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Estratégias de estabilização: Peru* * Tradução de Mauricio Gutemberg Lima Silva

Stabilization strategies: Peru

RESUMO

Escrito pouco antes de o novo presidente do Peru, Alberto Fujimori, assumir a posição, este artigo incorpora a necessidade de banir o populismo e adotar medidas emergenciais juntamente com medidas de longo prazo para obter uma estabilização efetiva da economia. Enfatiza o que poderia ser considerado consenso entre os economistas de países que sofreram inflação crônica: equilíbrio do déficit orçamentário, terapia de choque, necessidade da política de renda. Conclui-se que, apesar dos custos de um ajuste a ser feito, as classes menos privilegiadas sofrerão muito menos do que no contexto inflacionário contínuo.

PALAVRAS-CHAVE:
Estabilização; economia política; Peru

ABSTRACT

Written just before the new president of Peru, Alberto Fujimori, takes the position, this article incorporates the necessity of banish the populism and take emergencial measures together with long-run measures in order to obtain an effective stabilization of the economy. It emphasizes what could be considered consensus among the economists from countries that have experienced chronic inflation: equilibrium of budget deficit, shock therapy, necessity of income policy. It is concluded that in spite of the costs of an adjustment to be done, the less privileged classes will suffer much less than in continuous inflationary context.

KEYWORDS:
Stabilization; political economy; Peru

INTRODUÇÃO

Nesta última década a economia peruana foi destruída por choques externos, pela abertura política, guerra civil e pela má administração da política econômica doméstica. A renda per capita está vinte por cento inferior ao seu nível do final dos anos 70 e os salários reais caíram à metade do seu poder aquisitivo. A desigualdade aumentou acentuadamente.

A principal lição desta experiência deve, com certeza, ser a de que a população necessita urgentemente de um ambiente econômico e financeiro que restabeleça a normalidade. Ainda que se recorra a políticas mais prudentes e sob condições internas e externas mais favoráveis, serão necessários muitos anos para que a economia seja reconstruída; e mesmo que a estabilização seja atingida, a reconstrução sequer terá começado.

I. QUESTÕES PRELIMINARES

Tratamos aqui brevemente de quatro pontos que precisam ser esclarecidos de imediato:

  • O orçamento é o responsável pela experiência de altas taxas de inflação.

  • A terapia do choque é a prescrição correta.

  • A estabilização diminuirá o custo que recai sobre os mais pobres no financiamento do gasto público.

  • A política de rendas exerce de fato uma função no processo de estabilização.

Gráfico 1
Peru: Taxa de Inflação (Índice de preço ao consumidor - IPC, média trimestral)

Tabela 1
Peru: - Salários Reais e PIB Per Capita (índice 1985=100)

O orçamento

O estado em que se encontram as finanças públicas é a explicação direta para a elevada inflação peruana. O dia a dia da inflação é, obviamente, afetado por mudanças na velocidade da moeda, reajustes de preços do setor público e taxa de câmbio, reajustes salariais etc. A inflação crônica, porém, tem como principal causa - e como cura - crestado das finanças públicas.

Tabela 2
Peru - Salários Público (Em % do PIB)

Através da tabela acima é possível observar as fontes específicas da deteriora­ção orçamentária: a queda acentuada da arrecadação real, cuja causa principal é a degeneração da administração tributária e do pagamento efetivo dos tributos. · A deterioração da receita das empresas estatais resulta em grande medida do extraordinário declínio nos preços reais cobrados aos consumidores. Além dis­so, os preços reais no início de 1989 estavam muito abaixo dos de 1985.

Tabela 3
Preços e Tarifas do Setor Público (dezembro 1989=100)

A terceira questão do déficit repousa sobre a operação do Banco Central, onde surgem os déficits quase-fiscais, atrelados às taxas de juros reais negativas sobre empréstimos e relacionados à manutenção de taxas de câmbio múltiplas.

