Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação de membros da família Herpesviridae na admissão hospitalar de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico mostra maior frequência do vírus Epstein-Barr e sua disfunção renal associada

Resumo

Introdução:

Membros da família Herpesviridae tem sido descritos em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES), mas o impacto clínico na função renal não é bem conhecido.

Métodos:

Avaliou-se HSV1, HSV2, VZV, EBV, CMV, HHV-6, HHV-7, HHV-8 por biologia molecular na admissão em amostras sanguíneas de 40 pacientes com LES consecutivos hospitalizados por atividade lúpica.

Resultados:

Pacientes 90,0% mulheres, 77,5% não brancos, idade média 32,7 ± 13,6 anos. Encontramos positividade para EBV (65,0%), CMV (30,0%), HSV-1 (30,0%), HHV-6 (12,5%), HHV-7 (7,5%). Para todos os vírus, idade, SLEDAI, exames hematológicos, ferritina, LDH, proteína C reativa, velocidade de hemossedimentação não foram significativos. Entretanto, positividade para EBV foi estatisticamente significativo para creatinina (3,0 ± 2,8 vs. 0,9 ± 0,8; P = 0,001) e ureia (86 ± 51 vs. 50 ± 46; P = 0,03) séricas mais elevadas. Ademais, casos positivos para EBV isolado ou com coinfecções combinadas (66,7%-CMV; 58,3%-HSV-1) ou negativos apenas para EBV foram avaliados pelo teste Kruskal-Wallis e novamente mostraram significância estatística para creatinina e ureia séricas (ambas P ≤ 0,01), com pós-teste mostrando também diferenças estatísticas para disfunção renal e presença de EBV (sozinho ou em coinfecções combinadas). A presença de carga viral do EBV também foi significativa para proteinúria de faixa nefrótica, inflamação aguda, necessidade de hemodiálise.

Conclusão:

Membros da família Herpeviridae (principalmente EBV, HSV-1, CMV) são comuns na admissão de pacientes com LES, chegando a 65% para EBV, que parece associar-se à disfunção renal podendo refletir associação prévia ou doença sobreposta, o que não é bem compreendido.

Descritores:
Herpesviridae; Lúpus Eritematoso Sistêmico; Herpesvirus Humano 4; Creatinina; Nefrite Lúpica; VHS-1; CMV; Rim

Abstract

Introduction:

Members of the Herpesviridae family have been described in patients with systemic lupus erythematous (SLE), but the clinical impact on renal function is not well known.

Methods:

HSV1, HSV2, VZV, EBV, CMV, HHV-6, HHV-7, and HHV-8 were evaluated by molecular biology on admission in blood samples from 40 consecutive SLE patients hospitalized for lupus activity.

Results:

Patients were 90.0% female, 77.5% non-white, with average age of 32.7 ± 13.6 years. We found positivity for EBV (65.0%), CMV (30.0%), HSV-1 (30.0%), HHV-6 (12.5%), and HHV-7 (7.5%). For all viruses, age, SLEDAI, hematological tests, ferritin, LDH, C-reactive protein, and erythrocyte sedimentation rate (ESR) were not significant. However, EBV positivity was a significant factor for higher serum creatinine (3.0 ± 2.8 vs. 0.9 ± 0.8; P = 0.001) and urea (86 ± 51 vs. 50 ± 46; P = 0.03). Moreover, positive cases for EBV only or with combined co-infections (66.7%-CMV; 58.3%-HSV-1) or negative for EBV only were evaluated by Kruskal-Wallis test again showed statistical significance for serum creatinine and urea (both P ≤ 0.01), with posttest also showing statistical differences for renal dysfunction and EBV presence (alone or in combined co-infections). The presence of EBV viral load was also significant for nephrotic-range proteinuria, renal flare, and the need for hemodialysis.

Conclusion:

Members of the Herpeviridae family (mainly EBV, HSV-1 and CMV) are common on hospital admission of SLE patients, reaching 65% for EBV, which seems to be associated with renal dysfunction and could reflect a previous association or overlapping disease, which is not well understood.

