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Reflexões sobre a organização do mercado de trabalho agrícola

Reflections on the organization of the agricultural labor market

RESUMO

Este artigo aborda o tema da organização do mercado de trabalho rural no Brasil nos últimos 30 anos. Discute a interação entre mudança técnica, demanda sazonal de mão de obra e aumento do número de trabalhadores temporários. Os trabalhadores temporários recrutados por meio de agentes são comparados aos contratados diretamente. A última parte do artigo aborda uma discussão preliminar sobre as condições apresentadas pelos trabalhadores temporários para negociação coletiva.

PALAVRAS-CHAVE:
Mercado de trabalho; emprego agrícola

ABSTRACT

This article touches upon the subject of the organization of the rural labor market in Brazil in the past 30 years. It discusses the interplay between technical change, seasonal demand of labor and increase of the number of temporary workers. Temporary workers recruited through agents are compared to those directly engaged. The last part of the article covers a preliminary discussion on the conditions presented by temporary workers for collective bargaining.

KEYWORDS:
Labour market; agricultural employment

A iminente divulgação dos resultados do Censo Agropecuário de 1985 suscita a oportunidade e conveniência de refletir sobre certas tendências gerais observadas na estrutura do emprego rural brasileiro nos últimos trinta anos. Os dados censitários são preciosos quando procuramos atingir maior segurança na análise do “fenômeno boia-fria”, associado à plena configuração de um mercado de trabalho setorial. As autoras pretendem, aqui, alimentar a discussão sobre o tema, no pano de fundo das mudanças ocorridas na estrutura de emprego e no sistema produtivo da agropecuária. Num primeiro momento, estaremos refletindo sobre o tipo de interação que se estabelece (ou não) entre mudança técnica, sazonalidade da demanda de mão-de-obra e disseminação do trabalho volante. Num segundo momento, abordaremos alguns ângulos da organização do mercado de trabalho no campo, a partir de uma análise comparativa entre volantes recrutados por intermediários e volantes diretamente contratados pelos responsáveis pelos estabelecimentos. Finalmente, numa terceira etapa, discutiremos as condições de mobilização coletiva hoje apresentadas por este segmento da força de trabalho. Temas como reforma agrária e sindicalismo aflorarão necessariamente nesta reflexão preliminar.

As precárias condições de vida e trabalho deste contingente populacional já constituiriam, de per si, motivo suficiente para justificar a incursão no assunto. Não se trata, porém, de uma mera questão de solidariedade humana. Está em jogo a própria viabilização de um processo de crescimento econômico capaz de envolver todos os segmentos da população, na direção de uma distribuição mais equitativa da renda e da riqueza. Sem políticas econômicas que estabeleçam a promoção social como meta prioritária, a expansão econômica se dará dentro de limites estreitos.

Antes de introduzir os temas que serão objeto precípuo da análise aqui empreendida, convém reiterar a precariedade das estatísticas de âmbito nacional disponíveis sobre a força de trabalho recrutada em bases temporárias ou eventuais. Na verdade, a literatura que se vem acumulando desde meados da década de 1970 ressente-se de severas deficiências, provenientes exatamente da escassez de levantamentos empíricos com abrangência nacional, que contenham informações necessárias à compreensão do fenômeno. Há três tipos de problemas, pelo menos: a falta de dados; a inadequação dos mesmos, quanto mais não seja pela velocidade e extensão que o fenômeno tem assumido; e a dificuldade de compatibilizar dados de diferentes procedências, de tal forma a utilizá-los complementarmente para fechar o quadro.

Das três fontes básicas com que se pode contar, destacam-se, em primeiro lugar, as Estatísticas Cadastrais do INCRA. Esta fonte foi muito utilizada no final da década de 1970, quando constituía o único manancial de informações disponível. Com o correr do tempo, outros levantamentos de igual envergadura, tais como os promovidos pela FIBGE, foram incorporados. Assim, já em 1970, o Censo Agropecuário passou a coletar e conferir ênfase específica a informações relativas à mão-de-obra temporária empregada nos estabelecimentos. Em 1980, também o Censo Demográfico dá um tratamento preferencial à questão, embora contemple um universo diferenciado. Nas Tabulações Avançadas deste último, é possível obter informações sobre os trabalhadores “volantes” da agropecuária, que o Censo Agropecuário chama de “temporários”.

Analisadas conjuntamente, as duas últimas fontes possibilitam uma visão mais completa da estrutura do emprego rural, em nível agregado, ainda que seus dados não sejam diretamente comparáveis. É importante ter em conta que enquanto o Censo Demográfico fornece informações sobre oferta de trabalho, o Agropecuário focaliza o lado da demanda.

Vários cuidados devem ser tomados, porém, na utilização dessas fontes. No que tange ao Censo Demográfico, a classificação dos informantes em termos de posição na ocupação é feita a partir daquilo que definem como tal “todos os indivíduos que, nos doze meses anteriores ao levantamento, tiveram alguma ocupação, com ou sem remuneração”. Essa forma de classificação ocupacional e obtenção do dado envolve alguns problemas conceituais, visto que não se tem claro o critério adotado pelo informante para enquadrar-se nesta ou naquela categoria. Tendo em conta o caráter relativamente recente da categoria de volantes como atividade principal de um contingente relativamente numeroso da população economicamente ativa brasileira, é de se supor uma tendência a subestimação nos dados provenientes desta fonte.

