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Ajustamento das contas públicas na presença de uma dívida elevada: observações sobre o caso brasileiro* * Trabalho concluído em março de 1989. Alguns dados foram atualizados com base em informações divulgadas até julho de 1989. O autor agradece o apoio financeiro do Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento Econômico e Social (ILDES), os comentários de Arno Meyer, Maria Silvia Bastos Marques e Jorge Khalil Misky e o auxílio de Isabelle Petit-Yvelin e Beatriz Helena Assis Mascarenhas de Oliveira na elaboração das estatísticas apresentadas neste trabalho.

The adjustment of public déficit in the presence a high debt: observations about the Brazilian case

RESUMO

Este artigo examina os obstáculos ao ajuste do setor público decorrentes da existência de um alto nível de endividamento do governo na forma de obrigações de curto prazo ou taxas de juros flutuantes. Nesse contexto, os programas de ajuste que dependem exclusivamente de aumentos de impostos e/ou reduções de gastos governamentais não financeiros têm possibilidades limitadas de sucesso. Além de tornar o orçamento altamente vulnerável a aumentos nas taxas de juros externas e internas, o tamanho e a composição da dívida pública brasileira restringem severamente a eficácia das políticas monetária e cambial. O artigo conclui que, nas atuais circunstâncias, um programa de estabilização bem-sucedido teria que envolver ajuste fiscal, tratamento de choque contra a inflação e reestruturação da dívida pública.

PALAVRAS-CHAVE:
Ajuste fiscal; dívida pública; política fiscal

ABSTRACT

This article examines the obstacles to public sector adjustment arising from the existence of a high level of government debt in the form of short-term or floating interest rate obligations. In this context, adjustment programmes that rely exclusively on increases in taxation and/or reductions in non-financial government expenditures have limited possibilities of success. Besides making the budget highly vulnerable to increases in external and internal interest rates, the size and composition of Brazilian public debt severely restrict the effectiveness of monetary and exchange-rate policies. The article concludes that under present circumstances a successful stabilization programme would have to involve fiscal adjustment, a shock treatment against inflation, and a restructuring of government debt.

KEYWORDS:
Fiscal adjustment; public debt; fiscal policy

“Given the history of fiscal regimes in Western as well as in developing nations over the decades after the Second World War, default on existing national debt is much more probable than any retirement or even, perhaps, any move toward budget balance, save that which becomes necessary in a post-default era. As debt-financed public consumption continues, as interest charges mount, and at an increasing rate, the collectivity, in its political embodiment, will come to be increasingly attracted by the prospects of wiping out, at one fell swoop, the major liability item on the governmental balance sheet. The temptation here is relatively higher the larger the share of the debt that is held by foreigners, and the more concentrated the ownership among the citizenry.”

James M. Buchanan1 1 Budgetary Bias in Post-Keynesian Politics: the Erosion and Potential Replacement of Fiscal Norms”, in James M. Buchanan, Charles K. Rowley & Robert D. Tollison (editors), Deficits, Nova York, N.Y., Basil Blackwell, 1987, p. 191.

É fato conhecido que a dificuldade de ajustar as contas públicas cresce com o grau de endividamento acumulado pelo governo. À dívida gerada em períodos anteriores corresponde uma despesa corrente de juros que é função direta da taxa média de juros incidente sobre a dívida e da dimensão do endividamento público. Em condições normais, os pagamentos de juros são geralmente menos controláveis do que os demais itens do orçamento. Com o aumento da dívida pública diminui, portanto, a margem de manobra da política fiscal.

Dadas a carga tributária e a taxa de juros, a parcela da receita fiscal comprometida com o pagamento de juros cresce em proporção ao aumento do grau de endividamento do setor público, medido pela razão dívida pública/PIB. Como a oferta de financiamento para o governo não é perfeitamente elástica, pode-se admitir, além disso, que a própria taxa de juros seja função direta do grau de endividamento. Nesse caso, a carga de juros suportada pelo governo poderia crescer não apenas em função do aumento da dívida pública, mas também como consequência da elevação da taxa de juros associada ao próprio crescimento da dívida.

Enquanto houver a possibilidade de obter financiamento adicional, o governo tem a opção de postergar, ou diluir no tempo, a redução dos gastos não financeiros e a elevação dos impostos. Mas o crescimento contínuo da dívida e do seu serviço costuma provocar, quando ultrapassa certos limites, uma retração das fontes internas e externas de financiamento do setor público. Em consequência, diminui a parcela do serviço da dívida que o governo consegue financiar com novos empréstimos; o resultado deste processo pode ser uma crise inflacionária e/ou a suspensão do pagamento da dívida pública.

No Brasil, o estoque da dívida pública consolidada tem crescido de forma praticamente contínua nos últimos anos. Medida em dólares, a dívida externa e interna do setor público como um todo, incluindo não apenas a administração direta (federal, estadual e municipal) como também as autarquias e as empresas estatais, passou de 67,1 bilhões em dezembro de 1981 para 149,0 bilhões em dezembro de 1988 (tabela 1). Com o crescimento da dívida, cresceram também os encargos financeiros do setor público, de US$ 12,l bilhões em 1983 para US$ 15,6 bilhões em 1988 (tabela 2).

O financiamento de uma carga de juros desta magnitude tem-se revelado progressivamente mais difícil. Com a crise da dívida externa reduziu-se drasticamente o acesso do setor público brasileiro àquela que vinha sendo a sua principal fonte de financiamento desde os anos 70. O colapso do crédito externo, combinado com a inviabilidade prática de reduzir, com a mesma velocidade e na mesma medida, as necessidades globais de financiamento do governo, levou a uma mudança na composição do financiamento público, isto é, a uma rápida e desestabilizadora substituição de crédito externo por fontes internas de financiamento.2 2 Como se verifica na tabela 1, a participação da dívida externa no total da dívida pública aumentou de 55,5% em dez./82 para 64,1 % em dez./83, fato que reflete a maxidesvalorização decretada em fev./83. Contudo, de 1983 em diante a participação do componente externo da dívida pública diminuiu de forma significativa, passando a representar 54,6% do total em dez./88. Este processo reforçou a aceleração inflacionária e conduziu a um acentuado crescimento da dívida interna.

