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Hyman Minsky: uma visão da instabilidade a partir de Keynes

Hyman Minsky: a view of the instability from Keynes

RESUMO

Este artigo apresenta uma síntese do pensamento básico de Hyman Minsky sobre a instabilidade capitalista identificando-o com a Teoria Geral de Keynes. Destaca-se especialmente - enfocando o livro de Minsky John Maynard Keynes (1975) - a importância das relações financeiras no processo de acumulação capitalista como este autor as concebe.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; Minsky

ABSTRACT

This paper presents a synthesis of Hyman Minsky’s basic thought about capitalist instability identifying it with the Keynes’ The General Theory. It stands out especially - focusing the Minsky’s book John Maynard Keynes (1975) - the importance of financial relations on the capitalist accumulation process like this author conceives them.

KEYWORDS:
History of economic thought; Minsky

A obra de Minsky vem recebendo ultimamente, no Brasil, uma atenção especial pelo que oferece de sugestivo e útil para a interpretação da dinâmica capitalista. Com efeito, o agravamento sem precedentes das condições de operação da economia brasileira, com mais nitidez a partir de meados dos anos 70, tem na instabilidade financeira uma das suas expressões mais notáveis. É nesse período que parece ficar claro que a análise da acumulação do capital não pode prescindir da sua dimensão financeira, sem a qual corre-se o risco de perder-se certas manifestações essenciais da economia capitalista moderna.

Procurando centrar o seu· exame nas relações financeiras que são estabelecidas entre as unidades econômicas, e em como aquelas deverão influenciar o sentido e o ritmo da acumulação de riqueza, Minsky constrói um quadro teórico que permite destacar o modo pelo qual uma economia baseada em contratos monetários deverá assumir um comportamento estruturalmente instável e sujeito a ondas de pessimismo e a surtos de excesso de confiança, devido à impossibilidade de eliminar a incerteza que acompanha sempre o cálculo empresarial. Nesse sentido, o seu trabalho segue uma perspectiva estritamente keynesiana, radicalizando as conclusões mais relevantes presentes sobretudo na Teoria Geral e em textos a ela relacionados.1 1 Keynes, J. M., Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro (1936), São Paulo, abril, 1983. Alguns dos artigos referidos serão vistos mais adiante.

O objetivo deste artigo-resenha é o de rastrear as raízes teóricas que filiam a obra de Minsky ao pensamento de Keynes e, num movimento simultâneo, realizar uma síntese de suas teses principais. Assim, nada mais indicado do que concentrar nossas atenções no texto publicado com a intenção explícita de recuperar as que seriam as ideias fundamentais de Keynes,2 2 Minsky, H., John Maynard Keynes, Nova Iorque, Columbia University Press, 1975. ainda que evidentemente existam diversos outros trabalhos em que esta influência é confirmada.3 3 Ver uma síntese de sua obra, levando em conta seus trabalhos principais, em: Lavoie, M., “Loi de Minsky et loi d’Entropie”, in: Économie Appliquée, Geneve, Librarie Droz, 1983, t. XXXVI, n. 2-3, pp. 297-313. Na obra editada em 1975, Minsky esboça as linhas essenciais de sua teoria da instabilidade financeira, com a vantagem de mostrar sempre sua proximidade com a tradição keynesiana. É sobre este livro, portanto, que recairão nossas atenções.

Em primeiro lugar, serão expostas aquelas que seriam as peças fundamentais que compõem o quadro teórico de Minsky: em seguida, serão tratadas as relações mais importantes entre liquidez e os preços de demanda que balizam os novos investimentos em ativos de capital, passo este necessário para que, na terceira seção, seja apresentado o modo pelo qual os diversos elementos atuam no sentido de explicar as condições estruturais que levam à instabilidade financeira no processo de acumulação da riqueza privada.

AS PEÇAS FUNDAMENTAIS

Um dos principais objetivos perseguidos por Keynes, ao longo da formação das ideias que iriam culminar na Teoria Geral, foi o de constituir as bases teóricas para a interpretação do “mundo real” a partir do conceito de uma “economia monetária”.4 4 Ver, p. ex., Keynes, J. M., “The Monetary Theory of Production” (1933), in: The Collected Writings of John Maynard Keynes (Preparation), Londres, Macmillan Press, 1978, p. 408 Esta noção está referida a uma estrutura na qual as decisões dos agentes privados, sem contar com qualquer tipo de coordenação superior, veem-se submetidas inevitavelmente ao desconhecimento dos resultados futuros. Neste contexto, onde predomina uma precária base de informação para o cálculo capitalista, a acumulação da riqueza adquire uma natureza essencialmente instável.5 5 Keynes, J. M. “A Teoria Geral do Emprego” (1937a), in: Szmrecsányi, T. (org.), Keynes, São Paulo, Ática, 1978, pp. 171-2.