Uma segunda limitação do Censo Demográfico, que afeta análises tais como as que aqui empreendemos, é o fato de não contemplar informações sobre o(s) estabelecimento(s) que emprega(m) o informante, em termos de tamanho, valor de produção, participação no mercado, grau de tecnificação etc.

A seu turno, o Censo Agropecuário reúne duas características que constituem uma deficiência do ponto de vista aqui analisado, na medida em que prejudicam a qualidade da informação sobre mão-de-obra temporária. A primeira delas decorre de uma presumível dupla contagem, pois a pergunta feita refere-se a número máximo de empregados temporários. O questionário de 1970 usa a expressão “número máximo de temporários nos meses de maior emprego”; o de 1975 e o de 1980 referem-se ao mesmo dado “em cada mês” do ano. Tendo em vista a rotatividade de emprego que caracteriza este segmento da força de trabalho, é difícil estimar com precisão a quantidade efetiva de trabalho empregada pelo estabelecimento, uma vez que não há correção do período para o qual os indivíduos foram contratados.

A segunda característica do Censo Agropecuário, que constitui uma deficiência do ponto de vista tratado, é possivelmente mais grave. Só são computados entre os trabalhadores temporários os indivíduos diretamente contratados pelos responsáveis pelo estabelecimento, sejam eles o próprio dono ou seu administrador. Os trabalhadores recrutados por empreiteiros, sob a responsabilidade destes, não são incluídos nessa contabilidade. As estatísticas acusam o recurso a serviços de empreitada, chegam a especificar a finalidade dos mesmos, porém não discriminam quantidade de trabalho. Sem dúvida, isso gera uma subestimação dos temporários recrutados mediante intermediários. Infelizmente não é possível avaliar se a subestimação ocasionada por esta segunda característica é ou não compensada pela superestimação ocasionada pela dupla contagem.1 1 No Estado de São Paulo, os dados do Instituto de Economia Agrícola configuram um manancial cuja importância é inegável, a despeito de notórias deficiências em termos de informações sobre mão-de-obra.

Uma tese que tem sido aceita de forma praticamente irrestrita é a que atribui o fenômeno boia-fria ao aumento da diferença entre tempo de trabalho e tempo de produção, decorrente de mudanças técnicas no processo produtivo. Na seção que se segue, discutiremos esse tema.

MUDANÇAS TECNOLÓGICAS, SAZONALIDADE E TRABALHO VOLANTE

A sazonalidade da atividade agrícola tem sido apontada como o principal determinante do aumento na utilização de trabalho temporário. Argumenta-se que o desenvolvimento tecnológico, ao alterar a base técnica da exploração, modificar o padrão de cultivo, estimular a mecanização e o uso de certos insumos, tais como herbicidas e defensivos, tem como consequência a extensão do hiato entre o período do trabalho e o período de produção. Em seu efeito conjugado, o fenômeno induziria à concentração da demanda de mão-de-obra em certas fases da atividade, tais como a colheita e o plantio, ao mesmo tempo em que geraria redução da demanda em outros momentos do ciclo produtivo (Graziano da Silva, 1981aGraziano da Silva, José F., (1981a) A Modernização Dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar. e 1981bGraziano da Silva, José F., (1981b) Progresso Técnico e Relações de Trabalho na Agricultura. São Paulo: Hucitec.).

Em princípio, a vinculação entre a sazonalidade e o recurso ao· trabalho temporário parece inquestionável. Contudo, ela merece algumas qualificações, sobretudo quando se introduz uma terceira variável nesse quadro, a mudança técnica, supostamente determinante de sazonalidade. O que não se pode ignorar é que a sazonalidade é um fenômeno que sempre afetou a atividade agrícola. E exatamente a falta de controle do homem sobre os fenômenos da natureza que provoca períodos de maior ou menor atividade ao longo do ano agrícola. Cada cultura tem seu próprio ciclo, comandado por fatores de ordem climatérica e ambiental de modo geral.

O importante a ter em mente é a existência de inovações técnicas cujo efeito é justamente estabilizar a demanda de trabalho ao longo do tempo. Essas técnicas afetam diretamente o ciclo produtivo e, como tal, agem no sentido de tornar as restrições impostas pelos fatores ambientais, se não nulas, pelo menos sensivelmente atenuadas. Como exemplo, é possível citar técnicas de mecanização e uso intensivo dos solos, associadas à rotação de culturas, que possibilitam colheitas mais abundantes e menos espaçadas, num mesmo território.

Na verdade, para montar um quadro preciso sobre o impacto da modernização tecnológica sobre a estacionalidade da demanda de trabalho, seria necessário isolar os efeitos de cada pacote de inovações que foram ou estão sendo adotadas pelos estabelecimentos. O problema é que estudos desse tipo são praticamente inexistentes entre nós. Nas atuais circunstâncias, parece sensato questionar a ideia de que a adoção de novas técnicas leve inexoravelmente à extensão do hiato entre período de produção e período de trabalho. Essa ideia, é, no mínimo, controversa. Conclusões mais sustentadas demandariam um maior número de pesquisas empíricas, conduzidas a um maior nível de desagregação. Sobretudo, seria interessante contar com uma série de tempo mais longa, para não interpretar um momento particular do processo de transformação das relações produtivas como seu sentido virtual. Em seu estudo sobre a dinâmica da agricultura paulista, Müller antevê uma redução drástica na demanda de trabalho e na sazonalidade do emprego, em função do avanço da industrialização do campo (Müller, 1985Müller, Geraldo, (1985) A Dinâmica da Agricultura Paulista. São Paulo, SEADE, série São Paulo 80, v. 2., p. 122).