Não se pode dizer que foram os gastos excessivos do setor público que geraram os atuais níveis de déficit. Os gastos reais do governo de fato declinaram. Este declínio reflete, de uma parte, a compressão maciça dos salários reais no setor público e, de outra, o declínio dos serviços públicos. O investimento do setor público contraiu-se e, em consequência, a infraestrutura social encontra-se em franco processo de degeneração.

O problema político

Os formuladores de política não têm razão para acreditar que o que ocorre no Peru hoje em dia seja diferente das vinte ou trinta experiências de inflação extrema (crônica e hiperinflação) neste século. Sempre há, evidentemente, os aspectos particulares de cada país. Mas a lição principal apreendida das experiências de alta inflação é precisamente a de que as experiências não são diferentes de um país para o outro e que os déficits públicos são sempre a força propulsora que perpetua a hiperinflação, corrói as finanças públicas e degenera o padrão de vida. É exatamente o movimento em direção à inflação que reduz, quando não torna desprezíveis, as particularidades de cada país, evidenciando as características comuns de deterioração das finanças públicas, a fuga da moeda nacional e o crescente empobrecimento da população.

O orçamento deve ser equilibrado. A única questão é como fazê-lo o mais rápido possível e quais as medidas a serem tomadas concomitantemente para se evitar que a atividade econômica e o padrão de vida se deteriorem ainda mais. É comum equiparar-se o equilíbrio do orçamento com “austeridade”; este é um conceito deturpado. O Peru não tem gastado além de seus meios; cada centavo que o governo gasta está sendo pago por alguns peruanos que retêm moeda (imposto inflacionário), que sofrem atrasos nos pagamentos do governo ou sofrem a erosão inflacionária dos salários reais.

Existem motivos para se acreditar que de fato os pobres e possivelmente a classe média (com certeza em menor proporção) são os que têm financiado o déficit. Estão pagando pelo pão barato, pela energia elétrica e taxas de telefone baratas de uma forma ou de outra. No entanto, transferir o problema para as finanças públicas não torna os pobres ainda mais pobres; ao contrário, é possível evitar a desorganização da economia, criando assim uma boa chance de os salários reais aumentarem realmente.1 1 Esta foi, na verdade, a experiência de uma série de estabilizações, notadamente a da Alemanha.

Imaginemos que todos os preços do setor público se tenham elevado em termos reais a um nível compatível com a utilização eficaz de recursos à luz dos custos de oportunidade. Imaginemos também que a taxa de câmbio tenha sido unificada e um nível de competitividade tenha sido estabelecido. Finalmente, que a arrecadação fiscal tenha retomado os níveis de meados dos anos 80. O que irá acontecer com o padrão de vida da classe trabalhadora? O argumento superficial é que a combinação da tributação com os preços públicos elevados e uma elevada taxa de câmbio reduzem o poder aquisitivo dos salários reais mesmo mais tarde. Portanto, tal estratégia é inaceitável. Mas há aqui um equívoco.

Quando o governo incorre em déficit porque o Banco Central está comprando divisas a uma taxa alta e as vende a um preço baixo, alguém está ficando com a diferença. Quando o governo vende energia elétrica ou pão a um preço abaixo do custo de produção, alguém retém a diferença. Quando a arrecadação fiscal do governo cai para muito menos da metade e fica abaixo dos gastos correntes, alguém se apropriou dessa queda de receita. É essencial, portanto, perguntar quem está ganhando com estas operações. Não há recursos externos aos quais se possa recorrer - empréstimos bancários, reservas, ajuda externa - e, pois, as perdas do governo estão sendo financiadas domesticamente. Uma possibilidade é que as classes altas estejam pagando a conta, o que pode justificar talvez, do ponto de vista dos trabalhadores, a continuidade do sistema, mesmo com a inconveniência da instabilidade inflacionária. Os mais pobres poderiam estar, inclusive, tirando algum proveito da situação. Entretanto, ninguém acredita que este seja o caso. Ao contrário, os trabalhadores estão pagando pela baixa arrecadação de impostos sobre as classes média e alta; pelas baixas tarifas telefônicas e de eletricidade; e pelos baixos preços pagos por alimentos usufruídos pelas classes mais privilegiadas.