Keywords:
Herpesviridae; Lupus Erythematosus; Systemic; Herpesvirus 4; Human; Creatinine; Lupus Nephritis; HSV-1; CMV; Kidney

Introdução

A família do herpesvírus humano pode causar doenças graves em indivíduos imunocomprometidos, tais como aqueles com doenças autoimunes, câncer e pacientes transplantados11 Zanella MC, Cordey S, Kaiser L. Beyond cytomegalovirus and epstein-barr virus: a review of viruses composing the blood virome of solid organ transplant and hematopoietic stem cell transplant recipients. Clin Microbiol Rev. 2020 Aug;33(4):e00027.,22 Sehrawat S, Kumar D, Rouse BT. Herpesviruses: harmonious pathogens but relevant cofactors in other diseases? Front Cell Infect Microbiol. 2018;8:177.. Esta família inclui os seguintes vírus: vírus herpes simples 1 e 2 (VHS-1 e VHS-2), vírus varicela-zoster (VZV), vírus Epstein-Barr (EBV), citomegalovírus (CMV), herpesvírus humano 6 e 7 (HHV-6 e HHV-7), e o herpesvírus 8 associado ao sarcoma da Kaposi (HVH-8)22 Sehrawat S, Kumar D, Rouse BT. Herpesviruses: harmonious pathogens but relevant cofactors in other diseases? Front Cell Infect Microbiol. 2018;8:177.. Os herpesvírus têm sido relatados em séries de casos de pacientes com LES como uma questão emergente, incluindo o desencadeamento do próprio LES e sua atividade, por meio de mecanismos de reativação viral e distúrbios imunoinflamatórios33 Reis AD, Mudinutti C, Peigo MF, Leon LL, Costallat LTL, Rossi CL, et al. Active human herpesvirus infections in adults with systemic lupus erythematosus and correlation with the SLEDAI score. Adv Rheumatol. 2020 Aug;60(1):42.. Recentemente, foi sugerida uma relação entre LES, doença renal crônica e carga de EBV44 Truszewska A, Wirkowska A, Gala K, Truszewski P, Krzemien-Ojak L, Mucha K, et al. EBV load is associated with cfDNA fragmentation and renal damage in SLE patients. Lupus. 2021 Jul;30(8):1214-25.. Assim, o objetivo deste estudo piloto transversal foi avaliar a frequência de infecção com cada herpesvírus humano e a possível associação clínica com doença renal na admissão hospitalar de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES).

Métodos

Este foi um estudo retrospectivo baseado em laboratório. A presença de todos os membros da família do herpesvírus humano foi avaliada na mesma amostra de sangue de cada paciente adulto com LES e consecutivos na admissão hospitalar, independentemente do sexo, que foi hospitalizado para investigar o estado febril associado à atividade do LES. O estudo foi realizado no Hospital Universitário Antonio Pedro, em Niterói, Brasil, de junho de 2019 a janeiro de 2020. As amostras de sangue foram coletadas nas primeiras 24 horas de internação. Elas foram imediatamente processadas para obtenção de soro para análise bioquímica. Amostras para exames hematológicos e alíquotas de sangue total foram coletadas em tubos com anticoagulante EDTA, imediatamente armazenados a-80o Celsius e utilizados para extração de DNA (QIAamp DNA Minikit, Qiagen, Alemanha). Excluímos pacientes com diagnóstico de câncer, HIV, sífilis, hepatite viral, gravidez e pacientes com LES transplantados. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética (CAAE: 12125219.8.0000.5243).

Os membros da família do herpesvírus foram estudados por métodos próprios no Laboratório de Virologia Molecular (Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro), onde a carga viral foi avaliada por amplificação por PCR realizada em um sistema 7500 (Applied BiosystemsTM, Foster City, CA, EUA) utilizando primers e sondas específicos. Os limites de detecção de qPCR foram de 10 cópias/mL de acordo com a metodologia anterior55 Raposo JV, Alves ADR, Silva AS, Santos DC, Melgaco JG, Moreira OC, et al. Multiplex qPCR facilitates identification of betaherpesviruses in patients with acute liver failure of unknown etiology. BMC Infect Dis. 2019 Sep;19(1):773.