Alguns elementos podem ser introduzidos, neste ponto, para especularmos um pouco mais sobre a questão, com base em dados do Censo Agropecuário de 1980. No Gráfico 1, a seguir, apresentamos o número máximo de trabalhadores temporários empregados pelos estabelecimentos a cada mês do ano, segundo a região. Ora, aceita a hipótese que associa o emprego deste tipo de mão-de-obra à sazonalidade decorrente de modernização tecnológica, seria de se esperar que, nas regiões de agricultura mais moderna, o padrão de sazonalidade fosse mais acentuado. Ao contrário, nas regiões mais tradicionais do ponto de vista tecnológico, a demanda de trabalho deveria ser mais estável ao longo do ano. Contudo, as informações censitárias não confirmam essa hipótese. É importante observar que as regiões que possuem a menor variação estacional são o Nordeste e o Sudeste, sabidamente heterogêneas em termos de adoção de tecnologia moderna. No outro extremo, o Norte e o Sul são as regiões com maior variação sazonal na demanda de trabalho volante. Em termos de padrão tecnológico e das outras variáveis que interagem com o mesmo, essas duas regiões nada têm em comum. Numa situação intermediária, do ponto de vista· analisado, coloca-se o Centro-Oeste.

Gráfico 1:
Sazonalidade do emprego temporário segundo regiões - 1980

Assim, pelo menos a nível agregado, não há sintomas claros de que a modernização agrícola esteja alterando os padrões estacionais de emprego de mão-de-obra na agropecuária brasileira. E inegável que determinadas inovações acentuam o desequilíbrio na quantidade de trabalho contratada ao longo do ano agrícola, a nível microeconômico. Questiona-se, contudo, o impacto deste fator em termos agregados no Brasil como um todo e quando se leva em conta o conjunto de opções tecnológicas propiciado pela modernização do sistema produtivo.

Caberia indagar sobre a possibilidade do padrão de sazonalidade manifestar-se a nível de estado, e não de região. O fato de em todas as regiões brasileiras tal padrão manifestar-se de forma semelhante é um resultado à primeira vista surpreendente. Como se pode verificar no Gráfico 1, todas as regiões acusam uma sensível elevação na demanda de trabalho no mês de dezembro. A desagregação dos dados segundo estratos de área, exibida no Gráfico 2, ratifica esse padrão.

Gráfico 2:
Sazonalidade do emprego temporário segundo grupos de área total 1980

No Norte e no Nordeste, o resultado parece compatível com a expectativa. O mesmo não pode ser dito no caso das regiões Sul e Sudeste. Como se sabe, o período de colheita destas duas regiões concentra-se no primeiro semestre do ano. (Embora chegue a avançar pelo segundo semestre, em alguns produtos, como a cana-de-açúcar e a laranja.) Nesse sentido, causa estranheza o fato de os dados censitários não acusarem esse tipo de estacionalidade. É importante salientar também que não existe um padrão sazonal igualmente acentuado em todas as regiões. Assim, no Sul e no Sudeste, seria de se esperar que os picos de demanda ocorressem no final do primeiro semestre.

E indiscutível que a composição do produto vigente em cada região a cada momento afeta suas necessidades de trabalho. O quadro complica-se ainda mais pela coexistência, num mesmo espaço físico, de atividades com exigências variáveis em termos de mão-de-obra e graus tecnológicos diversos. Num estado como o de São Paulo, onde se pratica uma agricultura diversificada, é de se supor que a demanda de trabalho tenda a manter-se mais estável ao longo do ano. Essa tendência deve sobrepor-se ao próprio efeito de tecnologias baseadas em herbicidas e outros defensivos, que eventualmente acentuam o desequilíbrio na quantidade de trabalho demandada pelos estabelecimentos durante o ano. O fato de a mão-de-obra volante ser utilizada indiscriminadamente em praticamente todas as atividades do setor refuta a tese de que esteja umbilicalmente associada à introdução de certas culturas, por razões de ordem tecnológica ou sazonal (V. Gonzales e Bastos, 1982Gonzales, Elbio e N. e Bastos, M. Inês, (1982) “O Trabalho Volante na Agricultura Brasileira”· in Mão-de-Obra Volante na Agricultura. São Paulo: Polis.).

Para concluir essa seção, não resta dúvida de que os dados analisados são passíveis de críticas, para os fins a que foram destinados. Contudo, a admitir-se que os erros se distribuam de forma aleatória, podem ser tomados como pontos de partida para uma reflexão mais detida, capaz de pelo menos matizar conclusões extraídas de uma observação menos sistemática ou sem suficiente sustentação empírica.

Uma vez analisadas as informações disponíveis sobre a sazonalidade na demanda de trabalho temporário, podemos passar a discutir o tipo de organização do mercado, observável neste segmento específico da força de trabalho engajada na agropecuária brasileira.

A ORGANIZAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO

Como observamos no item anterior, não é possível identificar um padrão claro de relacionamento entre nível tecnológico, sazonalidade e utilização de trabalho temporário. Acredita-se mesmo que o fenômeno boia-fria não é um componente estrutural das transformações verificadas · na agropecuária brasileira. Ademais, questiona-se a tese de que decorra, em primeira instância, de mudanças tecnológicas. Ele deve ser equacionado dentro do contexto mais amplo em que se processam as mudanças assinaladas. Isso significa que mudanças nas relações de produção compõem um complexo de elementos indissociáveis.