Tabela 1
Dívida líquida do setor público brasileiro, 1981-1988 (Em US$ Milhões)

Tabela 2
Estimativa dos encargos financeiros do setor público brasileiro* 1983-1988 (Em USS milhões)

O estreitamento das fontes não-inflacionárias de financiamento do setor público e os riscos associados a taxas de inflação extremamente elevadas e crescentes colocam o governo diante da necessidade de efetuar um profundo esforço de ajustamento. A necessidade de ajustar as contas públicas fica ainda mais clara quando se considera a sua evolução recente, marcada por forte expansão dos gastos de consumo do governo e redução da carga tributária.

Contudo, como se procurará mostrar neste trabalho, a dimensão da dívida acumulada, as condições em que ela foi contratada, aliadas à impossibilidade de financiar pelas vias normais uma parcela expressiva do seu serviço, tornam remotas as possibilidades de sucesso de um ajustamento de tipo convencional, baseado exclusivamente em algumas combinações de cortes de gastos não financeiros e de elevação das receitas do setor público.

O trabalho está dividido em seis seções. As três primeiras apresentam uma revisão de alguns conceitos básicos com o intuito primordial de identificar os determinantes do superávit primário e do déficit operacional requeridos para estabilizar (ou obter determinada redução) do grau de endividamento do setor público. A quarta seção aplica aos números brasileiros recentes as identidades apresentadas nas seções anteriores, enfatizando a dimensão do ajustamento requerido e a insustentabilidade do quadro que prevaleceu em 1987-88. Nas duas últimas seções discutem-se os inúmeros problemas decorrentes da dimensão e da natureza da dívida pública brasileira e apresentam-se as linhas gerais de uma estratégia de saneamento das finanças governamentais.

O CONCEITO DE DÉFICIT PRIMÁRIO

Para avaliar o problema do ajustamento do déficit fiscal na presença de uma dívida elevada, convém utilizar o conceito de déficit primário. Este último é definido como a diferença entre o déficit total (nominal) e as despesas de juros ou, alternativamente, como a diferença entre os gastos não-financeiros e a receita ou, ainda, como a diferença entre o déficit operacional e os juros reais:

D P = D T - J = G - T (1)

  • onde: DP=déficit primário

  • DT=déficit nominal total

  • J=juros totais

  • G=gastos não-financeiros

  • T=receita pública

Na presença de inflação, a despesa de juros pode ser desdobrada em duas parcelas:

J = C M + J R (2)

  • onde: CM=correção monetária e cambial da dívida pública

  • JR=juros reais (componente real da conta de juros)

Substituindo (2) em (1) e utilizando a definição de déficit operacional, obtém-se:

D P = D T - C M - J R = D O - J R (3)

  • onde: DO=déficit operacional

Se a dívida pública, a taxa de inflação e a taxa de juros real são positivas, a relação entre os déficits nominal, operacional e primário pode ser expressa pelo gráfico 1. Nesse caso, o déficit primário constitui um componente do déficit operacional e este constitui, por sua vez, um componente do déficit nominal.

Grafico 1
Déficit Nominal, Déficit Operacional e Déficit Primário

O conceito de déficit primário permite destacar o efeito da dívida pública sobre o orçamento. Se o governo é um devedor líquido, só haverá equilíbrio orçamentário quando as despesas de juros forem compensadas por um superávit primário equivalente. Por excluir flutuações dos pagamentos de juros, que dependem da evolução da taxa de juros e da dívida acumulada em períodos anteriores, a variação do déficit (ou superávit) primário reflete mais de perto a contribuição corrente da política fiscal ao ajustamento das contas públicas.

DETERMINANTES DO CRESCIMENTO DA DÍVIDA PÚBLICA

Da restrição orçamentária do governo segue que o aumento nominal da dívida corresponde à parcela do déficit nominal não financiada por criação de base monetária:

D - D - 1 = D T - B - B - 1 (4)

  • onde: D=dívida pública (interna e externa)

  • B=base monetária

A despesa de juros pode ser expressa como função da taxa real de juros, da taxa de inflação e do estoque da dívida no período anterior:

J = p . D - 1 + i 1 + p D - 1 (5)

  • onde: p=taxa de inflação

  • i=taxa real de juros

Admitindo-se que as correções monetária e cambial sejam iguais à taxa de inflação, os déficits operacional e nominal podem ser apresentados da seguinte forma:

D O = D P + i 1 + p D - 1 (6)

D T = D O + p . D - 1 (7)

Reordenando os termos e substituindo (7) em (4), obtém-se:

D - 1 + p D - 1 = D O - B - B - 1 (8)

O aumento real da dívida pública corresponde, portanto, à parcela do déficit operacional não financiada por criação de base monetária. Substituindo (6) em (8) e dividindo ambos os lados da equação pelo estoque da dívida, obtém-se:

D - D - 1 1 + p D - 1 1 + p = i - S P + B - B - 1 D - 1 1 + p (9)

  • onde: SP=superávit primário

A taxa de crescimento real da dívida pública é, portanto, função direta da taxa real de juros e da dívida acumulada em períodos anteriores e função inversa do superávit primário e da receita de seignorage.

Mais relevante que a dimensão absoluta da dívida pública é a relação desta com o produto total (ou com a receita pública). Convém assim identificar os fatores dos quais depende a evolução da relação entre a dívida e o produto.

