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Desnutrição no pré-transplante renal: como avaliar e qual o impacto?

O comprometimento do estado nutricional é muito frequente nos pacientes com doença renal crônica (DRC), especialmente os pacientes em diálise e candidatos a transplante renal. É conhecido que a desnutrição em transplantados renais está associada a uma alta taxa de morbimortalidade no período pós-operatório11. Molnar MZ, Keszei A, Czira ME, Rudas A, Ujszaszi A, Haromszeki B, et al. Evaluation of the malnutrition-inflammation score in kidney transplant recipients. Am J Kidney Dis. 2010;56(1):102–11. doi: http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2010.02.350. PubMed PMID: 20471737.
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. A avaliação criteriosa do estado nutricional é fundamental para o planejamento de condutas que atendam efetivamente às demandas dessa realidade. Diretrizes do KDIGO recomendam avaliação de riscos perioperatórios para candidatos a transplante renal, como estado de sensibilização, transfusões de sangue e derivados, gestações, doença cardiovascular, doenças pulmonares, infecções e neoplasias malignas22. Chadban SJ, Ahn C, Axelrod DA, Foster BJ, Kasiske BL, Kher V, et al. KDIGO clinical practice guideline on the evaluation and management of candidates for kidney transplantation. Transplantation. 2020;104(4S1, Suppl 1):S11–103. doi: http://dx.doi.org/10.1097/TP.0000000000003136
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, mas não há destaque para a avaliação nutricional. Em uma meta-análise com mais de 50 pacientes com DRC foi verificado através da avaliação global subjetiva ou um escore de desnutrição-inflamação que a prevalência de desnutrição energético-proteica foi de 28%–54% nos pacientes em diálise33. Carrero JJ, Thomas F, Nagy K, Arogundade F, Avesani CM, Chan M, et al. Global prevalence of protein-energy wasting in kidney disease: a meta-analysis of contemporary observational studies from the international society of renal nutrition and metabolism. J Ren Nutr. 2018;28(6):380–92. doi: http://dx.doi.org/10.1053/j.jrn.2018.08.006.PubMed PMID: 30348259.
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. Todavia, há escassez de padrões de referência e de definição de pontos de corte associados aos riscos clínicos e nutricionais; portanto o acompanhamento periódico é a melhor forma de detectar as anormalidades do estado nutricional, seus desfechos e impactos44. Ikizler TA, Burrowes JD, Byham-Gray LD, Campbell KL, Carrero JJ, Chan W, et al. KDOQI clinical practice guideline for nutrition in CKD: 2020 update. Am J Kidney Dis. 2020;76 (3, Suppl 1):S1–107. doi: http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2020.05.006. PubMed PMID: 32829751.
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Recentemente, Santos et al.55. Santos MRO, Lasmar MF, Nascimento E, Fabreti-Oliveira RA. Impacto do risco de desnutrição pré-transplante no desfecho clínico e na sobrevida do enxerto de pacientes transplantados renais. Braz J Nephrology. 2023. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0150en
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propuseram o uso de um novo instrumento de avaliação nutricional para ser aplicado antes do transplante renal. Esse instrumento tem as vantagens de ser de fácil utilização e baixo custo porque é baseado no uso de variáveis antropométricas, dados clínicos usuais e resultados laboratoriais de rotina com o objetivo de avaliar o impacto nutricional no desfecho clínico. Apesar de haver instrumentos para o diagnóstico de desnutrição, não há consenso sobre qual deles é o mais adequado para ser aplicado antes do transplante renal porque todos apresentam limitações. Esse fato justifica a proposta de desenvolvimento de um novo instrumento ou aperfeiçoamento de outros já existentes. Santos et al.55. Santos MRO, Lasmar MF, Nascimento E, Fabreti-Oliveira RA. Impacto do risco de desnutrição pré-transplante no desfecho clínico e na sobrevida do enxerto de pacientes transplantados renais. Braz J Nephrology. 2023. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0150en
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desenvolveram e aplicaram um instrumento de avaliação, que foi denominado risco de desnutrição pré-transplante, em 451 pacientes em um estudo coorte retrospectivo. Nesse estudo, o risco nutricional foi obtido através da avaliação das seguintes variáveis: índice de massa corporal (IMC), dosagens séricas de albumina, colesterol total, contagem total de linfócitos, tempo de diálise (anos) e tempo (anos) com comorbidades (diabetes mellitus e outras) durante o período em diálise. A partir deste, os pacientes foram classificados em grupos de baixo, moderado e alto risco nutricional. Como resultados, quase 80% dos pacientes foram classificados com risco moderado ou alto. Os pacientes com baixo risco eram mais jovens, tiveram maior número de transplante preemptivos, de transplantes com doadores vivos e melhor compatibilidade do HLA em comparação com os grupos com maiores riscos de desnutrição. Diversas variáveis mostraram associação com perda do enxerto, e esse evento teve maior ocorrência nos pacientes do grupo com alto risco. Esses resultados sugerem que o instrumento de avaliação nutricional proposto pode ser eficiente. Outros aspectos positivos merecem reconhecimento: a originalidade e a fácil aplicabilidade do instrumento de triagem; a utilização de informações da prática clínica diária desses pacientes, e a articulação em um único instrumento de informações nutricionais, laboratoriais e clínicas. Entretanto, o aperfeiçoamento do instrumento é desejável. Isso pode ser obtido com a incorporação de medidas de funcionalidade, com a identificação de pacientes com fragilidade e de marcadores inflamatórios66. Ahmadi SF, Zahmatkesh G, Streja E, Molnar MZ, Rhee CM, Kovesdy CP, et al. Body mass index and mortality in kidney transplant recipients: a systematic review and meta-analysis. Am J Nephrol. 2014;40(4):315–24. doi: http://dx.doi.org/10.1159/000367812. PubMed PMID: 25341624.