A título de exemplo, o caso da laranja é ilustrativo, por se tratar de um produto cujo mercado se expandiu violentamente, na última década. Sabe-se que essa atividade tem propiciado uma demanda de mão-de-obra volante superior à de outras culturas. Porém, pode-se indagar se a existência de um vasto contingente de indivíduos dispostos a vender sua força de trabalho em termos eventuais e temporários não constituiu um forte incentivo à difusão da cultura da laranja. Esse raciocínio corre o risco de tornar-se circular e, no mínimo, estéril. De qualquer forma, em vez de enxergar na modernização tecnológica um fator inexorável e decisivo para o advento do fenômeno boia-fria, com marcas indeléveis sobre a estrutura do emprego rural, parece mais sensato raciocinar com uma configuração complexa de variáveis, de que a mudança da base técnica seria apenas um aspecto ou um desdobramento, da mesma forma que a sazonalidade seria um efeito circunstancial e localizado.

Considerando-se que a acumulação é a mola propulsara da atividade capitalista, três caminhos poderiam ser trilhados, no caso brasileiro: extensão da jornada de trabalho, aumento da intensidade do trabalho e aumento de sua produtividade. O primeiro caminho parece, de antemão, uma falsa alternativa: a jornada de trabalho já é suficientemente extensa, nas atuais circunstâncias. Por sua vez, o aumento da intensidade do trabalho só seria viável se houvesse um forte incentivo para o trabalhador. É notória a dificuldade de atuar sobre esse fator, claramente perceptível quando a remuneração do trabalho volante é feita por produção. Um dos exemplos mais comuns é o do corte de cana-de-açúcar remunerado por tonelada ou metro, que, em princípio, estimularia o indivíduo a trabalhar intensamente durante toda a jornada. Na colheita manual, esta estratégia não resolve o problema do aumento da produção por unidade de trabalho, pois impede que o indivíduo exerça um controle rigoroso sobre o esforço dispendido. Apenas quando as máquinas são introduzidas é que se torna possível a padronização do esforço entre os trabalhadores.

Resta; portanto, o terceiro caminho, que é o aumento da produtividade do trabalho. Este pode ser viabilizado mediante o investimento em capital fixo, ou seja, máquinas e implementes agrícolas em geral. Entretanto, esse caminho requer uma mobilização de capital de que a maioria dos estabelecimentos não dispõe nem consegue reunir; ou mesmo que não está disposta a empatar, em vista de alternativas de investimento mais atraentes, como o mercado de capitais, a especulação financeira, ou a compra de terra. Assim, em condições de ampla disponibilidade de mão-de-obra, a alternativa para a capitalização da agropecuária pode ser a utilização do trabalho volante, como um expediente útil num processo de transição de uma agricultura tradicional para uma agricultura tecnicamente adiantada. Sem dúvida, o êxito desse caminho depende de inúmeros fatores, um dos quais é exatamente a garantia de um fluxo de mão-de-obra regular e adequado às necessidades. O problema de assegurar esse fluxo compete ao mercado de trabalho, o que significa que depende de seu tipo e nível de organização.

Nesse ponto, vale esclarecer melhor o que se entende por mercado de trabalho. O conceito aqui adotado refere-se ao conjunto de ações realizadas pelos indivíduos disponíveis para oferecer sua força de trabalho no mercado, bem como pelos que dispõem de recursos ou capital suficiente para empregar os primeiros. Sob essa ótica, só se pode falar em organização do mercado de trabalho no momento que se configura claramente a presença maciça de formas assalariadas de relação de trabalho. Mais ainda, quando há completa dissociação entre os assalariados e os meios de produção.

Há algumas décadas, a estrutura do emprego rural brasileiro não permitia identificar com nitidez categorias completamente desvinculadas dos meios de produção. Em outras palavras, a plena institucionalização do mercado de trabalho setorial só foi possível graças ao aumento acelerado do número de assalariados, que se expressou no aumento dos contratados em bases temporárias ou eventuais. Como se sabe, esse processo foi estimulado pela ação conjugada de vários fatores: diferenciação da pequena produção, expulsão dos residentes, redução de áreas destinadas ao plantio de subsistência, valorização do preço da terra e industrialização da agricultura, entre outros.

É importante destacar que a escassez de recursos para investimento na modernização tecnológica parece ter desempenhado um papel crucial na definição da alternativa de acumulação escolhida. Um maior volume de recursos estimularia a opção pela mecanização e por formas de utilização mais intensiva da terra. Do ponto de vista da demanda, o efeito desse caminho seria uma drástica redução no volume de trabalho e uma estabilização dessa demanda ao longo do ano.

Descartada a hipótese de aumento de produtividade do trabalho mediante investimentos maciços, viabiliza-se o caminho que envolve a utilização de trabalhadores temporários. Ora, uma característica marcante deste mercado é a existência da figura do intermediário, o chamado “gato”, “turmeiro”, ou equivalente. Em grande parte da literatura e do folclore sobre mão-de-obra volante, essa figura é identificada com a de um indivíduo que explora os trabalhadores, na medida em que se apropria de parte de sua remuneração. Convém qualificar um pouco melhor, porém, o papel desempenhado pelos intermediários no mercado.

A arregimentação de mão-de-obra temporária pode constituir um sério problema, tendo em vista que os trabalhadores estão dispersos, não possuem qualquer vínculo com o estabelecimento e, portanto, não se consideram compromissados com determinados patrões. Além disso, o próprio controle da qualidade da produção pode ser dificultado pela rotatividade da mão-de-obra.

