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Conflito social e políticas populistas na América Latina* * Agradeço as observações de Felipe Larrain e Luiz Carlos Bresser-Pereira. Agradeço também a Rodrigo Vergara pelo seu competente auxílio à pesquisa. Este trabalho integra o programa de pesquisa do National Bureau of Economic Research sobre Estudos Internacionais. Quaisquer opiniões aqui expressas são do autor e não do NBER. Traduzido por Fernando Arruda Sampaio.

Social conflict and populist policies in Latin America

RESUMO

A hipótese central deste artigo é que a alta desigualdade de renda na América Latina contribui para intensas pressões políticas para que as políticas macroeconômicas aumentem a renda dos grupos de renda mais baixa, o que, por sua vez, contribui para más escolhas de políticas e fraco desempenho econômico. O documento analisa em detalhes um tipo comum de falha política: o ciclo populista de políticas. Este tipo específico de formulação de políticas latino-americanas, caracterizado por políticas macroeconômicas excessivamente expansionistas que levam a alta inflação e graves crises de balanço de pagamentos, tem sido repetido com tanta frequência, e com características tão comuns, que revela claramente as ligações do conflito social com a economia pobre desempenho.

PALAVRAS-CHAVE:
Eonomia política; distribuição de renda; inflação; desigualdade

ABSTRACT

The central hypothesis of this paper is that high income inequality in Latin America contributes to intense political pressures for macroeconomic policies to raise the incomes of lower income groups, which in turn contributes to bad policy choices and weak economic performance. The paper looks in detail at one common type of policy failure: the populist policy cycle. This particular type of Latin American policymaking, characterized by overly expansionary macroeconomic policies which lead to high inflation and severe balance of payments crises, has been repeated so often, and with such common characteristics, that it plainly reveals the linkages from social conflict to poor economic performance.

KEYWORDS:
Political economy; income distribution; inflation; inequality

INTRODUÇÃO

Um dos grandes temas de pesquisa de Ezio Tarantelli foi o papel do conflito social como um considerável obstáculo à boa performance econômica. Ele apontou que as diversas economias industriais têm mecanismos de resolução de conflitos sociais marcadamente distintos, particularmente no que concerne às instituições de regulação da distribuição de renda entre o trabalho e o capital. Estas diferenças, conforme indicou Tarantelli, poderiam ajudar a explicar por que as diversas economias europeias tiveram graus variados de sucesso em seu ajustamento aos choques adversos da década de 1970.

Tarantelli foi um dos primeiros a indicar que as instituições neocorporativistas da Europa Setentrional proporcionaram um modo particularmente bem-sucedido de moderar o conflito social, o que permitiu que as economias da região absorvessem os choques dos anos 70 sem que houvesse uma elevação significativa do desemprego. Os insights de Tarantelli têm sido corroborados por diversos estudos posteriores, incluindo os realizados por mim e Bruno (1985Bruno, M. e J. Sachs. (1985) Economics of Worldwide Stagflation. Cambridge, Harvard University Press . ), por McCallum (1983McCallum, J. (1983) “Inflation and Social Consensus in the Seventies “, Economic Journal. ), por Calmfors e Driffill (1988Calmfors, L. e J. Driffill. (1988) “Bargaining Structure, Corporatism and Macroeconomic Performance”, Economic Policy, n. 6, abril. ) e outros.1 1 Como mencionado em Bruno e Sachs (1985, p. 222), “o trabalho de Tarantelli foi um grande estímulo para nossa própria investigação a respeito deste assunto”. Tive contato pela primeira vez com a pesquisa de Tarantelli através de um paper inédito sobre “A Economia do Neocorporativismo”, 1981, o qual era uma versão preliminar do ·capítulo inicial de Tarantelli (1986).

Este artigo trata das economias latino-americanas, que em sua maioria mostram-se continuamente incapazes de moderar o conflito social, ao contrário do que ocorre nas economias corporativistas da Europa Setentrional. Nos Estados de bem-estar corporativistas, a militância sindical é pequena e existe um amplo consenso acerca da distribuição de renda e do papel redistributivo do setor público. Já na América Latina, o conflito econômico acirrado é um dos fenômenos centrais da vida econômica. Na Argentina, por exemplo, acaba de ocorrer a décima segunda greve geral desde a posse de Raúl Alfonsín na presidência; assim como várias daquelas que a precederam, esta última greve geral marcou-se por ampla mobilização, profundo rancor político e violência. A elaboração de política econômica na América Latina permanece um campo de batalha em que se defrontam distintos interesses de classe, setoriais, regionais e étnicos. Não é por acaso que um dos estudos mais conceituados a respeito da Argentina se intitula “A Elaboração de Política Econômica numa Sociedade Conflituosa”.2 2 R. D. Mallon e J. V. Sourrouille. Economic Policymaking in a Conflict Society: the Argentine Case. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1975. Este título poderia aplicar-se igualmente bem a praticamente toda a América Latina.

Devido à proeminência das questões distributivas na América Latina, os principais economistas latino-americanos há muito especializaram-se em dissecar as implicações distributivas das políticas macroeconômicas e, muitas vezes, fizeram dessa análise da distribuição a pedra angular de sua teorização. São exemplos disso a célebre análise de Carlos F. Díaz-Alejandro a respeito da “desvalorização contracionista”, baseada na ideia de que a desvalorização cambial reduz os salários reais e, portanto, transfere renda dos trabalhadores, cuja propensão a poupar é baixa, aos proprietários de terra, cuja propensão a poupar é elevada; o notável ensaio de Albert Hirschman sobre as bases políticas da estratégia de substituição de importações; e a altamente influente “teoria da dependência”, de Cardoso e outros.

O acirramento dos conflitos de classes e setoriais na América Latina quase com certeza reflete as extremas desigualdades de renda existentes na região. Como mostra a primeira coluna da Tabela 1, as desigualdades de renda na América Latina tendem a ser muito superiores às de outras regiões do mundo.3 3 Isto permanece verdadeiro após levar em consideração as discrepâncias de renda per capita. Veja Berg e Sachs (1988), tabela 3. A diferença em relação ao Leste Asiático é particularmente marcante, pois esta região possui um grau de desigualdade de renda atipicamente reduzido em comparação com as demais regiões em desenvolvimento. Conforme discutiremos a seguir, pode-se observar também que os países com elevada desigualdade de renda estiveram especialmente propensos a sofrer uma crise de endividamento na década de 1980 (o que é indicado pela necessidade de reprogramar os pagamentos da dívida externa).

Tabela 1:
Distribuição de Renda e Reprogramação da Dívida Externa Países de Renda Média

Tabela 1-A:
Distribuição de Renda e Reprogramação da Dívida Externa Países de Renda Média

Muitos dos males econômicos da América Latina parecem ter origem nos conflitos intensos criados pela extrema desigualdade de renda, assim como os êxitos econômicos do Leste Asiático parecem ligados à estabilidade social propiciada pela maior igualdade de renda. Na América Latina” desvalorizações cambiais necessárias frequentemente são adiadas devido a seu impacto adverso sobre os salários reais vis-à-vis a renda dos proprietários de terra e dos exportadores de bens primários. As políticas comerciais mantêm-se excessivamente voltadas para o mercado interno, em muitos países da região, em parte devido à suposição de que políticas voltadas para o mercado externo reduzem os salários urbanos em favor dos lucros dos exportadores, dentre os quais há ricos proprietários de terra e produtores de bens primários. · A austeridade fiscal muitas vezes é rejeitada,· mesmo em contextos altamente inflacionários, por conta do temor de que provocará ampla perturbação social. Realistas ou não, estas preocupações fundamentam em boa medida a ampla oposição existente na América Latina às receitas “ortodoxas” de ajustamento a desequilíbrios macroeconômicos.