A maior parte dos custos recai certamente sobre os grupos sociais de mais baixa tenda, que retêm moeda e veem suas poupanças remuneradas a taxas de juros reais negativas, além de sofrer com a corrosão de seus salários reais. Se este for o caso, não há argumento social possível contra a estabilização. A estabilização permitirá uma equidade maior na distribuição de renda, ao jogar o peso do ajuste das contas do setor público sobre os grupos mais ricos da população. É claro que a estabilização não é um jogo de soma negativa; uma economia estável pode melhorar a vida de todos, uma vez que a produção e o investimento poderão ser retomados.

Em suma, qualquer argumento de que a correção do déficit público é inviável devido à austeridade deve ser questionado. Todas as evidências indicam que a estabilização reduz sensivelmente o ônus incidente sobre os 50% mais pobres da sociedade. Normalidade alcançada. Os salários reais aumentarão, assim como o pão ficará bem mais caro. Mas os serviços de educação e saúde poderão ser retomados e as poupanças não serão corroídas automaticamente pela inflação.

Todo o país que passou por inflação elevada e processo de estabilização teve a mesma experiência: durante muito tempo a estabilização foi “politicamente” impossível. Em última análise, a estabilização de fato atravessa um longo período de transição antes de ser bem-sucedida. Adiá-la significa apenas reduzir ainda mais os salários reais.2 2 Isto é incidentalmente o que têm dito os soviéticos agora, uma vez que guinaram em direção ao topo da inflação extrema - nievazmozhno.

O argumento fundamental quanto à impossibilidade de se implementar uma política de estabilização é a fragilidade do governo. Tal argumento é o mesmo onde quer que a questão surja; não é de se surpreender, uma vez que é difícil de se entender como a instabilidade econômica poderia ter-se arraigado. Mas as evidências sobre esta questão são bastante elucidativas. No final das contas, são os governos fracos que conseguem a estabilização da economia!

O passo simplificador importante é sempre um gabinete de unidade nacional e poderes econômicos emergenciais para os governos democráticos.

Principais escolhas

As políticas de estabilização envolvem importantes escolhas de estratégias: ortodoxia ou heterodoxia, tratamento de choque ou gradualismo.

A ortodoxia está mal falada hoje em dia. Na verdade, nunca teve urna boa reputação. Mas há alguma alternativa? As experiências heterodoxas, sob o comando de Alan García, no Peru, Alfonsín, na Argentina, Sarney, no Brasil, não deram certo. A mensagem é alta e clara: sem reforma fiscal, a estabilização não se sustentará. Embora também seja verdade que sem política de rendas o processo de estabilização pode ser desnecessariamente perverso.

A segunda dimensão de escolha é o gradualismo versus choque. Deveria um governo procurar reduzir gradualmente no tempo a inflação de cinquenta para quarenta, trinta, vinte, dez por cento? Se tal estratégia pudesse reduzir os custos ou oferecer uma chance maior de sucesso teríamos, então, forte argumento a favor do gradualismo. Mas a estabilização é, essencialmente, uma escolha do tipo “tudo ou nada”. Para elevar os salários reais, a normalidade é essencial e significa atingir rápido uma taxa moderada de inflação, bem abaixo de dez por cento.

Tabela 4
Desaceleração da Alta Inflação

Gradualismo não significa não fazer nada; mesmo o gradualismo terá, em algum momento, que começar. Ele pode não estar presente durante alguns meses; neste meio tempo, a economia pode desorganizar-se ainda mais. De fato, o gradualismo pode criar uma situação em que a crescente desintegração da economia pode escapar às medidas de estabilização tomadas, de tal modo que o efeito líquido seja a piora e não a melhoria. O gradualismo gera um longo período de “calmaria” na economia, extirpando a inflação do sistema através do controle do orçamento público e de desemprego. O tratamento de choque exige um ajustamento fiscal mais forte logo de início e, por isso, deve vir acompanhado de políticas de renda que levem a economia muito mais rapidamente para taxas mais baixas de inflação.

