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A economia monetária, a poupança e o financiamento: do Tratado à Teoria Geral* * Agradeço a Fernando Cardim de Carvalho as críticas e comentários feitos à versão original deste trabalho.

The monetary economy, savings and financing: from the Treatise to the General Theory

RESUMO

A ideia de economia monetária desempenhou um papel importante no movimento de Keynes do Tratado sobre o Dinheiro (1930) para a Teoria Geral (1926). Ele estava tentando trabalhar um novo paradigma econômico que, em oposição à lei clássica de Say, pudesse lidar com as flutuações e incertezas do mundo real. O objetivo deste artigo é apresentar as teorias de poupança e finanças de Keynes no Tratado e mostrar a importância da versão de 1936-1937 para o funcionamento de uma economia do mundo real.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; Keynes

ABSTRACT

The idea of monetary economy played an important role in Keynes’s movement from the Treatise on Money (1930) to the General Theory (1926). He was trying to work a new economic paradigm which, in opposition to the classical Say’s Law, could deal with the fluctuations and uncertainties of the real world. The purpose of this article is to present Keynes’s theories of savings and finance in the Treatise and to show the importance of the 1936-1937’s version to the functioning of a real-world economy.

KEYWORDS:
History of economic thought; Keynes

O intuito de Keynes ao propor um novo marco conceitual - a economia monetária - alternativo à lei de Say ricardiana não se resumia a uma mera preocupação acadêmica com a incapacidade da visão clássica1 1 Utilizou-se neste trabalho o conceito de economia clássica na mesma acepção usada por Keynes na Teoria Geral: “acostumei-me ... a incluir na ‘escola clássica’ os seguidores de Ricardo, ou seja, os que adotaram e aperfeiçoaram sua teoria, compreendendo, por exemplo, J. S. Mill, Marshall e o prof. Pigou” (Keynes, 1978, p. 15). para lidar com o mundo real e, particularmente, com as crises do capitalismo. Para ele era ainda mais importante ampliar a legitimidade e a capacidade de persuasão de suas ideias diante do pensamento econômico hegemônico na sociedade anglo-saxônica dos anos 30. Sabia, entretanto, que iria enfrentar um adversário de peso:

“(A escola do auto-ajustamento) tem um enorme prestígio e uma influência muito maior do que parece à primeira vista. Isto porque está por trás da educação e dos modos habituais de pensamento, não apenas dos economistas, mas dos banqueiros, homens de negócio, funcionários públicos e políticos de todos os partidos” (Keynes, 1973aKEYNES, J.M. (1973a). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 13, Londres: Macmillan. , p. 488).

Diante dessa perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo abordar os aspectos relacionados à poupança e ao financiamento em uma economia monetária. Inicialmente, será apresentado o conceito de economia monetária, acentuando suas diferenças ante os postulados da economia clássica. Em seguida, buscar-se-á marcar as diferenças entre a visão de Keynes a respeito da poupança no Tratado da Moeda (1930), quando ainda estava preso à tradição wickselliana, e na Teoria Geral (1936), quando já está definitivamente rompido com o pensamento ricardiano. Em seguida, recupera-se o debate de 1937 com Ohlin quando Keynes estabelece as bases da diferenciação entre os conceitos de poupança, finance e funding. Finalmente, nas conclusões, pretende-se apontar algumas implicações da teoria keynesiana da poupança e do financiamento sobre o funcionamento de uma economia monetária.

A ECONOMIA MONETÁRIA E A ECONOMIA CLÁSSICA

Para Keynes, a economia clássica fundava-se em um “mecanismo qualquer que garante que o valor das rendas monetárias dos fatores é, no agregado, sempre igual à proporção do produto corrente que corresponde à participação do fator em uma economia cooperativa”2 2 Keynes, 1979, p. 78 , ou seja, que iguale despesas e custos agregados sempre ao nível de pleno emprego.

Isso, no entanto, só se verificaria se a moeda cumprisse apenas o papel de meio de pagamentos. O dinheiro facilitaria as trocas, mas em nada afetaria as condições de produção e distribuição e, consequentemente, os preços relativos. Na economia clássica, supunha-se que os resultados das decisões econômicas fossem passíveis de previsão através da probabilidade. O futuro seria determinado pelos antecedentes do passado e pelas circunstâncias do presente. Aos que decidem, não restaria outro papel senão aplicar mecanicamente o cálculo de riscos e benefícios aos dados disponíveis.

Preocupado em explicar as crises, Keynes relevou o papel ativo que a moeda desempenha no mundo real. Ao invés de ser neutra, a moeda atua tanto sobre os preços relativos, através da taxa de juros, quanto sobre as decisões de curto - nível de produção - e de longo prazos - investimento. Para dar conta disso, Keynes buscou integrar à teoria econômica as ideias de incerteza e de tempo do mundo real. Como ele mesmo afirmou:

“... na verdade, só temos, via de regra, a mais vaga ideia sobre as consequências de nossos atos, a menos de seus resultados mais imediatos. De todas as atividades humanas sujeitas a esta preocupação com consequências mais remotas, uma das mais importantes é de caráter econômico e diz respeito à riqueza” (Keynes, 1978, p. 170).

O tempo do mundo real não está, portanto, sujeito a uma frequência previsível de eventos. Tal desconhecimento sobre o futuro é tanto maior quanto mais remoto o resultado econômico esperado. Neste cenário, o comportamento dos empresários passa a ser completamente diferente daquele descrito pela teoria neoclássica. Cada decisão é única pois, uma vez efetivada, torna-se impossível reconstituir plenamente as condições originais em que foi tomada. O agente tem, assim, que se decidir em função de uma perspectiva de realidade não-probabilística, construída em sua imaginação, a partir de seus próprios sentimentos empresariais. O resultado dependerá, entretanto, das atitudes de outros agentes econômicos que não estão sob seu controle direto nem sob o comando de nenhuma instituição centralizadora que pré-concilie e organize todas as decisões empresariais.

