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As funções IS-LM e a “neoclassização” do pensamento de Keynes

The IS-LM functions and the ‘neoclassization” of Keynes’s thought

RESUMO

Este artigo analisa primeiramente as características anti-keynesianas do modelo “IS-LM” desenvolvido por Hicks, bem como as extensões deste modelo na versão de Pigou e Modigliani. Em uma segunda etapa, analisa as inconsistências internas do modelo, apontadas pelo próprio Hicks, quando se ajusta uma relação de fluxo expressa na curva IS com uma relação de estoque ou balanço, expressa pela curva LM.

PALAVRAS-CHAVE:
Modelo ISLM; keynesianismo; história do pensamento econômico

ABSTRACT

This article firstly analyses the antikeynesian features of “IS-LM” model as developed by Hicks, as well as the extensions of this model in the version of Pigou and Modigliani. In a second stage, it analyses the internal inconsistencies of the model, as pointed out by Hicks himself, when it fits together a flow relation which is expressed in the IS curve with a stock or balance sheet relation, as expressed by the LM curve.

KEYWORDS:
ISLM model; Keynesianism; history of economic thought

Uma das contribuições mais importantes do pensamento de Keynes foi a de mostrar que mesmo que analisemos o capitalismo a partir de pressupostos neoclássicos, tais como competição perfeita e firmas maximizadoras de lucro a curto prazo, é possível demonstrar que tal sistema não apresenta forças endógenas capazes de gerar processos de auto estabilização, em situação de pleno emprego.

Tal conclusão decorria de duas inovações básicas introduzidas por Keynes: a de mostrar a irrelevância dos movimentos de preços relativos ou mesmo absolutos como mecanismos capazes de determinar a renda e o emprego;1 1 Keynes não chegou a tal conclusão porque supôs que os preços fossem rígidos, como acredita certo keynesianismo escolar, mas simplesmente porque o grau de flexibilidade razoável de ser esperado na prática seria tardio e/ou pequeno, e assim determinaria expectativas de posteriores reduções de preços e salários com efeitos perversos sobre o emprego. Este ponto será considerado adiante. em segundo lugar, em função disso, mostrar a importância do conceito de demanda efetiva e, através da análise de seus determinantes, estabelecer uma teoria geral da determinação do nível de atividade econômica.

O contra-ataque neoclássico a tal formulação não se fez esperar e se baseou fundamentalmente no fato de que se se admitisse a flexibilidade de preços e salários, e, mesmo que no curto prazo tal flexibilidade não tivesse condição de levar a economia ao pleno emprego, em um prazo maior tal situação seria necessariamente atingida, em função do surgimento de mecanismos decorrentes da interação entre os diferentes mercados. Ao fazer isto, porém, os neoclássicos ignoraram um aspecto fundamental da obra de Keynes, isto é, que, se pensarmos em termos de longo prazo, dificilmente poderemos admitir como dadas as expectativas dos agentes econômicos, pois só neste caso restrito seria possível admitir que os mercados gerassem os mecanismos adequados de regulação.

Deste modo, deixando de lado a ideia básica de Keynes de que expectativas constantes só eram válidas para o curto prazo, a visão neoclássica se desenvolveu sobre a hipótese de que seria possível prolongar as tendências do curto para o longo prazo, podendo sua metodologia ser descrita como:

“Escrever algumas equações, ignorar qualquer complicação decorrente das expectativas dos agentes econômicos e considerar o resultado como uma conclusão a respeito das tendências de longo prazo; tal expediente foi considerado correto e assim foi consagrado. Este foi exatamente o tratamento que a Teoria Geral recebeu” (Bleaney, 1985Bleaney, M., (1985), The Rise and Fall of Keynesian Economics, McMillan Education, Londres. , p. 19).

Tal procedimento, que, surpreendentemente, ainda é utilizado na maioria dos livros de macroeconomia e em muitos trabalhos teóricos e aplicados, tomou como arcabouço a análise de Hicks da determinação simultânea das variáveis taxa de juros e renda através das funções IS-LM (Hicks, 1937Hicks, J., (1937), “Mr. Keynes and The Classics: A Suggested Interpretation “, em M. G. Mueller (editor), Readings in Macroeconomics, Holt, Hinehart and Winston, 1966. ). Introduzindo, neste modelo, variações no salário monetário e o impacto que uma queda deste teria, através do mercado monetário, no investimento e na renda, Franco Modigliani elaborou o que veio a ser chamado de “efeito Keynes” (Modigliani, 1944Modigliani, F., (1944), “Liquidity Preference and the Theory of Money”, Econometrica, XII. , pp. 45-8). Esta análise foi complementada pela utilização do chamado “efeito riqueza”, desenvolvido por Pigou, segundo o qual a queda nos preços e salários faria com que os agentes econômicos se sentissem mais ricos, de tal maneira que isto estimularia seus gastos, tendo um efeito positivo sobre o nível da renda (Pigou, 1943Pigou, A. C., (1943), “The Classic Stationary State”, Economic Journal, LIII. , pp. 343-51). A combinação desses dois efeitos mostraria a impossibilidade teórica de, no longo prazo, obter-se uma renda de equilíbrio diferente da renda de pleno emprego.

Na verdade, as análises acima estão sujeitas a restrições, não só enquanto uma tentativa de se identificar o que Keynes procurou ensinar a seus contemporâneos, mas também enquanto interpretação da realidade do capitalismo. A crítica que se pretende desenvolver neste artigo vincula-se, fundamentalmente, ao primeiro aspecto, isto é, o de mostrar que ao formular um modelo de equilíbrio geral, Hicks não só traiu, como ele posteriormente veio a reconhecer com absoluta integridade intelectual, o pensamento de Keynes, como também, ao fazer isto, introduziu hipóteses que tornam inconsistente logicamente tal interpretação. Antes disto, porém, se fará uma análise, ainda que rápida, do modelo keynesiano neoclássico, isto é, do modelo Hicks-Modigliani-Pigou.