Tratamento de choque não precisa de credibilidade, uma vez que todas as medidas já foram tomadas quando da sua implementação, ao invés de serem prometidas para o futuro. Ainda mais que o apoio político necessário para um lento processo de queda da inflação é muito frágil e facilmente reversível. Por estas razões, deve ser desfechado um ataque vigoroso. A estabilização deve começar imediatamente e o primeiro passo é uma forte correção do orçamento fiscal; nada menos do que um equilíbrio das contas públicas deve ser alcançado. Após esta fase, o gradualismo pode ser usado para monitorar o processo e fazer outros ajustes que reforcem a estabilidade financeira e a reativação sustentada da economia.

II. COMO ESTABILIZAR A ECONOMIA

Uma estabilização bem-sucedida precisa de dois tipos de políticas. De um lado, o déficit público deve ser eliminado. Ao mesmo tempo, políticas de renda devem ser utilizadas para quebrar a inércia e gerar uma abrupta queda da taxa de inflação. Nenhuma das duas medidas de política econômica alcançará sucesso sozinha. São, assim, estratégias complementares.

Ajuste fiscal

Um ponto ficou bastante claro com o fracasso das experiências heterodoxas no Peru, Brasil e Argentina nos anos 80: sem ajuste fiscal não pode haver uma redução da inflação de caráter definitivo. Para ilustrar este fato, o gráfico a seguir mostra de maneira notável o comportamento da taxa de inflação durante várias experiências heterodoxas da economia brasileira, que não contaram com o suporte do ajuste fiscal.

Gráfico 2
Planos de Estabilização Inflacionária (mensal, média móvel 3 meses)

Receitas

A base filosófica para o ajuste fiscal é que democracia e desenvolvimento têm como pré-requisito a adoção de uma vigorosa política tributária. Em outras palavras, uma ampla base de tributação: taxas moderadas, mas incidentes sobre toda a sociedade (sem privilégios de isenções e subsídios). Para tanto, cinco medidas são cruciais:

  • Melhoria imediata da administração fiscal e combate à evasão de tributos. Para isso, é necessário o cumprimento de leis tributárias bastante rigorosas. A experiência do México mostra como isto pode ser feito, gerando rápidos resultados. Neste contexto, faz-se necessário sinalizar que sanções legais serão utilizadas.

  • A base tributária precisa ser expandida, de modo a incluir toda a atividade econômica.

  • Aumento imediato dos preços do setor público a níveis internacionais. Estes novos preços devem, então, ser indexados automaticamente em intervalos mensais.

  • Unificação da taxa de câmbio comercial de modo a eliminar as perdas com divisas e dar mais ênfase à política aduaneira.

  • Aumento das taxas de juros sobre empréstimos, tornando-as positivas em termos reais.

  • Um imposto extraordinário sobre as rendas das famílias de alta renda. Estes recursos funcionariam como uma ponte até que a melhoria na administração fiscal começasse a dar resultados em termos de receitas.

  • A política comercial deveria deixar de ser feita através de barreiras burocráticas (concessão de licenças e quotas) e passar a se utilizar de uma taxa aduaneira uniformemente elevada.

Muitas dessas medidas são autoexplicativas. Mas alguns comentários são úteis. Na administração fiscal, é fundamental mostrar que as atitudes do governo são dignas de crédito. A anistia fiscal deveria ser declarada para os débitos anteriores a 1989. Atrasos de no máximo um mês nos pagamentos dos tributos relativos a 1989 deveriam ser admitidos, atrasos maiores deveriam ser fortemente penalizados: os sonegadores deverão ir para a cadeia. Uma Corte tributária especial poderia agilizar esse processo. Assim, o governo acabaria com o lugar-comum de que todos são corruptos e demonstraria sua determinação em fazer com que as leis fossem cumpridas.