Este artigo examina com algum detalhe um tipo comum de fracasso de política econômica na América Latina: o ciclo de política econômica populista. Carlos F. Díaz-Alejandro forneceu um relato brilhante e sucinto do populismo econômico num ensaio de 1981Díaz-Alejandro, C. F. (1981) “Southern Cone Stabilization Programs”, in W. R. Cline and S. Weintraub (eds.), Economic Stabilization in Developing Countries, Washington, D.C., The Brookings Institution. sobre “Planos de Estabilização Latino-Americanos”, cujas conclusões são bastante próximas às deste artigo. Este tipo particular de gestão econômica latino-americana - caracterizado por políticas macroeconômicas excessivamente expansionistas que conduzem a inflação elevada e graves crises de balanço de pagamentos - tem sido repetido tantas vezes, e com tantas características comuns, que acaba por revelar claramente a vinculação do conflito social com o fraco desempenho econômico.4 4 O termo “populismo” tem vários significados, tanto na esfera econômica quanto na política. Não estou preocupado, neste artigo, com o conceito de populismo em suas várias acepções políticas, mas somente com o populismo na gestão macroeconômica. Evidentemente, como já explicado, um aspecto crucial para o entendimento do populismo econômico é o próprio entendimento da base política e dos objetivos políticos dos líderes populistas. O populismo econômico ajuda a explicar o fato de que, em 1987, havia nada menos do que cinco países latino-americanos (Argentina, Brasil, México, Nicarágua e Peru) com taxas de inflação anual bem acima de cem pontos percentuais, enquanto no resto do mundo não havia um único caso de inflação de três dígitos.5 5 Os países eram Argentina, com inflação de 372.0% para 1988 sobre 1987; Brasil, 816.1%; Nicarágua, 7778.4%; e Peru, 1307.1%. Dados provenientes da CEPAL (1988), tabela 5, pág. 21. Os dados equivalem de novembro a novembro, com exceção da Nicarágua, para a qual equivalem de setembro a setembro. O México atingia a inflação de três dígitos em dezembro de 1987 sobre dezembro de 1986, de 159.2%, mas essa taxa declinou para 70.5% para novembro de 1988 sobre novembro de 1987. Evidentemente, fatores externos também têm importante contribuição para a presente crise da América Latina6 6 A inflação elevada e a instabilidade interna decorrem em boa medida do ônus representado pela dívida externa. As razões para este elevado endividamento são complexas, abarcando tanto fatores internos (inclusive políticas populistas, o objeto deste trabalho) quanto choques externos. Os fatores externos incluem: taxas de juros internacionais extraordinariamente elevadas por toda a década de 1980; a súbita interrupção da concessão de créditos no início da década; o colapso dos preços das commodities no mercado internacional, que reduziu os termos de troca de muitos países latino-americanos a níveis equivalentes ou inferiores aos vigentes na Grande Depressão dos anos 30; e uma estratégia de administração da dívida, implementada pelos governos dos países credores desde o início dos anos 80, que corroeu o apoio político às reformas econômicas necessárias na América Latina. A administração do ônus da dívida tem sido particularmente difícil em vários países latino-americanos devido ao fato de grande proporção da dívida ter sido contraída nos anos 70 por regimes militares impopulares, tendo sido herdada, nos anos 80, por governos democráticos frágeis. .

Este artigo é altamente crítico em relação à abordagem populista e oferece substancial evidência histórica de que experimentos populistas tendem a resultar em desastres econômicos e políticos. Mas não se deve tomar este artigo como uma condenação aos objetivos dos líderes populistas (isto é, reduzir a enorme desigualdade de renda existente em seus países), mas sim às estratégias macroeconômicas implementadas para alcançar tais objetivos. Também não se trata de um endosso às formas extremas de “ortodoxia” que muitas vezes sucedem o colapso de um experimento populista (por exemplo, no Chile, sob Pinochet após a queda de Allende em 1973). As oscilações do populismo à ortodoxia extrema são a melhor prova do fracasso das sociedades latino-americanas em encontrar um consenso básico, um meio-termo, em termos políticos, sociais e econômicos:

Ressalte-se, por fim, que o populismo econômico (ao menos no sentido em que o termo é empregado neste estudo) tem sido adotado por governos dos mais diversos matizes políticos - da esquerda à direita. Governos de conflito social, daí à política econômica e, por fim, à performance econômicas populistas do mesmo estilo das utilizadas por governos de esquerda (como no Chile, na presidência de Allende). Também governos “revolucionários”, como o sandinista na Nicarágua, muitas vezes adotam táticas macroeconômicas próximas à tradição populista.

II. A ADMINISTRAÇÃO POPULISTA DE POLÍTICA ECONÔMICA NA AMÉRICA LATINA

A hipótese central deste artigo é que a elevada desigualdade de renda na América Latina alimenta o conflito econômico, o qual contribui para opções equivocadas de política econômica, as quais, por sua vez, conduzem a um desempenho econômico fraco. A cadeia de causação que vai da desigualdade ao conflito social, daí à política econômica e, por fim, à performance econômica é, evidentemente, muito complexa e variável entre diversos pontos do tempo e países. É, também, difícil de ser provada. Antes de abordar diretamente as políticas populistas, vale a pena examinar algumas evidências circunstanciais.

Em um artigo recente, Andrew Berg e eu (1988Berg, A. e J. Sachs. (1988) “The Debt Crisis: Structural Explanations of Country Performance”, NBER Working Paper N.° 2607, junho, e Journal of Development Economics. ) procuramos as características estruturais dos países em desenvolvimento de renda média que ajudassem a explicar por que certos países sucumbiram a crises de endividamento nos anos 80 e outros não. No artigo, desenvolvemos um modelo estatístico envolvendo vários países para a reprogramação da dívida. O modelo vinculava a probabilidade de um país reprogramar sua dívida nos anos 80 a várias características estruturais do país, dentre as quais o grau de desigualdade de renda (conforme este é medido na Tabela 1).

Nossa descoberta mais notável foi a de que a probabilidade de os países com elevada desigualdade de renda reprogramarem suas dívidas é, ceteris paribus, significativamente superior à dos países com baixa desigualdade de renda.7 7 Outras variáveis que ajudaram a explicar o padrão interpaíses de reescalonamento da dívida foram: (1) o tipo de política comercial (as economias mais voltadas para fora apresentaram menor probabilidade de reescalonar); (2) o peso da agricultura na economia (os países com grande participação da agricultura no PNB tiveram menor probabilidade de reescalonar); e (3) a renda per capita (a probabilidade de reescalonar foi menor para os países mais ricos).

Atribuímos a correlação ·entre elevada desigualdade de renda e renegociação da dívida à natureza da política dos governos em economias com desigualdades extremas de renda. Berg e eu listamos vários fatores que podem tornar os países com tal característica estrutural propensos a um excessivo endividamento externo. Sugerimos, entre outros fatores, que a grande desigualdade de renda:

  • aumenta a pressão por políticas fiscais redistributivas excessivamente expansionistas;

  • reforça o poder da elite econômica de resistir a um aumento da tributação necessário para equilibrar o orçamento;

  • contribui para uma militância sindical ativa, desestabilizadora;

  • diminui o apoio político a medidas de estímulo às exportações, que tendem, no curto prazo, a ameaçar os salários reais dos trabalhadores urbanos.

É também provável que o conflito social agudo, originado na elevada desigualdade de renda, contribua, em muitos países, para a fragilidade das instituições políticas e as constantes mudanças de governo. Ademais, governos com a expectativa de serem logo substituídos, e que representam segmentos sociais específicos, podem considerar atraente maximizar a renda corrente dos segmentos que representam à custa do poder de compra futuro do país (por exemplo, esgotando as reservas internacionais), Alesina e Tabellini (1987) demonstraram este ponto dentro de um arcabouço teórico formal.

A crise da dívida externa dos anos 80 é apenas o mais recente episódio em que os países latino-americanos demonstraram uma tendência especial a apresentar elevados déficits orçamentários que produzem inflações. elevadas e crises de balanço de pagamentos. Se enumerássemos todos os casos do mundo, entre as décadas de 50 e de 70, em que um país atingiu uma taxa de inflação anual superior a 50 pontos percentuais, mais da metade dos casos listados se situariam na América Latina.

Há vários episódios bem-definidos na América Latina em que um governo elevou rápida e significativamente os déficits orçamentários visando a vários objetivos redistributivos e macroeconômicos. Chamo estes casos extremos de episódios “populistas”. Em todos estes casos, os governos argumentam explicitamente que as políticas são necessárias para corrigir desigualdades gritantes na distribuição de renda. Grande parte da atratividade de tais políticas (a despeito de elas, em geral, não alcançarem seus objetivos, a não ser durante um curto período) está relacionada aos fatores acima apontados: elevadas pressões por redistribuição de renda; curta duração dos governos; incapacidade de tributar as elites para cobrir os gastos sociais etc.