HICKS, MODIGLIANI E PIGOU

Hicks, inicialmente, aceita o método de Keynes ao formular as relações ­econômicas em termos dos agregados macroeconômicos. Assim, aceita a equação Y = C + I (Renda igual a Consumo mais Investimento), como uma identidade, o que em princípio é questionável, pois ela não é necessariamente apenas uma identidade. Em seguida, substitui a função consumo C = f(Y), pela função Poupança (S), introduzindo nela a taxa de juros (i) de modo a obter S = s (Y, i). Em seguida altera a função Investimento, de I = f (E, i), a qual, para Keynes, deve ser interpretada de tal maneira que E expresse a rentabilidade esperada do investimento em certas condições dadas, e i taxa de juros - dando a tal função uma interpretação convencional, isto é, atribuindo a ela uma interpretação baseada na produtividade marginal do capital; daí expressá-la por I = g(i). O investimento realizado deverá corresponder a uma situação em que a produtividade marginal do capital corresponda à taxa de juros.

Em relação ao mercado monetário, Hicks também altera a interpretação original de Keynes. Para Keynes, por uma série de razões, existe uma certa quantia de dinheiro que as pessoas desejam manter líquida, a uma certa taxa de juros. Este valor de encaixe está relacionado inversamente com a taxa de juros, e tende a um valor infinito antes dessa taxa de juros atingir zero. A partir de tal função de demanda monetária, a taxa de juros será determinada conjuntamente com a quantidade de dinheiro ou oferta monetária M, sendo tal determinação um fenômeno puramente monetário, de tal maneira que se obtém

i L , M ¯

Hicks, no entanto, introduz a renda na equação acima de modo a obter

i = i L , Y , M ¯

Em resumo, como observa Pasinetti, Hicks faz “o consumo depender não apenas da renda, mas, também, da taxa de juros, e a demanda monetária depender não apenas da· taxa de juros, mas também da renda” (Pasinetti, 1974Pasinetti, L., (1974), Growth and Income Distribution. Essays in Economic Theory, Cambridge University Press. , p. 46). Assim “ao fim de uma manipulação aparentemente inócua Hicks transforma a análise de Keynes na simples resolução de “um sistema de equações simultâneas”, precisamente naquilo que Keynes não queria que fosse” (idem, p. 4 7).

Graficamente este conjunto de equações pode ser representado pelas funções IS-LM, indicando respectivamente os pares de taxas de juros e renda real compatíveis com o equilíbrio no mercado de bens e no mercado monetário, de tal modo que o ponto de intersecção das duas linhas indicaria o equilíbrio simultâneo nos dois mercados. Implícita nesta construção está a possibilidade, como um caso particular, desde que ocorra rigidez de preços em algum mercado, de que a renda· efetiva se estabeleça em nível de renda inferior a renda de pleno emprego.

Modigliani (1944Modigliani, F., (1944), “Liquidity Preference and the Theory of Money”, Econometrica, XII. ), no entanto, procurou demonstrar que, desde que o modelo de Keynes fosse reduzido a um conjunto de equações simultâneas, como o fez Hicks, seria impossível admitir-se uma situação de equilíbrio com desemprego, pois neste caso, mais cedo ou mais tarde os salários nominais tenderiam a reduzir-se. Sua ideia era a de que desde que as demandas monetárias precaucional e transacional fossem função da renda nominal, uma queda nos preços, decorrente da queda dos salários nominais, produziria uma queda na demanda monetária, de tal modo que se a oferta monetária permanecesse constante, a taxa de juros cairia, estimulando desta maneira o investimento. Em consequência, os preços e salários continuariam a cair, enquanto permanecesse o desemprego. Este mecanismo seria análogo a um processo, em que, mantidos constantes os preços, houvesse um aumento da oferta monetária nominal. Em termos gráficos, tal mecanismo corresponderia a uma situação em que a função LM estaria se deslocando para a direita, mantida constante a função IS.

Tal ajustamento, no entanto deixaria de funcionar, se os agentes econômicos estivessem aumentando seus ativos monetários mesmo em resposta a uma pequena redução na taxa de juros, isto é, na chamada armadilha da liquidez. Esta seria a situação em que os preços dos títulos estariam tão elevados que seria inimaginável que pudessem se elevar mais, e, portanto, a taxa de juros cair mais.

O que na verdade estava implícito no argumento de Modigliani, como observa Bleaney, era a ideia de que em qualquer situação, em que a política monetária fosse capaz de levar a economia ao pleno emprego, o mesmo resultado poderia ser obtido pela redução de salários e preços através das forças de mercado. Tal possibilidade, no entanto já havia sido considerada por Keynes, na Teoria Geral, capítulo XIX, como também no seu artigo de 1937 “A Teoria Geral do Emprego”, daí ser conhecido também como “efeito Keynes”. Porém em contexto dinâmico, isto é, no tempo presente que nos interessa, Keynes argumentava que tal efeito não teria a suficiente rapidez para permitir a volta ao pleno emprego, pois nada garantiria que com a passagem do tempo as expectativas não se alterassem e que portanto, em termos de Hicks, a função IS permanecesse constante.

Daí Keynes observar:

“Se o nível da taxa de juros tomado em conjunto com as opiniões sobre a futura rentabilidade (do investimento) aumentar o preço dos ativos de capital”, aumentará também o volume do investimento corrente.2 2 Mediante uma redução da taxa de juros. enquanto se, por outro lado, essas influências reduzirem o preço dos ativos de capital,3 3 Mediante uma redução da taxa de juros. reduzir-se-á o montante dos investimentos correntes ... (Porém) não há nenhuma razão para se supor que as flutuações em um desses fatores tenderão a compensar a flutuação no outro ... De fato, as condições que tendem a agravar um dos fatores, tenderiam, como regra, a agravar o outro (Keynes, 1973Keynes, J.· M., (1973), The General Theory and After, Collected Writings, vol. XIV, McMillan. , p. 118).

Na verdade, o que Keynes afirma é que as condições que elevam a taxa de juros vêm normalmente juntas com aquelas que reduzem as expectativas de ganhos futuros e “que o único elemento de autocorreção no sistema surge em um estágio posterior e em grau incerto. Se um declínio do investimento leva a um declínio da produção como um todo, isto pode resultar, por mais de uma razão, numa redução do volume de dinheiro necessário à circulação ativa (transação), liberando um maior volume para a circulação inativa, o que satisfaria a procura por liquidez em um nível inferior de taxa de juros; isto elevará o preço dos ativos de capital, aumentará a escala de investimento, restaurando em certa medida o nível de produção” (idem, p. 118).