Nessa economia sujeita ao tempo do mundo real, a moeda tem um papel radicalmente diferente daquele proposto pela teoria quantitativa. Mais importante do que ser um agilizador de trocas, o dinheiro constitui um instrumento de defesa de cada agente econômico diante da incerteza quanto ao comportamento dos demais no futuro. Em caso de dúvida, a estratégia defensiva dos empresários é adiar sua decisão de investimento para um momento em que se sinta mais seguro quanto ao retorno que pode ser esperado. Nesse meio tempo, poderá usar a moeda como um ativo, uma vez que sua liquidez estará garantida pela existência de contratos que preveem pagamentos em dinheiro. E, no mundo real, os contratos sempre existirão, pois são instrumentos básicos para os agentes alcançarem algum tipo de coordenação ante o futuro incerto.

A moeda deixa, assim, de ser um ativo estéril, como propugnava a teoria quantitativa. Mesmo não rendendo juros, apresenta um prêmio - sua liquidez - que, em um contexto de incerteza, pode ser mais atraente do que um retorno financeiro. No mundo real, o valor dos ativos não-monetários está sujeito a flutuações em sentido inverso à taxa de juros. A moeda, diferentemente, é imune a eventuais perdas de capital, pois serve de unidade de conta para todas transações da economia. Para um investidor, indeciso diante de um futuro incerto, o dinheiro sempre é o veículo mais seguro de transferência de seu capital no tempo3 3 Uma das características básicas da economia monetária é utilizar como moeda algo que garante um elevado prêmio de liquidez; para isso é preciso que: “a moeda (tenha) tanto a longo como a curto prazo, uma elasticidade de produção igual a zero ou pelo menos muito pequena ... (e que além disso) tenha uma elasticidade substituição igual, ou quase igual, a zero” (Keynes, 1983, pp. 161-162). .

Sem dispor de qualquer mecanismo automático de ajuste, a economia monetária é intrinsecamente sujeita a flutuações. Cientes disso, os empresários realizam suas decisões de produção e de investimentos a partir dos preços esperados e dos custos correntes em moeda e não com base na desutilidade marginal dos fatores. Até porque “em uma economia empresarial, o volume de emprego, cuja desutilidade marginal é igual à utilidade de seu produto marginal, pode ser não-lucrativo em termos monetários”.4 4 Keynes, 1979, p. 79. Desse modo, o equilíbrio descrito pela economia clássica se resume a uma das possibilidades de equilíbrio da economia monetária, o de pleno emprego. Foi com esta ideia em mente que Keynes decidiu denominar seu livro de 1936 de Teoria Geral (TG).

É, no entanto, importante observar que, ao longo dos anos de preparação da TG, a relevância do conceito de economia monetária em seu conteúdo variou consideravelmente. Nos rascunhos de 1933, percebe-se claramente que pretendia estruturar sua nova obra a partir da ruptura conceitual com a economia clássica.5 5 Idem, pp. 62-63. Entretanto, na versão definitiva, a ênfase do livro foi radicalmente mudada. Os aspectos mais importantes passaram a ser: a função consumo, o multiplicador e a preferência pela liquidez. As questões relacionadas à economia monetária foram reduzidas a algumas linhas do parágrafo único do capítulo 1 e a poucas páginas dos capítulos 17 e 21.

As causas que levaram Keynes a realizar esse recuo são difíceis de serem precisadas. O mais provável é que tenha feito uma decisão estratégica com o objetivo de impedir que o debate estritamente acadêmico viesse a reduzir ou a comprometer o impacto político potencial de suas ideias. Dentro dessa perspectiva, a Teoria Geral, longe de ser uma obra teórica acabada, é um livro que tem por objetivo imediato persuadir os leitores, até então conquistados pela ‘’Santa Inquisição’’ ricardiana, a aceitar a consistência de políticas macroeconômicas de estímulo à demanda efetiva.

A evidência de que Keynes não havia definitivamente abandonado a concepção de economia monetária na TG é encontrada em sua resposta às críticas de Jacob Viner6 6 Ver “A Teoria Geral do Emprego” em Keynes, 1978. , publicada em 1937, onde retoma, com todo vigor, os conceitos de tempo, incerteza e moeda em um mundo real.

DO TRATADO À TEORIA GERAL

Em seu Tratado da Moeda (TM)7 7 “Um dos principais objetivos deste Tratado é mostrar que temos aqui a chave do mistério de como acontecem as flutuações nos níveis de preços ao nível fixo de em torno equilíbrio”, Keynes, 1953, p. 153. , Keynes ainda não estava preocupado em romper com a economia clássica. Ao contrário, seu objetivo era, além de integrar os aspectos real e monetário, superar o caráter estático do pensamento clássico. Nesse percurso, foi profundamente influenciado pelas ideias de Knut Wicksell. Chegou mesmo a afirmar que “a intenção e a substância da teoria de Wicksell é muito semelhante à teoria deste Tratado”8 8 Idem, p. 186. . Como veremos adiante, sua preocupação com a existência de uma taxa natural de juros, mesmo que determinada pelas expectativas, e com a possibilidade de o equilíbrio ser perturbado pelo sistema bancário eram claras influências wicksellianas.