Muitas das economias latino-americanas têm também outra característica estrutural que acentua a tentação populista. Há nestes países uma divisão nítida entre um setor de bens não-comerciáveis trabalho-intensivo e um setor exportador capital-intensivo, o que faz com que expansões monetárias e fiscais sejam capazes de elevar fortemente os salários reais dos trabalhadores urbanos no curto prazo, à custa dos ricos proprietários de recursos primários. Diante da batalha distributiva profunda em curso entre estes grupos, políticas expansionistas são particularmente atraentes, no curto prazo, para governos com base de sustentação nos trabalhadores urbanos.

Antes de voltarmos para o modelo macroeconômico que nos permitirá compreender o populismo econômico, vale a pena assinalar algumas raízes históricas dessas políticas. Segundo a descrição de um grande número de estudos no campo da ciência política e da história econômica, a política na América Latina foi objeto de enormes transformações nos anos 20 e 30 devido ao surgimento de um amplo processo de urbanização.8 8 Para uma excelente série de artigos sobre política e história do populismo da América Latina, ver o volume editado por Conniff (1982). Depois de uma longa história de um sistema político elitista baseado no domínio da classe de senhores de terra, uma nova onda de líderes políticos de bases urbanas emergiu, com apoio em um esquema multiclassista que inclui o proletariado urbano, os funcionários de um setor público em crescimento e a população urbana marginalizada (ou seja, o setor informal). Em termos políticos, “populismo” compreende esses movimentos urbanos multiclassistas, que, ao menos inicialmente, foram conduzidos por um líder carismático, que chegou ao poder com o apoio do proletariado urbano recentemente dotado de direitos políticos. Conforme foi sublinhado por Drake (1982), os líderes dos novos movimentos populistas chegaram ao poder prometendo o “imediato atendimento das necessidades psíquicas e materiais da sociedade” (p. 218).

Conforme resumiram Conniff (1982) e Drake ( 1982), os primeiros movimentos populistas, na Argentina com Juan Perón e no Brasil com Getúlio Vargas, compartilharam muitas características básicas, entre as quais: caráter urbano; base multiclassista; acesso ao poder através de competição eleitoral baseado na extensão do direito de voto à população urbana trabalhadora; liderança carismática; e a concentração da atenção no ativismo estatal para incorporar os trabalhadores “em um processo de industrialização acelerada através de medidas redistributivas da renda” (Drake, 1982, p. 218).

Vale notar que esses líderes populistas e seus sucessores geralmente apoiaram-se mais em políticas distributivas do que em políticas redistributivistas, ou seja, eles buscaram formas de aumentar as rendas da base da pirâmide de distribuição de renda sem recorrer à taxação explícita ou ao confisco da propriedade das classes altas. Em certos casos, esse esquecimento da taxação das rendas mais altas foi o resultado do temperamento do líder populista e de seus seguidores; em outros, isto resultou do simples fato de que o líder populista não dispunha do poder político para implementar e exigir novas formas de tributação progressiva.

Um quadro macroeconômico para populismo econômico

Examinemos o seguinte modelo macroeconômico, descrito em maior detalhe em Sachs (1988). Suponhamos que, como é típico na América Latina, a economia possui dois setores: um setor exportador de bens primários e um setor de serviços e manufaturados não-comerciáveis (no qual muitos produtores sobrevivem graças a barreiras protecionistas). O setor de não-comerciáveis é altamente trabalho-intensivo em comparação com o setor exportador. O setor de não-comerciáveis depende· significativamente, também, de insumos intermediários importados. No setor exportador, há um fator de produção fixo importante (por exemplo, terra, nos pampas argentinos), cuja propriedade é altamente concentrada nas mãos de famílias ricas. Presume-se que o setor exportador também utiliza alguns dos bens ou serviços não-comerciáveis (por exemplo, transportes) em seu processo de produção.

Suponhamos taxas de câmbio fixas no curto prazo e controles sobre os fluxos de capitais ao Exterior. A taxa de câmbio é fixada pelo Banco Central enquanto houver reservas de divisas disponíveis para esse fim. Esgotando-se as reservas, a taxa de câmbio sofre uma desvalorização abrupta e passa-se a operar com taxas flutuantes. Enquanto a taxa de câmbio nominal permanece fixa, o preço em moeda nacional das commodities exportadas, bem como o preço dos insumos importados pelo setor de não-comerciáveis, também permanecem fixos, sob a hipótese de paridade de poder de compra e dada a cotação internacional desses bens. Quando a taxa de câmbio se desvaloriza, em termos reais, após a perda de reservas e uma crise de balanço de pagamentos, os preços internos dos bens comerciáveis elevam-se proporcionalmente. Consideremos, agora, uma expansão monetária (para simplificar, suponhamos que a expansão da moeda é realizada de modo sustentado para financiar um nível mais elevado de transferências reais do governo ou de subsídios ao setor privado). Dado o controle dos fluxos de capital, a expansão monetária eleva os saldos monetários reais, reduz as taxas de juros internas e expande a demanda. Como a taxa de câmbio é fixa, o preço interno dos bens importados e exportados permanece inalterado. A expansão da demanda interna eleva a demanda por bens não-comerciáveis, o que por sua vez conduz a um incremento da demanda por trabalho por parte do setor de não-comerciáveis. A maior demanda por trabalho eleva o salário nominal. Custos salariais mais elevados, por sua vez, pressionam os preços dos bens não-comerciáveis.

É razoável supor que o salário nominal tenderá a elevar-se mais do que proporcionalmente ao aumento dos preços dos bens não-comerciáveis, uma vez que estes preços se baseiam num mark-up sobre custos salariais e custos dos insumos importados e os preços destes últimos não se elevaram. O salário nominal cresce, portanto, em comparação com os preços dos bens não-comerciáveis, das importações e das exportações. Podemos então concluir com segurança que a expansão conduz a uma elevação do poder de compra dos salários, definido como a razão entre salários nominais e preços dos bens de consumo.9 9 No modelo desenvolvido no apêndice, supõe-se que o consumo se restringe a bens não-comerciáveis. Toda a produção de bens exportáveis é efetivamente exportada, enquanto todas as importações são utilizadas como insumos intermediários na produção de bens não-comerciáveis. As suposições específicas acerca da cesta de consumo devem, evidentemente, variar de acordo com o país. Na Argentina, os bens primários exportados (principalmente grãos e carne) são também bens de consumo; no Chile, a exportação primária tradicional (cobre) não é bem de consumo. Quanto às importações, a participação dos bens intermediários e dos bens de capital é majoritária. Devido à tradição de substituição de importações, a entrada de bens de consumo é em geral altamente restringida. Em outras palavras, os salários reais sobem à medida em que a taxa de câmbio real se valoriza (definindo-se a taxa de câmbio real como a razão entre os preços dos bens comerciáveis e os preços dos não-comerciáveis; uma valorização da taxa de câmbio real significa uma queda do preço relativo dos bens comerciáveis).

Vários outros fenômenos acompanham a valorização da taxa de câmbio real. Os preços dos bens exportáveis diminuirão em relação aos preços dos não-comerciáveis. Na medida em que o setor exportador utiliza bens não-comerciáveis como insumos, a valorização real do câmbio levará a uma diminuição das margens de lucro no setor exportador e a um declínio da produção do setor. Este declínio das exportações será acompanhado por um aumento da demanda por insumos importados para a produção de bens não-comerciáveis, conduzindo a um déficit na balança comercial. Ressalte-se que, em alguns países (especialmente no caso da Argentina, que exporta alimentos), os bens exportáveis são também itens de consumo importantes e este pode ser outro fator de elevação real do padrão de vida dos trabalhadores urbanos, num contexto de valorização real do câmbio (isto é, os salários elevam-se não apenas em relação aos bens não-comerciáveis, mas também em relação aos bens exportáveis consumidos internamente).