Assim o grau de incerteza, sobre o que acontecerá no futuro, é negligenciado pela análise de Modigliani, que na verdade está supondo a permanência ao longo prazo das expectativas vigentes no curto prazo.

O “efeito Pigou”, ou “efeito riqueza”, que havia sido formulado em 1943, baseava-se no pressuposto de que uma redução de preços não aumentava apenas o valor real da oferta monetária, mas predispunha os próprios agentes econômicos a elevarem seus gastos. Para Pigou, se os preços tivessem uma redução, por exemplo, de um décimo de seu nível anterior, o valor real dos ativos monetários bem como de ativos financeiros com valor fixo, seriam multiplicados por 1,10, isto é, aumentariam em 10%. Como consequência os indivíduos se sentiriam mais ricos e consumiriam uma parte maior de seus rendimentos. Na verdade, a análise de Pigou é mais radical que a de Modigliani, pois em termos estáticos, ou de expectativas constantes, não dependeria da elasticidade da função Investimento e, portanto, da função IS, ou da inexistência da armadilha da liquidez, para eventualmente levar o sistema a uma situação de equilíbrio de pleno emprego.

Para o efetivo funcionamento do efeito riqueza, no entanto, quatro pontos teriam de ser satisfeitos: os agentes econômicos deveriam sempre trocar dinheiro por mercadorias, isto é, haveria sempre curvas de demandas individuais capazes de fazer com que dado um certo preço, a economia encontrasse uma situação de equilíbrio de pleno emprego; em outras palavras, a liquidez decorreria de uma situação de funcionamento inadequado de preços de tal modo que não existiria o problema das expectativas tal como colocado por Keynes; segundo, além desse problema que se dá por resolvido, seria necessário que os detentores de dinheiro abandonassem as expectativas de preços em queda, o que os fez entesourar em um primeiro. momento, para em um segundo momento transformar seu dinheiro em mercadoria. Porém aqui surge um grave problema: os agentes econômicos deveriam abandonar a expectativa dos preços em queda, em um momento em que os preços estão caindo, e em que suas expectativas estão sendo confirmadas. Como sair desse círculo? Em termos estáticos isto significaria que durante uma violenta deflação de preços decorrente de desemprego, em um determinado momento as expectativas se estabilizassem. Além dessas duas hipóteses para as quais inexiste o problema das expectativas, seria necessário ainda que, durante uma deflação com queda na atividade econômica, o sistema bancário mantivesse o estoque monetário constante; e finalmente seria necessário que uma razoável proporção do estoque monetário fosse mantida líquida e não em aplicações financeiras em títulos emitidos pelo setor privado (pois neste caso, o que seria “efeito riqueza” para uns seria “efeito pobreza” para outros).

Na verdade, estes expedientes utilizados por Modigliani e Pigou são uma simples decorrência da manipulação que Hicks fez a partir da análise de Keynes, uma vez que nela já estavam contidas, em germe, todas as possibilidades de transformar um poderoso instrumento de análise do capitalismo, em um simples conjunto de equações capazes de representar apenas o funcionamento de uma economia de trocas. Passemos assim à análise de Hicks.

HICKS E KEYNES

A ideia básica de Hicks é a de que o modelo, que Keynes considerava como modelo geral, seria apenas um caso especial de uma teoria mais geral, que seria a macroeconomia clássica. Para demonstrar sua tese Hicks vai apresentar o que ele chama “modelo estrito de Keynes” através das seguintes equações, cujos significados já foram discutidos anteriormente:

M = L i I = f i I = s Y

Ao formular da maneira acima o “modelo estrito”, Hicks chama a atenção para que nele é a taxa de juros e não a renda que é determinada inicialmente, de tal modo que a comparação daquela com a eficiência marginal do capital determina o valor do investimento, que por sua vez através do multiplicador determina o nível da renda. Assim “um aumento na propensão a investir ou na propensão a consumir não tenderiam a elevar a taxa de juros, mas apenas a aumentar o emprego”. Porém, afirma Hicks,

“a despeito disto ... e a despeito do fato de que uma boa parte do argumento gira em torno deste sistema, este sistema sozinho não é a Teoria Geral. Nós podemos chamá-lo, à falta de melhor nome, ‘a Teoria Geral de Mr. Keynes’. A Teoria Geral é algo bem mais ortodoxo”.

Como Lavington e o Professor Pigou, Mr. Keynes não acredita que a demanda monetária possa ser determinada apenas por uma variável, isto é, a taxa de juros ... Embora ele tenha insistido bastante sobre o ‘motivo especulação’, o ‘motivo transação’ também deve ser incluído. Consequentemente, teremos para a Teoria Geral

M=LY,i, I=fi I=sY " . (Hicks, 1937Hicks, J., (1937), “Mr. Keynes and The Classics: A Suggested Interpretation “, em M. G. Mueller (editor), Readings in Macroeconomics, Holt, Hinehart and Winston, 1966. , p. 141)

Assim, Hicks continua, referindo-se às três últimas equações, “dada uma certa quantidade de dinheiro, a equação M = L (Y, i) nos dá uma relação entre a renda (Y) e a taxa de juros (i). O que pode ser representado como a curva (LL)4 4 A nossa tradicional LM. que se inclinará para cima desde que um aumento da renda tende a elevar a demanda monetária e uma elevação da taxa de juros tende a reduzi-la”. Além disso, as duas últimas equações, em conjunto, nos dão outra relação entre a demanda e a taxa de juros (a função eficiência marginal do capital determina o valor do investimento dados certos valores da taxa de juros e o multiplicador nos indica qual nível de renda será necessário para fazer a poupança igual ao investimento)” (idem, pp. 141-2). Desta maneira Hicks obtém a função IS.

Hicks, porém, vai ser mais explícito, no sentido de reforçar a sua interpretação de Keynes. Ele introduz a taxa de juros na terceira das equações acima, isto é, na equação I = S(Y), e põe em dúvida que o Investimento dependa apenas da taxa de juros, com isto introduz Y, também como argumento da segunda função, obtendo assim,

M = L Y , i I = f Y , 1 e I = s Y , i

Com este novo modelo Hicks propõe uma representação gráfica de Keynes, na sua versão “generalizada”. Supõe, inicialmente, que, dado um nível de renda, será então possível obter-se “uma curva CC mostrando a eficiência marginal do capital (em termos monetários) e uma curva SS mostrando a curva de oferta de poupança àquele nível de renda (também em termos monetários). A intersecção das duas determinará a taxa de juros que faz a poupança igual ao investimento naquele nível de renda. A este valor podemos chamar “Taxa· de Investimento” (idem, p. 145).