No caso das agroindústrias e de grandes estabelecimentos agropecuários, o problema é, via de regra, solucionado internamente, pela própria administração. Como se trata de empresas de um certo porte e sofisticação administrativa, gerenciar o recrutamento de mão-de-obra temporária provavelmente não acarreta um acréscimo de custo significante. Para determinadas empresas de grande valor de produção e ampla visibilidade, essa administração direta ajuda inclusive no sentido de fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista. Este, porém, não é o caso da maioria dos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Para essa parcela majoritária, administrar a contratação, a supervisão e o controle dos trabalhadores temporários representa um custo proporcionalmente muito elevado.2 2 Os dados do Censo Agropecuário de 1980 revelam que cerca de 62% dos temporários foram contratados por estabelecimentos com menos de 100 hectares, portanto, de pequeno e médio porte. É exatamente nesse contexto que a figura do “gato” se torna importante, por representar a estratégia encontrada pelo mercado para enfrentar tais problemas. Certamente, a difusão em larga escala da figura do intermediário está associada a um nível mais elevado de organização do mercado de trabalho.

Como avaliar o mesmo fenômeno do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores temporários? Bem, antes de mais nada, é conveniente analisar as condições de emprego e remuneração dos indivíduos contratados por intermediários, comparativamente àqueles que são diretamente recrutados pelo responsável pelo estabelecimento, seja este o próprio dono ou um gerente.

Com esse intuito, o Quadro 1 contém informações sobre o rendimento médio mensal dos trabalhadores volantes, de acordo com sua forma de contratação, ao lado de outras variáveis, com base nas Tabulações Avançadas do Censo Demográfico de 1980. Segundo esta fonte, o salário médio mensal dos trabalhadores volantes com intermediário, em dezembro de 1980, era de Cr$ 3.606,00 (três mil, seiscentos e seis cruzeiros), enquanto o dos volantes sem intermediário era de Cr$ 3.004,00 (três mil e quatro cruzeiros). Isso significa que o primeiro grupo teve, no período analisado, um ganho médio 20% superior ao dos volantes sem intermediários. A distribuição dos dois grupos segundo faixas de salário-mínimo, além de permitir uma melhor visualização, reforça a ideia de uma situação relativamente mais vantajosa dos volantes com intermediários, que apresentam um menor contingente de indivíduos com ganhos inferiores a um salário-mínimo.

Quadro 1:
Caracteristicas dos trabalhadores volantes, segundo a forma de contratação (Brasil, 1980)

Sem sombra de dúvida, os dados denunciam a situação de extrema precariedade dos assalariados rurais temporários, independentemente da forma de contratação. Até aqui, porém, não há muita novidade, além da ratificação de conclusões de dezenas de pesquisas realizadas sobre o assunto. O que se pode inferir, quando muito, é que a melhoria das condições de remuneração e trabalho do grupo está estreitamente vinculada à sua capacidade de mobilização. Entretanto, o fato de a remuneração média ser um pouco mais elevada nos casos em que se configura a presença do intermediário permite levantar a hipótese de que a organização deste mercado de trabalho teria dois efeitos simultâneos. De um lado, pressionar o empregador a pagar mais pelo trabalho volante, em troca de um fluxo regular de mão-de-obra. Nesse caso, independentemente da parcela apropriada pelo intermediário, restariam vantagens para o trabalhador, ao menos em termos de oportunidades de emprego e ganho durante todo o ano agrícola. Por outro lado, a organização desse mercado implica a concentração geográfica dos trabalhadores e pode estimular sua própria organização, bem como sua mobilização em defesa dos interesses da categoria.

No que diz respeito ao tempo de residência, os dados do Quadro 1 atestam que a maioria dos trabalhadores volantes nasceu ou já vivia há bastante tempo (dez anos ou mais) no município onde residia à época do levantamento de campo. Em contrapartida, menos de 8% do grupo residiam no município há menos de um ano. E possível atribuir esse resultado às próprias mudanças na estrutura do emprego rural, mencionadas aqui. Os deslocamentos de longa distância, que traziam nordestinos e mineiros aos estados do Sul ou levavam sulistas às áreas de fronteira, podem estar sendo numericamente sobrepujados pelos deslocamentos de curta distância. Entre os últimos, sobressaem os que fazem os trabalhadores boias-frias dentro de um único município ou entre municípios vizinhos, mantendo-se estável seu local de moradia.

De uma maneira geral, os dados expostos sugerem que os volantes encontram-se bastante adaptados ao município onde residiam à época do levantamento censitário, no qual criaram raízes. Isso significa que a mobilidade geográfica da população trabalhadora rural, fartamente documentada pela literatura, não é tão acentuada entre os elementos que compõem esta parcela da força de trabalho. Não só a condição de volante tende a perpetuar-se como posição na ocupação, a desalojar formas mais tradicionais de inserção no mercado, como os deslocamentos intermunicipais e mesmo inter-regionais tornam-se menos frequentes.3 3 Em pesquisa recente, observamos taxas de mobilidade mais acentuadas no Estado de São Paulo. Este resultado confirma a expectativa, tendo em vista tratar-se de um Estado tradicionalmente receptor de migrantes

Um confronto entre os dois subgrupos revela que cerca de 62% dos volantes sem intermediário residem em seu município natal, em geral na zona rural do mesmo, contra 48% dos contratados diretamente. Isso permite levantar a suspeita de que se trata de indivíduos que ainda não foram expulsos do meio rural, como seria o caso de trabalhadores permanentes que ainda residem no estabelecimento para o qual trabalham. Com menor frequência, é possível que se trate de antigos produtores autônomos de áreas de solo empobrecido, condições de posse inseguras e outras restrições, que encontraram no assalariamento temporário sua principal, se não única, fonte de renda. (Aguirre, 1986Aguirre, Basilia M. B., (1986) Mercado de Trabalho Rural, Estado e Cooperativismo. São Paulo; FEA/USP, tese de doutorado.)