6 Lima LR, Silva AP, Schmidt-Chanasit J, Paula VS. Diagnosis of human herpes virus 1 and 2 (HHV-1 and HHV-2): use of a synthetic standard curve for absolute quantification by real time polymerase chain reaction. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2017 Mar;112(3):220-3.
-77 Lopes AO, Lima LRP, Tozetto-Mendoza TR, Martinelli KG, Morgado MG, Pilotto JH, et al. Low prevalence of human gammaherpesvirus 8 (HHV-8) infection among HIV-infected pregnant women in Rio De Janeiro, Brazil. J Matern Fetal Neonatal Med. 2021 Oct;34(20):3458-61.. As análises bioquímicas e hematológicas foram realizadas em uma unidade local de patologia clínica. O LES foi classificado por um experiente reumatologista assistente (K.L.) nos primeiros 3 dias após a admissão hospitalar, de acordo com a Systemic Lupus International Collaborating Clinics (SLICC)88 Petri M, Orbai AM, Alarcon GS, Gordon C, Merrill JT, Fortin PR, et al. Derivation and validation of the systemic lupus international collaborating clinics classification criteria for systemic lupus erythematosus. Arthritis Rheum. 2012 Aug;64(8):2677-86., e a atividade do LES foi estimada utilizando o escore SLEDAI 2K99 Gladman DD, Ibañez D, Urowitz MB. Systemic lupus erythematosus disease activity index 2000. J Rheumatol. 2002 Feb;29(2):288-91..

A creatinina sérica foi analisada na admissão e avaliada contra a presença de herpesvírus. A partir dos registros médicos ambulatoriais, verificamos a creatinina e a ureia séricas de até 3 meses antes do dia da internação. Isso nos permitiu classificar os casos como disfunção renal recente ou não, e verificar se os valores de creatinina estavam estavelmente elevados até 3 meses antes do dia da internação, caso em que o paciente foi considerado como portador de doença renal crônica. A proteinúria foi avaliada no dia da internação e até 48 horas após, por urina de 24 horas ou pela relação proteína/creatinina urinária em uma amostra matinal, com os casos sendo arbitrariamente divididos em três classes: menos de 1g/dia, mais de 1g/dia e proteinúria de faixa nefrótica (mais de 3,5g/dia). Para considerações práticas de um estudo da vida real, o termo inflamação aguda (atividade de nefrite lúpica) foi utilizado neste artigo para se referir tanto ao lúpus recém-diagnosticado como ao lúpus que ocorre durante o curso da doença, caracterizado por um aumento significativo na creatinina sérica, ou pelo aparecimento/agravamento de proteinúria com febre, aumento dos marcadores inflamatórios séricos, sedimento urinário ativo (se presente), e captação de complemento. Por outro lado, também consideramos um aumento recente e inexplicável de creatinina sérica de pelo menos 0,5 mg/dL ou mais de 30% do nível basal quando associado à desidratação, perdas gastrointestinais, outros estados hipovolêmicos, insuficiência cardíaca, toxicidade direta por medicamentos, nefrite tubulointersticial e sepse (se não excluída pelo próprio lúpus), mesmo quando as biópsias renais não estavam disponíveis. No contexto do lúpus, um composto incluindo estas situações foi usado como uma variável categórica para avaliar os desfechos renais nestes casos. Os dados foram expressos como média e desvio padrão. As diferenças entre grupos foram avaliadas utilizando os testes de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis. As análises foram realizadas com os pacotes estatísticos SPSS e Prism Graphpad. Consideramos como significativo um valor de P < 0,05.

Resultados

A presença de membros da família do herpesvírus humano 1 a 8 foi avaliada por biologia molecular em amostras de sangue, desde o primeiro dia de hospitalização, em 40 pacientes com LES e consecutivos, hospitalizados devido a um quadro clínico de atividade lúpica. Não foi observada positividade para HSV-2, VZV e HVH-8 nas amostras de sangue, porém encontramos 26 amostras positivas para EBV (65,0%), 12 para CMV (30,0%), 12 para HSV-1 (30,0%), 5 para HHV-6 (12,5%), e por fim 3 para HHV-7 (7,5%). A maioria dos pacientes (90,0%) era do sexo feminino com média de idade de 32,7 ± 13,6 anos, predominantemente não brancos (77,5%). A mediana da duração do LES foi de 6,0 anos. A maioria dos pacientes (60,0%) apresentou escores SLEDAI 2K ≥ 4. A Tabela 1 resume as características gerais dos pacientes.

Tabela 1
Características gerais de pacientes com LES hospitalizados (n = 40) e a presença de membros da família Herpesviridae

Idade, duração do LES, SLEDAI, leucócitos, hemoglobina, plaquetas, linfócitos, LDH, ferritina, VHS e PCR foram todos não significativos para qualquer positividade de herpes. A Tabela 2 resume estes achados para EBV, CMV, e HSV-1. Além dos níveis mais baixos de taxa de filtração glomerular, os pacientes positivos para EBV apresentaram uma tendência a serem mais velhos e com maior duração do LES, associada à tendência de níveis mais elevados de VHS, Proteina C-Reativa e LDH, mas não significativamente.