Neste caso - representando-se em um gráfico o investimento e a poupança em termos nominais no eixo horizontal, e a taxa de juros no eixo vertical -, verificamos que a curva SS terá uma inclinação positiva, pois fixado um nível de renda, só se poderá obter um fluxo maior de poupança mediante a elevação da taxa de juros; de outro lado a função CC terá uma inclinação negativa, que decorre do princípio dos rendimentos decrescentes na utilização do estoque de capital existente. Desta maneira a igualdade entre Poupança e Investimento passa a ser regulada pela taxa de juros, isto é, dada pela intersecção de CC e SS. De acordo com tal análise é impossível elevar-se o investimento e a renda reais, sem se aumentar a propensão a poupar da economia.

A partir desse “modelo generalizado” Hicks se propõe a chegar a casos particulares; assim seria possível definir, a partir dele, tanto um modelo de pleno emprego, “a la Wicksel”, como também o que chama de “economia de depressão” de Keynes. Quanto à construção de Wicksel, Hicks observa que em uma situação de pleno emprego, toda elevação da renda implica uma elevação salarial e de preços, o que levará a um deslocamento para a direita e na mesma extensão da curva de CC como da curva de SS. (Haveria uma elevação em termos nominais tanto do valor da produtividade do capital (CC) como da oferta de poupança (SS), sem se alterarem seus valores reais.) Isto significaria a impossibilidade de elevação do investimento em termos reais, e que este seria, portanto, determinado apenas por causas reais. Teríamos dada assim a “taxa natural” do investimento, de tal maneira que se a “taxa de juros de mercado” fosse menor que a “taxa natural”, teríamos um processo de inflação cumulativo. De outro lado, no caso contrário, um processo de deflação. Se imaginássemos uma situação de desemprego, tal como considerada por Keynes, caso fosse dado um nível de renda mais alto, teríamos uma reduzida propensão marginal a consumir (ΔCΔY seria baixa) o que permitiria um deslocamento maior de SS do que de CC, e o que significaria aumento real da poupança, de tal modo que o crescimento da renda poderia ser interpretado como um aumento real. Este caso poderia ser representado por uma função IS, com inclinação negativa, pois níveis maiores de renda implicariam taxas de juros mais reduzidas. No caso de se implementar uma política monetária que levasse a uma oferta de dinheiro não absolutamente elástica, teríamos uma LM com inclinação positiva e um equilíbrio estável da renda.

Desta maneira, na análise apresentada por Hicks, o nível de renda monetária é dado, e a oferta e demanda de poupança SS e CC se equilibram a partir de variações nas taxas de juros, que passa a ser o mecanismo regulador dos dois fluxos. Tal análise, no entanto, é realizada sem explicitar o impulso inicial no sistema que levará a variações na renda, o que pode ser verificado pela técnica de Hicks de supor variações exógenas na renda para poder determinar os dois casos particulares acima descritos.

Na verdade, não há nada mais distante de Keynes do que o caminho traçado por Hicks, pois, como Keynes observou:

“A contribuição nova da minha análise da poupança e do investimento reside não no fato de que eu afirmo sua igualdade global, mas na proposição segundo a qual não é a taxa de juros, mas o nível da renda que (conjuntamente com outros fatores) assegura esta igualdade” (1973, p. 211).

Quando Keynes afirma que a igualdade entre poupança e investimento é assegurada pela renda, ele está, ao mesmo tempo, eliminando a lei de Say e afirmando a forma de determinação da renda através da Demanda Efetiva. E, neste ponto, para evitar algumas dúvidas relativas a este conceito, seria interessante lembrar que Keynes usa na Teoria Geral, para justificar a afirmação acima, dois mecanismos que não se excluem reciprocamente, mas que de alguma forma se complementam em termos expositivos: o princípio da demanda efetiva, stricto sensu, que é o princípio fundamental de sua análise, e o conceito de multiplicador.

Assim, tal como formulado no capítulo III da Teoria Geral, o princípio da demanda efetiva estabelece que o nível da renda como um todo e o correspondente nível de emprego são determinados por duas funções do nível de emprego são determinados por duas funções do nível de emprego, N; pela oferta agregada Z(N), e pelas estimativas que as empresas fazem a respeito de suas futuras receitas, isto é, pela demanda agregada, D e (N). A intersecção das duas curvas determina um ponto que corresponde à demanda efetiva. A oferta agregada estabelece as receitas mínimas que as. empresas deverão receber de suas vendas e que justifiquem realizar diferentes níveis de emprego. Isto quer dizer que esta função reflete custos de mão-de-obra mais o lucro, tal como seria dado em uma situação de maximização de lucros em um mercado competitivo, onde as empresas estivessem obtendo apenas o lucro normal.

De outro lado, a demanda agregada D e (N) identifica as receitas que os empresários esperam realizar da venda da produção resultante do emprego de um certo volume de mão-de-obra, o que significa dizer que indica o produto dos preços esperados pelos produtores pelas quantidades de bens produzidos. A intersecção das duas curvas representada por E, indica o volume de emprego N* (ver Gráfico 1 abaixo).

Na verdade o conceito de demanda agregada, como observa Vitoria Chick, tem duas acepções a respeito das quais Keynes não insiste o suficiente: “ela pode referir-se a uma função representando o volume real de gastos, isto é, as decisões de consumo e investimento que variam com o nível de atividade econômica, associada a cada nível de emprego (D(N)) , e pode referir-se, de outro lado, às estimativas que as firmas fazem a respeito do total de suas receitas ao estabelecer um certo nível de emprego (D e (N)). Assim, na determinação do nível de emprego é este último conceito que é importante; os planos de consumo e investimento se tornam importantes apenas quando o produto, que já deve ter sido produzido, vem a ser vendido. Neste ponto, se as vendas mostram que as expectativas são incorretas, as estimativas das firmas podem ser revisadas determinando um novo nível de produção” (Chick, 1983Chick, V., (1983), Macroeconomics after Keynes, Philip Allan, Oxford. , p. 64).

