Viver é muito perigoso: dialisando na pandemia

Desde o início da pandemia por covid-19, reconheceu-se que a população renal crônica apresenta maior chance de contaminação e adoecimento desproporcional¹, o que pode ser significativamente impactado nos contextos que caracterizam cada modalidade de tratamento. Desde o início da pandemia, cresceu a expectativa de que a diálise peritoneal ofereceria menor risco de contaminação pela reduzida exposição a clusters de pacientes e aos profissionais e ambientes de saúde, com a disponibilidade online de atendimentos e ajustes da prescrição, além de não depender de trabalhadores de saúde para a sua realização no domicílio (frequentemente contaminados e afastados dos times de trabalho, com consequente dificuldade em manter-se as atividades)²,³. Além disso, a hemodiálise envolve maior complexidade de abastecimento de maquinário, água tratada e insumos, pela sobrecarga da rede hospitalar que buscava atender às unidades de terapia intensiva superlotadas².

O estudo de Gorayeb-Polacchini et al.⁴ nos auxilia a entender como se configura a pandemia nos pacientes em programa brasileiro de diálise. Essencialmente, os pacientes em hemodiálise tiveram maior incidência de infecções por covid-19, mas aqueles em diálise peritoneal desenvolveram quadros mais graves, com maior necessidade de internação, suporte ventilatório e tratamento intensivo, e mais elevada letalidade; os autores sugerem então parcimônia na indicação de troca de modalidade (de hemodiálise para diálise peritoneal) com vistas à proteção de pacientes renais crônicos, aventada no início da pandemia⁵. Tanto na população geral quanto no segmento renal crônico, os agravos em saúde na pandemia por covid-19 foram sendo impactados por adoção de medidas de distanciamento social, oferta de testagem, emprego de vacinas, surgimento de variantes virais e acometimento recorrente de indivíduos eventualmente já expostos previamente. No que diz respeito às vacinas, precisamos levar em consideração a maior dificuldade de se atingir resposta vacinal consistente⁶, as categorias de vacinas e a disponibilidade ou não de dados consistentes sobre segurança e eficácia nos renais crônicos. As vacinas disponíveis no Brasil geram eficazmente títulos de anticorpos em pacientes renais crônicos, quer sejam as vacinas de vírus atenuados, as de vetor viral não replicante, ou aquelas baseadas em tecnologia de RNA mensageiro⁷. Em especial, parece haver resposta vacinal mais preservada em renais crônicos em diálise peritoneal do que naqueles em hemodiálise⁷, presumivelmente por status inflamatório menos pronunciado e melhor preservação da função renal residual com remoção otimizada de toxinas urêmicas de maior peso molecular. Além disso, a aplicação de dose vacinal de reforço (mRNA) em pacientes em diálise peritoneal conduz à otimização da resposta na maioria dos pacientes⁸. Por deter-se em período no qual os esquemas vacinais não tiveram ainda a plena aplicação na população renal crônica, a maior mortalidade em diálise peritoneal observada por Gorayeb-Polacchini et al.⁴ pode refletir a falha do status vacinal à época.

Cabe ainda atentar para a necessidade de serem ofertadas diferentes alternativas de tratamentos, e de se dimensionar a implementação adequada das medidas protetivas indicadas na pandemia. Nordio et al.⁹ descreve levantamento da Sociedade Italiana de Nefrologia a respeito de fatores fixos e contextuais, observando que, em pacientes submetidos a hemodiálise, houve relação direta entre a contaminação por covid-19 e infecção do staff de trabalhadores de saúde, a política de ampla testagem e a incidência na população em geral; além disso, a duração de lockdown exerceu um efeito protetor. Já os fatores preditivos de infecção na população em diálise peritoneal foram a localização do centro e a proporção de infectados na população em geral. Esses achados sugerem que diferentes intensidades desses fatores podem impactar distintas percepções de risco associado às modalidades dialíticas. Na Argentina, em que pese maior contaminação nos doentes sob hemodiálise, a mortalidade foi a mesma nas duas opções de tratamento¹⁰. À guisa de exemplo, a testagem ampla da população foi deficitária no Brasil até pelo menos o segundo semestre de 2020 pela competição comercial internacional de testes, por problemas de capacitação da rede de coleta e processamento, e pela adoção de políticas nacionais e regionais não padronizadas¹¹.

Considerações como maior qualidade de vida, preservação da função renal residual (importante fator preditivo de sobrevida) e custo-efetividade devem naturalmente ser analisadas nas recomendações pertinentes à escolha de modalidade dialítica. No que diz respeito aos nossos tempos pandêmicos, a plena aplicação de boas práticas de distanciamento social, uso de máscaras, testagem, uso de tratamentos antivirais, e mesmo de profilaxias específicas em imunossuprimidos, é essencial para o melhor enquadramento dos benefícios e riscos associados a cada alternativa. Somem-se as recomendações pertinentes ao atendimento nos programas de diálise, sendo o de diálise peritoneal aqui incluído, com o objetivo de máxima proteção aos pacientes⁵,¹².

Estamos ainda aprendendo sobre o impacto da pandemia nos renais crônicos e sobre estratégias pragmáticas de proteção. Os dados do estudo de Gorayeb-Polacchini et al.⁴ são muito bem-vindos num cenário tão inexplorado como o que enfrentamos, e convida-nos a um alerta essencial, a ser mantido vivo na lembrança, em que pese o contrapeso de um contexto em que prevalece ampla vacinação e o ganho expressivo de expertise das organizações assistenciais.

References

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  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2021-0261pt
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  » https://doi.org/10.2215/CJN.01770222
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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  28 Nov 2022
• Data do Fascículo
  Oct-Dec 2022

Histórico

• Recebido
  13 Jul 2022
• Aceito
  15 Set 2022