A razão dívida/produto, d, pode ser escrita da seguinte forma:

d = D - D - 1 Y + D - 1 Y (10)

  • onde: Y=Produto Interno Bruto

Substituindo (4), (6) e (7) em (10), obtém-se:

d = G - T Y + i 1 + p D - 1 Y + p . D - 1 Y - B - B - 1 Y + D - 1 Y = i . D - 1 1 + y Y - 1 + p . D - 1 1 + p 1 + y Y - 1 + D - 1 1 + p 1 + y Y - 1 - s (11)

  • onde: s=razão superávit primário/Produto Interno Bruto

  • b=receita de seignorage como proporção do produto

  • y=taxa de crescimento do produto real

Da expressão (11) chega-se então à equação que identifica os determinantes da razão dívida/produto:

d = 1 + i 1 + y . d - 1 - s + b (12)

A razão dívida/produto é, portanto, função direta da dívida acumulada em períodos anteriores e do diferencial entre a taxa de juros e a taxa de crescimento do produto e função inversa do superávit primário e da receita de seignorage.3 3 Observe-se que a equação (12) foi deduzida com base na hipótese de igualdade entre taxa de inflação, desvalorização cambial e correção monetária. Uma taxa de desvalorização cambial ou de correção monetária superior (inferior) à taxa de inflação, medida pelo deflator implícito do produto, tende evidentemente a aumentar (reduzir) a razão dívida/PIB. A equação (12) indica que quando o setor público já está altamente endividado e existe um diferencial expressivo entre a taxa de juros e a taxa de crescimento da economia, a dívida tende a continuar aumentando como proporção do produto. Isto só não ocorre se for possível (e recomendável) gerar substanciais superávits primários e/ou ampliar significativamente a receita de seignorage.

A título de ilustração, admita-se que o setor público esteja pagando uma taxa de juros média de 12% a.a. em termos reais e que o produto real sofra redução de 3% no ano. Suponha-se, também, que a dívida pública represente o equivalente a 50% do produto no período anterior, que o superávit primário seja igual a zero e que a receita de seignorage corresponda a 1% do PIB. Nessas condições, a dívida pública cresceria rapidamente em termos reais e passaria de 50% para 56,7% do PIB em um ano, o que evidentemente tenderia a aumentar a carga de juros e o próprio crescimento da dívida em períodos subsequentes.

SUPERAVIT PRIMÁRIO REQUERIDO PARA ESTABILIZAR A RELAÇÃO D1VIDA/PRODUTO

Se não houver como acelerar o crescimento da economia - e obter uma redução da taxa de juros ou da dívida existente - e se a seignorage for constante ou decrescente como proporção do PIB, a possibilidade de conter o crescimento da dívida e do seu serviço passa a depender do aumento do superávit primário, isto é, da redução dos gastos não financeiros, da elevação da carga tributária ou de uma combinação das duas alternativas.

Em determinadas circunstâncias, a preocupação de limitar as pressões sobre a taxa de juros e a taxa de inflação podem levar o governo a tentar reduzir o crescimento· da dívida pública. Contudo, a redução da taxa de crescimento da dívida não é sempre uma decisão autônoma do governo, mas frequentemente uma imposição decorrente do esgotamento das fontes de financiamento. Com a diminuição da oferta de crédito ao setor público, aumenta automaticamente o superávit primário requerido para fazer face aos encargos financeiros.

Combinando as equações (3) e (8), obtém-se:

S P = J R - D - 1 + p D - 1 - B - B - 1 (13)

O superávit primário corresponde, portanto, à parcela da despesa real de juros não financiada por aumento real da dívida ou por receita de seignorage. Dadas as despesas de juros e a receita de seignorage, o superávit primário requerido é tanto maior quanto menor for o crescimento real da dívida pública. Uma redução da oferta de financiamento que se traduza em redução do crescimento da dívida, ou em aumento da taxa de juros, força o setor público a aumentar o superávit primário, ou seja, a cobrir com recursos próprios uma parte maior das despesas de juros.

Admita-se que o governo decida, ou seja forçado, a estabilizar a dívida como proporção do produto. Para alcançar este objetivo, o governo precisará fixar metas compatíveis para o superávit primário e o déficit operacional.

Reordenando os termos da equação (12) e substituindo d por d-1, obtém-se a expressão que define os determinantes do superávit primário requerido para estabilizar a razão dívida/produto:

s * = i - y 1 + y . d - 1 - b (14)

  • onde: s*=razão superávit primário/PIB requerida para estabilizar a razão dívida/PIB

O superávit primário requerido depende, portanto, da taxa de juros, da taxa de crescimento real, da razão dívida/ produto e da receita de seignorage como proporção do produto. O superávit requerido será tanto maior quanto maior for a taxa média de juros paga pelo governo. Dado um diferencial positivo entre a taxa de juros e a taxa de crescimento do produto, o superávit também é função direta do nível de endividamento acumulado. Por outro lado, aumentos na taxa de crescimento da economia ou na receita de seignorage diminuem o superávit requerido para estabilizar a dívida como proporção do produto.4 4 Alternativamente, o superávit primário requerido pode ser expresso como proporção da receita fiscal. Os determinantes da razão dívida/receita podem ser identificados por uma expressão análoga à equação (12): D T = 1 + i 1 + t . D - 1 T - 1 - S P + B - B - 1 T (12a) onde: t=taxa de crescimento real da receita fiscal. (12a) Reordenando os termos e fazendo D/T igual a D-1/T-1, chega-se à equação que dentifrice os determinantes do superávit primário requerido para manter constante a razão dívida pública/receita fiscal: D T = 1 + i 1 + t . D - 1 T - 1 - S P + B - B - 1 T (14b) Expresso como percentagem da receita fiscal, o superávit primário requerido depende, portanto, da taxa de juros, da taxa de crescimento do produto real, da razão dívida/ produto, da receita de seignorage como proporção do produto, da elasticidade-produto da receita e da carga tributária bruta.