A esse respeito, Müller (1985Müller, Geraldo, (1985) A Dinâmica da Agricultura Paulista. São Paulo, SEADE, série São Paulo 80, v. 2.) fala na “desruralização” da população, que se traduz, por exemplo, no fato de 52% dos volantes com intermediário residirem em cidades, vilas ou povoados, enquanto apenas 44% do grupo tem origem exclusivamente rural. O autor mostra que esse fenômeno, que na Europa Ocidental estendeu-se por cerca de 200 anos, ocorreu aqui num espaço de apenas 30 anos. O movimento está claramente associado à industrialização do campo e à criação do complexo agroindustrial, diz Müller, e é concomitante à mercantilização dos meios de vida.

No grupo dos volantes com intermediário, a porcentagem de trabalhadores que sempre morou na zona urbana (perto de 22%) é superior à registrada para os volantes sem intermediário (17%). Da mesma forma, como já foi visto, a porcentagem de indivíduos que sempre morou na zona rural é significativamente inferior à encontrada entre os trabalhadores recrutados sem o auxílio de intermediários.

Tais resultados indicam que os volantes com intermediário possuem maior experiência de vida na cidade, o que certamente facilita a assimilação de valores e aspirações tipicamente urbanos, seja em termos de trabalho, seja em termos de consumo. Comparativamente ao grupo de volantes sem intermediário, trata-se de um contingente mais afastado do meio ambiente rural e, ao mesmo tempo, com uma mobilidade geográfica mais acentuada. Esse tipo de inferência pode ser associado a outras características do grupo, captadas em pesquisa anterior. (Aguirre e Bianchi, 1986Bíanchi, Ana Maria e Aguirre, Basilia M. B. (1986) O Trabalho Volante na Agricultura Paulista. São Paulo; IPE/IEA.) Assim, enquanto no Nordeste predominam os trabalhadores volantes sem intermediário, no Estado de São Paulo predominam aqueles contratados por intermediários. Analogamente, nos ramos de atividade mais diretamente ligados ao mercado externo (cana-de-açúcar, cacau, soja, laranja etc.), a presença dos volantes com intermediário é bem mais marcante do que nos ramos mais voltados para o mercado interno (milho, mandioca, arroz). Ratifica-se a imagem de dois subconjuntos diferenciados, unidos pela posição na ocupação.

O que se pode concluir, afinal, é que uma parcela significativa dos trabalhadores temporários engajados na agropecuária brasileira é composta hoje por pessoas praticamente desvinculadas do meio rural, em termos de origem, moradia, ambiente de vida, laços de família e amizade, padrões culturais. Embora essa população ainda esteja atrelada à agricultura como meio de vida, ela tende a ser encarada como uma das possíveis ocupações do indivíduo, um meio de sobrevivência como outro qualquer. O afastamento em relação ao cultivo direto da terra como fonte de sustento familiar, ao campo como local de residência, é notório. Generaliza-se o fenômeno da agricultura em tempo parcial, no qual os indivíduos sentem-se disponíveis para qualquer trabalho, desde que lhes garanta a sobrevivência ou acene com a possibilidade de uma renda mais alta.

Pode-se mesmo afirmar que os anseios historicamente nutridos pelos trabalhadores rurais brasileiros, em termos de um trabalho autônomo, de exploração da terra por conta própria, foram paulatinamente minados pela realidade de uma estrutura de emprego em que o assalariamento se torna um fenômeno irreversível e extensivo. (Bianchi, 1983Bianchi, Ana Maria, (1983) “Mobilidade Estratégica de Sobrevivência”. São Paulo: IPE, Série Relatórios de Pesquisas., p. 73) Em pesquisa anterior, Fleury (1975Fleury, Maria Thereza Leme, (1975) “A Organização do Trabalho na Lavoura Algodoeira Paulista”, Cadernos CERU, n.º 8, l.ª série.) constata o atrativo que o emprego fixo representa para os volantes. Mas é interessante acrescentar que, já em pesquisa divulgada em 1961, Monteiro observa o apelo que a cidade encerra para esta categoria, sobretudo pela proteção da lei trabalhista. Embora, como alvo remoto, mantenham o sonho de conseguir um bom contrato de parceria ou uma boa empreitada, obter um emprego urbano figura com seu alvo mais próximo. (Monteiro, 1961Monteiro, Douglas T., (1961) “Estrutura Social e Vida Econômica em uma Área de Pequena Propriedade e Monocultura”, Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.º 12, outubro.)

É indiscutível que a concentração de trabalhadores de uma mesma categoria ocupacional em determinados espaços geográficos facilita sua organização coletiva. Neste caso, diversamente do que ocorre com o trabalhador urbano, não é o local de trabalho o foco de aglutinação, e sim o local de residência. Em muitas cidades do interior de São Paulo, por exemplo, existem hoje bairros inteiros habitados por trabalhadores volantes, sem falar em povoados. Essa proximidade física certamente reforça a identidade do grupo, favorece o entrosamento e a comunicação entre seus membros, em contraste com a dispersão decorrente da moradia rural. Foi este o cenário que abrigou os movimentos reivindicatórios dos boias-frias paulistas, desde maio de 1984, que tiveram o dom de aumentar rapidamente a visibilidade social do problema. Por outro lado, não resta dúvida que a mera proximidade física não assegura a participação do trabalhador no movimento sindical, como constatam Pandolfi e Medeiros, em pesquisa realizada na lavoura canavieira de Pernambuco. (Pandolfi e Medeiros, 1983Pandolfi, M. Lia e Medeiros, Rejane P. de, (1983) “A Luta dos Trabalhadores da Cana-de-açúcar: Sindicalismo Rural e Trabalhadores Volantes”, Boletim Sobre População, Emprego e Renda no Nordeste, ano II, n.º 3.) Esse tema remete à discussão do item que se segue.