Em relação ao imposto extraordinário sobre as grandes fortunas, a sua coleta tem que ser direta e imediata. Deve ser fixado um nível que seja grande o suficiente para ter impacto no orçamento público e, por outro lado, possa ser pago sem grandes sacrifícios. Por exemplo, US$ 700 por família entre os dez por cento das famílias mais ricas poderia ser o nível correto.

O recolhimento poderia dar-se da seguinte maneira: as famílias com renda superior a um nível específico são chamadas a fazer o pagamento numa conta bancária num prazo de duas semanas; o não pagamento espontâneo resultará em bloqueio automático de todos os seus ativos bancários, além de um processo criminal.

A falta de vigor para se alcançar o equilíbrio fiscal é socialmente irresponsável. O tratamento de choque no lado tributário é necessário para reverter a tendência de redução da arrecadação fiscal. É justificado em termos sociais porque permite melhor distribuição dos custos da administração pública. Em relação ao temor de que a coleta desse imposto extraordinário possa ser feita periodicamente, a resposta correta é que se o programa for seguido com perseverança, não haverá motivos para se fazer tudo isso em uma próxima vez.

Não pode deixar de ser enfatizado que o ajuste fiscal é um trabalho de reforma, não se restringindo somente às medidas emergenciais, de curto prazo. Antecipação de receitas futuras, imposto extraordinário, recuperação de atrasados não são medidas suficientes para equilibrar o orçamento fiscal por muito tempo. A menos que reformas institucionais profundas sejam implementadas, reduzir-se-á a credibilidade da política de estabilização.

Algumas mudanças necessárias na área tributária levam muito tempo para produzir resultados, o que torna urgente o começo de sua implementação.

Gastos

Os gastos do governo, apesar de cortados bruscamente como fração do PIB, necessitam de uma revisão de modo a elevar sua produtividade. A compressão do salário real é uma medida insuficiente e não duradoura de ajuste dos gastos públicos.

Entre as reformas necessárias nos gastos públicos, podemos citar cinco:

  • Um sistema de monitoramento dos gastos de modo a reduzir o nível de corrupção.

  • Fim imediato dos programas socialmente regressivos.

  • Redução do emprego no setor público, trabalhadores receberiam generosas indenizações (com os recursos provenientes da arrecadação do imposto extraordinário) deixando o emprego em poucas semanas.

  • Um maior espaço para a participação do setor privado em projetos de infraestrutura nos moldes praticados hoje no México.

  • Por fim, uma ampla privatização. No mundo de hoje, da URSS à Espanha, da Hungria à Argentina, a privatização é a resposta do governo para o ajuste fiscal e para o desafio da modernização. No Peru, certamente, existe espaço para um grande e rápido programa de privatização. Os preços das ações de estatais podem estar baixos, o que reflete acima de tudo as perspectivas assustadoras. Esperar mais para privatizar implicará apenas que os preços poderão ser ainda menores. Realisticamente falando, se o processo de privatização começasse hoje levaria muito tempo antes que fosse completado. Se a estabilização for realizada no momento certo, o lado financeiro já terá melhorado.

Política de rendas

O equilíbrio orçamentário assegura que a fonte da expansão monetária passa a estar sob controle. Mas esta não assegura um fim instantâneo da inflação. Todos os meses, semanas e mesmo dias, salários, preços e taxa de câmbio são reajustados com o objetivo de manutenção do seu valor real. Muitos desses reajustes, senão a totalidade, são feitos utilizando a inflação passada. Isto gera uma inércia inflacionária automática. Não se pode esperar que este processo seja quebrado automaticamente pelo simples fato de que se alcançou o equilíbrio orçamentário do governo. É verdade que alguns preços são ajustados em função da inflação esperada, mas isto é verdade para os preços que são ajustados quase que diariamente em função da taxa do câmbio paralelo.