No TM, Keynes buscou, já nas definições conceituais, marcar as diferenças entre os níveis de equilíbrio e as flutuações. Como um bom marshalliano, considerou o lucro um ganho - ou perda - inesperado (windfall) dos empresários. É uma remuneração que não está prevista no cálculo relativo ao ponto da escala de produção que, em equilíbrio, maximiza o retorno do empresário, dados os preços relativos dos fatores. Assim, o lucro (Q) é a diferença entre a renda dos fatores (Y) e o custo de produção.

Essa diferença entre a renda dos fatores e o custo de produção tem, segundo Keynes, origem no fato de o processo econômico levar tempo. Existe uma defasagem temporal entre a decisão de investir e a entrada em funcionamento de uma nova capacidade de produção. Isto faz com que, perante uma frustração negativa de suas expectativas, nem sempre o empresário possa recuar de todas as suas decisões, devido aos contratos de longo prazo que já firmou. Do mesmo modo, mesmo diante de perspectivas de maiores lucros, “o período que necessariamente decorre antes do aumento da oferta de fatores especializados e os contratos de longo prazo ... que os empresários têm que firmar para promover este aumento de oferta, são explicações de por que, por um certo prazo de tempo, os lucros podem existir”.9 9 Ver Keynes, 1953, p. 126.

Esse lucro inesperado não constitui, para Keynes, parte da poupança (S) da comunidade pois, do contrário, o nível de poupança seria independente de seu nível de consumo (C). Por este motivo, a poupança é também definida com base no nível normal de renda. Do mesmo modo, a riqueza da comunidade (W) passa a ter duas fontes de expansão, a poupança e os lucros. Neste sentido:

Y = Q + S + C (1)

dW = Q + S (2)

Como o valor do investimento corrente (1) é idêntico ao aumento da riqueza da comunidade (dW), pode-se reescrever a equação (2) da seguinte forma:

I = Q + S (3)

Finalmente, da equação (3), pode-se deduzir a determinação dos lucros:

Q = 1 S (4)

Para Keynes, as equações (3) e (4) estão sujeitas ao princípio da demanda efetiva. É o dispêndio, particularmente em bens de capital, que determina o nível de renda. Caso o investimento seja superior à poupança surge uma parcela de lucros. Estes lucros necessariamente servirão de fonte de financiamento do investimento que foi realizado, independentemente das decisões individuais de consumo ou de poupança. Se, por exemplo, algum empresário desejar consumir parte de seu lucro, o que estará fazendo, na prática, é transferir, através do aumento dos preços, uma parcela de seu lucro para um empresário do setor de bens de consumo. Do mesmo modo, se decidir aumentar sua poupança, de forma imprevista, em detrimento de seu consumo normal, o resultado será a geração de prejuízos de igual valor, para os produtores de bens de consumo. Em ambos os casos, o volume de renda necessário ao financiamento do investimento não se altera.10 10 Keynes, 1953, p. 139.

Como, no entanto, a produção leva tempo e os empresários decidem a partir de suas expectativas, a existência de lucros inesperados tende a afetar as decisões de produção e de investimento nos períodos seguintes. Como Keynes afirmou: ‘’os lucros (ou prejuízos) uma vez trazidos à existência ... tornam-se causa do que, subsequentemente, se segue; de fato, ... o lucro ou o prejuízo previsto é a mola principal da mudança”11 11 Idem, p, 159. Através de seu efeito sobre as expectativas, o lucro desencadeia um processo cumulativo de desequilíbrios (à la Wicksell). Não há, assim, nenhum mecanismo automático que garanta a permanência da economia em uma situação de equilíbrio.

Nesse processo, os bancos cumprem um papel fundamental. É a capacidade de os bancos, autonomamente, expandirem a liquidez e o crédito que vai permitir que ocorram desequilíbrios entre a poupança e o investimento. Não basta que os empresários estejam antecipando boa rentabilidade para que decidam investir. ‘’Eles (também) têm que ser capazes de ter sob seu comando uma quantidade apropriada de dinheiro e de recursos de capital e, para tanto, é necessário que a taxa de juros não seja tão alta a ponto de detê-los.’’12 12 Idem, p. 182.

A taxa de juros que equilibra a poupança ao investimento foi chamada por Keynes, seguindo a tradição wickselliana, de natural.13 13 Apesar de manter o mesmo nome utilizado por Wicksell, Keynes formula sua curva de investimento com base nas expectativas dos empresários e não do estado da técnica.

Quando a taxa de juros efetiva ou de mercado se distancia da natural, abre-se um hiato entre a poupança e o investimento e os bancos passam a ter um papel de relevo na determinação do dispêndio agregado.

Na Teoria Geral, a questão da poupança toma um caráter diferente. Keynes abandona a ideia da existência de um centro de gravidade no sistema econômico. Em uma economia monetária, perde sentido identificar-se um ponto de equilíbrio estável a longo prazo. Pela mesma razão, deixam de ter utilidade alguns dos conceitos do Tratado como o lucro inesperado e a taxa natural de juros. Também deixa de ter sentido o princípio da substituição entre poupança e consumo. No TM, “seria anômalo se adicionar os lucros à renda ... pois, neste caso, a poupança jamais poderia reduzir-se, qualquer que fosse a grandeza dos gastos do público em consumo corrente ... “14 14 Keynes, 1983, p. 140. . Entretanto, na Teoria Geral, tal anomalia passa a ser regra. A poupança será sempre igual ao investimento, qualquer que venha a ser o nível de consumo.

