Acessibilidade / Reportar erro

Maturação de fístulas arteriovenosas: preditores de maturação e uso da ultrassonografia

A criação e maturação das fístulas arteriovenosas (FAV) para hemodiálise (HD) são cruciais na manutenção de uma terapia dialítica efetiva. A falência de maturação das FAV é um obstáculo cotidiano para os especialistas dedicados aos acessos vasculares para HD, no entanto, apesar do desenvolvimento tecnológico e técnico, a correta predição da maturação ainda é limitada.

Nesse contexto, o mapeamento pré-operatório com ultrassonografia (US) tem sido um aliado rotineiro na identificação dos vasos que propiciem maior chance de maturação e no planejamento de acessos vasculares futuros. Na prática clínica, essa avaliação acontece de diversas maneiras, desde abordagens point of care na clínica de HD, avaliações formais por radiologistas que enviam relatórios aos cirurgiões, até no pré-operatório imediato, realizadas pelo próprio cirurgião. Em qualquer um desses cenários, a US pode acrescentar informações clinicamente relevantes e alterar condutas.

O reconhecimento das altas incidências de falência de maturação e a sua melhor compreensão levaram a modificações nas últimas diretrizes de acessos vasculares do KDOQI. A atualização de 2019 sugere que se busque o acesso correto para o paciente correto, pelo motivo correto, bem como um planejamento de vida e dos acessos durante o tratamento dialítico. Isso significa que, apesar de os enxertos arteriovenosos terem seu lugar como primeira escolha para certo grupo de pacientes, como aqueles com baixa expectativa de vida em HD ou com territórios vasculares inadequados, uma FAV nativa que atinge maturação clínica ainda é o melhor acesso para a maioria dos pacientes. As diretrizes do KDOQI 2019 sugerem o uso da US pré-operatória em pacientes com fatores de risco para falência de maturação e comentam a falta de evidências fortes a favor do uso universal da US11. Lok CE, Huber TS, Lee T, Shenoy S, Yevzlin AS, Abreo K, et al. KDOQI Clinical Practice Guideline for Vascular Access: 2019 Update. Am J Kidney Dis. 2020;75(4, Suppl 2):S1–164. doi: http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2019.12.001. PubMed PMID: 32778223.
https://doi.org/10.1053/j.ajkd.2019.12.0...
.

Nesta edição do BJN, Gasparin et al.22. Gasparin C, Lima HN, Regueira Fo A, Marques AGB, Erzinger G. Predictors of arteriovenous fistula maturation in hemodialysis patients: a prospective cohort from an ambulatory surgical center in Joinville, Brazil. Braz J Nephrol. 2022. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2022-0120pt. PubMed PMID: 36511850.
https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-20...
, em um ensaio prospectivo observacional, buscaram avaliar a associação de fatores clínicos e ultrassonográficos com a maturação das FAV criadas em um centro cirúrgico ambulatorial. A maturação em 4 a 6 semanas, definida por diâmetro venoso acima de 0,40 cm e volume fluxo acima de 500 mL/min ao Doppler, foi de 77,9%. Os fatores associados com maturação nas análises multivariadas foram espessura da prega cutânea (OR 0,32), circunferência do braço (OR 0,83), tabagismo atual ou passado (0,35) e diâmetro da veia acima de 0,36 cm (OR 4,89). Na amostra, 36,5% das FAV foram radiocefálicas e 46,2%, braquiocefálicas. Os autores arguem que a taxa de maturação acima da média pode ser em decorrência do papel da US no pré-operatório, permitindo a seleção dos melhores vasos para anastomose.