Este ajustamento pode ser analisado através do modelo elaborado por Parrinello (1980Parrinello, S., (1980), “The Price Level Implicit in Keynes Effective Demand”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. III. , pp. 63- 78) no qual é explicitado o processo de formação de expectativas de curto prazo correspondentes a D e (N).

Suponhamos na Figura 1, que em determinado momento os empresários esperem que a demanda global da economia (consumo + investimento) justifique o emprego N1 e que a receita a ser obtida seja D e 1 , à qual, corresponde um determinado preço unitário estabelecido pelas empresas. No entanto a tal preço a receita realizada será apenas D 1 (gastos efetivos em consumo e investimento).

Na situação hipotética acima, os empresários obterão um lucro extraordinário que corresponde a D 1 Z 1 , o que os leva a aumentar seus preços e o volume de ­emprego. Deve-se notar, porém, que conforme N aumenta, o lucro, dado por ­[D(N) - Z(N)], tende a se tornar menor, o que leva os empresários a aumentarem seus preços, porém em valores cada vez menores do que os valores dos aumentos precedentes; o que explica uma inclinação ainda positiva, mas decrescente de D e (N), e o que faz com que a partir de um certo ponto D(N) esteja acima de D e (N).5 5 Pode-se admitir que o sinal da mudança dos preços incorporado em D e (N) é igual ao sinal da diferença entre o gasto efetivo dado por D(N) e a oferta agregada Z(N) (conforme Parrinello, 1980, p. 70).

A análise do Gráfico 1 nos mostra, ainda, que na medida em que N vai aumentando, os preços desejados pelos empresários, e que estão incorporados em De(N), vão se aproximando dos preços mínimos exigidos por eles para continuarem produzindo (incorporados na função Z(N)), o que faz com que em determinado ponto (N2, por exemplo) os preços desejados comecem a se elevar de tal maneira que eles tenderão para o ponto E, dado pela intersecção Z(N) e D(N), isto é, pela intersecção de Z(N) com a função que indica os gastos efetivamente realizados.

Desta análise, decorre que D e (N) pode ser entendida como a representação de um processo de formação de expectativas de curto prazo, através do qual os produtores ajustam seus preços através de um contínuo overlap entre os resultados esperados e realizados. Neste caso específico, supõe-se que o ajustamento de curto prazo não causa nenhuma alteração nas expectativas de longo prazo, tais como expressos pelas decisões de gastos incorporadas em D(N). Daí a observação de Keynes de que “referências expressas às expectativas correntes de longo prazo não podem ser evitadas, mas será lícito muitas vezes omitir referências expressas às expectativas de curto prazo, tendo em vista que, na prática, o processo de revisão das expectativas de curto prazo é gradual e contínuo e levado a efeito principalmente através dos resultados realizados de tal maneira que os resultados realizados e esperados tendem a convergir e coincidir reciprocamente (overlap) em sua influência. Pois embora o produto e o emprego sejam determinados pelas expectativas de curto prazo dos produtores e não pelos resultados passados, os resultados mais recentes usualmente desempenham um papel predominante no estabelecimento das expectativas” (1936, pp. 50-1).6 6 Keynes admitiria, sem dúvida, “expectativas racionais” para o ajustamento de curto prazo, porém objetaria a qualquer tentativa de estender tal análise para endogenizar as expectativas de longo prazo. (Ver, sobre esse ponto, Leijonhufvud, 1983, p. 183 e seguintes.)

Desta maneira, para ressaltar a importância do conceito de Demanda Efetiva, Keynes procurou raciocinar no capítulo III da Teoria Geral com um modelo restrito de curto prazo, em que as expectativas de longo prazo podem legitimamente permanecer constantes. Aliás, como observa Kregel, “foi este modelo puramente estático, divorciado de desapontamentos e alterações nas expectativas, que Keynes preferiu usar finalmente para demonstrar que o desemprego não era fenômeno de desequilíbrio de curto prazo e que não era o resultado de auges e depressões que poderiam resultar de expectativas empresariais inadequadas, e que, em teoria, o sistema poderia situar-se em equilíbrio a qualquer nível de emprego entre zero e o pleno emprego” (Kregel, 1976Kregel, J., (1976), “Economic Methodology in the Face of Uncertainty: The Modelling Methods of Keynes and the Post-Keynesians”, Economic Journal, junho de 1976. , pp. 213-4), ou, como Keynes ressalta, “a demanda efetiva associada ao pleno emprego é um caso especial que só se verifica quando a propensão a consumir e o incentivo a investir· se encontram associados entre si em uma determinada forma” (Keynes, 1936Keynes, J. M., (1936), The General Theory of Employment, Interest and Money. Collected Writings, vol. VII, McMillan. , p. 28).

Paralelamente à conclusão de que a renda é determinada pela Demanda Efetiva, Keynes mostra que a igualdade entre poupança e investimento é a consequência e não o determinante do estabelecimento de uma dada renda de equilíbrio, isto é, exatamente o contrário do que é explicitado no modelo IS-LM.

Ora, para Keynes, dado um certo nível de renda determinado pela demanda efetiva e dada uma certa propensão a consumir da comunidade - uma vez que Keynes supõe que o consumo depende diretamente do total do rendimento pago, isto é, C = b(Y), e este total depende do emprego N - determinada a renda via demanda efetiva, se determinará sempre o nível de poupança correspondente ao investimento realizado; ou seja, dado em que N*, Y = C + I, temos que Y = I /1-b ou Y = /a sendo s = (1 - b), ou ainda I = sY e I = S, ou, como observa Keynes:

“(Para) justificar qualquer volume de emprego deve existir um volume de investimento suficiente para absorver o excesso da produção total sobre o que a comunidade deseja consumir. A não ser que haja este volume de investimento as receitas dos empresários serão menores que as necessárias para induzi-los a oferecer tal volume de emprego. Daqui se segue, portanto, que dado o que chamaremos propensão a consumir da comunidade, o nível de equilíbrio do emprego, isto é, o nível em que nada incita os empresários em conjunto a aumentar ou reduzir o emprego, dependerá do montante do investimento corrente” (1936, p. 28)7 7 Pode-se mostrar, também, a partir da análise do multiplicador, que o volume da produção de bens de investimento é fundamental na determinação do equilíbrio, na medida em que dele depende o nível dos lucros. Assim dado que no ponto de Demanda Efetiva, I = S e como Z = wN + P, sendo P lucros e wN = total de salários; fazendo-se wN = Z; temos que I = s (Z + P); de outro lado como P = (1 - )z, e Z=P1-α, substituindo-se Z, em I = s (Z + P), teremos I = s P 1 - α α + P o u P = I / s α 1 - α + 1 .