O déficit operacional requerido depende, por sua vez, do superávit primário requerido e da carga de juros como proporção do produto:

d o * = J R Y - s * = i 1 + y . d - 1 - s * (15)

  • onde: do*=razão déficit operacional/PIB requerida para estabilizar a razão dívida/PIB

Substituindo (14) em (15), obtém-se:

d o * = y 1 + y . d - 1 + b (16)

O nível de déficit operacional compatível com a estabilidade da razão dívida/produto depende, portanto, da taxa de crescimento, do nível de endividamento e da receita de seignorage.

O AJUSTAMENTO DAS CONTAS PÚBLICAS NO BRASIL

O conjunto de identidades apresentado facilita o esclarecimento de alguns aspectos do atual processo de ajustamento das contas públicas no Brasil. A situação financeira do setor público brasileiro retrata com perfeição o quanto é difícil ajustar as contas governamentais na presença de uma dívida pública elevada e contraída em condições desfavoráveis de custo e/ou prazo.

Como já foi indicado, a dívida líquida do setor público (interna e externa) alcançou cerca de US$ 150 bilhões (tabela 1). A despesa com juros em 1988 foi estimada em US$ 15,6 bilhões (tabela 2). A taxa de juros real média, definida como a relação entre a despesa de juros e o estoque da dívida, situou-se, portanto, em torno de 10%.

As crescentes dificuldades de financiar, interna e externamente, pagamentos de juros desta ordem de magnitude vêm levando o setor público a buscar formas de reduzir o crescimento da dívida e dos seus encargos. Nas condições que vêm prevalecendo, isto implica forte aumento do superávit primário. Voltemos à equação (12). Admita-se, em primeiro lugar, que não exista a possibilidade de reduzir o diferencial entre a taxa de juros e a taxa de crescimento do produto, nem de cancelar uma parte do estoque da dívida. Admita-se também que a ampliação do estoque da base monetária esbarre nas limitações impostas, por um lado, pelo efeito da aceleração inflacionária sobre a demanda real por moeda primária e, por outro, pela necessidade de manter a inflação sob controle.

Neste contexto, a redução do crescimento real da dívida requer a geração de um expressivo superávit primário. Para estabilizar a razão dívida/produto, teria sido necessário aumentar substancialmente o superávit primário em 1988. Nos termos da equação (14) isto decorreria, em primeiro lugar, do elevado diferencial entre a taxa de juros (cerca de 10%) e a taxa de crescimento da economia (em torno de 0% em 1988). Além disso, a dívida acumulada representa cerca de 50% do PIB e a receita de seignorage é pequena como proporção do produto (1,5%).5 5 A receita de seignorage foi estimada em 1,5% do PIB para taxas mensais de inflação na faixa de 5% a 25%. Ver Maria Sílvia Bastos Marques e Sérgio Ribeiro da Costa Werlang, “Moratória Interna, Dívida Pública e Juros Reais”, Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional/IBRE/FGV, mimeo, out./88, pp. 8-13. Nestas circunstâncias, o superávit primário requerido para estabilizar a razão dívida/PIB alcança 3,5% do PIB.

Em 1987, o déficit operacional do setor público não financeiro foi de 5,5% do PIB, segundo dados do Banco Central.6 6 Banco Central do Brasil, Brasil: Programa Econômico, vol. 17, jun./88, p. 97. Como os juros externos e internos representaram naquele ano cerca de 4% do PIB, o déficit primário foi de aproximadamente 1,5% do PIB. A estabilização da relação dívida/PIB em 1988 pressuporia, portanto, um ajustamento nas contas primárias equivalente a nada menos que 5% do PIB em apenas um ano. Se todo esse ajustamento fosse feito pelo lado da receita fiscal, seria necessário produzir, em um ano, um aumento de 22% na receita real do governo; se todo o ajustamento fosse feito pelo lado dos gastos correntes não financeiros, a redução teria de ser da ordem de 24% em termos reais.7 7 Segundo estimativa do Banco Central, a carga tributária bruta foi de 22,6% em 1987. As despesas correntes não financeiras (incluindo pessoal e outras despesas de consumo, despesas de assistência e previdência social e subsídios) corresponderam a 20,6% do PIB. Estimativas do Departamento Econômico do Banco Central do Brasil, em 2.8.88.

Um ajustamento desta dimensão seria difícil em qualquer circunstância. Nas condições que prevaleceram na economia brasileira em 1987-88, período em que a estagnação do nível de atividade e a aceleração inflacionária tiveram efeito negativo sobre as receitas do setor público, o esforço de ajustamento associado à geração do superávit primário requerido torna-se evidentemente ainda maior do que sugerem os cálculos apresentados no parágrafo anterior.8 8 Observe-se, além disso, que o déficit operacional não corresponde necessariamente à totalidade das necessidades líquidas de financiamento do setor público. Em determinadas circunstâncias, estas necessidades podem aumentar em função de uma expansão do crédito líquido ao setor privado e/ou do impacto monetário de operações do setor externo. Nesse caso, os problemas de financiamento do setor público poderiam ser maiores do que sugerem estimativas baseadas exclusivamente em dados referentes ao déficit operacional.

A matriz da tabela 3 apresenta o superávit primário e o déficit operacional requerido para diferentes combinações de taxas de juros e de crescimento do PIB. Nas condições atuais, a estabilização da dívida como proporção do produto exigiria um superávit primário de 3,5% e um déficit operacional de 1,5% do PIB. Supondo que a taxa média de juros suba, por exemplo, para 15% (como consequência de um novo choque de juros externos e/ou de uma elevação expressiva das taxas de juros internas) e que, além disso, a taxa de crescimento do produto se reduza para -3% (o que corresponderia a uma recessão de dimensão equivalente às de 1981 e 1983), o superávit primário requerido chegaria a quase 8% do PIB e seria preciso zerar o déficit operacional (tabela 3). Dado que os superávits primário e operacional observados (assim como a receita de seignorage) estão na razão direta da taxa de crescimento da economia, uma redução desta última torna o esforço de ajustamento ainda maior do que sugerem os dados reproduzidos na matriz da tabela 3.

