Doação Renal Pareada: um passo longo demais ou uma vitória?

O transplante renal, seja de um doador vivo ou falecido, melhora a qualidade de vida e a sobrevida de pacientes com doença renal em estágio terminal (DRET) e doença renal crônica avançada (DRC)¹. A demanda por órgãos excede em muito a oferta, e as listas de espera por órgãos de doadores falecidos estão crescendo em todo o mundo. Para muitas pessoas, a espera por um transplante que salve suas vidas pode se estender por muitos anos e nunca se tornar uma realidade. Os receptores de aloenxertos de doadores vivos têm vantagens significativas sobre aqueles que recebem enxertos de doadores falecidos em termos de enxerto e sobrevida de pacientes. Neste contexto, um em cada três doadores renais vivos em potencial é ABO incompatível ou apresenta uma prova cruzada positiva com o receptor pretendido². Tais doadores têm sido tradicionalmente considerados “incompatíveis”, qualquer que seja sua motivação para doar e seu estado de saúde, limitando o pool de doadores potenciais. A doação renal pareada (DRP) é uma maneira potencial de superar esta barreira para este grupo de pares doador-receptor². A primeira troca renal pareada foi realizada em 1991 e, desde então, ganhou popularidade ao redor do mundo³. Em sua forma mais simples, a DRP envolve a troca simultânea de órgãos entre dois conjuntos de pares doador-receptor incompatíveis, e com o crescimento dos registros e da colaboração entre centros, cadeias de doador-receptor mais complexas se desenvolveram e agora incluem até mesmo doações internacionais. Tudo isso é alcançado com excelentes desfechos de doadores e receptores, com desfechos de pacientes e enxertos após a DRP pelo menos comparáveis a, e provavelmente melhores do que, aqueles após o transplante renal padrão de doadores vivos⁴.

Apesar da crescente popularidade da DRP, esta prática ainda não se tornou realidade na América do Sul. Nesta edição do Jornal Brasileiro de Nefrologia, Medina-Pestana et al.⁵ e Bastos et al.⁶ debatem os méritos e potenciais armadilhas da DRP. Os autores de ambos os artigos resumem a literatura no campo da DRP, com Bastos et al.⁶ se pronunciando fortemente a favor da mesma, enquanto Medina-Pestana et al.⁵ expressam grande cautela não apenas com a DRP, mas também com a doação em vida e, talvez, o transplante em geral.

Bastos et al.⁶ citam o impacto positivo da DRP ao facilitar o transplante renal, especialmente para pacientes que estão em desvantagem por seu tipo sanguíneo ou histórico de sensibilização. Isto é sustentado por desfechos publicados, como os do National Kidney Registry (NKR) nos EUA⁴. A DRP permitiu que mais pacientes afro-americanos, historicamente super-representados em listas de espera e que são mais frequentemente do tipo sanguíneo B, e pacientes que são altamente sensibilizados, pudessem receber um transplante. Os resultados nestas populações de maior risco foram favoravelmente comparados com os de doadores vivos não-DRP, embora o tempo de isquemia fria e a incidência da função retardada do enxerto aumentem em cadeias de DRP que envolvam o transporte de um órgão de doador vivo. Eles reconhecem que, apesar de sua complexidade burocrática, exigindo algoritmos compatíveis, envio de órgãos e coordenação entre centros de transplante, a DRP tem sido realizada com sucesso em vários países, tanto desenvolvidos como subdesenvolvidos. Poucas ou nenhuma consequência política ou social negativa foram observadas, demonstrando que a DRP é um recurso valioso para melhorar ainda mais a qualidade de vida e a sobrevida de pessoas com doença renal em estágio terminal.

Apesar do crescente volume de literatura, as preocupações com a prática da DRP permanecem e, ainda em 2018, o Conselho Federal de Medicina do Brasil recomendou cautela. Este suscitou preocupações de que a DRP possa resultar em piores desfechos, beneficiar apenas uma minoria em um país com grandes disparidades socioeconômicas, e um impacto negativo nas taxas de transplante no país.

Medina-Pestana et al.⁵ levantam diversas preocupações, incluindo o receio de que somente os mais abastados se beneficiarão e de que a alocação de recursos para promover a DRP desvie a atenção do programa de doadores falecidos. Os autores estão preocupados com o fato de que a doação em vida represente riscos potenciais à saúde do doador a longo prazo, os quais podem ser exacerbados pela falta de cuidados médicos, especialmente em países com poucos recursos⁵ e, portanto, defendem uma abordagem cautelosa para a doação renal de doadores vivos em geral. Embora o risco do doador possa ser eticamente justificado, eles temem que a ligação entre doador e receptor seja diluída em uma DRP, uma vez que todos os pares doador-receptor não estão relacionados. Eles receiam que os maus desfechos da DRP possam afetar negativamente a doação de órgãos. Em conclusão, Medina-Pestana et al.⁵ pedem cautela ao assumir cegamente que o transplante renal é superior à diálise, especialmente porque os pacientes estão em risco de imunossupressão e de transmissão de doenças com o transplante de órgãos⁶.

A ética da DRP é complexa⁷. Um discurso intenso e dinâmico é fundamental, uma vez que cada sociedade deve decidir por si mesma como priorizar recursos para o cuidado dos doentes e desfavorecidos. Além disso, com relação aos doadores vivos de órgãos, eles devem decidir como melhor proteger seus interesses e sua saúde a longo prazo. Ao conscientizar a comunidade médica brasileira sobre a DRP, tanto Medina-Pestana et al.⁵ como Bastos et al.⁶ estão promovendo a causa do transplante em sua comunidade. E se estivermos convencidos de que o transplante renal é uma terapia que melhora e prolonga a vida, então a DRP deve ser considerada como uma opção para todos os candidatos a transplante que tenham um doador vivo que seja clinicamente capaz, mas que não possa doar um rim ao candidato pretendido devido à incompatibilidade do ABO ou do antígeno leucocitário humano (HLA).

References

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• ⁴
  Leeser DB, Thomas AG, Shaffer AA, et al. Patient and Kidney Allograft Survival with National Kidney Paired Donation. Clin J Am Soc Nephrol. 2020;15(2):228-237.
• ⁵
  Medina-Pestana J, Abbud-Filho M, Duro Garcia V, Demarchi Foresto R, Requião-Moura LR. Paired kidney donation: are we going beyond reasonable limits in living-donor transplantation? Braz. J. Nephrol. 2021; [Epub ahead of print].
• ⁶
  Bastos J, Barros Machado D, David-Neto E. Increasing transplantability in Brazil - Time to discuss Kidney Paired Donation. Braz. J. Nephrol. 2021; [Epub ahead of print].
• ⁷
  Muzaale AD, Massie AB, Wang MC, et al. Risk of end-stage renal disease following live kidney donation. JAMA. 2014;311(6):579-586.
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  Fishman JA. Infection in Organ Transplantation. Am J Transplant. 2017;17(4):856-879.
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  Ross LF, Rubin DT, Siegler M, Josephson MA, Thistlethwaite JR, Jr., Woodle ES. Ethics of a paired-kidney-exchange program. N Engl J Med. 1997;336(24):1752-1755.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  21 Fev 2022
• Data do Fascículo
  Jul-Sep 2022

Histórico

• Recebido
  10 Dez 2021
• Aceito
  16 Dez 2021