Em 2002, um estudo retrospectivo constatou uma taxa de maturação de FAV radiocefálicas de 16%, quando os menores diâmetros da veia cefálica eram abaixo de 0,2 cm, e de 76%, quando acima dessa medida33. Mendes RR, Farber MA, Marston WA, Dinwiddie LC, Keagy BA, Burnham SJ. Prediction of wrist arteriovenous fistula maturation with preoperative vein mapping with ultrasonography. J Vasc Surg. 2002;36(3):460–3. doi: http://dx.doi.org/10.1067/mva.2002.126544. PubMed PMID: 12218967.
https://doi.org/10.1067/mva.2002.126544...
. Este estudo demonstra ainda a importância da avaliação do vaso como um todo, até seu desague na circulação central, e que a avaliação dos diâmetros apenas em possível anastomose pode ser insuficiente. No caso das FAV radiocefálicas, há de serem considerados outros fatores, como distensibilidade venosa e hiperemia reativa da artéria radial ao Doppler44. Jemcov TK. Morphologic and functional vessels characteristics assessed by ultrasonography for prediction of radiocephalic fistula maturation. J Vasc Access. 2013;14(4):356–63. doi: http://dx.doi.org/10.5301/jva.5000163. PubMed PMID: 23817950.
https://doi.org/10.5301/jva.5000163...
66. Malovrh M. Native arteriovenous fistula: preoperative evaluation. Am J Kidney Dis. 2002;39(6):1218–25. doi: http://dx.doi.org/10.1053/ajkd.2002.33394. PubMed PMID: 12046034.
https://doi.org/10.1053/ajkd.2002.33394...
, pois Wilmink e Corte-Real Houlihan77. Wilmink T, Corte-Real Houlihan M. Diameter criteria have limited value for prediction of functional dialysis use of arteriovenous fistulas. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2018;56(4):572–81. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejvs.2018.06.066. PubMed PMID: 30100213.
https://doi.org/10.1016/j.ejvs.2018.06.0...
demonstram que o diâmetro dos vasos isoladamente é um pobre preditor de uso funcional das FAV. Outra importante consideração em relação ao US é seu uso para avaliação de fluxo no pós-operatório como preditor de falência. Benaragama et al.88. Benaragama KS, Barwell J, Lord C, John BJ, Babber A, Sandoval S, et al. Post-operative arterio-venous fistula blood flow influences primary and secondary patency following access surgery. J Ren Care. 2018;44(3):134–41. doi: http://dx.doi.org/10.1111/jorc.12238. PubMed PMID: 29520968.
https://doi.org/10.1111/jorc.12238...
, em 2018, relataram que fluxos abaixo de 300 mL/min no pós-operatório identificam FAV com alto risco de falência precoce e que, portanto, esses pacientes podem ser candidatos a intervenção precoce com abordagens alternativas, por exemplo, maturação percutânea assistida por balão. Além do fluxo no pós-operatório, o diâmetro e a profundidade da FAV são variáveis que moderadamente predizem maturação clínica não assistida, bem como sobrevida global das FAV99. Robbin ML, Greene T, Allon M, Dember LM, Imrey PB, Cheung AK, et al. Prediction of arteriovenous fistula clinical maturation from postoperative ultrasound measurements: findings from the hemodialysis fistula maturation study. J Am Soc Nephrol. 2018;29(11):2735–44. doi: http://dx.doi.org/10.1681/ASN.2017111225. PubMed PMID: 30309898.
https://doi.org/10.1681/ASN.2017111225...
.

Mais recentemente, propôs-se um modelo de machine learning, utilizando principalmente dados da US, com capacidade de prever com acurácia de 96,8% de maturação das FAV. Os autores sugerem que esse algoritmo poderia ser implementado diretamente nos aparelhos de US, sem tempo adicional para o cálculo1010. Doneda M, Poloni S, Bozzetto M, Remuzzi A, Lanzarone E. Surgical planning of arteriovenous fistulae in routine clinical practice: a machine learning predictive tool. J Vasc Access. 2023;11297298221147968. doi: http://dx.doi.org/10.1177/11297298221147968. PubMed PMID: 36765450.
https://doi.org/10.1177/1129729822114796...
. Isso ainda poderia corrigir o viés interobservadores que Gasparin et al.22. Gasparin C, Lima HN, Regueira Fo A, Marques AGB, Erzinger G. Predictors of arteriovenous fistula maturation in hemodialysis patients: a prospective cohort from an ambulatory surgical center in Joinville, Brazil. Braz J Nephrol. 2022. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2022-0120pt. PubMed PMID: 36511850.
https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-20...
consideram existir em exames de mapeamento venoso ultrassonográfico.

Não está claro se o mapeamento realizado por um examinador externo teria um impacto diferente do exame realizado pelo próprio cirurgião no pré-operatório imediato. Nas avaliações de US point of care mais básicas, é possível avaliar os diâmetros venosos e decidir por encaminhar ou não um determinado paciente para confecção de um acesso arteriovenoso. Nas avaliações mais abrangentes, incluindo os parâmetros do Doppler arterial, dados adicionais podem mudar a conduta quanto ao tipo de FAV a ser criado.