Tabela 2
Correlações clínicas e laboratoriais na admissão hospitalar de pacientes com LES (total = 40) de acordo com a presença do vírus herpes HSV-1, CMV, e EBV no sangue

Nenhum paciente apresentou mais de 3 tipos de herpesvírus. Quase metade dos pacientes (17/40; 42,5%) estavam sob terapia imunossupressora na admissão hospitalar usando prednisona nas doses usuais de manutenção associada a outro imunossupressor (AZA, MMF e MTX) e apresentavam mais de 1 herpesvírus (7/17; 41,2%) com uma frequência significativa de carga viral de EBV (12/17; 70,5%). Também houve pacientes em uso apenas de prednisona (7/40; 17,5%), dos quais 3/7 (42,8%) apresentaram carga viral positiva para mais de um herpesvírus, mas com uma menor incidência de carga viral do EBV (2/7; 28,5%). Um grupo sem imunossupressores (diagnóstico recente de LES, não adesão ao tratamento, ou sem prescrição) (11/40; 27,5%) apresentou 6/10 (60%) casos positivos para mais de 1 herpesvírus, e 9/11 (82,0%) foram EBV positivos. Um pequeno número de pacientes (usando apenas MMF/AZA (2/40)) ou prednisona e ciclofosfamida (2/40)) não contribuiu para esta análise (AZA/MMF = 1 EBV cada). Fornecemos estas informações em mais detalhes na Tabela S1.

A Tabela S1 também fornece descrição clínica detalhada dos pacientes na admissão, bem como alguns desfechos clínicos. A Tabela 2 mostra relações significativas entre EBV com proteinúria, inflamação aguda e hemodiálise. Não encontramos nenhuma relação significativa com ventilação mecânica e óbito. Na Tabela S1 também fornecemos os valores séricos de ureia e creatinina de até 3 meses antes da admissão, e isso mostra que a maioria dos casos são de fato disfunção renal aguda, independentemente da idade ou sexo.

No total, encontramos 58 infecções. Os pacientes com pelo menos uma infecção foram 85%, enquanto os pacientes com qualquer combinação de coinfecções foram 45%. Além disso, o EBV apresentou a maior frequência de casos; o EBV sozinho representou quase metade dos casos (46%) e, quando associado a outros vírus, foi responsável por 54%. Também é importante notar que a maioria dos casos de CMV e HSV-1 apresentaram coinfecção combinada com EBV. A Figura 1 ajuda a entender a distribuição dos casos e revela três grupos de maior interesse: positivo apenas para EBV (círculos azuis), positivo para EBV e outros herpesvírus em coinfecção combinada (círculos multicoloridos), e casos negativos apenas para EBV (sem círculos azuis). Desta forma, testamos de acordo com este desenho de agrupamento para as mesmas variáveis clínicas e laboratoriais. De acordo com o teste de Kruskal-Wallis, os únicos fatores significativos foram a creatinina e a ureia séricas (P=0,01). Os pós-testes mostraram diferenças estatísticas para o EBV isoladamente e em grupos de coinfecção combinada para creatinina e ureia séricas. A Figura 2 mostra resultados mais detalhados.

Figura 1
Diagrama esquemático da admissão hospitalar de pacientes com LES (n = 40) e distribuição dos tipos de herpesvírus e carga viral detectável (n = 58). As cores e os círculos sobrepostos representam diferentes vírus e pacientes, respectivamente. Este agrupamento ajuda a identificar grupos de pacientes positivos apenas para EBV (círculos azuis), positivos para EBV e outros herpesvírus (círculos multicoloridos), e negativos apenas para EBV (sem círculos azuis). HSV-1 = vírus herpes simples 1, EBV = vírus Epstein-Barr, CMV = citomegalovírus, HHV-6 = herpesvírus humano 6, e HHV-7 = herpesvírus humano 7. Este diagrama ajuda na análise da Figura 2.