O abandono da ideia de centro de gravidade obrigou Keynes a redefinir seu conceito de poupança, tal como formulado no Tratado. Não faz mais sentido manter uma diferença entre S e Q, ou seja, entre a poupança desejada e a forçada. Agora, toda a renda não consumida é, necessariamente, poupança sem qualquer adjetivo.

Como continua valendo o princípio da demanda efetiva, é o nível de dispêndio - o investimento - que determina a renda - poupança - independentemente das decisões individuais de consumo e de poupança.

“A ideia absurda, embora quase universal, de que um ato de poupança individual é tão favorável à demanda efetiva quanto outro de consumo individual emana da falácia ... de que o desejo de possuir uma riqueza, sendo mais ou menos idêntico ao de fazer um investimento deve, aumentando a procura de investimento, estimular a produção respectiva, de onde se segue que a poupança individual favorece o investimento corrente à medida que diminui o consumo atual ... (Ora) para que um indivíduo que poupa possa atingir o seu fim, que é o de adquirir riqueza, não é necessário que um novo bem de capital seja produzido para satisfazê-lo ... O mero ato de poupar realizado por um indivíduo, sendo bilateral, ... obriga outro indivíduo a lhe transferir alguma riqueza, velha ou nova” (Keynes, 1983KEYNES, J.M. (1983). “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”. Os Economistas, São Paulo: Abril Cultural. , p. 150).

Em uma economia monetária, a decisão individual de poupar é, necessariamente, feita em unidades de moeda. Ao fazer isso, o agente abre mão de trocar seu dinheiro por bens de consumo em favor de um aumento de seu patrimônio.15 15 Na teoria clássica, o poupador só deixa de consumir sua renda corrente em favor de um consumo maior em uma data certa de seu futuro. O ativo, no qual este aumento de riqueza se materializará, depende da preferência pela liquidez do poupador que tem a sua disposição desde moeda até bens de capital de retorno a muito longo prazo.

No Tratado, o ajuste entre consumo, poupança e investimento dava-se através do nível de preços, uma vez que as decisões de produção eram dadas e o desequilíbrio inesperado. Na Teoria Geral, a necessidade de ajuste entre a renda, o investimento e as decisões individuais de consumo levam-nos ao conceito de multiplicador. Neste sentido, além de um eventual efeito sobre os preços, um aumento nas despesas tende, também e principalmente, a provocar um aumento da produção, a menos que a economia esteja em pleno emprego.

Assim: no Tratado, todo o processo de mudança tem origem na frustração das expectativas de preços dos empresários - e consequentemente na existência de lucro ou prejuízo inesperado. Na Teoria Geral, o nível de demanda efetiva e de preços está de acordo com as previsões destes agentes. A oferta se ajusta tanto ao impacto primário do gasto autônomo quanto ao secundário, decorrente do efeito multiplicador.

Já a questão do financiamento do investimento é quase que ignorada por Keynes na Teoria Geral. Diferentemente do que havia feito no Tratado, limitou-se a tratar o tema em uma única frase no início do capítulo 13, onde afirma que: “a curva de eficiência marginal do capital comanda as condições em que se demandam fundos disponíveis para novos investimentos enquanto a taxa de juros rege os termos em que estes fundos são corretamente oferecidos’’16 16 Keynes, 1983, p. 121. .

É como se, dada a taxa de juros, os fundos para investimento estivessem assegurados. Com base nesta interpretação, alguns economistas keynesianos tentaram explicar que a poupança financia o investimento no final do processo multiplicador. Para Vitória Chick, tal explicação é estranha pois “não se pode financiar algo, depois que aconteceu, se era necessário financiá-lo antes que acontecesse’’17 17 Chick, 1983, p. 175. Essa questão foi, no entanto, melhor abordada por Keynes em artigos posteriores à Teoria Geral e, por esse motivo, será objeto do próximo tópico deste trabalho.

O DEBATE COM OHLIN

No decorrer de 1937, Keynes teve várias oportunidades de responder aos críticos de seu novo livro. Seu principal interlocutor nessas controvérsias foi Bertil Ohlin, um economista sueco de tradição wickselliana. Ohlin compartilhava com Keynes algumas de suas visões anti-ricardianas e também estava muito preocupado em sustentar propostas que defendessem a utilização do gasto público como instrumento para conter o desemprego. Mesmo assim, atacou violentamente vários aspectos da Teoria Geral.

Ohlin reclamou de Keynes um tratamento menos simplista da questão do financiamento do investimento:

‘’(Seria) errôneo admitir que os empresários planejam levar adiante todos os investimentos que creem gerar um retorno superior à taxa de juros que esperam pagar. (A afirmação de Keynes de que a demanda de investimento para capital depende das relações entre a eficiência marginal de capital e as taxas de juros quer, na prática, dizer o mesmo.) De todos os investimentos possíveis, apenas alguns são planejados para o próximo período e, de fato, são iniciados .... (Os) recursos em dinheiro e crédito, que a firma tem disponível no início e que mobiliza ao longo do período constituem um limite superior à sua capacidade de comprar e as expectativas a respeito destes recursos estabelecem um limite a seus planos de investimento” (Ohlin, 1937aOHLIN, B. (1937a). “Some Notes on the Stockholm Theory of Savings and Investment”, Economic Journal, março/junho. , p. 61).