ORGANIZAÇÃO E MOBILIZAÇÃO DOS VOLANTES

Nesta seção, faremos uma avaliação sumária, de caráter exploratório, sobre as possibilidades de mobilização coletiva da mão-de-obra volante, com o intuito de propor questões decorrentes da análise empreendida até aqui.

Antes de mais nada, queremos enfatizar que o fato de muitos trabalhadores incluídos na categoria de volantes já residirem na cidade e terem uma experiência razoável de vida e de trabalho urbano tem pelo menos dois efeitos, a curto prazo: i) favorecer sua mobilização, pela densidade demográfica, que contrasta com a dispersão característica de outras categorias de trabalhadores rurais; ii) conferir certas particularidades a suas aspirações, de outro lado.

A organização dos trabalhadores é um pré-requisito básico para a melhoria de suas condições de salário, emprego e vida em geral. Isso não significa, porém, que seja uma condição suficiente para o atingimento de tal objetivo. Alcançá-lo implica, antes de tudo, uma certa proporcionalidade entre oferta e demanda de trabalho. Enquanto existir uma reserva de mão-de-obra abundante, disposta a engajar-se como temporária nas lides agropecuárias, as chances de sucesso nas pressões reivindicatórias serão inevitavelmente limitadas. O que não significa que seja impossível atingir melhorias parciais, em circunstâncias específicas.

A organização de uma categoria qualquer de trabalhadores não se faz da noite para o dia. Não se pode esperar que a situação do mercado melhore, tampouco, para dar início ao processo. Correr-se-ia o risco de perder a oportunidade de obter resultados valiosos, ainda que parciais. Nesse contexto, duas questões colocam-se como prioritárias: a reforma agrária e a questão sindical.

Não caberia, aqui, analisar a fundo esses dois temas. A questão do enquadramento sindical é extremamente controversa e merece uma reformulação radical, que vem sendo objeto de discussão da Assembleia Constituinte. Pesquisas realizadas em diferentes pontos do território brasileiro indicam a resistência que os volantes apresentam à sindicalização, bem como o caráter eminentemente assistencialista de que a atuação dos sindicatos de trabalhadores rurais tende a revestir-se. (Pandolfi e Medeiros, 1983Pandolfi, M. Lia e Medeiros, Rejane P. de, (1983) “A Luta dos Trabalhadores da Cana-de-açúcar: Sindicalismo Rural e Trabalhadores Volantes”, Boletim Sobre População, Emprego e Renda no Nordeste, ano II, n.º 3.; Sigaud, 1979Sigaud, Lygia, (1979) Os Clandestinos e os Direitos; Estudo Sobre Trabalhadores da Cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades.; além de Aguirre, 1986Aguirre, Basilia M. B., (1986) Mercado de Trabalho Rural, Estado e Cooperativismo. São Paulo; FEA/USP, tese de doutorado.)

A reforma agrária aparece como bandeira de luta de alguns segmentos dos trabalhadores rurais brasileiros durante a década de 1950 e início dos anos 60. Suas miseráveis condições de vida e trabalho levavam-nos a acalentar o sonho da terra própria e a agir politicamente para concretizá-lo. A Revolução de 1964 jogou uma pá de cal sobre esse ·sonho e usou de todos os recursos à sua disposição para encerrar a demanda, que só voltaria a ser claramente enunciada com o advento da Nova República.

A extrema concentração da propriedade da terra no Brasil é motivo de justo descontentamento. Contudo, vinte ou trinta anos após as primeiras manifestações mais generalizadas desse anseio, as alterações na estrutura do emprego rural e as transformações vividas pelo setor agropecuário convidam a rever algumas ideias. Especificamente, a presença de um contingente maciço de trabalhadores plenamente integrados ao mercado de trabalho, quer como assalariados permanentes, quer como temporários, introduz uma variável nova no cenário, que não pode ser desprezada. É possível indagar até que ponto um projeto de reforma agrária baseado na pequena propriedade familiar atenderia aos interesses específicos dessa categoria. Pergunta-se, ademais, se a junção de dois tipos de demanda - demanda por terra própria, demanda por melhores condições de trabalho - é conveniente do ponto de vista da condução do processo de organização de uma categoria como a dos volantes.

De forma semelhante, coloca-se a questão da participação sindical. Como se sabe, a legislação que dispõe sobre enquadramento sindical prevê a existência de um sindicato único, o dos trabalhadores rurais, que congrega uma grande variedade de categorias: pequenos proprietários, parceiros, autônomos e assalariados os mais diversos. Em comum, essas categorias compartilham uma situação de extrema penúria. No mais, porém, apresentam características bem distintas, que geram necessidades diferenciadas. Como reconciliar, por exemplo, a demanda do trabalhador temporário, que reivindica melhores salários, com a do pequeno produtor que emprega esse mesmo indivíduo? A questão merece um tratamento teórico e prático aprofundado, capaz de conferir maior objetividade e consequência à ação sindical.