Inversamente, uma elevação da taxa de crescimento do produto para 7%, por exemplo, reduziria o superávit primário requerido de 7,8% para 2,2% do PIB. Se, além disso, fosse possível reestruturar a dívida externa de forma abrangente, incorporando à taxa de juros os descontos praticados no mercado secundário em fins de 1988 (cerca de 60% do valor de face), a taxa média de juros paga pelo setor público cairia para cerca de 7%. Nesse caso, a estabilização da dívida pública seria compatível com um déficit primário de 1,5% do PIB e um déficit operacional de quase 5% do PIB (tabela 3).9 9 Recorde-se que a matriz da tabela 3 foi construída com base na hipótese de que a retração da oferta de financiamento forçaria o governo a tentar estabilizar a razão dívida/produto. No caso de uma retração mais pronunciada da oferta de financiamento, que forçasse o governo a buscar uma redução da razão dívida/produto, o superávit primário requerido seria evidentemente ainda maior. Nesse caso, caberia reescrever as equações (14) e (16) da seguinte forma: s * * = 1 + i - a 1 + y 1 + y . d - 1 - b (14a) d o * * = a 1 + y - 1 1 + y . d - 1 + b (16a) onde: s**=razão superávit primário/PIB requerida para que d=ad_1 a=coeficiente que estabelece a redução requerida na razão dívida/PIB (<1) do**=razão déficit operacional/PIB requerida para que d=ad-1 Combinando as equações (14), (14a), (16) e (16a) obtém-se: s * * - s * = d o * - d o * * = 1 - a d – 1 (17) Se fosse necessário, por exemplo, reduzir a razão dívida/produto de 50% para 45%, a razão superávit primário requerido/PIB aumentaria 5 pontos percentuais e a razão déficit operacional requerido/PIB diminuiria 5 pontos percentuais. Dada uma taxa de juros de 10% e estagnação do nível de atividade, o superávit primário requerido aumentaria para 8.5% do PIB e seria preciso gerar um superâvit operacional de 3,5% do PIB.

Tabela 3
Taxa de juros, taxa de crescimento do produto, superávit primário e déficit operacional (Em %)

A tabela 4 apresenta os resultados de uma segunda simulação construída com base nas identidades apresentadas anteriormente. O seu ponto de partida é a situação observada em 1987-88. Procurou-se projetar o que ocorreria nos próximos cinco anos na hipótese de que a taxa de juros, a taxa de crescimento do PIB, o déficit primário e a carga tributária se mantivessem em níveis próximos à média do período 1987-88. Admitiu-se ainda que a receita de seignorage represente o equivalente a 1,5 % do PIB e que a desvalorização cambial e a correção monetária acompanhem a taxa de inflação.

Tabela 4
Dívida pública, déficit operacional e superãvit primãrio requerido, 1989-1993 (Em %)

Como o superávit primário observado é, por hipótese, sempre inferior ao superávit primário requerido, a simulação gera crescimento contínuo da dívida pública como proporção do produto. Em consequência, aumentam a carga de juros e o déficit operacional. Cresce também o superávit primário requerido e, portanto, o ajustamento requerido para estabilizar a razão dívida/produto.

Com as hipóteses adotadas na simulação, a razão dívida/PIB alcança 76% em 1993. Dadas a carga tributária e a taxa de juros, a despesa de juros aumenta para quase 30% da receita fiscal e mais de 6% do PIB em 1993. O superávit primário requerido, sendo função direta do grau de endividamento, aumenta também de forma contínua, alcançando quase 5% do PIB em 1993 (tabela 4).10 10 Os resultados da simulação são evidentemente muito sensíveis a alterações nas hipóteses utilizadas. Admitindo-se, por exemplo, uma taxa de juros de 14% e uma taxa de crescimento do produto negativa em 1% a.a., no final do período a razão dívida/produto chega a 101%, a despesa de juros a 12,5% do PIB e o superávit primário requerido a quase 12% do PIB. Inversamente, uma redução da taxa de juros para, por exemplo, 7%, acompanhada de uma elevação da taxa de crescimento para 6% a.a., transforma o quadro por completo. Mantidas as demais hipóteses, a razão dívida/PIB se mantém estável em torno de 50%; a despesa de juros se reduz para 3,4% do PIB e o superávit primário requerido para -1% do PIB em 1993.

Em suma, a extrapolação do quadro observado em 1987-88 mostra que a sua continuação é inviável. Note-se que a simulação foi construída com base na suposição de que a taxa de juros paga pelo governo independe do grau de endividamento acumulado. Se a taxa de juros interna for função direta da relação dívida/PIB, o contínuo crescimento desta última tenderia a elevar o custo médio da dívida, apressando o colapso financeiro do governo.

PROBLEMAS DECORRENTES DA DIMENSÃO E NATUREZA DA DÍVIDA DO SETOR PÚBLICO BRASILEIRO

Os problemas orçamentários brasileiros decorrem em grande medida da existência de uma elevada dívida pública, de origem externa e interna, contraída em condições desfavoráveis de prazo ou custo. O caso brasileiro ilustra de forma clara a antiga proposição de que adiar o ajustamento tende a torná-lo cada vez mais difícil. Isto porque postergar medidas de ajustamento implica a persistência de déficits, o que gera aumento da dívida pública e, em consequência, realimenta via conta de juros os déficits em períodos subsequentes, tornando o ajustamento requerido progressivamente maior.