Com relação à taxa de juros, Ohlin concordou com Keynes que sua determinação não podia se dever à poupança e ao investimento, uma vez que estes agregados são sempre iguais ex-post. Entretanto, não aceitou que a preferência pela liquidez constituísse uma teoria alternativa às visões já existentes. Para ele, a teoria keynesiana era compatível com a ideia de que a taxa de juros é o preço do crédito, sendo, portanto, determinada por suas condições de oferta e de demanda, como qualquer bem. Além disso, apontou que havia sido um erro o “retorno” de Keynes à metodologia do equilíbrio, evitando um tratamento “mais dinâmico”, baseado na diferenciação entre conceitos ex-ante - relacionados a planos e expectativas - e ex-post - referidos a um período já terminado.

Em suas respostas a Ohlin, Keynes admitiu falhas no tratamento da questão do financiamento do investimento. Com o objetivo de suprir essa lacuna, introduziu, em sua teoria, a demanda de moeda por motivo finanças, tentando integrar o multiplicador à preferência pela liquidez. Ao mesmo tempo, negou-se veementemente a aceitar a semelhança entre sua teoria da taxa de juros baseada na preferência pela liquidez, e a de Ohlin, apoiada na ideia de fundos emprestáveis e, além disso, discordou da validade de se levar em conta conceitos ex-ante e ex-post em sua análise. Buscaremos, a seguir, recuperar este debate entre Keynes e Ohlin.

Na Teoria Geral, só são admitidos três motivos de demanda de moeda: o transacional, que se refere ao dinheiro necessário para fazer frente ao intervalo entre o momento do recebimento das receitas e o da efetivação das despesas; o precaucional, baseado no atendimento a despesas inesperadas; e o especulativo, requerido para fazer frente às incertezas com relação ao valor futuro da riqueza.

Keynes reconheceu, diante da crítica de Ohlin, que além desses três motivos deveria ter, também, enfatizado a demanda de moeda para financiamento do investimento. Essa antecipação temporária de poder de compra destina-se a cobrir o hiato temporal entre a decisão de investimento (investimento ex-ante) e sua efetivação. Tal adiantamento de poder de compra aos investidores pode advir de três fontes.

A primeira é a própria quantidade de moeda utilizada no período anterior para o financiamento do investimento o que, em uma economia monetária moderna18 18 Em uma economia monetária, o investimento é basicamente financiado por fontes, que não as receitas correntes do investidor; isto, inclusive, faz com que a taxa de juros seja relevante para as decisões de investimento. , é basicamente realizado através de um fundo rotativo, administrado pelos bancos comerciais. Na medida em que a despesa de investimento vai se realizando, o dinheiro utilizado toma-se, imediatamente, disponível para a mesma finalidade.19 19 ‘’O motivo finanças não se refere aos fundos necessários à implementação de projeto de investimento até o fim de sua vida, mas apenas ao dinheiro necessário para iniciar o projeto ... (ou seja) à necessidade de dinheiro entre a decisão de investimento e o início da construção.” Ver Chick, 1983, pp. 198-199.

“O finance é essencialmente um fundo rotativo que não utiliza nenhuma poupança. Para a comunidade como um todo é apenas uma transação contábil. Assim que é utilizado, no sentido de despendido, a falta de liquidez é automaticamente suprida e a capacidade de tornar-se temporariamente ilíquido fica novamente disponível para ser usada de novo” (Keynes, 1973KEYNES, J.M. (1973b). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 14, Londres: Macmillan. , p. 219).

Quando o investimento se mantém constante, ele é autofinanciável, no sentido de que sua realização não requer mudanças na preferência pela liquidez. Se, entretanto, o investimento se expandir, as inversões adicionais representarão uma demanda de moeda, por motivo finanças, superior ao fundo gerado no período anterior. Neste caso, a necessidade adicional de dinheiro poderá ser satisfeita pelos bancos, à mesma taxa de juros, através da expansão de suas operações ativas. Caso contrário, o mercado de crédito ficará congestionado e apenas os investimentos de maior rentabilidade serão viabilizados ao custo de uma taxa de juros mais alta que estimule os especuladores a trocar seus saldos monetários por títulos.

Esse aumento do investimento não poderá ser financiado por um aumento da poupança ex-ante, como propunha Ohlin. Keynes entendia que este conceito se refere a decisões individuais tomadas no período anterior sobre o volume de poupança que será retirado da renda do período seguinte. Ora, para materializar suas decisões, o investidor precisa de algo mais do que intenções de fontes de recursos, ele necessita de dinheiro em seu poder e os poupadores não tendem a abrir mão de seus saldos especulativos no presente em favor de uma expectativa de maior poupança no futuro.

Assim, cabe aos bancos um papel extremamente importante na materialização do crescimento do investimento e, por conseguinte, da renda. Diante da ocorrência de um aumento acentuado do investimento, somente a expansão da liquidez, criada pelos bancos, pode evitar que o volume adicional de decisões de investir seja abortado por uma maior taxa de juros.

Essa análise ilumina a importância dos bancos no processo de financiamento do investimento. Entretanto, deixa em aberto o mecanismo pelo qual as empresas conseguem administrar o risco, em termos de taxas e prazos, de tomar recursos de curto prazo para comprometê-los com a aquisição de ativos de baixa liquidez e retomo a longo prazo, como máquinas e equipamentos. Se alguém se endivida a curto prazo para investir, sua atitude é especulativa, na medida em que aceita uma obrigação de pagamento certo para financiar uma operação que não é capaz de garantir um retomo no tempo definido para saldar o respectivo débito.

Keynes imaginava que o comportamento empresarial era, no processo de investimento, de natureza essencialmente especulativa. Em sua resposta a Ohlin, afirmou que:

“O empresário, quando decide investir, tem que ser satisfeito em dois aspectos: primeiramente, que ele pode obter financiamento de curto prazo suficiente durante o período de produção do investimento; e, em segundo lugar, que ele pode, em seguida, ... realizar o fund de suas obrigações de curto prazo através da emissão de obrigações de longo prazo em condições adequadas” (Keynes, 1973bKEYNES, J.M. (1973b). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 14, Londres: Macmillan. , p. 217, grifo nosso).