Depoimentos sucessivos colhidos entre a população rural brasileira mostram a resistência que o indivíduo apresenta a trabalhar como empregado, sob o jugo de um patrão. Entretanto, no momento que esta condição parece irremediável, não é incomum que se opere uma transformação no plano de sua consciência. Os trabalhadores acomodam-se à nova situação, reestruturam suas aspirações em termos de trabalho e de vida. Finalmente, como já foi visto, podem chegar a racionalizar as vantagens do assalariamento, tais como a segurança de um ganho fixo. É curioso registrar que os trabalhadores da lavoura de cana de Pernambuco priorizam o assalariamento através de intermediários, em relação àquele de contratação direta. Em seus depoimentos, os informantes falam numa sensação de “liberdade” advinda dessa condição. (Pandolfi e Medeiros, 1983Pandolfi, M. Lia e Medeiros, Rejane P. de, (1983) “A Luta dos Trabalhadores da Cana-de-açúcar: Sindicalismo Rural e Trabalhadores Volantes”, Boletim Sobre População, Emprego e Renda no Nordeste, ano II, n.º 3.) Esta poderia ser uma nova evidência das vantagens da organização do mercado de trabalho do ponto de vista da mobilização coletiva.

Na prática, o problema da mão-de-obra volante e dos chamados “sem-terra” tem se confundido. Em episódios testemunhados pela imprensa nos últimos anos, nota-se a participação desses trabalhadores em invasões de terra e outros processos de mobilização cuja motivação imediata é a reivindicação do acesso à terra própria.

O problema conceitual e prático subjacente decorre do fato de que a categoria dos sem-terra abrange, em princípio, um número de indivíduos que tende ao infinito. Sem-terra são os pequenos proprietários e parceiros desalojados para as regiões de fronteira, em condições hostis. Sem-terra são os minifundistas, responsáveis pela exploração de áreas incapazes de prover a subsistência familiar. São os clandestinos da zona canavieira e de tantas outras, sem acesso a lotes para cultivo de· subsistência. São os trabalhadores volantes que encontram no assalariamento sem vínculo empregatício sua principal, se não única, fonte de renda. Mas são também os favelados urbanos, os moradores de cortiço, toda essa grande massa humana sem condições de moradia minimamente dignas, que ao longo de duas ou três gerações se viu privada do acesso a um pedaço de terra para produzir seu alimento e criar suas galinhas.

Tudo isso indica a necessidade de uma reflexão atenta e metodicamente conduzida, no sentido de possibilitar que os interesses de todos os trabalhadores possam ser efetivamente atendidos: Nessa direção, uma legislação sindical com graus de liberdade ampliados, suficientemente flexível para acompanhar as mudanças periódicas no mercado de trabalho, parece indispensável. A investigação necessária para estender essa análise e sugerir recomendações de política mais minuciosas extravasa, contudo, os limites deste estudo.

REFERËNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Aguirre, Basilia M. B., (1986) Mercado de Trabalho Rural, Estado e Cooperativismo. São Paulo; FEA/USP, tese de doutorado.
  • Bianchi, Ana Maria, (1983) “Mobilidade Estratégica de Sobrevivência”. São Paulo: IPE, Série Relatórios de Pesquisas.
  • Bíanchi, Ana Maria e Aguirre, Basilia M. B. (1986) O Trabalho Volante na Agricultura Paulista. São Paulo; IPE/IEA.
  • Fleury, Maria Thereza Leme, (1975) “A Organização do Trabalho na Lavoura Algodoeira Paulista”, Cadernos CERU, n.º 8, l.ª série.
  • Gonzales, Elbio e N. e Bastos, M. Inês, (1982) “O Trabalho Volante na Agricultura Brasileira”· in Mão-de-Obra Volante na Agricultura. São Paulo: Polis.
  • Graziano da Silva, José F., (1981a) A Modernização Dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar.
  • Graziano da Silva, José F., (1981b) Progresso Técnico e Relações de Trabalho na Agricultura. São Paulo: Hucitec.
  • Monteiro, Douglas T., (1961) “Estrutura Social e Vida Econômica em uma Área de Pequena Propriedade e Monocultura”, Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.º 12, outubro.
  • Müller, Geraldo, (1985) A Dinâmica da Agricultura Paulista. São Paulo, SEADE, série São Paulo 80, v. 2.
  • Pandolfi, M. Lia e Medeiros, Rejane P. de, (1983) “A Luta dos Trabalhadores da Cana-de-açúcar: Sindicalismo Rural e Trabalhadores Volantes”, Boletim Sobre População, Emprego e Renda no Nordeste, ano II, n.º 3.
  • Sigaud, Lygia, (1979) Os Clandestinos e os Direitos; Estudo Sobre Trabalhadores da Cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades.
  • 1
    No Estado de São Paulo, os dados do Instituto de Economia Agrícola configuram um manancial cuja importância é inegável, a despeito de notórias deficiências em termos de informações sobre mão-de-obra.
  • 2
    Os dados do Censo Agropecuário de 1980 revelam que cerca de 62% dos temporários foram contratados por estabelecimentos com menos de 100 hectares, portanto, de pequeno e médio porte.
  • 3
    Em pesquisa recente, observamos taxas de mobilidade mais acentuadas no Estado de São Paulo. Este resultado confirma a expectativa, tendo em vista tratar-se de um Estado tradicionalmente receptor de migrantes
  • 4
    JEL Classification: R23; Q12; J43.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1989
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