O ponto de partida tomado por Minsky resgata, no essencial, o caráter volátil das decisões empresariais e, sobretudo, a importância da presença de contratos nas relações entre os agentes econômicos numa economia monetária.6 6 Ver Keynes, J. M., “Social Consequences of Changes in the Value of Money” (1923), in: The Collected Writings of John Maynard Keynes (Essays in Persuasion), Londres, Macmillan Press, 1972. Com isso, o que se tenta ressaltar são as complexas vinculações que acompanham a atividade de firmas, instituições financeiras e investidores (institucionais e pessoais), que abrangem tanto recebimentos como obrigações contratuais que possuem o fato comum de serem fixados em termos monetários.

Em geral, a acumulação de riqueza implica que as unidades econômicas selecionem uma carteira de ativos (a decisão de portfólio) que deverá adequar-se às expectativas de valorização privada.7 7 Minsky, H., op. cit., p. 70. Uma firma, por exemplo, pode dispor de um horizonte de aplicação que inclua a aquisição de um ativo de capital até a especulação com ativos financeiros e moeda. Desde que a decisão de investimento é tomada, em primeiro lugar seria colocada a questão de saber qual tipo de ativo seria preferido (sendo classificado de acordo com o seu grau de liquidez e/ou quanto às funções e objetivos nos negócios)8 8 Hicks, J. R., Ensayos Críticos sobre Teoria Monetária, 2.” ed., Barcelona, Ariel, 1975, pp. 48-55 e 56-64; e, também, Davidson, P. Money and The Real World, 2.” ed., Londres, Macmillan Press, 1978, pp. 408-9. e, em segundo lugar, de que modo seria financiada a compra, isto é, se através do uso de lucros retidos ou pela contratação de recursos no mercado financeiro. É especialmente este segundo aspecto da decisão de portfólio que resume o que Minsky chama de decisão especulativa fundamental, que se impõe a praticamente todas as unidades econômicas no processo de acumulação da riqueza.9 9 Minsky, H., op. cit., pp. 86-9. Ver, também, o resumo de Davidson, P., op. cit., pp. 410 e 421. A extensão e os prazos da estrutura do passivo, resultantes dos novos investimentos, seriam distintos de acordo com as expectativas das empresas, as quais serão influenciadas pelo grau de incerteza dos fluxos monetários prospectivos, já que as obrigações contratuais terão que ser saldadas periodicamente por esses resultados futuros ou, no caso de uma política agressiva de financiamento, por novos débitos junto ao mercado financeiro.10 10 Idem, ibidem. Dado que as dívidas contratadas exigem um fluxo de pagamentos constante e rígido no tempo (ao contrário dos investimentos em ativos de capital, que possuem retornos incertos), a situação da estrutura do passivo empresarial será decisiva para as expectativas da acumulação de riqueza.

A decisão especulativa fundamental pode ser expressa, como o faz Minsky, através do uso dos conceitos apresentados por Keynes no Capítulo 17 da Teoria Geral, quando estuda, entre outras questões, a decisão de investir em função dos valores monetários previstos dos diversos ativos novos e existentes. Relembrando, tem-se então:

  • (q) rendimento esperado pela operação produtiva de um bem;

  • (c) custos relacionados com o desgaste e/ou despesa de manutenção de um ativo;

  • (l) prêmio esperado pela liquidez do bem.

São estes, segundo Keynes, os “três atributos que os diversos ativos possuem em graus diferentes”,11 11 Keynes, J. M., op. cit. (1936), p. 159. que se expressam em termos de valores esperados e que são peculiares a cada tipo de bem. Conforme seu exemplo, é correto esperar que o bem de capital proporcione um q superior a c e l, enquanto o dinheiro (e ativos financeiros) venha apresentar um l superior a e e q; em suma, há uma escala que vai de bens com poucas possibilidades de negociação imediata por dinheiro, passando por ativos com graus diferenciados de liquidez, até àquele que resume materialmente essa propriedade - o próprio dinheiro.12 12 Idem, pp. 160 e 167. De uma maneira geral, para haver investimento produtivo, o preço de demanda, expresso por q, c e l descontados pela taxa de juros, deverá ser superior ao preço de oferta, dado por q, c e l descontados pela eficiência marginal do capital.