Com relação à crítica de Ohlin à preferência pela liquidez, é preciso ter presente que o objetivo de Keynes ao formular sua nova teoria dos juros era distanciar-se, de forma definitiva, das teorias clássica e neoclássica. Ambas são compatíveis com a lei de Say e identificam a determinação da taxa de juros com o equilíbrio entre poupança e investimento. A maior diferença entre as duas está no fato de os neoclássicos admitirem que os bancos e, consequentemente, a moeda, têm um papel ativo neste processo. O sistema bancário pode intervir na determinação da taxa de juros efetiva, fazendo-a distanciar-se daquela relacionada ao equilíbrio natural clássico.

Com a preferência pela liquidez, Keynes completava o arcabouço teórico relacionado ao conceito de economia monetária. A taxa de juros passava a ser determinada pelo mercado de estoques e não mais pela criação de novos ativos. Como o volume de ativos novos representa uma fração pequena dos estoques existentes e como não há diferenciação entre os mercados primário e secundário, a capacidade de os fluxos de investimento e de poupança afetarem a taxa de juros é pequena ou circunscrita a situações extremas.

Com isso, a teoria keynesiana dos juros torna-se incompatível com a neoclássica, baseada nos fundos emprestáveis (LFT). A LFT apoia-se na seguinte equação de usos e fontes de financiamento:

I + H = S + M (5)

ou

I = S + M H (6)

A equação (5) refere-se à igualdade entre oferta e demanda de ativos. Nesse sentido, o investimento, somado ao entesouramento (H), é, em um determinado período, igual à poupança, acrescida da variação na quantidade de moeda (M). A equação (6) permite uma leitura mais próxima à de um quadro de usos e fontes: o investimento pode ser financiado por meio de poupança, do aumento da quantidade de moeda ou pelo desentesouramento.

Como o desentesouramento é descartado como irrelevante, a LFT, na verdade, distingue a existência de duas fontes de poupança: uma desejada e outra forçada. A primeira é oriunda da frugalidade dos consumidores e a segunda advém de expansão monetária. Quando não há mudança no estoque de dinheiro em circulação, a LFT é semelhante à teoria clássica. A taxa de juros é determinada pela igualdade entre a poupança (desejada) e o investimento.

Na Teoria Geral, Keynes não está preocupado com variações autônomas na oferta de moeda. Fica, assim, patente que o ponto que está atacando é a capacidade de a poupança corrente automaticamente financiar o investimento.20 20 Keynes também está atacando a LFT no que se refere à moeda como reserva de valor, mas este assunto foge ao objetivo deste item. De acordo com o princípio da demanda efetiva, a poupança (ex-post) não pode financiar nada na medida em que representa apenas a renda não-consumida, inexistente, portanto, antes da realização do investimento.

Já a poupança ex-ante, como vimos, também não tem como realizar esse papel, uma vez que, para Keynes, só tem sentido microeconômico. E as decisões individuais de poupar são absolutamente impotentes no que se refere à determinação da componente agregada. Qualquer decisão de aumentar a poupança individual, que não venha, por acaso, acompanhada de um simultâneo aumento do investimento, terá como resultado uma queda na demanda efetiva por bens de consumo. Em consequência, aumentará a necessidade desses produtores de buscarem financiamento para suprir as perdas decorrentes de um nível de vendas inferior - e, portanto, um nível de estoques superior - ao desejado. Como se vê, esse ato isolado não levará à criação de nenhum ativo novo. Apenas se gerará uma dívida ou se transferirá um ativo já existente para as mãos do poupador imprevisto.

Caso essa redução individual do consumo levar a que, como ato defensivo, outros agentes econômicos também aumentem sua poupança, o multiplicador atuará de modo a ampliar o impacto primário negativo, deprimindo ainda mais a renda. Apesar da redução das vendas, não se altera o nível de poupança líquida agregada, equivalente à parte da renda que foi poupada como contrapartida do investimento.

Nesse processo, a importância da taxa de juros resume-se apenas ao tipo de ativo que o poupador escolherá para manter sua nova riqueza. A taxa de juros é, desse modo, um dos elementos fundamentais do funding, não interferindo, porém, na determinação do nível de poupança nem vice-versa.

Em suma, a poupança, seja ela qual for, não exerce, para Keynes, qualquer papel relevante no finance. Na verdade, dada uma curva de eficiência marginal do capital e mantida uma política acomodativa por parte dos bancos, o financiamento será igual às necessidades de liquidez dos investidores. Trata-se, portanto, de um aspecto estritamente monetário. A taxa de juros, por sua vez, não atua na determinação do montante de poupança que é, sempre, o efeito, em termos de renda, da efetivação do investimento. Entretanto, uma vez que a renda não-consumida tenha sido gerada - e o é sempre sob a forma de moeda - será incorporada ao patrimônio dos poupadores nas diferentes formas de ativos financeiros, em função das taxas de juros e das expectativas.

Keynes imaginava que os investidores teriam basicamente um comportamento especulativo, financiando o investimento, em um primeiro momento, através da colocação de dívida de curto prazo nos bancos comerciais. Entretanto, uma vez que o investimento estivesse efetivado, estaria concomitantemente criada uma renda que seria, de qualquer modo, poupada e que, portanto, serviria de fonte de longo prazo para o funding das empresas que aumentaram seu endividamento corrente para fazer frente a projetos de expansão.