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. Certamente a incorporação dessas novas variáveis tornaria o instrumento de Santos et al.55. Santos MRO, Lasmar MF, Nascimento E, Fabreti-Oliveira RA. Impacto do risco de desnutrição pré-transplante no desfecho clínico e na sobrevida do enxerto de pacientes transplantados renais. Braz J Nephrology. 2023. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0150en
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mais complexo, porém traria o provável benefício de aumentar a sua precisão. Haveria também a necessidade de sua validação por outros estudos e comparação com instrumentos mais usualmente utilizados.

Alguns outros pontos também merecem atenção, sem prejuízo da qualidade do presente estudo. O instrumento inclui apenas dados de IMC, não considerando a avaliação da composição corporal e a capacidade funcional da musculatura. É conhecido que essa população apresenta maior risco de perda de massa muscular, sarcopenia e caquexia, contribuindo para sua fragilidade e perda da capacidade funcional de sua musculatura77. Hanna RM, Ghobry L, Wassef O, Rhee CM, Kalantar-Zadeh K. A practical approach to nutrition, protein-energy wasting, sarcopenia, and cachexia in patients with chronic kidney disease. Blood Purif. 2020;49(1-2):202–11. doi: http://dx.doi.org/10.1159/000504240. PubMed PMID: 31851983.
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. Outro ponto que chama a atenção é que esse instrumento teria maior importância durante o primeiro ano após o transplante. Nesse período, haveria maior proporção de infecções e maior impacto da imunossupressão, como bem observado pelos autores55. Santos MRO, Lasmar MF, Nascimento E, Fabreti-Oliveira RA. Impacto do risco de desnutrição pré-transplante no desfecho clínico e na sobrevida do enxerto de pacientes transplantados renais. Braz J Nephrology. 2023. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0150en
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. Os mesmos autores associaram os riscos de desnutrição a uma diminuição da sobrevida do enxerto, mas a médio e longo prazos outros fatores descritos nesse trabalho, especialmente as infecções, dependem muito do estado nutricional. O ganho de peso, particularmente aumento da gordura visceral, e o aumento do risco de desenvolver diabetes, dislipidemia e doença cardiovascular podem impactar na sobrevida do paciente e do enxerto88. Nolte Fong JV, Moore LW. Nutrition trends in kidney transplant recipients: the importance of dietary monitoring and need for evidence-based recommendations. Front Med (Lausanne). 2018;5:302. doi: http://dx.doi.org/10.3389/fmed.2018.00302. PubMed PMID: 30430111.
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. Os fatores de risco para o desenvolvimento de rejeições agudas estão relacionados a risco de sensibilização, presença de anticorpos específicos para doadores, painel de anticorpos elevado, HLA “mismatches”, etnia afro-americana, tempo de isquemia fria prolongado, incompatibilidade sanguínea, função retardada do enxerto, não aderência e segundo transplante. Os episódios de rejeição do enxerto e alterações imunológicas em longo prazo não estão ligados diretamente ao estado nutricional99. Hariharan S, Israni AK, Danovitch G. Long-term survival after kidney transplantation. N Engl J Med. 2021;385(8):729–43. doi: http://dx.doi.org/10.1056/NEJMra2014530. PubMed PMID: 34407344.
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Há uma complexa interação entre parâmetros nutricionais e inflamatórios sobrepostos durante a DRC, com necessidade de avaliação e interpretação adicionais dessas variáveis, e como eles se relacionam com a identificação e prevenção da desnutrição em particular1010. Massini G, Caldiroli L, Molinari P, Carminati FMI, Castellano G, Vettoretti S. Nutritional strategies to prevent muscle loss and sarcopenia in chronic kidney disease: what do we currently know? Nutrients. 2023;15(14):3107. doi: http://dx.doi.org/10.3390/nu15143107. PubMed PMID: 37513525.
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. Portanto, como já sinalizado pelos autores55. Santos MRO, Lasmar MF, Nascimento E, Fabreti-Oliveira RA. Impacto do risco de desnutrição pré-transplante no desfecho clínico e na sobrevida do enxerto de pacientes transplantados renais. Braz J Nephrology. 2023. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0150en
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, existe a possibilidade de novas investigações melhorarem o que, na nossa avaliação, é de qualidade. Este atual estudo55. Santos MRO, Lasmar MF, Nascimento E, Fabreti-Oliveira RA. Impacto do risco de desnutrição pré-transplante no desfecho clínico e na sobrevida do enxerto de pacientes transplantados renais. Braz J Nephrology. 2023. Ahead of print. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0150en
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abre margem para novas investigações como forma de haver mais instrumentos validados para fins específicos na área, seja para paciente transplantado ou não, impactando positivamente na intervenção e garantindo melhores resultados e desfechos clínicos.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
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