O importante a ressaltar é que estes valores (q, c e l) são definidos pela expectativa de valorização futura dos ativos. O portfólio da firma será orientado de acordo com a conveniência em adquirir determinado bem, em função do que é estimado em termos de rendimento monetário q ou segurança/especulação l.

Ao retomar este tipo de análise, Minsky, por sua vez, amplia o conceito de custo de manutenção (c) incorporando os pagamentos envolvidos com a estrutura do passivo das unidades econômicas.13 13 Minsky, H., op. cit., pp. 85 a 89. Em outras palavras, cada empresa possui um conjunto de ativos que rendem q, l e exigem, muitas vezes, desembolsos financeiros c. Assim, a decisão de investimento é multifacetada, na medida em que sua execução exige que se opte entre o aumento do seu passivo (c) ou a redução de liquidez (l).

Esta forma de apresentar a decisão de investir, ressaltando a seleção de portfólio e a estrutura do passivo, tem a qualidade de introduzir as múltiplas forma de intermediação financeira que acompanham os negócios na economia. Isto quer dizer que se tem em conta não só a firma e os investidores, mas também aquelas unidades empresariais voltadas para as atividades de financiamento, mediação e subscrição - os bancos e demais entidades financeiras.

São estas instituições que são responsáveis pelo adiantamento de recursos às empresas para estas levarem adiante seus programas de expansão, financiar aquisições, fusões, incorporações e o controle de capital. Os bancos distribuem suas aplicações ativas de maneira a selecionar também uma carteira preferencial de inversões, o que empresta uma condicionalidade ao fluxo de investimentos da economia. Esta é a forma pela qual Minsky deverá introduzir a importante influência das “condições de crédito” sobre a decisão de investir,14 14 Keynes, J. H., op. cit. (1936), p. 115 e Keynes, J. M., “The ‘ex-ante’ theory of the rate of interest” (1937b), Economic Journal, dez., 1937, p. 668. ressaltada e apresentada por Keynes através da definição do “risco do tomador” e do “risco do emprestador”.15 15 Keynes, J:. M., op. cit. (1936), p. 106, e Minsky, H., op. cit., pp. 106-13. Além disso, as decisões do sistema bancário exercem uma influência decisiva sobre a oferta monetária, que pode ser determinada endogenamente como resultado de financiamento e aplicações próprias sobre ativos que representem riqueza nova. Neste caso, haverá uma mudança no total dos ativos de capital e na estrutura de débitos na economia.16 16 Moore, B. J., “Monetary Factor”, in: Eichner, A. (org.), A Guide to post Keynesian Economics, Nova Iorque, M. E. Sharpe, 1979, pp. 125-7.

Uma apresentação adequada do ambiente em que se procede a decisão de investir em uma economia capitalista, exige, portanto, que se leve em conta as relações financeiras que marcam esta estrutura. A existência da moeda, antes destinada apenas à troca, é acompanhada por ativos financeiros, contratos entre os agentes, mercados organizados de transação de bens, especulação e incerteza, que influem profundamente na acumulação da riqueza em uma economia monetária.

ESPECULAÇÃO, LIQUIDEZ E PREÇO DO ATIVO CAPITAL

Podemos passar agora ao tratamento dado por Minsky para a relação entre o preço de demanda do ativo de capital e liquidez, o qual retoma, mais uma vez, as ideias expostas na Teoria Geral e nos artigos a ela relacionados. O autor nota inicialmente que Keynes não se deteve na análise das variações dos preços dos ativos de capital, a não ser de forma indireta, através das flutuações na taxa de juros.17 17 Ver Keynes, J. M., op. cit. (1937a), p. 174. Por sua vez, Minsky redefine a equação de preferência pela liquidez, introduzindo explicitamente o preço de demanda daquele ativo:

M = M 1 + M 2 = L 1 Y l + L 2 r , P k

onde Pk é p preço de demanda do ativo de capital e r é a taxa de juros dos empréstimos; L1 é a função de liquidez associada ao nível de renda e L2 é a função de demanda de dinheiro que reflete o motivo especulativo.

Além deste componente, Minsky acrescenta um fator de demanda precaucionária (F) que está ligado a recursos antecipados para futuros pagamentos de contratos, incluindo o “motivo-finance”;18 18 Minsky, H., op. cit., p. 75. e um outro, que opera no sentido inverso na equação, representado pelas disposições em “quase-moeda” (QM) - ativos financeiros com ampla liquidez. Assim, temos no final:

M = M 1 + M 2 + M 3 - M 4 = L 1 Y l + L 2 r , P k + L 3 F - L 4 Q M .