Entretanto, não se deve esperar que os agentes, que foram diretamente remunerados pelos gastos com investimento (p. e., os produtores de bens de capital), desejem, eles mesmos, utilizar mais do que uma parte dessa renda na compra de ativos de longo prazo. O mais lógico seria que gastassem parte do que receberam em bens de consumo, de acordo com uma propensão estável, desencadeando o processo multiplicador. A renda seria, assim, aumentada de um valor igual aos sucessivos consumos adicionais e, ao final, toda a poupança teria sido redistribuída no interior da economia, dirigindo-se para o portfolio de pessoas desejosas de adquirir títulos de longo prazo. Cria-se, desse modo, o potencial de funding para o próprio investimento.

Não há por que supor que o processo reativo associado ao multiplicador tenha uma duração cronológica expressiva. Na verdade, as pessoas tendem a gastar ou poupar imediatamente ao recebimento da renda. No caso de um aumento na demanda de bens de consumo ter sido previsto pela indústria, o processo se desenrola sem grandes alterações de preços. Na situação contrária, os preços aumentarão e o funding será feito por meio dos lucros inesperados (windfall) dos produtores dessas mercadorias.

Finalmente, Keynes não respondeu diretamente à crítica de que havia abandonado a perspectiva dinâmica da análise de períodos, baseada na diferenciação de conceitos ex-ante e ex-post. Mesmo assim, em algumas oportunidades, ao externar sua visão sobre o assunto dá a entender que não atribui grande relevância às consequências advindas da frustração de expectativas de curto prazo:

“(As frustrações nas expectativas de curto prazo só seriam) relevantes na determinação da demanda efetiva subsequente ... (Entretanto) considerei esta hipótese de importância secundária. Sua ênfase obscurecia o argumento real pois a demanda efetiva é substancialmente a mesma se eu assumisse que as expectativas de curto prazo são sempre sancionadas ... Hawthrey acha que ... toda a gênese da dinâmica de mudança está não no que considero que sejam os fatores fundamentais, mas no que penso poder ser melhor descrito como o pechinchar do mercado” (Keynes, 1973bKEYNES, J.M. (1973b). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 14, Londres: Macmillan. , pp. 181 e 182).

CONCLUSÕES

O conceito de economia monetária foi desenvolvido por Keynes com o propósito de estabelecer um marco teórico, distinto do paradigma ricardiano, que pudesse dar conta das crises endógenas ao sistema capitalista. Até então, a lei de Say e o pleno emprego automático garantiam que a oferta e a demanda agregadas eram sempre iguais.

Simultaneamente, Keynes também buscava distanciar-se da visão wickselliana que, ele próprio, havia abraçado em seu Tratado da Moeda em 1930. Não era a desigualdade entre as decisões de poupança e de investimento, tomadas por agentes maximizadores de lucros, apoiados em um sistema bancário moderno, o que deslocava a economia do equilíbrio clássico de pleno emprego.

Para ele, a crise é um fato decorrente do próprio funcionamento de uma economia na qual a produção é monetária e mercantil, o tempo é histórico e inexiste qualquer mecanismo de coordenação geral. Na economia monetária a origem de uma situação depressiva não está no processo de contínua frustração de expectativas, descrito no Tratado, mas na existência de uma previsão de falta de demanda efetiva. São as expectativas pessimistas quanto ao futuro que levam à redução da eficiência marginal do capital e, consequentemente, do investimento.

Nesse processo, a taxa de juros exerce um papel secundário. Se, por um lado, é capaz de deter o investimento em seu processo de expansão é, por outro, impotente para, por si mesma, contrabalançar sua redução por motivos autônomos. Não basta a existência de fontes de financiamento a baixo custo para que os empresários decidam acumular capital. As expectativas com relação ao futuro cumprem aqui um papel fundamental.

Ao mesmo tempo, a existência de um sistema de bancos comerciais, emissores de moeda escritural e que intermedeiam os fluxos de financiamento, libera os investidores de qualquer necessidade prévia de poupança. Os bancos podem financiar o investimento através do fundo rotativo formado pelo motivo finanças e, se isto for insuficiente, pela multiplicação de seus depósitos à vista. Neste último caso, poderá haver um impacto sobre a taxa de juros, se a política monetária for restritiva.

Como o investimento e sua necessidade de financiamento são montantes pequenos diante dos estoques de ativos, inclusive a moeda, não há por que supor que a taxa de juros seja diretamente determinada por fluxos correntes. É mais sensato esperar-se que as decisões de mudança de portfolio determinem o preço do dinheiro, sendo o investimento uma variável de importância marginal. Já a poupança não exerce qualquer papel no finance.

Em suma, a economia keynesiana funciona de forma muito diferente daquela descrita pelos clássicos e pelos neoclássicos. O investimento não depende do consumo porque a renda não é previamente dada. Ao mesmo tempo, não está sujeito às decisões individuais de poupança, uma vez que as condições de financiamento são determinadas pelos mercados de estoques e não os de fluxos. Nesse cenário, o investimento é, inicialmente, financiado no mercado monetário. Porém, uma vez realizado, gera como contrapartida um volume de poupança (renda destinada à compra de ativos de longo prazo) que é idêntico ao finance inicial e que servirá de base para seu funding. A transformação do finance em funding não é, no entanto, automática. O problema, aqui, centra-se na questão da compatibilização de prazos e taxas. Tal risco faz, no entanto, parte do cálculo especulativo intrínseco a qualquer decisão de investimento.