Figura 2
Box plot do teste Kruskal-Wallis para creatinina e ureia séricas, de acordo com os grupos de EBV vistos na Figura 1. Para creatinina (A) e ureia (B) séricas, P ≤ 0,01 e 0,03 foram encontrados, respectivamente. As diferenças entre os pares foram avaliadas com pós-testes e representadas por asteriscos e barras, *≤ 0,05; e **≤ 0,01. NS: não significativo. Os diagramas de caixa representam medianas, valores mínimos e máximos. As cruzes circuladas representam a média em cada diagrama. A idade correspondente (C) e a duração do LES (E) estão representadas na parte inferior e não foram significativas.

Do total, 18/40 (45%) apresentaram inflamação aguda, dos quais 16/18 (88,9%) foram positivos para EBV. Os pacientes diagnosticados com doença renal crônica foram 6/40 (15%), dos quais 5/6 (83,3%) também foram positivos para EBV. Convém notar que 13/40 (32,5%) apresentaram proteinúria de faixa nefrótica e todos (13/13; 100%) foram positivos para EBV. Entre os pacientes com proteinúria ≤ 1g/dia (21/40; 52,5%), apenas 10/21 (47,6%) foram positivos para EBV. Os pacientes sem disfunção renal foram 16/40 (40%), dos quais apenas 5/16 (31,2%) foram positivos para EBV. Os casos positivos para EBV tiveram significativamente mais indicações de hemodiálise. A inflamação aguda e a proteinúria não foram significativas em pacientes com e sem carga viral de HSV-1 e CMV. A Tabela 2 resume estes achados.

Destaca-se que, na admissão, 10/40 (25%) dos pacientes apresentaram hemocultura positiva principalmente para as espécies de Staphylococcus, E. coli e espécies de Candida, sem correlação significativa com a frequência do EBV ou com inflamação aguda (Tabela S1).

Discussão

Encontramos positividade para HSV-1 e CMV e uma frequência impressionante de 65,0% para EBV em pacientes com LES hospitalizados. As infecções são comuns em pacientes com LES, resultantes em parte do tratamento imunossupressor e da ruptura do sistema imunológico associados ao LES, e estão associadas a alta morbidade e mortalidade1010 Pego-Reigosa JM, Nicholson L, Pooley N, Langham S, Embleton N, Marjenberg Z, et al. The risk of infections in adult patients with systemic lupus erythematosus: systematic review and meta-analysis. Rheumatology (Oxford). 2021 Jan;60(1):60-72.. A identificação e correlação do herpesvírus humano ativo com complicações clínicas em pacientes com LES com escores SLEDAI elevados é muito importante, assim como a busca precoce por membros da família do herpes, como o CMV, nos primeiros dias de internação de pacientes com doenças autoimunes33 Reis AD, Mudinutti C, Peigo MF, Leon LL, Costallat LTL, Rossi CL, et al. Active human herpesvirus infections in adults with systemic lupus erythematosus and correlation with the SLEDAI score. Adv Rheumatol. 2020 Aug;60(1):42.,1111 Santos RP, Reis-Neto ET, Pinheiro MM. Incidence of cytomegalovirus antigenemia in patients with autoimmune rheumatic diseases: a 3-year retrospective study. Adv Rheumatol. 2019 May;59(1):18.. Por exemplo, indivíduos com LES podem apresentar maior suscetibilidade à reativação do EBV e/ou CMV e HHV-6 com ou sem implicações na exacerbação da doença1212 Rasmussen NS, Draborg AH, Nielsen CT, Jacobsen S, Houen G. Antibodies to early EBV, CMV, and HHV6 antigens in systemic lupus erythematosus patients. Scand J Rheumatol. 2015;44(2):143-9.. Entre a família do herpesvírus, o EBV tem sido frequentemente implicado na patogênese do LES e considerado um potencial desencadeador de crises de LES, com pacientes apresentando evidências de aumento da reativação do EBV1313 Jog NR, James JA. Epstein Barr virus and autoimmune responses in systemic lupus erythematosus. Front Immunol. 2020 Feb;11:623944.. A resposta das células T CD8+ específicas do EBV está funcionalmente prejudicada em pacientes com LES, mas a reativação do EBV parece ser uma consequência agravante, que pode contribuir para a perpetuação da ativação imune1414 Larsen M, Sauce D, Deback C, Arnaud L, Mathian A, Miyara M, et al. Exhausted cytotoxic control of Epstein-Barr virus in human lupus. PLoS Pathog. 2011 Oct;7(10):e1002328.,1515 James JA, Robertson JM. Lupus and Epstein-Barr. Curr Opin Rheumatol. 2012 Jul;24(4):383-8..

