância clínica antes e depois da mudança para a telemedicina. Quando projetamos o estudo já esperávamos alterações mínimas relacionadas aos níveis de anemia e valores de potássio. Para a anemia, a principal influência em curto prazo é a prescrição e o ajuste de agentes estimulantes da eritropoiese, o que pode ser feito facilmente de maneira remota. O mesmo se aplica ao controle dos níveis séricos de potássio, que não são alterados significativamente pelo bloqueio do sistema renina-angiotensina-aldosterona e por mudanças na dieta do paciente, desde que a adesão à diálise permaneça constante1313 Ribeiro SC, Figueiredo AE, Barretti P, Pecoits-Filho R, Moraes TP, All centers that contributed to BIIs. Low serum potassium levels increase the infectious-caused mortality in peritoneal dialysis patients: a propensity-matched score study. PLoS One. 2015 Jun;10(6):e0127453.,1414 Ribeiro SC, Figueiredo AE, Barretti P, Pecoits-Filho R, Moraes TP, Investigators B. Impact of renin-angiotensin aldosterone system inhibition on serum potassium levels among peritoneal dialysis patients. Am J Nephrol. 2017;46(2):150-5.. No entanto, dado o suporte nutricional reduzido durante a pandemia, esperamos um aumento nos níveis séricos de fosfato, mas novamente os valores permaneceram estáveis.

Em contraste com a tarefa de monitorar remotamente os parâmetros bioquímicos e a técnica de DP, o monitoramento de outros parâmetros clínicos pode fornecer outro nível de complexidade e pode ser difícil de identificar quando o paciente não está literalmente diante da equipe médica. Os pacientes em diálise, em particular, são propensos à hipervolemia, o que impõe desafios significativos ao diagnóstico na prática clínica normal. Isto certamente se intensifica quando avaliamos pacientes remotamente sem usar as ferramentas adequadas. Esta foi uma de nossas hipóteses, e foi confirmada por um aumento de duas vezes no número de hospitalizações. Exceto por alterações metabólicas, outras condições também aumentaram durante o monitoramento remoto, incluindo infecções não relacionadas à DP, peritonite e causas cardiovasculares. É importante notar que o número absoluto de infecções relacionadas à DP foi pequeno (antes e depois da telemedicina) e qualquer diferença (ou falta de diferença neste caso) deve ser interpretada cuidadosamente.

Vale ressaltar que o diabetes foi o único outro fator associado ao aumento do risco de hospitalização durante a pandemia. Uma pesquisa com 1.562 pacientes brasileiros com diabetes constatou que as medidas tomadas pelos estados para proteger este grupo de alto risco deixaram a maioria deles desprotegidos. Os autores relataram que estas medidas contribuíram para um aumento dos níveis glicêmicos e/ou sua variabilidade. Em nosso estudo, não coletamos dados sobre controle glicêmico, e podemos apenas especular que problemas semelhantes podem ter contribuído para o maior risco de hospitalização em nossos pacientes diabéticos.

Por fim, nosso estudo indica que apesar do entusiasmo por novas tecnologias e pela incorporação da telemedicina em nossa prática (um movimento irreversível), as mudanças devem ser sempre planejadas cuidadosamente, levando em consideração todas as variáveis e adaptando-se às diferentes realidades. No entanto, é importante apontar outros fatores que podem ter influenciado nossos resultados e que não estão relacionados à forma como utilizamos a telemedicina durante o estudo. O sistema público de saúde brasileiro (conhecido como SUS) fornece medicamentos selecionados para o tratamento de DRC e outras comorbidades como hipertensão e diabetes, sem custos. Entretanto, não foi registrado se os pacientes evitaram ir ao sistema de saúde primário para retirar seus medicamentos por medo de uma possível infecção por COVID. Esta possibilidade é parcialmente mitigada pelo fato de as clínicas perguntarem sobre a adesão a todos os medicamentos. No entanto, nosso estudo apresenta algumas limitações, incluindo todas aquelas relacionadas a qualquer estudo observacional retrospectivo e ao pequeno número de pacientes tratados por videoconferência. Não tínhamos dados sobre o deslocamento social ou detalhes de tratamento com outras especialidades. Além disso, não conseguimos obter dados sobre alterações na taxa de ultrafiltração e/ou no débito urinário diário. Em contrapartida, o grande número de pacientes em DP incluídos e as estatísticas robustas que levaram em consideração as características do centro são pontos fortes de nosso trabalho.

Em conclusão, o número de hospitalizações não relacionadas à COVID aumentou durante a pandemia, e a implementação da telemedicina sem treinamento e equipamento adequados, embora necessário no cenário atual, pode ser prejudicial aos pacientes em DP.

Agradecimentos

Este foi um estudo auto conduzido pelos pesquisadores e não foi apoiado por financiamento de pesquisa. Os autores gostariam de agradecer às suas equipes, incluindo médicos, residentes e colegas, enfermeiros, nutricionistas e todas as pessoas envolvidas no cuidado de nossos pacientes em DP durante estes tempos difíceis.

Divulgações

TPM é funcionário da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), recebeu honorários de consultoria da Astra Zeneca e Baxter Healthcare, e honorários por palestras da Astra Zeneca, Lilly-Boehringer, Baxter e Takeda.

DRS é funcionário do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e recebeu honorários por palestras da Baxter Healthcare.

AEF recebeu honorários de consultoria da Baxter Healthcare.

VCS recebeu honorários de consultoria da Baxter Healthcare.

Material Suplementar

O seguinte material online está disponível para este artigo:

Tabela S1 - Tópicos discutidos durante a consulta online por cada centro.

Tabela S2 - Resultados univariados para a razão de riscos de hospitalização: regressão multinível de Poisson.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2021
  • Aceito
    04 Jan 2022
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