Transplantar ou não transplantar durante uma pandemia?

Durante o período inicial da pandemia de COVID-19, a maioria dos centros de transplante renal hesitou em manter os programas ativos, resultando em uma redução significante e universal no número de transplantes renais¹. Houve um amplo debate em torno do risco de transmissão para pacientes e para profissionais de saúde envolvidos na captação de órgãos, e também sobre qual seria a influência da imunossupressão no curso clínico da COVID-19. Além disso, havia uma necessidade óbvia de alocar pessoal e leitos em hospitais de alta complexidade para tratar um número crescente de pacientes com formas graves de COVID-19. O dilema foi ainda mais complicado considerando-se a perspectiva da sobrecarga das unidades de diálise se o número de transplantes renais fosse reduzido drasticamente, além da proporção significativa de pacientes que desenvolveram injúria renal aguda associada à COVID-19 necessitando terapia substitutiva.

O estudo de Teichmann et al.², realizado antes da disponibilidade das vacinas, analisou a incidência, letalidade e fatores de risco associados à COVID-19 em pacientes em hemodiálise, pacientes em lista de espera e em receptores de transplante renal. No período do estudo, pacientes em hemodiálise e receptores de transplante renal apresentaram alta incidência de infecção e alta letalidade relacionada à COVID-19. O impacto sobre os pacientes em lista de espera foi menos pronunciado, provavelmente porque eram mais jovens e tinham menos comorbidades.

A incidência relatada de 9,85% e a letalidade de 14,9% da COVID-19 entre os receptores de transplante renal são relativamente menores em comparação com outros estudos no país, influenciados talvez pelo padrão migratório da doença, estratégias de vigilância clínica e disponibilidade de testes³–⁵. Embora os transplantes eletivos de rim de doador vivo tenham sido adiados, muitos centros de transplante persistiram realizando transplantes com rins de doadores falecidos, dependendo do impacto local da pandemia nos recursos de saúde, e altamente incentivados por frequentes videoconferências com especialistas e médicos transplantadores promovidas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Assim, até o final de 2020, a redução geral no número de transplantes renais foi de apenas 30%, muito menor do que a observada em outros países¹,⁶.

A atividade de transplante aumentou progressivamente com a ampla disponibilidade de testes, maior conhecimento da doença e das opções de tratamento, disponibilidade de vacinas e a redução observada nas taxas de letalidade em grupos de alto risco, incluindo idosos, pacientes com doença renal crônica e receptores de transplante renal, mitigando ainda mais a sobrecarga para as unidades de diálise. Após a observação de que o SARS-CoV-2 não podia ser transmitido através de órgãos sólidos, com exceção os pulmões, a maioria dos centros começou a realizar transplantes utilizando órgãos de indivíduos com testes positivos para SARS-CoV-2 que haviam falecido por outras causas⁷.

Embora a vacinação em larga escala tenha reduzido a necessidade e a duração da hospitalização e a letalidade da doença na população em geral e nos pacientes em diálise, tal benefício não foi observado imediatamente entre os receptores de transplante renal. Nesse grupo, a resposta humoral e celular à vacinação foi baixa, e a letalidade foi sustentada em mais de vinte e cinco por cento dos pacientes infectados, possivelmente associada ao uso crônico de drogas imunossupressoras⁴,⁸. A situação permaneceu inalterada independentemente da variante do vírus e do número ou origem das vacinas oferecidas, até o advento da variante omicron, quando a taxa de letalidade entre os pacientes transplantados renais caiu de 25% para 2%⁹.

Durante a pandemia, muitos medicamentos foram testados para diminuir a letalidade da COVID-19. No entanto, nenhum alcançou resultados clínicos significantes. Medicamentos antivirais como o paxlovid estão disponíveis no sistema público de saúde para tratamento precoce, mas a extensão de seu benefício tanto na população em geral quanto nos receptores de transplante ainda não foi estabelecida¹⁰,¹¹. Assim, os pacientes transplantados devem continuar a usar máscaras faciais em contextos de maior risco, como em aglomerações, e serem vacinados sempre que recomendado.

Por fim, iniciativas coordenadas pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e pela ABTO também foram implementadas para restaurar totalmente e até aumentar o número anual de transplantes renais, com estratégias direcionadas aos pilares do Sistema Nacional de Transplantes, a saber, hospitais notificantes, organizações de procura de órgãos, clínicas de diálise e centros de transplante.

O transplante renal é um procedimento altamente complexo e integrado que salva vidas. Apesar da hesitação inicial, diante dos achados relatados por Teichmann et al.², a decisão de manter e fomentar a atividade de transplante, considerando o ambiente local durante as fases evolutivas da pandemia de COVID-19, em retrospecto, parece ter sido a mais acertada.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  03 Abr 2023
• Data do Fascículo
  Apr-Jun 2023

Histórico

• Recebido
  03 Fev 2023
• Aceito
  12 Fev 2023