Se a história terminasse neste ponto (como a maioria dos líderes populistas deseja crer!), a expansão teria um final feliz. Os salários reais e a produção de não-comerciáveis elevar-se-iam. Aumentando a oferta interna de trabalho, em resposta aos salários reais mais elevados, então o emprego também cresceria. Os lucros do setor exportador diminuiriam, mas, como a propriedade de recursos no setor exportador é altamente concentrada nas mãos de segmentos de renda elevada, as consequências políticas dessa diminuição seriam pequenas, ou até mesmo favoráveis, para um governo apoiado pelos assalariados urbanos. O problema, contudo, está no déficit comercial que acompanha a expansão. Ele terá de ser financiado por uma perda de reservas (ou por um endividamento externo crescente, caso os credores estejam dispostos a conceder novos empréstimos). Finalmente, chegará o ponto em que as reservas ou a capacidade de endividamento se esgotarão.

A expansão poderá sustentar-se, portanto, somente até o advento de uma crise de balanço de pagamentos, decorrente do esgotamento das reservas e da capacidade de endividamento necessários para bancar a manutenção da taxa de câmbio em um nível fixo. Neste momento, a taxa de câmbio nominal sofre uma queda acentuada, gerando uma desvalorização real que reduz os salários reais, restaura a rentabilidade das exportações e contrai a demanda interna ao reduzir o nível dos saldos monetários reais, gerando um aperto de crédito. Os ganhos salariais reais da fase de expansão são eliminados. A desvalorização cambial real deve ser suficiente para conduzir imediatamente a um equilíbrio na balança comercial, pois não há disponibilidade de créditos externos para financiar déficits comerciais. Sob hipóteses realistas, a desvalorização real do câmbio deve ser superior à valorização inicial, pois na fase de expansão a economia perdeu os rendimentos decorrentes da aplicação financeira de seu estoque inicial de divisas (agora esgotado) e, provavelmente, perdeu também capacidade de produção no setor exportador, em decorrência da descapitalização do mesmo. Por extensão, a queda do salário real na fase de refluxo deve ser, quase certamente, superior à sua elevação inicial.

Se a expansão do gasto público, que detonou todo o processo, não for revertida por ocasião da crise de balanço de pagamentos, a economia terá uma política monetária expansionista num regime de taxa de câmbio flutuante. Disso resultará uma elevação contínua da inflação. Com efeito, após o colapso da taxa de câmbio e a passagem ao regime de taxa de câmbio flutuante, o déficit fiscal passa a ser financiado pelo imposto inflacionário, e não mais através da queima de reservas, como ocorria quando a taxa de câmbio era fixa.

Deve-se ressaltar que, na fase descendente do ciclo, os governos populistas tendem a recorrer a artifícios visando a impedir a reversão dos ganhos iniciais. Ao invés de permitir uma forte desvalorização cambial, por exemplo, quando as reservas se esgotam, eles podem implementar controles de câmbio para racionar as divisas. Isto eleva o ágio das moedas fortes no mercado paralelo de divisas, o que tende a aumentar os preços internos das importações (pagas, na margem, com dólares provenientes do mercado paralelo) vis-à-vis as exportações (cujas receitas são convertidas pelo Banco Central pela taxa de câmbio oficial). O resultado, no curto prazo, é uma acentuação do viés anti-exportações e o incentivo ao subfaturamento das exportações e ao contrabando. Essas distorções acabam por induzir uma desvalorização da taxa de câmbio oficial e a reunificação da taxa de câmbio para transações em conta corrente. Os governos quase sempre flertam também com controles de preços e de salários na etapa final do ciclo populista, buscando (sem êxito) evitar a queda abrupta dos salários reais. Assim como o controle de câmbio, o controle de preços simplesmente conduz à proliferação de mercados negros, à cobrança de ágios e ao desabastecimento: ao cabo, as distorções tornam-se insuportáveis e os controles são eliminados. Os governos chegam a apelar, por vezes, a medidas extremas como a estatização dos bancos, conforme ocorreu no México.

Destaque-se que é o ambiente de conflitos sociais não-resolvidos o que estimula este tipo de ciclo de política econômica populista. Na realidade, sempre há críticos da expansão excessiva, que com razão advertem que os benefícios dessa política provavelmente serão efêmeros devido à restrição colocada pelo balanço de pagamentos. A pressão política premente por elevações de salários reais parece ser o fator que impele as autoridades econômicas a adotar uma estratégia sob outros pontos de vista arriscada, no mínimo imprudente. A política expansionista é atraente apenas quando os interesses do setor de não-comerciáveis são dominantes, no plano político, vis-à-vis os interesses do setor de comerciáveis, e quando inexiste uma norma social básica que regule a distribuição da renda entre esses dois setores. Em outras palavras, tem de haver um conflito distributivo relativamente agudo entre os dois setores para que essa política seja atraente; e os partidários do setor de não-comerciáveis têm de estar controlando o governo.

Países com um setor exportador diversificado ou com um setor de grande peso político, que compita com importações (isto é, que não esteja plenamente protegido por· barreiras comerciais), tendem a ter segmentos políticos ferozmente contrários à valorização real do câmbio. O setor agrícola de muitos países do Leste Asiático, por exemplo, baseia-se em milhões de pequenos proprietários, cujo número absoluto lhes garante, por si, grande peso político. Conforme sugerido em Sachs (1985Sachs, J. (1985) “External Debt and Macroeconomic Performance in Latin America and East Asia”, Brookings Papers on Economic Activity, vol. 2, pp. 523-573. ), esta diferença em relação à América Latina, onde se considera que o setor agrícola está nas mãos de uma “oligarquia” rural, pode explicar a maior oposição política à sobrevalorização cambial no Leste Asiático e a maior resistência a medidas populistas em geral.

Episódios históricos de populismo econômico na América Latina

O ciclo populista na América Latina já foi repetido várias vezes, sempre com consequências desastrosas. Nesta seção desenvolveremos a ideia de que os mecanismos de expansão e colapso nos vários episódios populistas têm sido tão semelhantes que é cabível formular uma descrição única para eles. Para demonstrar este ponto, enfocaremos quatro episódios históricos: (1) Argentina, 1946-1949, sob Juan Perón; (2) Chile, 1971-1973, sob Salvador Allende; (3) Brasil, 1985-1988, sob José Sarney; e (4) Peru, 1985-1988, sob Alan García. Há muitos outros casos que poderiam ter sido incluídos, como Bolívia, 1982-85, sob Hermán Siles Suazo; Brasil, 1962-64, sob João Goulart; Chile, 1952-55, sob Carlos Ibáñez; México, 1979-82, sob López Portillo; e Nicarágua, 1980-87, sob o governo sandinista.10 10 A experiência sandinista é considerada por muitos como diferente, revolucionária. Na minha opinião, esta interpretação superestima o caráter inovador da política econômica sandinista, que tem raízes firmes na tradição populista latino-americana. Cabe ressaltar que a combinação de medidas populistas e do pesado esforço militar contribuiu para que, em 1987, a inflação chegasse ao patamar de 11.000 pontos percentuais.

Passaremos agora a uma breve revisão das quatro experiências centrais enfocadas neste artigo; em seguida, demonstraremos através de indicadores quantitativos o caráter comum destes episódios.

(1) Argentina, 1946-49

Juan Perón deu início à sua ascensão ao poder no golpe militar de 1943, que derrubou o regime conservador instalado desde o golpe militar de 1930. O antigo regime, baseado nos proprietários de terra, conservadores, foi substituído por um movimento nacionalista e protecionista, cuja meta era a industrialização acelerada. Perón foi inicialmente conselheiro do Trabalho do novo governo; tornou-se, sucessivamente, secretário do Trabalho, ministrei da Guerra e vice-presidente, até obter uma vitória retumbante nas eleições presidenciais de 1946. Perón cultivou o apoio dos trabalhadores urbanos como trampolim para a presidência. Enquanto secretário do Trabalho, ele instituiu uma enorme extensão de benefícios da seguridade social. Os dissídios coletivos, um sistema de bônus salariais e elevações do salário-mínimo. A principal confederação sindical, a CGT, fortaleceu-se enormemente e apoiou a candidatura de Perón para presidente.

A política econômica implementada por Perón entre 1946 e 1949 praticamente sintetiza a dinâmica das políticas populistas com base urbana. As políticas· monetária e fiscal foram altamente expansionistas. A taxa de câmbio nominal foi mantida fixa, o que a tornou altamente supervalorizada em termos de PPP. Os salários reais elevaram-se tanto devido à expansão da economia, quanto ao apoio direto do governo à CGT nas negociações trabalhistas. A política comercial foi acentuadamente protecionista, visando-se erigir uma estrutura industrial interna por detrás das barreiras tarifárias.