A política de rendas é utilizada para assegurar uma quebra brusca desse processo instável de remarcação de preços. O exemplo da Argentina é bastante ilustrativo: o fracasso da utilização de políticas de renda (porque a heterodoxia passou a ter uma péssima reputação) resultou atualmente em taxas mensais de inflação entre 10 e 15%, mesmo com o resultado do tesouro apresentando superávits durante alguns meses.

Depois da unificação e alinhamento das taxas de câmbio e dos preços do setor público, estes devem ser indexados. O padrão mínimo para desvalorizar o câmbio deve ser de, pelo menos, duas vezes por semana; os preços do setor público devem ser reajustados com a periodicidade mensal. Os salários devem ser mantidos fixos durante seis meses com correção plena a posteriori.

Pode-se argumentar que a indexação dos preços do setor público e a taxa de câmbio implicará em redução do salário real. Este processo não é correto e nem desejável. Hoje os salários reais são corroídos logo após as correções cíclicas; isto quer dizer que com a inflação o salário médio real durante o mês é menor do que seria se não tivéssemos inflação. Uma grande queda na taxa de inflação, agiria por si só no sentido de aumentar o poder de compra dos salários. Este efeito é reforçado pelo fim do imposto inflacionário. A economia poderia se ajustar de maneira que o ganho real dos assalariados seria mantido no nível anterior ao processo de estabilização: eles pagam mais pelo pão, contudo, eles pagam menos imposto inflacionário. Em outras palavras, no início do mês o salário real parecerá menor do que era antes, mas, no fim do mês, será substancialmente maior do que ocorreria sem a estabilização da economia. Neste sentido, o salário real não precisa cair. Talvez haja espaço para ir ainda mais longe no curto prazo; preços de muitas mercadorias hoje embutem um ágio que reflete os riscos e incertezas das negociações. É comum nos processos de estabilização ver esses ágios desaparecerem e contribuírem ainda mais para a estabilização do nível de preços e aumento do salário real.

As correções dos preços públicos, taxa de câmbio e salários devem representar idealmente um sinal de localização e não processo descontrolado de inflação. Por isso, devem ser fixados os preços em dólares para o setor público, e traduzidos em intis à nova taxa de câmbio unificada. Os salários, corrigidos pela inflação passada, desde a última correção que tenha ocorrido, mais um bônus de 5% (a serem pagos em duas vezes), seriam, então, congelados por seis meses, quando seria aplicada a correção pela inflação ocorrida no período. O bônus sobre o salário é justificado em função de que o declínio na demanda real vinha sendo muito grande, em parte, porque o poder de compra dos salários era muito baixo. É justificado também pelo fato de que a unificação cambial e a desregulamentação (a ser mencionada à frente) aumentam a lucratividade das empresas o suficiente para permitir o pagamento de salários reais mais altos.

No processo de ajustamento, por um período limitado, o governo deverá organizar um programa emergencial de distribuição de cesta alimentícia que será direcionado exclusivamente àqueles grupos sociais que ficaram irremediavelmente empobrecidos com o plano de estabilização. É essencial identificar e delimitar o grupo que deve receber alimentos em espécie; não deve ser doação à população como um todo.

Taxa de câmbio

A taxa de câmbio exerce um papel triplo na estabilização. Primeiro, o nível a ser fixado deve ser tal que permita um setor exportador altamente competitivo. Quando a economia reagir e finalmente retomar o crescimento e investimento, o superávit comercial tenderá a desaparecer. Para evitar gargalos no setor externo e um deslocamento das atividades de exportação para a satisfação do mercado doméstico, é necessário que a taxa de câmbio seja altamente competitiva. Uma forte apreciação real pode solapar a expectativa de um crescimento sustentado. O Chile é uma demonstração cabal de como a política cambial pode ajudar a construir ao longo do tempo um setor externo bastante dinâmico.