A vantagem principal que servirá aos propósitos de Minsky está nos efeitos decorrentes da demanda de moeda sobre os preços dos ativos de capital. A relevância deste resultado é demonstrada pela ideia de que o Pk, juntamente com a avaliação de liquidez dos ativos, orienta as decisões de investimento produtivo. Antes de prosseguir, portanto, é preciso que se definam melhor as relações que envolvem o preço de demanda do ativo de capital (Pk) e a preferência pela liquidez, para posteriormente introduzir as influências sobre o investimento.

Inicialmente, tem-se que o Pk é deduzido do rendimento prospectivo Q (ou alternativamente q - c + l) e por um fator de capitalização (Ci); assim:

P k = C i Q

Enquanto o preço. de demanda (Pk) for superior ao preço de oferta (PI), haverá incentivo ao investimento, até que ambos se igualem. Por outro lado, há uma contrapartida da decisão de investir, em termos da necessidade de recursos para financiar a expansão, que deverá ser representada pelas obrigações contratuais CC. Estes fluxos de pagamentos monetários, ao serem comparados aos rendimentos operacionais esperados Q, indicarão a oportunidade de aquisição de novos ativos de capital.19 19 Idem, pp. 102-3

Uma forma alternativa de abordar esta decisão capitalista poderia ser expressa nos seguintes termos. Dado um certo Pk, uma outra perspectiva de investimento que surge no horizonte de valorização da unidade econômica são os ativos financeiros, que se caracterizam por gerarem uma receita monetária (CC) temporalmente definida e estável, além de serem, em geral, facilmente negociáveis no mercado;

P l = C l C C

onde Pℓ é o preço do contrato e Cℓ o fator de capitalização dos empréstimos em dinheiro.

O preço Pℓ destes contratos reflete a segurança do fluxo de pagamentos e do resgate no mercado. A opção entre Pk e Pℓ dependerá das expectativas de ganhos e liquidez que envolvem ambos os ativos. No entanto, sendo Q um rendimento incerto e CC um retorno relativamente garantido, a avaliação quanto à carteira de investimentos mais adequada deverá ser influenciada tanto pelo grau de confiança das estimativas sobre as receitas monetárias futuras do novo bem de capital quanto pela avaliação de liquidez dos ativos.

Minsky formaliza este dilema. da decisão capitalista mediante a definição de µ, como o estado de incerteza, o qual deverá condicionar a decisão de portfólio das empresas em geral.20 20 Idem, p. 102. Assim:

C i = μ C l sendo 0 < μ < 1

ou, em outras palavras, os coeficientes de capitalização (Ci, Cℓ) dos preços dos ativos de capital e dos débitos dependem do grau de incerteza (µ) das expectativas que conformam a decisão capitalista. Deste modo, como o estado de incerteza (µ) é flutuante, devido ao desconhecimento irreversível do futuro numa economia monetária, a relação entre Ci e Cℓ deverá variar de acordo com o sentido das mudanças nas opiniões vigentes na economia. Caso, por exemplo, haja uma atenuação no estado de incerteza, µ se elevará - e consequentemente Ci em relação a Cℓ -, refletindo um ambiente mais propício para novas contratações de empréstimos no mercado e, portanto, para aplicação em ativos de capital vis-à-vis os ativos financeiros. Nesta situação, como a propriedade de liquidez do ativo de capital é geralmente reduzida ou nula se comparada com o dinheiro e/ou título, o Pk deverá ser mais elevado relativamente aos preços das outras alternativas de investimento, já que a avaliação de liquidez (declinante neste caso) será mais favorável aos ativos produtivos.21 21 Idem, p. 103.

A ideia keynesiana, que se procura enfatizar, é a de que o espectro de valorização do capital deverá estar condicionado pelos rendimentos prospectivos dos ativos produtivos e pela avaliação de liquidez dos bens em geral, ambas opiniões eminentemente subjetivas por estarem remetidas ao futuro. Por isso mesmo é que estas estimativas estão sujeitas a mudanças “abruptas e violentas”, marcando as reversões e os estados transitórios da economia.