A presença de uma dívida pública elevada e contratada em condições problemáticas limita as opções da política econômica, criando uma série de dificuldades específicas, algumas das quais já foram examinadas em seções anteriores deste trabalho. Neste contexto caberia destacar: a) a vulnerabilidade do orçamento a aumentos nas taxas de juros interna e externa; e b) a redução da margem de manobra das políticas monetária, cambial e fiscal.

Como vimos, quando a dívida é elevada, o comportamento do déficit e o crescimento da própria dívida passam a depender crucialmente das taxas de juros internas e externas. Esta vulnerabilidade financeira decorre não apenas da dimensão da dívida líquida acumulada pelo setor público, que corresponde a cerca de 50% do PIB e 230% da receita fiscal (federal, estadual e municipal), mas também da natureza específica das obrigações contraídas. A dívida externa consiste quase inteiramente de empréstimos a taxas de juros flutuantes, reajustadas geralmente a cada seis meses; a dívida interna se compõe de títulos indexados e de curto prazo. Isto significa que uma elevação das taxas de juros hoje aumenta não só o custo da dívida nova, como também, e em prazo relativamente curto, o custo da maior parte da dívida já existente.

Nessas condições, um aumento das taxas de juros, no Brasil ou no Exterior, pode ser suficiente para neutralizar o efeito de um significativo esforço de ajustamento do orçamento primário. Como o componente externo da dívida líquida do setor público responde por 55% do total, um acréscimo de 3,6 pontos percentuais nas taxas de juros internacionais é suficiente para provocar aumento de 1% na razão déficit operacional/PIB; o déficit aumenta na mesma medida quando a taxa de juros interna sobe 4,4 pontos percentuais.

Além de tornar o orçamento mais vulnerável a aumentos nas taxas de juros, a existência de uma dívida elevada e de curto prazo exclui, ou torna menos recomendáveis, opções de política econômica que poderiam ser contempladas em outras circunstâncias. Nesse caso se enquadra, por exemplo, a tentativa de utilizar a política monetária como principal instrumento de controle da liquidez e de combate à inflação.11 11 Este foi, sem dúvida, um dos equívocos fundamentais do programa de estabilização iniciado em meados de janeiro de 1989. De fevereiro a abril, o governo foi levado a pagar juros reais extremamente elevados sobre papéis de liquidez quase imediata, ocasionando elevação do componente financeiro do déficit público, sem produzir resultados duradouros em termos de redução da inflação. Um choque monetário com acentuada elevação das taxas de juros internas, tem efeito fortemente negativo sobre a situação financeira do setor público, uma vez que a dívida interna é não só elevada, como também de curto ou curtíssimo prazo. Neste contexto, o recurso a uma elevação da taxa de juros só é admissível como medida emergencial e de caráter meramente temporário.

A dívida externa pública, por sua vez, restringe o raio de manobra da política cambial. Como as exportações líquidas do setor público não são significativas, o efeito de uma desvalorização real do câmbio sobre o serviço da elevada dívida externa pública não é compensado por um impacto líquido positivo no orçamento primário. Desvalorizações reais da taxa de câmbio, não acompanhadas por redução compensatória dos subsídios e incentivos à exportação e à substituição de importações, aumentam portanto as necessidades de financiamento do setor público e o esforço de ajustamento requerido.12 12 Jeffrey Sachs. “Trade and Exchange Rate Policies in Growth-Oriented Adjustment Programs”, National Bureau of Economic Research, Working Papers, n. 2.226, abril 1987, pp. 20-3, mimeo. Em suma, a dimensão e a natureza da dívida do setor público atuam no sentido de restringir as possibilidades de utilização das políticas monetária e cambial, reduzindo a eficácia de programas de ajustamento centrados na elevação da taxa de juros e da taxa de câmbio.

Mesmo com políticas essencialmente passivas nas áreas monetária e cambial, a extensão dos desequilíbrios acumulados torna de duvidosa viabilidade uma estratégia de ajustamento apoiada exclusiva ou preponderantemente em uma combinação de aumento da receita pública e de cortes de despesas não financeiras. A análise e os dados apresentados na quarta seção deste trabalho indicam que, na impossibilidade de reduzir ou financiar uma parte expressiva dos pagamentos de juros, o grau de ajustamento fiscal requerido seria de difícil implementação na prática.

Como o superávit primário é função direta da taxa de crescimento econômico, os efeitos recessivos do ajuste fiscal tenderiam a tornar a sua execução ainda mais problemática. Isto não apenas por causa da repercussão negativa de um menor nível de atividade sobre as receitas reais do setor público, mas também porque a recessão tenderia a provocar ampliação das exportações e redução das importações, aumentando assim as necessidades internas de financiamento do Banco Central.

À análise desenvolvida na quarta seção, caberia acrescentar uma dificuldade adicional, não captada pelos conceitos e dados anteriormente apresentados. Durante a década de 80, ocorreu forte redução dos investimentos do governo (em suas três esferas) e das empresas estatais. Em vários setores, esta redução vem impedindo não apenas a indispensável ampliação do estoque de capital público, como até mesmo a sua reposição e manutenção. O resultado é o surgimento de pontos de estrangulamento cada vez mais sérios em diversas áreas da economia brasileira, o que contribui para a redução do investimento do setor privado.

Uma política de ajustamento que estivesse voltada não somente para a estabilização das contas públicas e da inflação, mas também para a criação das condições de uma retomada sustentável do crescimento econômico, teria que abrir espaço para um aumento das despesas de investimento do setor público. Vale dizer, qualquer esforço de ampliar o superávit primário pelo lado dos gastos teria que se basear exclusivamente em cortes de gastos correntes não financeiros. A necessidade de recuperar o nível de investimento público constitui, portanto, mais um fator de diminuição do raio de manobra de políticas de ajustamento de tipo convencional.