Segundo, taxas de câmbio múltiplas levam a alocações erradas de recursos e a problemas fiscais. A Tabela 5 mostra a variedade de câmbios e os custos que implica no orçamento do governo. A taxa de câmbio é um forte instrumento de redistribuição de renda. Política fiscal e, finalmente, saúde e educação são instrumentos muito melhores.

Tabela 5
Taxas de Câmblo - Percentagem da taxa oficial (Média do Período)

Terceiro, a taxa de câmbio real deve ser mantida-se necessário, por frequentes desvalorizações - de maneira a evitar especulação, a tendência de fuga de capital ou dolarização. É evidente que tal estratégia aumenta o peso nas políticas de renda e fiscal para combater a inflação ressurgente.

Desregulação

O governo deve estar interessado em desregular instantaneamente. Uma área importante onde isto pode ser feito é o setor do comércio exterior. Todas as licenças e permissões, autorizações antecipadas etc. devem ser revogadas o mais rápido possível. Em contrapartida, o governo deve instituir uma tarifa alta e uniforme. Uma taxa apropriada para começar poderia ser de 50%.3 3 A tarifa média atual está próxima de 45%. Uma vez que se retome o crescimento e a balança comercial continue a se apresentar em equilíbrio, abre-se espaço para a redução das tarifas de modo a se atingirem níveis mais moderados. Mas não deve existir urgência em fazer isso; a urgência é em alcançar a abertura, a prioridade é atingir uma estrutura ampla e não corrupta de receitas de taxas aduaneiras.

O governo deve agir de modo similar nas outras áreas onde a desregulação excessiva impede um forte crescimento da produtividade. Esta deve ser a palavra· de ordem porque, se os salários reais estão crescendo, somente o aumento de produtividade poderá garanti-los. Experiências mundiais demonstram que a desregulação é o mais forte mecanismo para gerar aumentos de emprego e de salários reais.

Taxa de juros real

O sistema financeiro do Peru está inteiramente desativado; a intermediação foi destruída por taxas reais de juros consistentemente negativas. A taxa de juros real é extremamente negativa, como pode ser visto na Tabela 6. O valor real do depósito de um inti em junho de 1988, com o reinvestimento de todos os juros ganhos no período, caiu em junho de 1990 para apenas 0.04 inti; um empréstimo, com a capitalização dos juros do período teria declinado, no mesmo período, para 0.11 inti!

Tabela 6
Taxas de juros Real (média mensal)

As taxas de juros para aplicações devem ser no mínimo zero e, melhor ainda, marginalmente positivas. Isso suportará a remonetização da economia, fornecendo um suporte para financiar a expansão da atividade econômica. No lado dos empréstimos, a taxa real de juros deve refletir o uso alternativo da poupança,

A mudança para taxas reais de juros positivas provavelmente levará à insolvência firmas e bancos. Mesmo que isto ocorra em grande escala, não pode ser argumento para a manutenção da taxa de juros real negativa. De preferência, torna-se um caso para a reforma monetária, onde títulos bancários e compromissos financeiros são reduzidos ou eliminados. Existem precedentes disto em alguns casos. As principais lições a serem tiradas são: primeiro, com taxas de juros negativas a estabilização é inviável; segundo, a manutenção de bancos em péssima situação financeira gera rapidamente forças desestabilizadoras uma vez que os bancos fazem péssimos empréstimos.

III. ESTABILIZAÇÃO COMO UM PROCESSO

O governo deve fazer com que a estabilização - rápida e completa - seja sua única e mais importante tarefa. Somente com amplo comprometimento e esforço diário haverá confiança em que a estabilização finalmente terá êxito. Estabilização bem-sucedida é um processo que vai além da adoção de medidas imediatas. Isto pode ser visto no caso de Israel ou do México e também pode ser extraído das experiências de estabilização nos anos 20 na Alemanha, Áustria e outros.4 4 Ver SCHACHT, H. The Stabilization of the Mark, reimpresso por Arno Press, Nova York, 1973. Nações Unidas The Financial Reconstruction of Austria, Genebra, 1926. DORNBUSCH, R. &S. FISCHER. “Stopping Hyperinflation Past and Present” Weltwirtsschaftliches Archiv, 122(1), 1986.