O redimensionamento da estrutura de aplicações e de débitos empresariais, desta forma, deverá ser um dos aspectos mais característicos nas passagens entre as distintas fases de uma economia monetária. Do mesmo modo, uma reestruturação patrimonial em favor de ativos plenamente líquidos e ativos líquidos (moeda e certos débitos respectivamente)22 22 Davidson, P., op. cit., pp. 108-9. refletirá, dentro de uma perspectiva estritamente keynesiana, o agravamento das incertezas quanto às aplicações produtivas, já que os fatores que levam a maiores dúvidas quanto aos rendimentos do bem de capital geralmente são os mesmos que impelem a uma maior procura por liquidez. Este fenômeno pode, alternativamente, ser demonstrado através da equação da demanda de moeda, como, por exemplo, no motivo precaução (L3) associado à demanda para atender a futuros compromissos financeiros (F), que poderia levar a um aumento generalizado da preferência por liquidez, devendo ter consequências sobre o valor de Pk.

As relações feitas acima envolvendo as variações do preço do ativo de capital e a preferência pela liquidez, sugerem ainda o papel que desempenha a oferta monetária (M) na definição do preço Pk:23 23 Minsky, H., op. cit., p. 104.

P k = P k M , Q sendo que d P k d M > 0 , d 2 P k d M 2 < 0 e P k M

Esta função define, portanto, uma relação entre a taxa de juros, moeda e o preço do ativo de capital, supondo um determinado estado de preferência pela liquidez e um certo “grau de incerteza”. Evidentemente, a importância que joga a oferta monetária está subordinada, em última instância, ao grau de preferência pela liquidez.

São estas as linhas básicas de argumentação de Minsky sobre a relação entre preço do ativo de capital e liquidez, apresentadas aqui de um modo sucinto. Por fim, antes de prosseguir, vale registrar uma conclusão do que foi visto e que resume uma das proposições fundamentais da obra keynesiana: a de que Pk tende a ser eminentemente instável, devido a sua dependência quanto a q e a ℓ, que são resultados de opiniões subjetivas e convencionais. 24 24 Como é apontado em Keynes, J. M., op. cit., (1937a), p. 175.

INSTABILIDADE FINANCEIRA E INVESTIMENTO

É com a análise do processo corrente da acumulação de riqueza que as expectativas, a incerteza, a estrutura do passivo e avaliações da liquidez dos ativos irão compor o quadro da instabilidade financeira das economias capitalistas. Reconhecendo que a Teoria Geral não possui uma “visão do ciclo”, Minsky sugere os fundamentos que permitiriam explicar as fases transitórias da economia a partir das relações financeiras e da incerteza que atua sobre o cálculo capitalista, não se aproximando dos lamentáveis “modelos de ciclo autocontidos” que foram tão caros à tradição keynesiana após os anos 30.25 25 Ver Shackle, G. L. S., The Years of High Theory - Invention and Tradition in Economic Thought, 1926-1939, Cambridge University Press, 1968.

O primeiro passo é tomar as noções de “risco do tomador” e “risco do emprestador”, apresentadas brevemente por Keynes na Seção IV do Capítulo 11 da Teoria Geral. Como já vimos, estes são conceitos que permitem introduzir adequadamente o papel da estrutura do passivo numa economia capitalista desenvolvida. Desde que a decisão especulativa fundamental resume-se em

como financiar a aquisição de novo capital, sua efetivação deverá ter em conta os rendimentos monetários futuros/liquidez e, por outro lado, as condições de crédito prevalecentes no mercado. Em conjunto, estes elementos balizarão o comportamento das decisões de investir dos agentes econômicos. A influência exercida pelo sistema bancário vai ser, portanto, ressaltada através das margens de risco definidas pelos emprestadores e tomadores de recursos no mercado.26 26 Minsky, H., op. cit., pp. 109-10.

O que é importante ressaltar nestes dois conceitos de risco é que1 embora sejam definidas em termos de expectativas quanto aos acontecimentos futuros, tais estimativas exercem uma influência real sobre as decisões de investimento das empresas. Senão vejamos. Tendo em conta que estas noções são eminentemente subjetivas, os riscos do tomador e do emprestador tendem a elevar-se com o próprio incremento dos débitos na composição final do financiamento do gasto. Pelo lado do tomador, isso seria decorrente dos crescentes compromissos derivados do aumento do passivo, que tenderiam a envolver uma parcela cada vez maior das receitas monetárias esperadas (e incertas) do novo investimento. No que toca ao emprestador, há a questão de que o simples aumento da relação recursos emprestados/recursos internos de seus clientes aumenta o grau de risco de novas aplicações que ampliem sua exposição; o que tende a levar as instituições financeiras a posições mais. conservadores ..::.. refletindo em maiores taxas de juros, prazos de pagamentos mais reduzidos etc. De acordo com as devidas perspectivas em torno do desempenho das empresas e do estado geral dos negócios, tais riscos, portanto, deverão atuar sobre a decisão de investir. E mais: há uma série de circunstâncias que levam Minsky a associar as flutuações nestas avaliações das margens ao próprio sentido da instabilidade financeira.