Taxas de inflação elevadas e com tendência à aceleração, que são em última análise consequências dos agudos problemas de financiamento do governo, constituem outro motivo de agravamento da situação financeira do setor público. Em primeiro lugar, porque, dadas as defasagens de recolhimento dos impostos, a aceleração inflacionária tende a corroer a receita tributária em termos reais e, portanto, a reduzir o superávit primário.13 13 Vito Tanzi. “Inflation, Lags in Collection, and the Real Value of Tax Revenue”, in lnternational Monetary Fund Staff Papers, vol. 24, março 1977, pp. 154-67. Em segundo, porque provoca também diminuição da demanda real por base monetária, o que tende a restringir as possibilidades de financiamento não-inflacionário via emissão primária de moeda. Em terceiro, porque taxas de inflação mais altas elevam as despesas decorrentes da correção monetária e cambial da dívida pública, não só em termos absolutos, mas também como proporção do PIB e da receita fiscal.14 14 Admitindo-se que as correções monetária e cambial sejam iguais à taxa de inflação, a relação entre as despesas de correção monetária (e cambial) e o PIB pode ser escrita da seguinte forma: C M y = p . D - 1 1 + p 1 + y Y 1 = p 1 + p . d - 1 1 + y (18) A razão correção monetária/PIB é portanto função inversa da taxa de crescimento real do PIB e função direta do grau de endividamento e da taxa de inflação. Como o refinanciamento deste componente do serviço da dívida não está automaticamente garantido, o seu crescimento pode contribuir para agravar o desequilíbrio financeiro do setor público.15 15 Vito Tanzi, Mario I. Blejer and Mario O. Teijeiro, “The Effects of Inflation on the Measurement of Fiscal Deficits”, in Measurement of Fiscal lmpact: Methodological lssues, International Monetary Fund, Occasional Paper, n. 59, Washington, D.C., junho 1988, pp. 4-18.

POLÍTICA FISCAL, INFLAÇÃO E DÍVIDA EXTERNA

A profundidade dos problemas de financiamento do setor público brasileiro sugere que a sua solução passa necessariamente por ação simultânea em várias frentes. Medidas de ajustamento do orçamento primário, embora indiscutivelmente necessárias, não serão suficientes para resolver a crise financeira que vem experimentando o setor público nos últimos anos - como mostra, aliás, a experiência de 1988. Parece indispensável combiná-las com pelo menos dois outros tipos de iniciativa: a) um tratamento de choque sobre a inflação; e b) uma significativa redução dos pagamentos de juros da dívida pública.

Uma redução abrupta da taxa de inflação, obtida por meio de um congelamento geral de preços e/ou por medidas drásticas de desindexação, traria alívio imediato para as finanças públicas. Nesse sentido, a experiência de 1986, em que pese equívocos que possam ter sido cometidos na execução das políticas monetária e fiscal, é bastante ilustrativa. A rápida diminuição da inflação auxilia as finanças públicas de diversas maneiras. Dadas as defasagens no recolhimento dos impostos, a receita tributária aumenta significativamente em termos reais. Além disso, cresce a demanda real por base monetária, alargando as possibilidades de financiamento não-inflacionário por meio da criação de moeda primária. Finalmente, a queda da inflação reduz as despesas de correção monetária e cambial da dívida pública, em termos absolutos e como percentagem do produto e da receita tributária.

Mais fundamentais seriam as medidas relacionadas à reestruturação da dívida pública. Reestruturar a dívida significa buscar uma revisão das condições de pagamento de alguns componentes da dívida interna e, sobretudo, a redução ou o refinanciamento do serviço da dívida externa do setor público. No que se refere às obrigações externas, torna-se cada vez mais evidente a necessidade e a viabilidade de se negociar uma solução abrangente, que resulte em redução expressiva do estoque da dívida e/ou das taxas de juros, e contribua assim para o reequilíbrio financeiro do setor público. A experiência de 1987 mostra, contudo, que isso depende não apenas de firmeza na condução das negociações com os credores estrangeiros, mas também da capacidade de combinar iniciativas na área externa com a implementação simultânea de um programa rigoroso de combate à inflação e de redução do componente interno do desequilíbrio financeiro do setor público.