As metas redistributivas eram explícitas e abarcavam tanto a elevação dos salários urbanos quanto o arrocho da antiga oligarquia agrícola, em benefício do setor urbano ascendente. A participação dos salários na renda nacional bruta cresceu rapidamente, passando· de 38,7% para 45,7%, entre 1946 e 1949. Os salários reais cresceram 62% nesses três anos.

O esgotamento do boom começou a evidenciar-se já em 1948, quando a produção agrícola começou a cair e as reservas cambiais definharam (passando de US$ 1,11 bilhão, em 1946, para apenas US$ 258 milhões, em 1948). A inflação se acelerou e o PNB decresceu 4,5% em 1949.

Em 1952, quando Perón finalmente passou a uma estratégia mais ortodoxa, ele reconhecia abertamente as motivações sociais e políticas de seu programa econômico original. Num discurso a uma delegação de trabalhadores, citado por Mallon e Sourrouille (1975Mallon, R. e J. V. Sourrouille. (1975) Economic Policy making in a Conflict Society: the Argentine Case. Cambridge, Harvard University Press . , p.-12), Perón disse:

“A economia justicialista (isto é, peronista) afirma que a produção da economia deve atender, em primeiro lugar, às necessidades de seus habitantes, e que somente o excedente deve ser exportado; o excedente; nada além disso. Com esta teoria os rapazes aqui, é claro, comem mais a cada dia e consomem mais, de modo que o excedente é menor. Mas estes pobres rapazes estiveram por baixo durante cinquenta anos; por isso deixei-os gastar e comer e desperdiçar tudo o que quiseram durante cinco anos ... mas agora nós, sem dúvida, precisamos começar a reorganizar as coisas para deixar de desperdiçar”.

Na ocasião, Perón teve pouco tempo para reorganizar, pois foi deposto por um golpe em 1955.

(2) Chile, 1971-73

Salvador Allende, assim como Perón, ascendeu ao poder com o apoio dos trabalhadores urbanos. Allende recebeu a maioria relativa dos votos (36%) nas eleições presidenciais de 1970 e foi conduzido à presidência pelo Congresso, a quem coube definir o vencedor, na ausência de uma maioria absoluta. Seu programa era expansionista e redistributivista como o de Perón, embora contivesse também metas formalmente socialistas (como, por exemplo, estatização e reforma agrária amplas). O governo da Unidade Popular identificou três grandes problemas na economia chilena: (l) a concentração da propriedade dos meios de produção; (2) a dependência em relação aos mercados externos; e (3) a distribuição desigual da renda.

No primeiro ano de governo, a política fiscal mostrou-se altamente expansionista, levando o déficit orçamentário a crescer de 2,7% para 10,7% do PNB, entre 1970 e 1971. Chegado o quarto trimestre de 1971, a taxa de crescimento do crédito ao setor público excedia 300%, em termos anualizados. O crescimento do PNB se elevou fortemente (9% em 1971, em comparação com 2,1% em 1970) e os salários reais cresceram à taxa espantosa de 17% em 1971. A participação do rendimento dos assalariados no PNB elevou-se, entre 1970 e 1971, de 52,3% para 61,7%.

O colapso, contudo, logo sobreveio, ainda mais rapidamente do que na Argentina. Em 1972 o PNB apresentou taxa de variação negativa e a inflação saltou para 163%. As reservas internacionais se exauriram, levando à implementação de um sistema de controle cambial estrito, com quinze diferentes taxas de câmbio (da mais baixa à mais alta, a diferença era de 60 para 1). Em 1973, o PNB caiu 5,6% e a inflação média foi de 500%. Allende foi derrubado por um golpe militar em setembro de 1973.

(3) Brasil, 1985-88

Após vinte e um anos no poder, os militares cederam seu lugar a um presidente civil escolhido por um Colégio Eleitoral cujos membros haviam sido eleitos em 1982. Com a morte do presidente eleito, Tancredo Neves, na véspera de sua posse, o vice-presidente, José Sarney, assumiu a presidência. Sarney foi realmente um presidente acidental. Havia sido escolhido para vice­presidente por Tancredo, para tranquilizar os militares, pois fora membro, havia anos, do partido conservador que apoiara o regime militar. Sarney agora encabeçava o governo de Tancredo Neves, o qual era apoiado por um partido amplo e progressista, o PMDB, que se opusera ao regime militar. Na época da democratização, as demandas populares estavam exacerbadas, após duas décadas em que o governo militar havia suprimido direitos trabalhistas e após quatro anos de austeridade, no bojo da crise da dívida latino-americana.

No início de 1986, Sarney endossou os objetivos do PMDB ao implementar um programa de estabilização “heterodoxo”, o Plano Cruzado. Independente das intenções iniciais do programa, com relação ao manejo dos instrumentos fiscais e monetários, o fato é que o plano foi implementado de forma altamente populista, trazendo forte elevação do salário real, sobrevalorização cambial e um elevado déficit fiscal.

Como nos casos da Argentina e do Chile, os resultados iniciais do plano foram extraordinários: crescimento acelerado, salários reais mais elevados e inflação baixa. A retórica pró-trabalhadores do governo acentuou-se significativamente à medida em que o Plano Cruzado atingia seus êxitos iniciais.

O Plano Cruzado desabou muito rapidamente, sem dúvida devido às condições iniciais extremamente desfavoráveis, especialmente a enorme dívida externa herdada do regime militar. O superavit comercial do Brasil encolheu de uma média mensal da ordem de US$ 1 bilhão, em 1985, para um déficit de US$ 326 milhões no último trimestre de 1986. Diante da forte deterioração do nível das reservas, a taxa de câmbio teve de ser fortemente desvalorizada no final de 1986, o que levou a uma explosão da inflação e a uma reversão dos ganhos salariais reais e do crescimento do PNB obtidos no início do programa.

Em 1987, um novo ministro da Fazenda, Luíz Carlos Bresser-Pereira, tentou alterar a orientação da política econômica para a estabilização via redução do déficit fiscal (para maiores detalhes, veja Bresser-Pereira, 1988aBresser-Pereira, L. C. (1988) “The Two Brazilian Price Freezes “, exposição no seminário Run Away lnflation: Austerity at What Cost? Argentina, Brazil, and Israel, School of International and Public Affairs, Columbia University, 25 de março. ). O presidente Sarney, envolvido numa batalha política para manter-se no poder pelo maior tempo possível, no bojo da elaboração de uma nova Constituição, não deu respaldo a seu ministro, cedendo, pelo contrário, às pressões populistas incessantes que encontravam amplo apoio no Congresso. Ademais, conforme escreveu Bresser, uma verdadeira estabilização requereria um pacto social, porém:

“Sempre fui muito cético em relação a um pacto social no Brasil, porque primeiro é necessário um pacto político - um entendimento amplo entre as principais forças políticas do país - tratando, além dos salários, das reformas sociais”.

Até outubro de 1988 e a posse de mais um ministro da Fazenda, as perspectivas do Brasil de evitar uma hiperinflação ainda são incertas; a inflação, durante o terceiro trimestre, estava ao nível de 1000% ao ano.

(4) Peru, 1985-88

Depois de doze anos de domínio militar, os civis voltaram ao poder no Peru em 1980, com a eleição de Fernando Belaúnde para presidente. O governo Belaúnde vacilou entre as políticas convencionais de austeridade e liberalização, defendidas pelo FMI, e políticas “desenvolvimentistas” (envolvendo gastos elevados em obras públicas), preferidas pelo presidente. Em 1983, condições climáticas desfavoráveis combinaram-se com elevados encargos da dívida externa e desequilíbrios macroeconômicos internos, gerando um declínio notável do PNB, de 12%, e uma inflação de 125%. Até o término da gestão de-Belaúnde, em 1985, a inflação anual já era superior a 150%, enquanto os salários reais haviam caído cerca de 40% entre 1980 e 1985.