Além do conceito do multiplicador visto como uma “condição de equilíbrio”, tal como formulado acima, Keynes o considerou também do ponto de vista de um processo dinâmico,8 8 A distinção entre “multiplicador de equilíbrio” e “multiplicador dinâmico” foi sugerida por V. Chick (Chick, 1983, p. 265 e seguintes). que ocorrerá sempre que uma alteração no investimento agregado “se origine de um aumento não inteiramente previsto, pelo setor de bens de consumo, na produção de bens de capital. É evidente que uma iniciativa destas só produz todos os seus efeitos sobre o emprego depois de decorrido um certo lapso de tempo” (idem, p. 122).

Quando Keynes procurou chamar a atenção sobre esta interpretação, também estava chamando a atenção para o fato de que, mesmo que as antecipações de curto prazo não fossem corretas, seria gerado um volume de poupança igual ao investimento, o que pode ser mostrado através da soma da série infinita,

Y = I + I b + I b 2 + I b n = I 1 - b ,

obtendo, portanto, o mesmo resultado que no caso de antecipações corretas, com a diferença de Ib, Ib 2 , etc., seriam gastos realizados ao longo do tempo.

Assim através do conceito de Demanda Efetiva, Keynes ressaltou, como já o fizeram Schumpeter e Kalecki, o fato de que no capitalismo existe um processo decisório que antes de se basear no processo de formação dos preços relativos, é o fundamento desse processo. A avaliação dos capitalistas a respeito de suas receitas futuras determina o nível de emprego, o qual por sua vez ao gerar um certo volume de rendimentos na economia determina o volume de gastos, ao qual o capitalista se ajusta em termos de aumento ou diminuição do emprego, até o estabelecimento da Demanda Efetiva. Ora, tal determinação do emprego da renda não pode ser feito se o capitalista não tem uma ideia antecipada dos valores de seus lucros brutos futuros e de uma taxa de atualização de tais valores, dada pela taxa de juros.

O que opõe claramente a análise de Keynes à de Hicks é que Hicks “não admite em sua apresentação, nenhuma distinção entre a taxa de juros que iguala poupança e investimento e a taxa de juros determinada no mercado monetário” (Kregel, 1985Kregel, K., (1985), “Le Multiplicateur et la Preference par la liquidité: Deux aspects de la Theorie de la Demande Efetive”, em Keynes, Ajourd’hui, editado por A. Barrere, Economica. , p. 238). Para Keynes, ao contrário, a taxa de juros não é estabelecida por fatores reais como a produtividade do capital, mas é um fenômeno monetário (Keynes, 1936Keynes, J. M., (1936), The General Theory of Employment, Interest and Money. Collected Writings, vol. VII, McMillan. , pp. 222-3). O que leva a concluir que a taxa de juros monetária, determinada pela preferência pela liquidez, estabelece a taxa de rendimento dos ativos reais. Desta maneira variações na preferência pela liquidez afetam inicialmente não os preços, mas a taxa de juros, e por repercussão, como uma consequência da variação desta, se produz um efeito sobre os preços (Keynes, 1973Keynes, J.· M., (1973), The General Theory and After, Collected Writings, vol. XIV, McMillan. , p. 116). O que Keynes procurou fazer, como observou Townshend, foi uma alteração da teoria marginalista, ao construir uma teoria dos preços monetários pela preferência pela liquidez (citado em Kregel, 1985Kregel, K., (1985), “Le Multiplicateur et la Preference par la liquidité: Deux aspects de la Theorie de la Demande Efetive”, em Keynes, Ajourd’hui, editado por A. Barrere, Economica. , p. 231).

Desta maneira Keynes, ao contrário de Hicks, tem uma teoria sequencial ou causal da determinação da renda onde o elemento inicial é a Demanda Efetiva, que se apresenta como a síntese das expectativas empresariais relativas ao fluxo de rendimentos futuros e à taxa de juros, a qual utilizada como taxa de desconto permitirá comparar valor atual dos fluxos de rendimentos com o seu preço de oferta.

O caráter causal da determinação da renda pela demanda efetiva, tal como entendida por Keynes, tem sido obscurecido pela interpretação convencional feita com base no “multiplicador dinâmico”, na qual o conceito de demanda efetiva é substituído simplesmente pela decisão de investir, que seria dada pela comparação da taxa de juros do mercado com a rentabilidade esperada do investimento de juros do mercado com a rentabilidade esperada do investimento. Desta maneira, dado o investimento através do multiplicador se obteriam a renda, o consumo e a poupança.

Na verdade, este processo é apenas um caso particular (não antecipação do volume de produção do setor de bens de capital por parte do setor de bens de consumo) do caso mais geral admitido por Keynes, em que no curto prazo todas as antecipações seriam realizadas, e que ele formula através do conceito de demanda efetiva e do “multiplicador de equilíbrio ou lógico”. Ora, neste caso a decisão inicial, isto é, o determinante causal da atividade na abertura do período macroeconômico é o próprio processo de assalariamento, que embora no “curtíssimo prazo” possa variar tal como indicado, na função De(N) da Figura 1, no curto prazo tentará se fixar no valor dado pela intersecção de De(N) com Z. Assim, é uma decisão que envolve a utilização do capital e/ou a acumulação de mais capital, e que leva a constituição de um processo econômico estruturado através do processo de formação e gasto dos rendimentos.9 9 Uma formulação alternativa deste processo é a de Bernard Schmitt (Schmitt, 1971, p. 305 e segs.), para quem o gasto indutor da formação da renda não é o investimento, mas o próprio processo de assalariamento, tal como determinado pela demanda efetiva. Daí sua formulação um tanto quanto esotérica, mas absolutamente rigorosa, de que o multiplicador dinâmico, na determinação da renda através da Demanda Efetiva, isto é, no ponto E, seria sempre unitário, e dado por Yc+1=1,0. Neste caso, (C + 1) seria o “gasto antecipado e realizado na economia, uma vez que, como mostra ainda a Figura 1, no ponto de demanda efetiva E, as empresas produzirão (em termos monetários) exatamente o que elas antecipam que será demandado.