Na prática, não é necessário que os empresários tomem, eles mesmos, o risco relativo à diferença entre os prazos das fontes e dos usos do investimento. Com base em um contrato de compra e venda de máquinas, o produtor de equipamentos pode conseguir giro diretamente junto aos bancos. Alternativamente, a empresa pode obter um montante de crédito de longo prazo suficiente para financiar, desde o início, seus projetos. Pode ainda repassar a terceiros seu risco financeiro fazendo hedge junto a instituições que garantam o lançamento de suas ações a um preço mínimo.

Como se pode perceber, existem diferentes maneiras de proteger o investidor perante o risco do financiamento a curto prazo de seu investimento. Isto, no entanto; não elimina o caráter monetário do finance, pois essa questão não é basicamente micro - quem toma o risco - mas sim macroeconômica - o investimento em uma economia moderna é sempre financiado de forma monetária. O finance permite ao investimento não “concorrer” com o consumo pela renda. É por injetar no fluxo de transações uma quantidade de dinheiro e de demanda efetiva adicionais que o investimento tem um efeito multiplicador. Tal efeito é tanto maior quanto menor a disposição de cada agente econômico para utilizar sua renda adicional para comprar ativos de longo prazo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • KEYNES, J.M. (1973b). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 14, Londres: Macmillan.
  • KEYNES, J .M. (1979). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 29, Londres: Macmillan.
  • KEYNES, J.M. (1983). “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”. Os Economistas, São Paulo: Abril Cultural.
  • OHLIN, B. (1937a). “Some Notes on the Stockholm Theory of Savings and Investment”, Economic Journal, março/junho.
  • OHLIN, B. (1937b). “Alternative Theories of the Rate of Interest”, Economic Journal, setembro.
  • TORRES, E. (1986). A Teoria Monetária de Wicksell, setembro, mimeo.
  • 1
    Utilizou-se neste trabalho o conceito de economia clássica na mesma acepção usada por Keynes na Teoria Geral: “acostumei-me ... a incluir na ‘escola clássica’ os seguidores de Ricardo, ou seja, os que adotaram e aperfeiçoaram sua teoria, compreendendo, por exemplo, J. S. Mill, Marshall e o prof. Pigou” (Keynes, 1978, p. 15).
  • 2
    Keynes, 1979KEYNES, J .M. (1979). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 29, Londres: Macmillan. , p. 78
  • 3
    Uma das características básicas da economia monetária é utilizar como moeda algo que garante um elevado prêmio de liquidez; para isso é preciso que: “a moeda (tenha) tanto a longo como a curto prazo, uma elasticidade de produção igual a zero ou pelo menos muito pequena ... (e que além disso) tenha uma elasticidade substituição igual, ou quase igual, a zero” (Keynes, 1983KEYNES, J.M. (1983). “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”. Os Economistas, São Paulo: Abril Cultural. , pp. 161-162).
  • 4
    Keynes, 1979KEYNES, J .M. (1979). The Collected Writings of John Maynard Keynes, volume 29, Londres: Macmillan. , p. 79.
  • 5
    Idem, pp. 62-63.
  • 6
    Ver “A Teoria Geral do Emprego” em Keynes, 1978.
  • 7
    “Um dos principais objetivos deste Tratado é mostrar que temos aqui a chave do mistério de como acontecem as flutuações nos níveis de preços ao nível fixo de em torno equilíbrio”, Keynes, 1953KEYNES, J .M. (1953). A Treatise on Money, Londres: Macmillan. , p. 153.
  • 8
    Idem, p. 186.
  • 9
    Ver Keynes, 1953KEYNES, J .M. (1953). A Treatise on Money, Londres: Macmillan. , p. 126.
  • 10
    Keynes, 1953KEYNES, J .M. (1953). A Treatise on Money, Londres: Macmillan. , p. 139.
  • 11
    Idem, p, 159.
  • 12
    Idem, p. 182.
  • 13
    Apesar de manter o mesmo nome utilizado por Wicksell, Keynes formula sua curva de investimento com base nas expectativas dos empresários e não do estado da técnica.
  • 14
    Keynes, 1983KEYNES, J.M. (1983). “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”. Os Economistas, São Paulo: Abril Cultural. , p. 140.
  • 15
    Na teoria clássica, o poupador só deixa de consumir sua renda corrente em favor de um consumo maior em uma data certa de seu futuro.
  • 16
    Keynes, 1983KEYNES, J.M. (1983). “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”. Os Economistas, São Paulo: Abril Cultural. , p. 121.
  • 17
    Chick, 1983CHICK, V. (1983). Macroeconomics After Keynes, Londres: Macmillan. , p. 175.
  • 18
    Em uma economia monetária, o investimento é basicamente financiado por fontes, que não as receitas correntes do investidor; isto, inclusive, faz com que a taxa de juros seja relevante para as decisões de investimento.
  • 19
    ‘’O motivo finanças não se refere aos fundos necessários à implementação de projeto de investimento até o fim de sua vida, mas apenas ao dinheiro necessário para iniciar o projeto ... (ou seja) à necessidade de dinheiro entre a decisão de investimento e o início da construção.” Ver Chick, 1983CHICK, V. (1983). Macroeconomics After Keynes, Londres: Macmillan. , pp. 198-199.
  • 20
    Keynes também está atacando a LFT no que se refere à moeda como reserva de valor, mas este assunto foge ao objetivo deste item.
  • 21
    JEL Classification: B22; B31.
  • *
    Agradeço a Fernando Cardim de Carvalho as críticas e comentários feitos à versão original deste trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1991
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