Alan García assumiu a presidência em julho de 1985, tendo como objetivo reduzir a inflação e, simultaneamente; retomar o crescimento e recuperar os salários reais. O partido do presidente, o APRA, tinha urna longa tradição populista e não havia chegado, até então, à presidência devido ao temor dos militares em relação às suas tendências populistas. García iniciou sua gestão com urna política econômica baseada em: (1) suspensão parcial unilateral do pagamento do serviço da dívida, limitado a 10% das receitas das exportações; (2) pequena desvalorização cambial e elevação dos preços públicos, seguidos de congelamento da taxa de câmbio e dos preços: (3) grande elevação dos salários do setor público, com o objetivo explícito de aquecer a demanda interna.

Sob este mix de política econômica, a economia teve um boom em 1986: o PIB cresceu 8,6% e os salários reais apresentaram um crescimento espantoso de 26,7% no ano. O déficit público passou de 4,4% do PIB, em 1985, para 7,9%, em 1986. Freada pela taxa de câmbio nominal fixa, a inflação reduziu-se acentuadamente, passando de 158%, em 1985, para apenas 63% em 1986. · Como seria de esperar, a popularidade pessoal do presidente disparou, fazendo com que ele alcançasse uma taxa de aprovação superior a 90% em 1986. Como é típico desta espécie de programa econômico, os únicos indícios de problemas situavam-se no front externo. A balança comercial passou de um superavit de US$ 1,172 bilhão, em 1985, a um déficit de US$ 65 milhões em 1986. A taxa de câmbio real valorizou-se acentuadamente.

Em 1987, os aspectos· financeiros da situação deterioraram-se ainda mais; a inflação quase dobrou em relação a 1986, alcançando 114,5% no ano. O déficit público se ampliou (para mais de 10% do PIB); a balança comercial tornou-se mais negativa (déficit de US$ 460 milhões); e a taxa de câmbio real valorizou-se ainda mais. Ainda assim, o crescimento dos salários reais e do PIB permaneceu elevado.

Já em 1988, as reservas de divisas se esgotaram e houve um colapso total. As previsões de variação do PIB no ano convergem para a faixa -4%, enquanto a inflação poderá superar 1000%. No mês de setembro, apenas,·os preços elevaram-se· aproximadamente 117% ! A popularidade do presidente despencou para uma taxa de aprovação de 16% no terceiro trimestre de 1988 e a imprensa divulgou rumores de que García teria falado em renúncia a seus ministros.

Características comuns dos episódios históricos

Uma das ideias centrais deste artigo é a de que os episódios populistas têm uma dinâmica econômica· e política comum, apesar de ocorrerem em países muito distintos, e mesmo em diferentes décadas. Registramos vários aspectos comuns. Na esfera· política, todos os episódios envolvem a ascensão ao poder de um governo com bases urbanas e· voltado para a redistribuição.

Em dois casos (Argentina e Brasil) o novo governo tomou posse após um longo interlúdio conservador, durante o qual os sindicatos haviam sido severamente reprimidos. As pressões sociais, e particularmente as reivindicações salariais, estavam, portanto, represadas. Na esfera econômica, todos os programas caracterizaram-se por: uma fase inicial de crescimento acelerado do PNB e dos salários reais, com preços relativamente estáveis; e uma fase final de queda do PNB e dos salários reais, com inflação explosiva.

O ponto de inflexão surge com o colapso da taxa de câmbio, até então fixa, no momento em que o governo fica sem reservas de divisas e sem acesso a novos créditos externos. De fato, a extensão da fase ascendente é quase inteiramente uma função da disponibilidade inicial de reservas internacionais do Banco Central. No caso da Argentina peronista, os enormes superávits comerciais obtidos durante a Segunda Guerra Mundial legaram a Perón um enorme estoque de divisas, de modo que seu programa econômico pôde manter-se por anos sem que ocorresse um colapso grave. No Chile, Allende contava com um nível inicial de reservas mais modesto. No Peru, García criou a reserva de divisas necessária ao suspender unilateralmente o pagamento do serviço da dívida. No Brasil, o Plano Cruzado foi especialmente efêmero, por ter sido implementado em meio a uma séria crise de endividamento externo e porque o Brasil não optou por imitar García, suspendendo o serviço da dívida unilateralmente (curiosamente, o Brasil aguardou o colapso do programa para suspender o serviço da dívida, num contexto em que seu poder de barganha, vis-à-vis os credores, encontrava-se muito mais reduzido e em que a coesão política interna era menor).

Os Gráficos 1 a 6 oferecem uma confirmação visual impressionante de vários· destes atributos comuns (os dados básicos e suas fontes estão no apêndice estatístico). Nestes gráficos, superpusemos os acontecimentos dos quatro episódios, datando-os de acordo com o início da implementação das medidas populistas de política econômica. O Gráfico 1 mostra o crescimento do PIB. Em todos os episódios, o crescimento é elevado no início, tornando-se negativo no quarto ano. Ressalte-se que as taxas de crescimento do Peru e do Brasil em 1988 são previsões divulgadas pela imprensa econômica até setembro de 1988. Na Argentina, no Chile e no Peru, o crescimento se acelera realmente do primeiro para o segundo anos, diminui no terceiro e torna-se negativo no quarto; nesses caso, a reversão no quarto ano é muito aguda: o GDP cai mais de 4%.

GRÁFICO 1
CRESCIMENTO DO PIB

GRÁFICO 2
INFLAÇÃO (IPC)

GRÁFICO 3
ÍNDICE DE VOLUME DE EXPORTAÇÕES / PIB

GRÁFICO 4
RESERVAS INTERNACIONAIS / IMPORTAÇÕES

GRÁFICO 5
ÍNDICE DA TAXA DE CÂMBIO REAL (MÉDIA DE CADA PERÍODO)

GRÁFICO 6
ÍNDICE DA TAXAQ DE JUROS REAIS (MÉDIA DE CADA PERÍODO)

O segundo gráfico ilustra o comportamento da inflação, o qual também é similar para todos os casos. Nos quatro países, o episódio populista inicia-se com uma redução da inflação, aparentemente associada ao congelamento da taxa de câmbio. No terceiro ano, a inflação começa a se acelerar, no caso do Brasil de modo especialmente abrupto (pois o Plano Cruzado fracassou com notável rapidez). Cabe ressaltar que no Brasil, no Chile e no Peru a inflação alcançou várias centenas. de pontos percentuais no quarto ano. Na Argentina de Perón, a inflação atingiu pouco mais de 30%, nível elevado em comparação com a estabilidade de preços que prevalecera no final dos anos 30 e início dos anos 40, mas bastante reduzido em comparação com os anos posteriores. No início da gestão de Perón, é bom lembrar, a economia tinha expectativas inflacionárias bastante reduzidas e um estoque elevado de reservas internacionais.

O Gráfico 3 apresenta o objetivo crucial das políticas populistas: o salário real. O gráfico mostra em termos percentuais a mudança ocorrida no salário a cada ano da política. O crescimento do salário real é intenso no início do programa, durante os dois primeiros anos, declina então no terceiro ano e finalmente entra em colapso uma vez que a crise do balanço de pagamentos ataca a economia. No Chile, em 1973, os salários reais caíram cerca de 32%; no Peru, em 1988, caíram cerca de 34,5%; e no Brasil, em 1988, os salários reais no Rio de Janeiro caíram 12,8%, seguindo-se um declínio de 16% em 1987.11 11 Os dados de 1988 sobre o Peru e os dados de 1987 e 1988 para o Rio de Janeiro são da CEPAL (1988). Os dados de 1988 são preliminares. Observe-se que no Brasil há uma grande discrepância entre a acentuada queda dos salários reais no Rio de Janeiro e o declínio bem mais moderado em São Paulo (onde os salários caíram somente 2% entre 1986 e 1988).

Os Gráficos 4 a 6 mostram o calcanhar de Aquiles de todos estes experimentos: o setor externo. Como indica o Gráfico 3, o volume de exportações como proporção do PNB cai em todos os países; no Gráfico 4 vemos que a razão reservas internacionais/importações despenca no segundo ano do programa em todos os casos.

Uma forte razão para este colapso é indicada no Gráfico 5: a valorização contínua e significativa da taxa de câmbio real, definida, no gráfico, pela razão entre a taxa nominal de câmbio vis-à-vis o dólar e o diferencial entre a inflação interna e a inflação norte-americana (isto é, a razão entre os índices de preços ao consumidor do país e dos EUA). Em todos os países a taxa de câmbio real valoriza-se fortemente ao longo do programa; esta valorização chega a até 25%-30% no terceiro e quarto anos. Já ressaltamos que esta valorização cambial ajuda a explicar a elevação inicial do salário real, bem como o declínio do saldo comercial e das reservas internacionais.