No diagrama abaixo, tem-se que os riscos do tomador e do emprestador definem, na interseção, o nível correspondente de investimento a partir das estimativas destas margens. Q representa os lucros esperados (deduzidos os dividendos, juros e demais obrigações contratuais) que a empresa supõe contar para efeito do financiamento de sua inversão, ou seja, os seus fundos internos. Se a previsão é a de que estes fundos retidos sejam insuficientes para a magnitude do investimento que se pretenda realizar, então serão utilizados recursos externos para o financiamento do fluxo adicional que se requer. Esta última decisão, enfim, é a que dependerá dos riscos a que aludimos e que determinará o total do investimento.27 27 Idem, pp. 107-9.

Assim, segundo o diagrama, a curva Q representa os fundos internos esperados, enquanto sua forma indica que um investimento mais elevado requer uma parcela crescente de recursos emprestados. O que é preciso notar é que tanto Pk quanto Q são valores estimados, sendo, deste modo, sujeitos a erros e reavaliações. Além disso, Pk, Q e as margens de risco associados a um patamar de gastos são determinados por um certo estado das expectativas e pelas condições de crédito em um dado momento, como se procura reter com a figura.

Através das noções de risco, Minsky estuda, entre outras coisas, como a preferência pela liquidez tenderá a afetar as decisões de investimento. É importante notar que sua ênfase recai em especial sobre a progressiva deterioração do passivo, o que, no caso da deflagração da crise, chega mesmo a obscurecer o papel autônomo das expectativas na determinação das flutuações econômicas, como poderá ser notado adiante.

O ponto de partida do raciocínio se dá com as avaliações otimistas quanto às margens de risco dos empréstimos - ocasionado, em geral por um aumento inesperado no Ó realizado -, o que significa dizer, em outras palavras, que haveria uma melhora progressiva do estado dos negócios e das condições de crédito, levando ao boom e tendo como contrapartida um aumento das obrigações contratuais CC.28 28 Idem, p. 114.

Esta fase do ciclo caracteriza-se pelo comprometimento maior dos agentes econômicos em posições devedoras, em função de três fatores básicos: aumento da relação recursos externos/internos das firmas; investidores e firmas reduzem suas disposições líquidas e as instituições bancárias e financeiras estendem suas operações ativas numa proporção crescente em relação às suas reservas.29 29 Idem, p. 123. Evidentemente, este quadro exprime uma alteração no portfólio das unidades econômicas. Diante de uma tendência de aumento mais que proporcional de CC em relação a Q, o que deve ocorrer é que uma parcela crescente dos rendimentos operacionais se veja destinada aos pagamentos dos contratos, os quais, na sua maioria, deverão ser de curto prazo. Esta conjuntura, que caracteriza o boom, vem acompanhada de um aumento da demanda de dinheiro, necessário para saldar e refinanciar os passivos. Por um conjunto de possíveis razões - crescimento do preço das matérias-primas, redução dos prazos de pagamento dos débitos, elevação das taxas de juros como reflexo do aumento do “risco do emprestador”, etc. -, as firmas deverão ter aumentadas suas requisições de liquidez.

O primeiro efeito que pode ser esperado com o aumento generalizado da demanda de moeda é que as firmas e outras unidades passem a dispor da liquidez existente e mesmo a negociar ativos a fim de refinanciar seus débitos, o que deverá trazer efeitos sobre o preço dos ativos de capital.30 30 Idem, pp. 124-5. Em segundo lugar, diante das dificuldades de serem reciclados os passivos, há uma tendência de buscar-se a “limpeza” das posições patrimoniais devedoras, por meio do alongamento dos prazos embutidos nos contratos, redução dos compromissos financeiros futuros, etc. A contrapartida deste processo sobre as aplicações das unidades econômicas deverá ser imediata: sobre os bancos é comum haver uma elevação recorrente das margens de risco estimadas para suas operações ativas (piora das condições de crédito); no caso das firmas, diante da mudança dos parâmetros que balizam o “risco do tomador”, há uma tendência de reavaliar-se a oportunidade de aquisição de novos ativos de capital, refletindo uma opinião mais cautelosa quanto ao futuro dos negócios em decorrência dos problemas financeiros.