  • *
    Trabalho concluído em março de 1989. Alguns dados foram atualizados com base em informações divulgadas até julho de 1989. O autor agradece o apoio financeiro do Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento Econômico e Social (ILDES), os comentários de Arno Meyer, Maria Silvia Bastos Marques e Jorge Khalil Misky e o auxílio de Isabelle Petit-Yvelin e Beatriz Helena Assis Mascarenhas de Oliveira na elaboração das estatísticas apresentadas neste trabalho.
  • 1
    Budgetary Bias in Post-Keynesian Politics: the Erosion and Potential Replacement of Fiscal Norms”, in James M. Buchanan, Charles K. Rowley & Robert D. Tollison (editors), Deficits, Nova York, N.Y., Basil Blackwell, 1987, p. 191.
  • 2
    Como se verifica na tabela 1, a participação da dívida externa no total da dívida pública aumentou de 55,5% em dez./82 para 64,1 % em dez./83, fato que reflete a maxidesvalorização decretada em fev./83. Contudo, de 1983 em diante a participação do componente externo da dívida pública diminuiu de forma significativa, passando a representar 54,6% do total em dez./88.
  • 3
    Observe-se que a equação (12) foi deduzida com base na hipótese de igualdade entre taxa de inflação, desvalorização cambial e correção monetária. Uma taxa de desvalorização cambial ou de correção monetária superior (inferior) à taxa de inflação, medida pelo deflator implícito do produto, tende evidentemente a aumentar (reduzir) a razão dívida/PIB.
  • 4
    Alternativamente, o superávit primário requerido pode ser expresso como proporção da receita fiscal. Os determinantes da razão dívida/receita podem ser identificados por uma expressão análoga à equação (12):
    D T = 1 + i 1 + t . D - 1 T - 1 - S P + B - B - 1 T (12a)
    onde: t=taxa de crescimento real da receita fiscal. (12a) Reordenando os termos e fazendo D/T igual a D-1/T-1, chega-se à equação que dentifrice os determinantes do superávit primário requerido para manter constante a razão dívida pública/receita fiscal:
    D T = 1 + i 1 + t . D - 1 T - 1 - S P + B - B - 1 T (14b)
    Expresso como percentagem da receita fiscal, o superávit primário requerido depende, portanto, da taxa de juros, da taxa de crescimento do produto real, da razão dívida/ produto, da receita de seignorage como proporção do produto, da elasticidade-produto da receita e da carga tributária bruta.
  • 5
    A receita de seignorage foi estimada em 1,5% do PIB para taxas mensais de inflação na faixa de 5% a 25%. Ver Maria Sílvia Bastos Marques e Sérgio Ribeiro da Costa Werlang, “Moratória Interna, Dívida Pública e Juros Reais”, Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional/IBRE/FGV, mimeo, out./88, pp. 8-13.
  • 6
    Banco Central do Brasil, Brasil: Programa Econômico, vol. 17, jun./88, p. 97.
  • 7
    Segundo estimativa do Banco Central, a carga tributária bruta foi de 22,6% em 1987. As despesas correntes não financeiras (incluindo pessoal e outras despesas de consumo, despesas de assistência e previdência social e subsídios) corresponderam a 20,6% do PIB. Estimativas do Departamento Econômico do Banco Central do Brasil, em 2.8.88.
  • 8
    Observe-se, além disso, que o déficit operacional não corresponde necessariamente à totalidade das necessidades líquidas de financiamento do setor público. Em determinadas circunstâncias, estas necessidades podem aumentar em função de uma expansão do crédito líquido ao setor privado e/ou do impacto monetário de operações do setor externo. Nesse caso, os problemas de financiamento do setor público poderiam ser maiores do que sugerem estimativas baseadas exclusivamente em dados referentes ao déficit operacional.
  • 9
    Recorde-se que a matriz da tabela 3 foi construída com base na hipótese de que a retração da oferta de financiamento forçaria o governo a tentar estabilizar a razão dívida/produto. No caso de uma retração mais pronunciada da oferta de financiamento, que forçasse o governo a buscar uma redução da razão dívida/produto, o superávit primário requerido seria evidentemente ainda maior. Nesse caso, caberia reescrever as equações (14) e (16) da seguinte forma:
    s * * = 1 + i - a 1 + y 1 + y . d - 1 - b (14a)
    d o * * = a 1 + y - 1 1 + y . d - 1 + b (16a)
    onde: s**=razão superávit primário/PIB requerida para que d=ad_1 a=coeficiente que estabelece a redução requerida na razão dívida/PIB (<1) do**=razão déficit operacional/PIB requerida para que d=ad-1 Combinando as equações (14), (14a), (16) e (16a) obtém-se:
    s * * - s * = d o * - d o * * = 1 - a d 1 (17)
    Se fosse necessário, por exemplo, reduzir a razão dívida/produto de 50% para 45%, a razão superávit primário requerido/PIB aumentaria 5 pontos percentuais e a razão déficit operacional requerido/PIB diminuiria 5 pontos percentuais. Dada uma taxa de juros de 10% e estagnação do nível de atividade, o superávit primário requerido aumentaria para 8.5% do PIB e seria preciso gerar um superâvit operacional de 3,5% do PIB.
  • 10
    Os resultados da simulação são evidentemente muito sensíveis a alterações nas hipóteses utilizadas. Admitindo-se, por exemplo, uma taxa de juros de 14% e uma taxa de crescimento do produto negativa em 1% a.a., no final do período a razão dívida/produto chega a 101%, a despesa de juros a 12,5% do PIB e o superávit primário requerido a quase 12% do PIB. Inversamente, uma redução da taxa de juros para, por exemplo, 7%, acompanhada de uma elevação da taxa de crescimento para 6% a.a., transforma o quadro por completo. Mantidas as demais hipóteses, a razão dívida/PIB se mantém estável em torno de 50%; a despesa de juros se reduz para 3,4% do PIB e o superávit primário requerido para -1% do PIB em 1993.
  • 11
    Este foi, sem dúvida, um dos equívocos fundamentais do programa de estabilização iniciado em meados de janeiro de 1989. De fevereiro a abril, o governo foi levado a pagar juros reais extremamente elevados sobre papéis de liquidez quase imediata, ocasionando elevação do componente financeiro do déficit público, sem produzir resultados duradouros em termos de redução da inflação.
  • 12
    Jeffrey Sachs. “Trade and Exchange Rate Policies in Growth-Oriented Adjustment Programs”, National Bureau of Economic Research, Working Papers, n. 2.226, abril 1987, pp. 20-3, mimeo.
  • 13
    Vito Tanzi. “Inflation, Lags in Collection, and the Real Value of Tax Revenue”, in lnternational Monetary Fund Staff Papers, vol. 24, março 1977, pp. 154-67.
  • 14
    Admitindo-se que as correções monetária e cambial sejam iguais à taxa de inflação, a relação entre as despesas de correção monetária (e cambial) e o PIB pode ser escrita da seguinte forma:
    C M y = p . D - 1 1 + p 1 + y Y 1 = p 1 + p . d - 1 1 + y (18)
    A razão correção monetária/PIB é portanto função inversa da taxa de crescimento real do PIB e função direta do grau de endividamento e da taxa de inflação.
  • 15
    Vito Tanzi, Mario I. Blejer and Mario O. Teijeiro, “The Effects of Inflation on the Measurement of Fiscal Deficits”, in Measurement of Fiscal lmpact: Methodological lssues, International Monetary Fund, Occasional Paper, n. 59, Washington, D.C., junho 1988, pp. 4-18.
  • 17
    JEL Classification: H63; E62.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1989
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