III. CONCLUSÕES E DERIVAÇÕES

Muitos dos problemas econômicos da América Latina nos anos 80 devem-se a fatores externos. As taxas de juros internacionais alcançaram níveis inesperados e sem precedentes nos anos 80, conduzindo a um enorme escoamento de recursos dos países devedores latino-americanos aos países credores. Os preços das principais commodities de exportação da América Latina despencaram, em muitos casos para os níveis reais mais baixos dos últimos cinquenta anos ou mais. E, em muitos países, governos democráticos frágeis tiveram de enfrentar os escombros - políticos, sociais e humanos - legados pelos regimes militares que os precederam.

A América Latina, contudo, não pode eximir-se totalmente da responsabilidade pela crise atual. A crise da dívida externa tem sido mais profunda nos países com uma longa tradição de frouxidão fiscal. Em muitas ocasiões essa frouxidão alcançou proporções espantosas, particularmente quando os governos recorreram a expansões fiscais drásticas visando a resolver problemas arraigados de desigualdade econômica e pobreza. Vimos neste artigo as indicações de que estas medidas populistas tendem a naufragar em meio a elevação violenta da inflação e forte queda dos salários, no momento em que a expansão fiscal esbarra na restrição de balanço de pagamentos.

Sugerimos que o impulso à adoção de medidas populistas se deve a vários fatores, entre os quais: ambiente de profundo conflito econômico, associado à distribuição altamente desigual de renda; instabilidade política, que conduz a governos com expectativa de curta duração e, portanto, com horizonte temporal muito reduzido; clivagem profunda e visível entre interesses setoriais - trabalhadores urbanos em franco confronto com exportadores de commodities primárias.

Subsiste, no entanto, um grande enigma. Os episódios populistas que examinamos redundaram em fracassos, às vezes até em tragédias. Perón foi forçado a se exilar, deixando atrás de si uma economia enfraquecida e uma sociedade ao mesmo tempo politizada e profundamente dividida; Allende morreu num golpe militar que destruiu a democracia no Chile pelos quinze anos seguintes; Sarney e García agora presidem regimes falidos, ambos enfrentando a ameaça real de hiperinflação e colapso econômico. Por que esses líderes optaram por esta estratégia tão arriscada? Ao menos o Brasil e o Peru deveriam ter aproveitado as lições deixadas pelas duas outras experiências.

A resposta mais correta, talvez, e também a mais simples, seja que. esses líderes, e sobretudo seus seguidores, não apreenderam o risco envolvido no caminho que escolheram. Políticas populistas parecem notavelmente boas no início do ciclo populista. Só os pessimistas incorrigíveis são capazes de levantar dúvidas em meio a um boom que leva os salários reais a crescer acentuadamente, enquanto mantém a inflação sob controle (ou mesmo a reduz, como no Brasil e no Peru)! Os presidentes Perón, Sarney e García alcançaram níveis extraordinários de popularidade durante as etapas iniciais de seus programas. Nesta fase, o problema representado pela queda das reservas de divisas parece um pequeno empecilho técnico. Cada líder pode ter imaginado que alguma coisa surgiria para resolver esse detalhe: novos créditos, uma queda das taxas de juros internacionais, um surto de exportações (deus ex machina), mesmo a decretação de uma moratória da dívida ou a introdução de controles cambiais, se necessário. Afinal de contas, o que é uma pequena dificuldade no campo do comércio exterior diante de um boom dos salários reais e do crescimento acelerado?!

Na realidade, a situação pode ser difícil mesmo quando o líder percebe as dificuldades, caso seus seguidores (no Congresso, nos sindicatos, nas ruas) não percebam. As pressões pela redistribuição podem ser irresistíveis, se o Congresso estiver empenhado em ampliar o gasto público e contar com o apoio de segmentos políticos de peso. No Brasil, os ministros da Fazenda no cargo em 1987 e 1988 compreendiam perfeitamente os perigos de uma expansão fiscal, mas viram-se impotentes para resistir às determinações do presidente, o qual, por sua vez, cedia às pressões populistas do Congresso.

A falta de visão não é exclusiva dos políticos. Diversas escolas de pensamento econômico “estruturalista” continuam a advogar medidas de caráter populista. O melhor exemplo disso é o livro autolaudatório El Perú Heterodoxo: Un Modelo Económico (D.Carbonetto, ed.), publicado em 1987Carbonetto, D. (1987) Perú Heterodoxo: Un Modelo Económico. Lima, Instituto Nacional de Planificación. pelos técnicos que conceberam o malfadado programa econômico peruano. O livro foi publicado justamente às vésperas do colapso do programa (quando as reservas líquidas de divisas terminavam de esgotar-se), e continha o seguinte pronunciamento. ·

“No momento em que enviamos este livro para impressão completam-se os primeiros dezoito meses de aplicação das políticas de retomada do crescimento no Peru. Os dados (econômicos) disponíveis corroboram integralmente a tese de que é possível reaquecer uma economia (quando há capacidade ociosa) e, simultaneamente, reduzir o nível de inflação.

“Neste ano e meio, o Peru reduziu sua inflação de 250% ao ano para cerca·de 65% ao ano, e elevou seu PNB a uma taxa anualizada superior a 8%.

“Contudo, o próprio êxito obtido nesse processo de retomada do crescimento origina uma série de incógnitas que poderíamos denominar como segundo estágio de desenvolvimento do modelo econômico peruano. Estas incógnitas dizem respeito à extensão da capacidade de poupar e investir, bem como de exportar, da economia peruana no futuro imediato” (p. 16).

Infelizmente, os autores não perceberam que o segundo estágio fracassara, não tendo gerado a poupança e as exportações requeridas, como resultado lógico do “êxito” do primeiro estágio. Lamentavelmente, ao chegar o terceiro trimestre de 1988, as exportações peruanas haviam desabado e a economia imergido numa hiperinflação! Em setembro de 1988, o governo tentava uma mudança emergencial da política econômica na direção de uma estabilização fiscal.

Este problema de discernimento é, sem dúvida, agravado pela falta de uma “memória institucional” adequada, na maioria dos países da América Latina. A cada mudança de governo há uma alteração profunda nos quadros do funcionalismo público, que alcança até os escalões inferiores da burocracia. No Japão, em contraste, quando há uma mudança de governo só um funcionário, por ministério, está sujeito a remanejamento - o próprio ministro (todos os demais cargos são ocupados por funcionários de carreira)! O resultado, na América Latina, é a ausência das habituais restrições burocráticas na elaboração de medidas de fôlego. O presidente e seus assessores mais próximos podem provocar uma mudança de orientação profunda, contanto, é claro, que consigam manter-se no governo.

Cabe ressaltar novamente um ponto de vista já registrado no início deste artigo. Os impulsos políticos e morais subjacentes às políticas populistas são compreensíveis e muitas vezes até nobres. A distribuição de renda na América Latina constitui um motivo para inquietação moral e uma incitação à ação. Ademais, muitas medidas tomadas por governos populistas (como a moratória da dívida externa decretada pelo Peru e pelo Brasil, ou os choques “heterodoxos” que buscaram controlar a inflação inercial) podem ser, em si, corretas, embora sejam altamente controversas e integrem um programa em outros aspectos mal concebido.12 12 Alan García tinha razão ao declarar, em 1985, que o Peru necessitava de alívio para sua dívida e que as opções do país eram “dívida ou democracia”. Dado o estado de colapso da economia e sociedade peruanas na época, a possibilidade de servir a dívida nas condições exigidas pela comunidade financeira internacional era praticamente nula. A moratória não deve ser, portanto, considerada equivocada simplesmente por ter sido acompanhada por políticas macroeconômicas internas insensatas. Uma nação vizinha do Peru, a Bolívia, demonstrou entre 1985 e 1988 a utilidade de uma estratégia mista, que combinou a moratória da dívida externa com políticas internas ortodoxas. Veja também Bresser-Pereira, 1988b, para uma explanação completa da moratória brasileira de 1987.