O ponto mais importante de nosso trabalho surge quando associamos a positividade para os três vírus mais frequentes encontrados (EBV, HSV-1 e CMV) com diversas variáveis clínicas, incluindo idade, escores SLEDAI, exames bioquímicos e hematológicos. (Tabela 2). Não encontramos nenhuma evidência de impacto clínico, exceto para significância estatística entre os valores de creatinina e ureia séricas e positividade para EBV e também para proteinúria, inflamação aguda e o início da hemodiálise. Estudamos pacientes com LES que apresentaram atividade clínica relativamente uniforme (SLEDAI 2K ≥ 4 de 60%, linfopenia e níveis elevados de VHS) (Tabela 1), e apesar da falta de um grupo controle, nossa série pode ser interessante em um estudo da vida real devido à relativa homogeneidade. Para melhor certificar e compreender as relações de carga viral do EBV e disfunção renal, estudamos a distribuição do vírus em pacientes para identificar subgrupos de acordo com a presença ou ausência do EBV, incluindo o EBV isolado e coinfecções combinadas (Figura 1). Assim, fomos capazes de avaliar separadamente o impacto do EBV e encontramos um forte conjunto de evidências matemáticas que associaram a infecção por EBV com disfunção renal, seja para o EBV isoladamente ou em coinfecções combinadas. (Figura 2).

Encontramos uma forte associação entre a presença de EBV e os desfechos renais em pacientes com LES hospitalizados, incluindo disfunção renal geral, mas especialmente o grau de proteinúria, a inflamação aguda e a necessidade de hemodiálise. Estes achados estão de acordo com alguns estudos que abordam a presença do EBV no tecido renal de pacientes com nefrite lúpica1616 Yu XX, Yao CW, Tao JL, Yang C, Luo MN, Li SM, et al. The expression of renal Epstein-Barr virus markers in patients with lupus nephritis. Exp Ther Med. 2014 May;7(5):1135-40.. Os antígenos do EBV são capazes de gerar anticorpos antinucleares patogênicos que reagem de forma cruzada com o DNA de fita dupla, causando deposição imunológica glomerular, proteinúria e lesões histopatológicas de glomerulonefrite na nefrite lúpica experimental1717 Singh D, Oudit O, Hajtovic S, Sarbaugh D, Salis R, Adebowale T, et al. Antibodies to an Epstein Barr Virus protein that cross-react with dsDNA have pathogenic potential. Mol Immunol. 2021 Apr;132:41-52., assim como em pequenas biópsias renais utilizando PCR para EBV, e em estudos imunohistoquímicos para a gravidade da nefropatia1616 Yu XX, Yao CW, Tao JL, Yang C, Luo MN, Li SM, et al. The expression of renal Epstein-Barr virus markers in patients with lupus nephritis. Exp Ther Med. 2014 May;7(5):1135-40.,1818 Zaki ME, Abou El-Khier NT, Al-Kasaby NM, Abdelsalam M, Nassar MK, Abdelwahab AM. Epstein Barr virus in patients with nephropathy associated with systemic lupus erythematous, pilot study in Egyptian patients. Egypt J Immunol. 2018 Jan;25(1):1-8.. No entanto, apesar de não haver associação significativa com anticorpos séricos do EBV, foi observada 100% de positividade para anti-VCA-IgG- EBV em pacientes com LES com manifestações renais1919 Chougule D, Nadkar M, Rajadhyaksha A, Pandit-Shende P, Surve P, Dawkar N, et al. Association of clinical and serological parameters of systemic lupus erythematosus patients with Epstein-Barr virus antibody profile. J Med Virol. 2018 Mar;90(3):559-63.. Recentemente, um estudo comparou pacientes ambulatoriais com LES com controles saudáveis e encontrou uma relação entre níveis elevados de carga viral para EBV com doença renal crônica e fragmentação de DNA no grupo LES44 Truszewska A, Wirkowska A, Gala K, Truszewski P, Krzemien-Ojak L, Mucha K, et al. EBV load is associated with cfDNA fragmentation and renal damage in SLE patients. Lupus. 2021 Jul;30(8):1214-25.. Desta forma, afirmamos que, sem negligenciar outras considerações imunológicas ou infecciosas, a presença do EBV pode ter um impacto consistente nos danos renais e na progressão da doença renal em pacientes com LES. Entretanto, a discussão sobre esses pontos em termos de patogênese, incluindo, por exemplo, a produção excessiva de anti-Sm, mimetismo molecular, ou se a reativação do EBV poderia ocorrer mesmo antes do início da nefrite lúpica, ou se haveria uma proposta de como abordar e tratar esses casos, estão além do escopo desta breve comunicação. No entanto, estes pontos merecem ser estudados com urgência.