CONCLUSÕES

Uma primeira conclusão, que a análise acima nos permite tirar, é a de que Hicks procurou enquadrar a análise causal de Keynes em um modelo de equilíbrio geral do tipo walrasiano. Se havia alguma dúvida sobre este ponto, ela deixa de existir a partir de declarações do próprio Hicks em seu artigo de autocrítica “IS-LM: An Explanation” onde observa que a “ideia do diagrama IS-LM surgiu do resultado do trabalho que eu vinha fazendo sobre um sistema equilíbrio em três mercados, concebido de maneira walrasiana” (Hicks, 1980Hicks, J., (1980), “IS-LM: An Explanation”, Journal of Post-Keynesian Economics, vol. III, n.º 2. , pp. 141-2). Mais adiante afirma, ainda, que, embora na época tivesse algumas dúvidas, se tal análise podia ser enquadrada em uma análise walrasiana, pois “em Walras, todos os mercados se equilibram, mas no IS-LM (de acordo com Keynes no mercado de trabalho) existe excesso de oferta de trabalho ... Eu penso que se aceita agora que isto não o descaracteriza como modelo walrasiano. No entanto, seria útil considerar o problema em mais detalhes” (idem, p. 142).

Hicks mostra que embora seja possível enquadrar o equilíbrio no mercado de bens, IS, em um esquema walrasiano, há uma inconsistência em generalizar-se esse tratamento para o mercado monetário. Assim, observa que no caso deste mercado, surge uma questão delicada pois “a relação que é expressa através da curva IS é uma relação de fluxos (a qual deve referir-se a um período, tal como o ano), mas a relação expressa na curva LM, é, ou deverá ser, uma relação de estoque, uma relação patrimonial (como Keynes observou corretamente). Ela deve, portanto, se referir a um momento preciso do tempo, não a um período. Ora, como as duas (curvas) podem ser colocadas juntamente? (idem, p. 151)

Consideremos de maneira mais detalhada a natureza do problema enfrentado por Hicks, segundo o seu próprio raciocínio. Inicialmente ele chama atenção para o fato de que o período adequado para o “equilíbrio” no mercado de bens (JS) não pode ser muito curto, ele deve permitir um mínimo de tempo para que os planos de produção possam se ajustar à demanda: “O·período em questão é um período relativamente longo: um ‘ano’ em vez de uma semana ... Assim deveremos supor que os mercados de bens, durante o ‘ano’, estejam em equilíbrio e assim permaneçam” (idem, pp. 147-8).

De outro lado, se toma necessário compatibilizar um equilíbrio instantâneo, ou dado em um momento do tempo, tal como expresso pela função LM (na medida em que esta expressa uma relação de equilíbrio entre oferta e procura de dinheiro como estoques), com um equilíbrio que requer um intervalo mais longo de tempo para se realizar, isto é, no mercado de bens. Tal compatibilização tornaria necessário, no entanto, que admitíssemos um equilíbrio de estoque que durasse “durante todo o período de ajustamento do setor de bens, o que só seria possível se considerássemos que ao longo de tal período ocorresse uma sequência de ‘curtos períodos’ durante os quais se verificassem os equilíbrios de estoque relativos ao mercado monetário”. Ou como diz Hicks “quando consideramos um longo período como uma sequência de ‘curtos’ períodos, o ‘longo’ período pode estar em equilíbrio ao longo do tempo, apenas se os ‘curtos’ períodos dentro dele estão dele estão em equilíbrio ao longo do tempo” (idem, p. 151). Mas “o equilíbrio no tempo implica consistência entre as expectativas e as realizações dentro do período. E apenas as expectativas relativas a um futuro posterior é que seriam arbitrárias (exógenas), como seria de se esperar” (idem, p. 151).

Hicks, no entanto, chama atenção para o caráter problemático desta hipótese pois “a liquidez não faz sentido, a menos que as expectativas sejam incertas” (idem, p. 152). Assim Hicks aponta claramente uma inconsistência, em seu modelo IS-LM, isto é, a sua construção implica que no período de tempo em que o equilíbrio se mantém, não há razão para incerteza, e, portanto, para a preferência pela liquidez.

De outro lado, considerada a existência da incerteza, deve-se admitir que os setores monetários (via preferência pela liquidez) e o setor real (via eficiência marginal do capital) interagem mediante um deslocamento simultâneo das duas funções e, portanto, das funções IS-LM. Assim, por exemplo, em uma depressão, a função preferência pela liquidez tenderia a deslocar-se para cima; de maneira análoga deve-se esperar um deslocamento para baixo de toda a função de eficiência marginal do capital. O oposto podendo ocorrer em uma fase de recuperação ou auge. Assim, dada a interdependência de IS-LM, a utilidade da taxa de juros como um elemento de ajustamento no equilíbrio desaparece, na medida em que esta se torna absolutamente indeterminada.

Finalmente, o próprio Hicks propõe uma alternativa para manter a liquidez em um modelo de equilíbrio ao longo do tempo, mas em relação ao qual reconhece “não ter muita fé (idem, p. 152). Após afirmar que é impossível representar a incerteza em termos de “média e variância, admite a possibilidade de se “supor que as expectativas dos valores esperados das variáveis, que afetam as decisões, cairão dentro de certo intervalo. Isto deixaria espaço para a liquidez, desde que não existam expectativas certas sobre o que vai ocorrer: mas isto também torna possível haver um equilíbrio, no sentido de que o que vai acontecer caia dentro de limite de valores esperados” (idem, p. 152).

A meu ver, no entanto, tal hipótese não se enquadra em uma situação que justifique a existência da liquidez, pois se decisões de compra, por exemplo, são tomadas agora a preços de equilíbrio, poderia haver um mercado de títulos de crédito incorporando tais preços, o que teria permitido que o agente recebesse uma certa remuneração em vez de manter a liquidez até o momento da realização da compra. (Creio que é este o sentido da crítica que Frank Hahn (1965Hahn, F., (1965), “The Problem of Proving the Existence of Equilibrium in a Monetary Economy”, em The Theory of Interest Rates, editado por Hahn e Brechling, McMillan, Londres. , p. 131) faz à ideia de pagamento estocástico de Patinkin, como forma de justificar a liquidez.)