O principal problema nesta fase é não permitir que os desequilíbrios surjam. Especificamente, o governo deve ter certeza de que os preços do setor público e da taxa de câmbio real não se degenerarão como no passado. Se isto ocorrer, perde-se a confiança no sucesso do plano. O público dá-se conta de que em algum momento, no futuro, com a correção dos desequilíbrios, a inflação retornará. A estabilização deve ser tal que não permita voltas; a velocidade da estabilização (rápida ou lentamente) pode ser administrada, mas a direção do processo deve ser sempre de conseguir taxas de inflação menores à frente e não permitir o aparecimento de desequilíbrios adicionais.

Esse conselho seria óbvio se a luta contra a inflação não fosse um problema perene que às vezes induz à tentação de reduzir as depreciações cambiais e postergar os reajustes dos preços públicos. Essa tentação está sempre presente e representa um perigo para a estabilização. Deve ser evitada pela adoção de regras de indexação rigorosas; o melhor raciocínio aqui é que um país estará muito melhor com inflação moderada, mesmo não sendo zero, que com políticas de inflação zero por algum tempo que, com a sobrevalorização do câmbio e taxas reais de juros impróprias, logo entrarão em colapso.

É conhecida a dificuldade de derrubar a inflação a zero; nenhuma nação do mundo o conseguiu e não será o Peru a pretender realizar tal feito. Muitos países que conseguiram derrubar a inflação de forma acentuada (Bolívia, Israel e México, por exemplo), chegaram, ao fim, a taxas entre 15 e 25% ao ano. Não existe nenhuma razão de se destruir para alcançar a taxa zero. A ênfase deve ser dada em levar a inflação abruptamente para algo próximo de zero e deixar qualquer outro esforço, se necessário, para um próximo momento. Esta posição não é condescendente com a inflação, mas decorre de lições tiradas de experiências de estabilização em outros países. Erros nas primeiras semanas do plano facilmente geram moderada inflação anual, inevitavelmente. Não vale a pena pôr em risco todo um esforço de estabilização para se alcançar o objetivo de “inflação zero a qualquer preço”.

A indexação tem um papel fundamental no sucesso da estabilização. A ideia de que os salários devem absorver o choque que assegura a inflação zero é irrealista. A teimosia em arrochar os salários para obter melhores resultados com a inflação provoca somente crise social e um colapso na atividade econômica, que não ajuda as contas públicas. Instabilidade política e desequilíbrio fiscal são elementos perigosos na expectativa de estabilização. A indexação é uma força de estabilização desejável. Cria-se inércia em torno de um baixo nível inflacionário e é exatamente esta inércia que é necessária para reconstruir a credibilidade e colocar a economia de volta aos trilhos.

  • 1
    Esta foi, na verdade, a experiência de uma série de estabilizações, notadamente a da Alemanha.
  • 2
    Isto é incidentalmente o que têm dito os soviéticos agora, uma vez que guinaram em direção ao topo da inflação extrema - nievazmozhno.
  • 3
    A tarifa média atual está próxima de 45%.
  • 4
    Ver SCHACHT, H. The Stabilization of the Mark, reimpresso por Arno Press, Nova York, 1973. Nações Unidas The Financial Reconstruction of Austria, Genebra, 1926. DORNBUSCH, R. &S. FISCHER. “Stopping Hyperinflation Past and Present” Weltwirtsschaftliches Archiv, 122(1), 1986.
  • *
    Tradução de Mauricio Gutemberg Lima Silva
  • 6
    JEL Classification: O43; E60; E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1991
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