A infecção por herpesvírus deve ser sempre considerada em pacientes com LES com uma ampla gama de apresentações clínicas, tais como encefalite grave, ativação linfoide ou lesões pulmonares e gastrointestinais, mas isso estava além do escopo deste estudo. Um estado crônico concomitante de replicação subclínica viral e como tratar esses casos também deve ser investigado.

Neste estudo, a frequência de herpesvírus totais detectáveis, especialmente o EBV, em pacientes recém-diagnosticados para lúpus ou com inflamação devido à não adesão ao tratamento ou mesmo pela falta de prescrição de imunossupressores foi semelhante ao grupo em uso de prednisona associada a AZA/MMF/MTX. Isso está de acordo com outros estudos que apontam que a atividade da doença per se está associada à carga viral de herpesvírus, especialmente o EBV1414 Larsen M, Sauce D, Deback C, Arnaud L, Mathian A, Miyara M, et al. Exhausted cytotoxic control of Epstein-Barr virus in human lupus. PLoS Pathog. 2011 Oct;7(10):e1002328., de forma independente, e que merece mais estudos. Por outro lado, observamos também um número semelhante de casos totais de herpesvírus em pacientes fazendo uso apenas de prednisona, mas isso foi associado a um número menor de EBV detectáveis. Estes achados não são conclusivos devido a uma ampla gama de doses de prednisona utilizadas por nossos pacientes e ao pequeno número de casos.

Nosso trabalho apresenta alguns pontos relevantes e originais. Estudamos todos os membros do herpesvírus na internação, mais especificamente o EBV (sozinho ou em coinfecções), destacando a disfunção renal pré-admissão e uma importante associação com o EBV. Como esta é uma série retrospectiva descritiva baseada em laboratório, este estudo apresenta alguns pontos fracos, como a falta de um grupo controle pareado por idade ou sexo. No entanto, em nossa opinião, o ponto mais importante é o fato de que o estudo sugere uma associação entre a disfunção renal e a carga viral do EBV. Também é importante enfatizar a necessidade de estudos clínicos futuros bem projetados, abordando pacientes com LES longitudinalmente através do monitoramento da carga viral ao longo do tempo, do controle do índice de atividade e da avaliação da ocorrência precoce da atividade lúpica. Acreditamos que devemos estar muito atentos e cuidadosos, mas não há grandes estudos sistemáticos avaliando esses achados, o que aponta para a necessidade de estudos prospectivos maiores.

Em conclusão, apesar da alta frequência de infecções por herpesvírus, especialmente EBV, HSV-1 e CMV em pacientes com LES hospitalizados, incluindo coinfecção em metade dos casos, parece que o EBV tem um papel particular na reativação de doenças renais e está associado à disfunção renal pré-admissão. A infecção por EBV parece estar associada à inflamação aguda, proteinúria e disfunção renal geral.

Agradecimentos

Agradecemos ao Professor Evandro Mendes Klumb, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Brasil, pela ajuda e motivação neste trabalho. Este trabalho foi financiado pela CAPES (#001) e pelo Conselho Nacional de Pesquisa/CNPq.

Material Suplementar

O seguinte material online está disponível para o presente artigo:

Tabela S1- Dados descritivos de pacientes com LES conforme análise da creatinina sérica e presença de herpesvírus detectáveis (particularmente EBV) no dia da internação e alguns desfechos clínicos.