Por fim, os exageros populistas não constituem prova do mérito das políticas ortodoxas extremas que muitas vezes sucedem o colapso populista. Muitos opositores do populismo relegam o problema real da distribuição extremamente desigual da renda, contentando-se com a obtenção do equilíbrio orçamentário, sem levar em conta suas implicações distributivas. Os fracassos do populismo latino-americano, ao invés de serem tomados como um endosso à ortodoxia irrestrita, deveriam inspirar a busca por um caminho intermediário.

Este artigo evidentemente levantou mais questões do que respostas. Serão os fatores sociais e políticos apontados neste artigo capazes de explicar não apenas a tentação latino-americana pelo populismo, mas também a ausência relativa de políticas populistas no Leste Asiático? Fornecerão as “democracias pactuadas” da Colômbia e da Venezuela um modelo de estabilização política para outros países da região? A experiência desses dois países reforça realmente a hipótese de que a estabilidade política contribui para uma maior responsabilidade fiscal? Quais são os caminhos mais eficazes para a América Latina enfrentar o problema arraigado da desigualdade de renda e simultaneamente criar condições favoráveis para a estabilidade de preços, para o investimento privado e para a acumulação? Estas grandes questões constituem uma agenda para estudos futuros acerca da economia política da região, uma agenda significativamente enriquecida por ponderações e insights de Ezio Tarantelli.

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  • Tarantelli. E. (1986) Economia del Lavoro. Torino, UTET.
  • 1
    Como mencionado em Bruno e Sachs (1985Bruno, M. e J. Sachs. (1985) Economics of Worldwide Stagflation. Cambridge, Harvard University Press . , p. 222), “o trabalho de Tarantelli foi um grande estímulo para nossa própria investigação a respeito deste assunto”. Tive contato pela primeira vez com a pesquisa de Tarantelli através de um paper inédito sobre “A Economia do Neocorporativismo”, 1981, o qual era uma versão preliminar do ·capítulo inicial de Tarantelli (1986Tarantelli. E. (1986) Economia del Lavoro. Torino, UTET. ).
  • 2
    R. D. Mallon e J. V. Sourrouille. Economic Policymaking in a Conflict Society: the Argentine Case. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1975.
  • 3
    Isto permanece verdadeiro após levar em consideração as discrepâncias de renda per capita. Veja Berg e Sachs (1988Berg, A. e J. Sachs. (1988) “The Debt Crisis: Structural Explanations of Country Performance”, NBER Working Paper N.° 2607, junho, e Journal of Development Economics. ), tabela 3.
  • 4
    O termo “populismo” tem vários significados, tanto na esfera econômica quanto na política. Não estou preocupado, neste artigo, com o conceito de populismo em suas várias acepções políticas, mas somente com o populismo na gestão macroeconômica. Evidentemente, como já explicado, um aspecto crucial para o entendimento do populismo econômico é o próprio entendimento da base política e dos objetivos políticos dos líderes populistas.
  • 5
    Os países eram Argentina, com inflação de 372.0% para 1988 sobre 1987; Brasil, 816.1%; Nicarágua, 7778.4%; e Peru, 1307.1%. Dados provenientes da CEPAL (1988Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL). “Balanço Preliminar de la Economía Latinoamericana”, 1988 e vários anos para os dados dos Gráficos 1-6. ), tabela 5, pág. 21. Os dados equivalem de novembro a novembro, com exceção da Nicarágua, para a qual equivalem de setembro a setembro. O México atingia a inflação de três dígitos em dezembro de 1987 sobre dezembro de 1986, de 159.2%, mas essa taxa declinou para 70.5% para novembro de 1988 sobre novembro de 1987.
  • 6
    A inflação elevada e a instabilidade interna decorrem em boa medida do ônus representado pela dívida externa. As razões para este elevado endividamento são complexas, abarcando tanto fatores internos (inclusive políticas populistas, o objeto deste trabalho) quanto choques externos. Os fatores externos incluem: taxas de juros internacionais extraordinariamente elevadas por toda a década de 1980; a súbita interrupção da concessão de créditos no início da década; o colapso dos preços das commodities no mercado internacional, que reduziu os termos de troca de muitos países latino-americanos a níveis equivalentes ou inferiores aos vigentes na Grande Depressão dos anos 30; e uma estratégia de administração da dívida, implementada pelos governos dos países credores desde o início dos anos 80, que corroeu o apoio político às reformas econômicas necessárias na América Latina. A administração do ônus da dívida tem sido particularmente difícil em vários países latino-americanos devido ao fato de grande proporção da dívida ter sido contraída nos anos 70 por regimes militares impopulares, tendo sido herdada, nos anos 80, por governos democráticos frágeis.
  • 7
    Outras variáveis que ajudaram a explicar o padrão interpaíses de reescalonamento da dívida foram: (1) o tipo de política comercial (as economias mais voltadas para fora apresentaram menor probabilidade de reescalonar); (2) o peso da agricultura na economia (os países com grande participação da agricultura no PNB tiveram menor probabilidade de reescalonar); e (3) a renda per capita (a probabilidade de reescalonar foi menor para os países mais ricos).
  • 8
    Para uma excelente série de artigos sobre política e história do populismo da América Latina, ver o volume editado por Conniff (1982).
  • 9
    No modelo desenvolvido no apêndice, supõe-se que o consumo se restringe a bens não-comerciáveis. Toda a produção de bens exportáveis é efetivamente exportada, enquanto todas as importações são utilizadas como insumos intermediários na produção de bens não-comerciáveis. As suposições específicas acerca da cesta de consumo devem, evidentemente, variar de acordo com o país. Na Argentina, os bens primários exportados (principalmente grãos e carne) são também bens de consumo; no Chile, a exportação primária tradicional (cobre) não é bem de consumo. Quanto às importações, a participação dos bens intermediários e dos bens de capital é majoritária. Devido à tradição de substituição de importações, a entrada de bens de consumo é em geral altamente restringida.
  • 10
    A experiência sandinista é considerada por muitos como diferente, revolucionária. Na minha opinião, esta interpretação superestima o caráter inovador da política econômica sandinista, que tem raízes firmes na tradição populista latino-americana. Cabe ressaltar que a combinação de medidas populistas e do pesado esforço militar contribuiu para que, em 1987, a inflação chegasse ao patamar de 11.000 pontos percentuais.
  • 11
    Os dados de 1988 sobre o Peru e os dados de 1987 e 1988 para o Rio de Janeiro são da CEPAL (1988Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL). “Balanço Preliminar de la Economía Latinoamericana”, 1988 e vários anos para os dados dos Gráficos 1-6. ). Os dados de 1988 são preliminares. Observe-se que no Brasil há uma grande discrepância entre a acentuada queda dos salários reais no Rio de Janeiro e o declínio bem mais moderado em São Paulo (onde os salários caíram somente 2% entre 1986 e 1988).
  • 12
    Alan García tinha razão ao declarar, em 1985, que o Peru necessitava de alívio para sua dívida e que as opções do país eram “dívida ou democracia”. Dado o estado de colapso da economia e sociedade peruanas na época, a possibilidade de servir a dívida nas condições exigidas pela comunidade financeira internacional era praticamente nula. A moratória não deve ser, portanto, considerada equivocada simplesmente por ter sido acompanhada por políticas macroeconômicas internas insensatas. Uma nação vizinha do Peru, a Bolívia, demonstrou entre 1985 e 1988 a utilidade de uma estratégia mista, que combinou a moratória da dívida externa com políticas internas ortodoxas. Veja também Bresser-Pereira, 1988bBresser-Pereira, L. C. (1988b) “The 1987 Approach for the Negotiation of the Brazilian Externai Debt”, paper apresentado no Seminário Anual do Banco Mundial Implementing Economic Reform: Management and Institutional Factors, 5 de abril,. , para uma explanação completa da moratória brasileira de 1987.
  • *
    Agradeço as observações de Felipe Larrain e Luiz Carlos Bresser-Pereira. Agradeço também a Rodrigo Vergara pelo seu competente auxílio à pesquisa. Este trabalho integra o programa de pesquisa do National Bureau of Economic Research sobre Estudos Internacionais. Quaisquer opiniões aqui expressas são do autor e não do NBER. Traduzido por Fernando Arruda Sampaio.
  • 14
    JEL Classification: P16; O21; O11; D72; E31.

APÊNDICE

ARGENTINA

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1990
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