Quando se considera o futuro tendo em vista a utilização de instrumentos de política econômica convencional, a mesma dificuldade torna a aparecer. A aplicação de tais políticas requer que se considere a possibilidade de se passar de uma situação de equilíbrio x, para uma situação de equilíbrio y. A antecipação de equilíbrio y, no entanto, implica que se tenha uma ideia clara do que acontecerá no período intermediário entre x e y, e, portanto, de como se comportarão as funções de liquidez; mas esta possibilidade também depende da eliminação da incerteza e portanto da eliminação da preferência pela liquidez. Assim, como observa ainda Hicks em sua autocrítica: “deve haver sempre um problema de travessia” (entre um equilíbrio e outro). Mas para o estudo da travessia, deve-se recorrer sempre a métodos sequenciais de um tipo ou de outro” (Hicks, 1980Hicks, J., (1980), “IS-LM: An Explanation”, Journal of Post-Keynesian Economics, vol. III, n.º 2. , p. 153).

A incapacidade de perceber este tipo de problema forneceu a keynesianos liberais, como Samuelson e Solow, a ideia da onipotência da política econômica convencional. Para eles, através da utilização competente das políticas monetária e fiscal se poderia canalizar as forças keynesianas da demanda efetiva de Keynes no sentido de “ajustar” uma economia a um comportamento do tipo neoclássico.

Assim da mesma forma que os keynesianos neoclássicos, ao ignorar todas as complicações decorrentes das expectativas dos agentes econômicos, os keynesianos liberais admitiam ser possível calcular a taxa de poupança global das famílias, e através das políticas monetária e fiscal controlar a utilização de tal poupança. Assim, como observou Joan Robinson, “a lei de Say é artificialmente restaurada e as velhas doutrinas voltam a brilhar ... Os keynesianos bastardos torceram o argumento (de Keynes) em uma defesa do laissez-faire, uma vez que a ‘mancha’ da poupança excessiva fosse removida, isto é, pela ‘hábil’ utilização das políticas monetária e fiscal de Samuelson” (citado em Rousseas, 1986Rousseas, S., (1986), Post Keynesian Monetary Economics, M. E. Sharpe Inc., Nova Iorque. , pp. 26-7).

Em resumo, o conjunto de conclusões da chamada literatura keynesiana de orientação neoclássica ou liberal de inspiração hicksiana contribuiu para distorcer a visão de Keynes sobre o funcionamento da economia capitalista, substituindo-a pela análise de uma sociedade mais primitiva, não monetária; como também para trair a filosofia de sua obra, de que o capitalismo deveria ser reformado, tendo em vista a consecução do bem comum e não apenas manipulado para manter a rentabilidade dos capitalistas e os interesses ocultos pela ideologia do laissez-faire. Aliás, a importância que Keynes dava ao problema econômico era apenas instrumental; ele só tinha tal preocupação porque julgava que, resolvido tal problema, os homens poderiam dedicar-se a atividades realmente relevantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Rousseas, S., (1986), Post Keynesian Monetary Economics, M. E. Sharpe Inc., Nova Iorque.
  • Schmitt, B., (1971), L’Analyse Macroeconomique des Revenues. Dulloz, Paris.
  • 1
    Keynes não chegou a tal conclusão porque supôs que os preços fossem rígidos, como acredita certo keynesianismo escolar, mas simplesmente porque o grau de flexibilidade razoável de ser esperado na prática seria tardio e/ou pequeno, e assim determinaria expectativas de posteriores reduções de preços e salários com efeitos perversos sobre o emprego. Este ponto será considerado adiante.
  • 2
    Mediante uma redução da taxa de juros.
  • 3
    Mediante uma redução da taxa de juros.
  • 4
    A nossa tradicional LM.
  • 5
    Pode-se admitir que o sinal da mudança dos preços incorporado em D e (N) é igual ao sinal da diferença entre o gasto efetivo dado por D(N) e a oferta agregada Z(N) (conforme Parrinello, 1980Parrinello, S., (1980), “The Price Level Implicit in Keynes Effective Demand”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. III. , p. 70).
  • 6
    Keynes admitiria, sem dúvida, “expectativas racionais” para o ajustamento de curto prazo, porém objetaria a qualquer tentativa de estender tal análise para endogenizar as expectativas de longo prazo. (Ver, sobre esse ponto, Leijonhufvud, 1983Leijonhufvud, A., (1983), “What Keynes would have thought of rational expectations” em Keynes and Modern World, Editado por D. Worswick e J. Trevitchky, Cambridge University Press. , p. 183 e seguintes.)
  • 7
    Pode-se mostrar, também, a partir da análise do multiplicador, que o volume da produção de bens de investimento é fundamental na determinação do equilíbrio, na medida em que dele depende o nível dos lucros. Assim dado que no ponto de Demanda Efetiva, I = S e como Z = wN + P, sendo P lucros e wN = total de salários; fazendo-se wN = Z; temos que I = s (Z + P); de outro lado como P = (1 - )z, e Z=P1-α, substituindo-se Z, em I = s (Z + P), teremos
    I = s P 1 - α α + P o u P = I / s α 1 - α + 1 .
  • 8
    A distinção entre “multiplicador de equilíbrio” e “multiplicador dinâmico” foi sugerida por V. Chick (Chick, 1983Chick, V., (1983), Macroeconomics after Keynes, Philip Allan, Oxford. , p. 265 e seguintes).
  • 9
    Uma formulação alternativa deste processo é a de Bernard Schmitt (Schmitt, 1971Schmitt, B., (1971), L’Analyse Macroeconomique des Revenues. Dulloz, Paris., p. 305 e segs.), para quem o gasto indutor da formação da renda não é o investimento, mas o próprio processo de assalariamento, tal como determinado pela demanda efetiva. Daí sua formulação um tanto quanto esotérica, mas absolutamente rigorosa, de que o multiplicador dinâmico, na determinação da renda através da Demanda Efetiva, isto é, no ponto E, seria sempre unitário, e dado por Yc+1=1,0. Neste caso, (C + 1) seria o “gasto antecipado e realizado na economia, uma vez que, como mostra ainda a Figura 1, no ponto de demanda efetiva E, as empresas produzirão (em termos monetários) exatamente o que elas antecipam que será demandado.
  • 10
    JEL Classification: B21; E12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1989
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