A possibilidade de identificar vasos mais favoráveis para maturação de FAV e a excelente taxa de maturação de Gasparin e cols. reforçam a importância da US, apesar de ainda necessitarmos de mais estudos prospectivos avaliando o uso da US no pré-operatório.

References

  • 1.
    Lok CE, Huber TS, Lee T, Shenoy S, Yevzlin AS, Abreo K, et al. KDOQI Clinical Practice Guideline for Vascular Access: 2019 Update. Am J Kidney Dis. 2020;75(4, Suppl 2):S1–164. doi: http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2019.12.001. PubMed PMID: 32778223.
    » https://doi.org/10.1053/j.ajkd.2019.12.001
  • 2.
    Gasparin C, Lima HN, Regueira Fo A, Marques AGB, Erzinger G. Predictors of arteriovenous fistula maturation in hemodialysis patients: a prospective cohort from an ambulatory surgical center in Joinville, Brazil. Braz J Nephrol. 2022. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2022-0120pt. PubMed PMID: 36511850.
    » https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2022-0120pt
  • 3.
    Mendes RR, Farber MA, Marston WA, Dinwiddie LC, Keagy BA, Burnham SJ. Prediction of wrist arteriovenous fistula maturation with preoperative vein mapping with ultrasonography. J Vasc Surg. 2002;36(3):460–3. doi: http://dx.doi.org/10.1067/mva.2002.126544. PubMed PMID: 12218967.
    » https://doi.org/10.1067/mva.2002.126544
  • 4.
    Jemcov TK. Morphologic and functional vessels characteristics assessed by ultrasonography for prediction of radiocephalic fistula maturation. J Vasc Access. 2013;14(4):356–63. doi: http://dx.doi.org/10.5301/jva.5000163. PubMed PMID: 23817950.
    » https://doi.org/10.5301/jva.5000163
  • 5.
    Wall LP, Gasparis A, Callahan S, van Bemmelen P, Criado E, Ricotta J. Impaired hyperemic response is predictive of early access failure. Ann Vasc Surg. 2004;18(2):167–71. doi: http://dx.doi.org/10.1007/s10016-004-0006-9. PubMed PMID: 15253251.
    » https://doi.org/10.1007/s10016-004-0006-9
  • 6.
    Malovrh M. Native arteriovenous fistula: preoperative evaluation. Am J Kidney Dis. 2002;39(6):1218–25. doi: http://dx.doi.org/10.1053/ajkd.2002.33394. PubMed PMID: 12046034.
    » https://doi.org/10.1053/ajkd.2002.33394
  • 7.
    Wilmink T, Corte-Real Houlihan M. Diameter criteria have limited value for prediction of functional dialysis use of arteriovenous fistulas. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2018;56(4):572–81. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejvs.2018.06.066. PubMed PMID: 30100213.
    » https://doi.org/10.1016/j.ejvs.2018.06.066
  • 8.
    Benaragama KS, Barwell J, Lord C, John BJ, Babber A, Sandoval S, et al. Post-operative arterio-venous fistula blood flow influences primary and secondary patency following access surgery. J Ren Care. 2018;44(3):134–41. doi: http://dx.doi.org/10.1111/jorc.12238. PubMed PMID: 29520968.
    » https://doi.org/10.1111/jorc.12238
  • 9.
    Robbin ML, Greene T, Allon M, Dember LM, Imrey PB, Cheung AK, et al. Prediction of arteriovenous fistula clinical maturation from postoperative ultrasound measurements: findings from the hemodialysis fistula maturation study. J Am Soc Nephrol. 2018;29(11):2735–44. doi: http://dx.doi.org/10.1681/ASN.2017111225. PubMed PMID: 30309898.
    » https://doi.org/10.1681/ASN.2017111225
  • 10.
    Doneda M, Poloni S, Bozzetto M, Remuzzi A, Lanzarone E. Surgical planning of arteriovenous fistulae in routine clinical practice: a machine learning predictive tool. J Vasc Access. 2023;11297298221147968. doi: http://dx.doi.org/10.1177/11297298221147968. PubMed PMID: 36765450.
    » https://doi.org/10.1177/11297298221147968

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com