A partir do momento em que estas atitudes forem disseminadas, será desencadeado um processo de reavaliações das informações que moldam as decisões capitalistas, com um declínio cumulativo do investimento.31 31 Idem, pp. 115-6.

Uma situação deste tipo pode ser vista no diagrama acima. Com um agravamento das condições de refinanciamento dos passivos, tanto os preços dos ativos de capital tendem a declinar como as margens de risco a elevarem-se. O investimento (I1) deverá ajustar-se a um nível que seja adequado às estimativas do risco do tomador, dando lugar a uma reestruturação do passivo da firma (ponto B1). No caso Pk1 (M, Q)l, o preço de demanda (Pk) é superior ao de oferta (PI), sendo, porém, o investimento menor que os rendimentos estimados poderiam financiar, já que a parcela I1 B1 B2 X2 seria destinada ao pagamento de débitos. Além disso, caso os rendimentos Ô. não se concretizem para aquele nível de investimento realizado (11), haverá um redimensionamento cumulativo de Ô., I e das margens de risco estimadas. Por outro lado, se Pk vier a ficar abaixo de PI - situação demonstrada por Pk2 (M, 0)2 -, então o total dos fundos internos esperados Ô. será destinado ao pagamento dos contratos, tendendo o investimento a zero.

O que se tenta demonstrar, em suma, é como o comportamento das firmas em geral e a trajetória da economia serão influenciados pela estrutura dos passivos empresariais.

As finanças capitalistas serão um elemento indispensável ao exame dos determinantes das fases transitórias que marcam uma economia monetária. Desta forma, a passagem da recuperação para o boom é dada pelos resultados favoráveis em termos de fluxos monetários operacionais vis-à-vis as obrigações contratuais, o que estimularia uma política mais agressiva de financiamento das aplicações ativas dos agentes. O resultado mais provável é que, num breve espaço de tempo, o estoque acumulado das dívidas venha a pressionar a demanda de dinheiro para refinanciamento dos passivos. A passagem do boom para a recessão seria dada, primordialmente, pela influência da forte demanda de liquidez, o que torna secundário, de certa forma, o papel das expectativas que foi concebido por Keynes como determinante da reversão.32 32 Keynes, J. M., op. cit. (1936), pp. 218-9. Isto quer dizer, por outro lado, que a crise deverá ser deflagrada como resultado das próprias relações financeiras que são estabelecidas ao longo da retomada e auge da economia. Assim, será desencadeado um processo de reavaliações pessimistas das condições financeiras das unidades econômicas e quanto ao estado dos negócios em geral. Os efeitos serão um ritmo declinante dos investimentos, ampliação da capacidade ociosa, desemprego generalizado, quebra das empresas com passivos insolventes, ou seja, todos os elementos que são peculiares à crise, recessão e depressão na dinâmica das economias capitalistas.

CONCLUSÃO

O exame das condições financeiras que acompanham o desenvolvimento e a lógica da operação das economias capitalistas constitui-se numa importante preocupação de autores como Keynes e Marx, ainda que muitas vezes esta dimensão de suas obras seja relegada a um plano secundário, em favor de uma abordagem que privilegie os “fatores reais”. Por ironia, o “fetichismo do dinheiro” deu lugar à figura autônoma e fantástica das estruturas de produção como se independentes das finanças capitalistas. A obra de Minsky seria uma daquelas que se inserem no esforço de superar esta “dualidade” em favor de uma perspectiva que tenha em conta a natureza inseparável dos fenômenos financeiros e da estrutura produtiva.

A concepção da instabilidade proposta por Minsky privilegia, como vimos, o papel das finanças capitalistas. As bases estruturalmente frágeis em que são definidos os contratos, numa economia monetária, podem ser explicadas pela natureza distinta dos pagamentos envolvendo os passivos empresariais e os rendimentos monetários esperados das unidades econômicas. Assim, em última instância, o ritmo da acumulação privada deverá estar condicionado ao acerto das previsões dos fluxos monetários operacionais das empresas capazes de viabilizarem, com sucesso, uma política de financiamento adequada aos objetivos capitalistas. É fácil ver que, fundada sobre esta condição, uma economia monetária submete-se a um ambiente marcado pela incerteza, já que o tempo não é redutível ao que se conhece a partir do passado ou do presente. Antes de mais nada, o futuro é indecifrável e é sobre este limite que o capital atua na perspectiva da reprodução ampliada, o que lhe dá a natureza especulativa a qual Keynes várias vezes chamou a atenção.