References

  • 1
    Zanella MC, Cordey S, Kaiser L. Beyond cytomegalovirus and epstein-barr virus: a review of viruses composing the blood virome of solid organ transplant and hematopoietic stem cell transplant recipients. Clin Microbiol Rev. 2020 Aug;33(4):e00027.
  • 2
    Sehrawat S, Kumar D, Rouse BT. Herpesviruses: harmonious pathogens but relevant cofactors in other diseases? Front Cell Infect Microbiol. 2018;8:177.
  • 3
    Reis AD, Mudinutti C, Peigo MF, Leon LL, Costallat LTL, Rossi CL, et al. Active human herpesvirus infections in adults with systemic lupus erythematosus and correlation with the SLEDAI score. Adv Rheumatol. 2020 Aug;60(1):42.
  • 4
    Truszewska A, Wirkowska A, Gala K, Truszewski P, Krzemien-Ojak L, Mucha K, et al. EBV load is associated with cfDNA fragmentation and renal damage in SLE patients. Lupus. 2021 Jul;30(8):1214-25.
  • 5
    Raposo JV, Alves ADR, Silva AS, Santos DC, Melgaco JG, Moreira OC, et al. Multiplex qPCR facilitates identification of betaherpesviruses in patients with acute liver failure of unknown etiology. BMC Infect Dis. 2019 Sep;19(1):773.
  • 6
    Lima LR, Silva AP, Schmidt-Chanasit J, Paula VS. Diagnosis of human herpes virus 1 and 2 (HHV-1 and HHV-2): use of a synthetic standard curve for absolute quantification by real time polymerase chain reaction. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2017 Mar;112(3):220-3.
  • 7
    Lopes AO, Lima LRP, Tozetto-Mendoza TR, Martinelli KG, Morgado MG, Pilotto JH, et al. Low prevalence of human gammaherpesvirus 8 (HHV-8) infection among HIV-infected pregnant women in Rio De Janeiro, Brazil. J Matern Fetal Neonatal Med. 2021 Oct;34(20):3458-61.
  • 8
    Petri M, Orbai AM, Alarcon GS, Gordon C, Merrill JT, Fortin PR, et al. Derivation and validation of the systemic lupus international collaborating clinics classification criteria for systemic lupus erythematosus. Arthritis Rheum. 2012 Aug;64(8):2677-86.
  • 9
    Gladman DD, Ibañez D, Urowitz MB. Systemic lupus erythematosus disease activity index 2000. J Rheumatol. 2002 Feb;29(2):288-91.
  • 10
    Pego-Reigosa JM, Nicholson L, Pooley N, Langham S, Embleton N, Marjenberg Z, et al. The risk of infections in adult patients with systemic lupus erythematosus: systematic review and meta-analysis. Rheumatology (Oxford). 2021 Jan;60(1):60-72.
  • 11
    Santos RP, Reis-Neto ET, Pinheiro MM. Incidence of cytomegalovirus antigenemia in patients with autoimmune rheumatic diseases: a 3-year retrospective study. Adv Rheumatol. 2019 May;59(1):18.
  • 12
    Rasmussen NS, Draborg AH, Nielsen CT, Jacobsen S, Houen G. Antibodies to early EBV, CMV, and HHV6 antigens in systemic lupus erythematosus patients. Scand J Rheumatol. 2015;44(2):143-9.
  • 13
    Jog NR, James JA. Epstein Barr virus and autoimmune responses in systemic lupus erythematosus. Front Immunol. 2020 Feb;11:623944.
  • 14
    Larsen M, Sauce D, Deback C, Arnaud L, Mathian A, Miyara M, et al. Exhausted cytotoxic control of Epstein-Barr virus in human lupus. PLoS Pathog. 2011 Oct;7(10):e1002328.
  • 15
    James JA, Robertson JM. Lupus and Epstein-Barr. Curr Opin Rheumatol. 2012 Jul;24(4):383-8.
  • 16
    Yu XX, Yao CW, Tao JL, Yang C, Luo MN, Li SM, et al. The expression of renal Epstein-Barr virus markers in patients with lupus nephritis. Exp Ther Med. 2014 May;7(5):1135-40.
  • 17
    Singh D, Oudit O, Hajtovic S, Sarbaugh D, Salis R, Adebowale T, et al. Antibodies to an Epstein Barr Virus protein that cross-react with dsDNA have pathogenic potential. Mol Immunol. 2021 Apr;132:41-52.
  • 18
    Zaki ME, Abou El-Khier NT, Al-Kasaby NM, Abdelsalam M, Nassar MK, Abdelwahab AM. Epstein Barr virus in patients with nephropathy associated with systemic lupus erythematous, pilot study in Egyptian patients. Egypt J Immunol. 2018 Jan;25(1):1-8.
  • 19
    Chougule D, Nadkar M, Rajadhyaksha A, Pandit-Shende P, Surve P, Dawkar N, et al. Association of clinical and serological parameters of systemic lupus erythematosus patients with Epstein-Barr virus antibody profile. J Med Virol. 2018 Mar;90(3):559-63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2021
  • Aceito
    08 Dez 2021
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com