Por fim, é preciso assinalar que a profícua análise da fragilidade das relações financeiras, pode, sob certas condições, ofuscar a importância primária das expectativas e incertezas empresariais - para ficarmos em um campo estritamente keynesiano, o que por si só já se constitui em uma limitação significativa. Neste caso, corre-se o risco de perder-se a multiplicidade histórica dos fatores que podem ser destacados como responsáveis pelas inflexões e estados transitórios do processo econômico capitalista, algo que não ocorre com a ênfase sobre as expectativas conforme a formulação original keynesiana. Não obstante possíveis ressalvas como esta, é certo que o texto analisado de Minsky contém elementos altamente sugestivos, consistindo, sem dúvida, num dos mais ricos desdobramentos da obra de Keynes.

  • 1
    Keynes, J. M., Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro (1936), São Paulo, abril, 1983. Alguns dos artigos referidos serão vistos mais adiante.
  • 2
    Minsky, H., John Maynard Keynes, Nova Iorque, Columbia University Press, 1975.
  • 3
    Ver uma síntese de sua obra, levando em conta seus trabalhos principais, em: Lavoie, M., “Loi de Minsky et loi d’Entropie”, in: Économie Appliquée, Geneve, Librarie Droz, 1983, t. XXXVI, n. 2-3, pp. 297-313.
  • 4
    Ver, p. ex., Keynes, J. M., “The Monetary Theory of Production” (1933), in: The Collected Writings of John Maynard Keynes (Preparation), Londres, Macmillan Press, 1978, p. 408
  • 5
    Keynes, J. M. “A Teoria Geral do Emprego” (1937a), in: Szmrecsányi, T. (org.), Keynes, São Paulo, Ática, 1978, pp. 171-2.
  • 6
    Ver Keynes, J. M., “Social Consequences of Changes in the Value of Money” (1923), in: The Collected Writings of John Maynard Keynes (Essays in Persuasion), Londres, Macmillan Press, 1972.
  • 7
    Minsky, H., op. cit., p. 70.
  • 8
    Hicks, J. R., Ensayos Críticos sobre Teoria Monetária, 2.” ed., Barcelona, Ariel, 1975, pp. 48-55 e 56-64; e, também, Davidson, P. Money and The Real World, 2.” ed., Londres, Macmillan Press, 1978, pp. 408-9.
  • 9
    Minsky, H., op. cit., pp. 86-9. Ver, também, o resumo de Davidson, P., op. cit., pp. 410 e 421.
  • 10
    Idem, ibidem.
  • 11
    Keynes, J. M., op. cit. (1936), p. 159.
  • 12
    Idem, pp. 160 e 167.
  • 13
    Minsky, H., op. cit., pp. 85 a 89.
  • 14
    Keynes, J. H., op. cit. (1936), p. 115 e Keynes, J. M., “The ‘ex-ante’ theory of the rate of interest” (1937b), Economic Journal, dez., 1937, p. 668.
  • 15
    Keynes, J:. M., op. cit. (1936), p. 106, e Minsky, H., op. cit., pp. 106-13.
  • 16
    Moore, B. J., “Monetary Factor”, in: Eichner, A. (org.), A Guide to post Keynesian Economics, Nova Iorque, M. E. Sharpe, 1979, pp. 125-7.
  • 17
    Ver Keynes, J. M., op. cit. (1937a), p. 174.
  • 18
    Minsky, H., op. cit., p. 75.
  • 19
    Idem, pp. 102-3
  • 20
    Idem, p. 102.
  • 21
    Idem, p. 103.
  • 22
    Davidson, P., op. cit., pp. 108-9.
  • 23
    Minsky, H., op. cit., p. 104.
  • 24
    Como é apontado em Keynes, J. M., op. cit., (1937a), p. 175.
  • 25
    Ver Shackle, G. L. S., The Years of High Theory - Invention and Tradition in Economic Thought, 1926-1939, Cambridge University Press, 1968.
  • 26
    Minsky, H., op. cit., pp. 109-10.
  • 27
    Idem, pp. 107-9.
  • 28
    Idem, p. 114.
  • 29
    Idem, p. 123.
  • 30
    Idem, pp. 124-5.
  • 31
    Idem, pp. 115-6.
  • 32
    Keynes, J. M., op. cit. (1936), pp. 218-9.
  • 33
    JEL Classification: B22; E12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1989
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