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Entre Polanyi e Von Hayek* * Tradução de Danielle Ardaillon.

Between Polanyi and Von Hayek

RESUMO

Inspirado nas ideias de Polanyi e Von Hayek, este artigo traça a dinâmica do Estado moderno e seu papel na esfera econômica. O conceito de economia mista é usado para orientar a discussão.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; desenvolvimento econômico; Estado; economia política

ABSTRACT

Inspired by Polanyi’s and Von Hayek’s ideas, this paper traces the dynamics of the modern state and its role on the economic sphere. The concept of a mixed economy is used to guide the discussion.

KEYWORDS:
History of economic thought; economic development; State; political economy

I.

Em 1944, durante a guerra, foram publicados em Londres dois trabalhos cujos autores, embora unidos pelo seu apreço aos valores democráticos, divergiam totalmente quanto à sua avaliação da sociedade de mercado.

La Grande Transformation de Karl Polanyi,1 1 Polanyi, Karl (1983) La Grande Transformation - Aux Origines Politiques et Économiques de Notre Temps, traduzido por Catherine Malamoud, prefácio de Louis Dumont. Paris: Gallimard. Ver também o importante artigo de 1947: “Our Obsolete Market Mentality”. In: Primitive, Archaic and Modem Economies. Nova York: Anchor Books, pp. 59-77. uma das obras seminais das ciências sociais contemporâneas, anunciava a morte do liberalismo econômico - um breve interlúdio na história multifacetada das sociedades humanas. Morte que, no entender do autor, acarretaria o nazismo.

O panfleto de Von Hayek, La Route de la Servitude,2 2 Von Hayek, Frederich A. (1985) La Route de la Servitude. Paris: PUF. Para uma crítica pertinente do absolutismo doutrinário de Von Hayek por um liberal que se acomodava dos nossos regimes mistos, ver Aron, R. “La Définition Libérale de la Liberté’’. In: Manent, P. (org.) Les Libéraux. Paris: Hachette, 1986, vol. II, pp. 467-488. pelo contrário, atacava todas as formas de intervenção do Estado na economia; o “planismo”, qualquer que fosse, levava inexoravelmente ao totalitarismo. Para Von Hayek, como para Von Mises, “o socialismo é o fim da economia racional”;3 3 Von Mises, Ludwig (1920) “Le Calcul Économique dans une Communauté Socialiste”. In: Manent, P., op. cit., pp. 384-395. ele rejeita categoricamente as conclusões dos trabalhos de Oscar Lange e Abba Lerner.

Não se trata aqui de analisar com rigor essas duas obras de desigual densidade. Basta observarmos que elas balizam de certa maneira o campo do debate atual sobre as reformas socioeconômicas nos países do Leste, como também nos países do Sul e, por que não, naqueles do Norte industrializado que saberá dificilmente furtar-se por muito tempo à crise latente dos “Estados-protetores” incapazes de impedir a marginalização de um “Quarto Mundo” e de assegurar o pleno emprego. Com efeito, uma vez rejeitados os extremos da “economia planificada de comando” e do liberalismo econômico puro e duro, resta o vasto domínio das “economias mistas” onde convém distinguir dois casos qualitativamente diferentes pelo menos no que diz respeito à configuração institucional inicial:

  • de um lado, as “economias sociais de mercado”, implantadas nos países capitalistas logo depois do New Deal e da emergência dos “Estados-protetores” com o seu leque de soluções institucionais e de combinações mercado-Estado variando de um país para outro;

  • do outro lado, as “economias socialistas de mercado” postuladas pelos reformadores do “socialismo real” desde 1956, com resultados bastante variados.

Uma das perguntas do momento é saber se esses dois casos fazem parte de um mesmo processo contínuo ou se, pelo contrário, eles se situam de cada lado de uma barreira intransponível, a não ser por uma transformação radical das estruturas políticas, e nesse caso reform economics tornar-se-ia revolution economics (cf. J. M. Kovacs4 4 Kovacs, Janos Matyas (1990) “Reform Economics: the Classification Gap”, Daedalus, 119(1):215-248, inverno. ).

Uma segunda pergunta ligada à primeira, e também muito controvertida, refere-se às vantagens e aos inconvenientes do gradualismo na implantação das reformas. Um dos críticos mais intransigentes da tese gradualista, Michel Camdessus, não hesita em empenhar a autoridade do FMI em favor das reformas instantâneas.5 5 Camdessus, M. (1990) “Nada de Meio-Termo nas Reformas da Europa Oriental”, Gazeta Mercantil (São Paulo), 24 de abril: “se o objetivo consiste em modificar fundamentalmente o sistema, está provavelmente errado abordá-lo passo a passo”.

O conceito de “economia mista” tem sua história. No decorrer dos anos 60 ele foi aplicado aos países do Terceiro Mundo - tais como a Índia - com predominante economia de mercado, dotados, porém, de um setor público dinâmico, e engajados no planejamento (cf. Kalecki e Sachs6 6 Ver Kalecki, M. e Sachs, I. (1967) Zagadnien Finansowania Rozwoju Krajow o Gospodarce Mieszanej. Varsóvia: PWN, e a obra coletiva editada pelos mesmos autores: O Gospodarce Mieszanej W Krajach “Trzeciego Swiata”, Varsóvia: PWN, 1967. , como também Tsuru7 7 Ver “Merits and Demerits of the Mixed Economy in Economic Development: Lessons from India’s Experience”. In: Tsuru, S. (1976) Collected Works, vol. 13, Tóquio: Kodansha Lts., pp. 17-34. ).

Kalecki preocupou-se também com as condições mínimas de planejamento numa economia industrial de mercado na hipótese de uma “frente popular” ou “compromisso histórico” que parecia iminente na Itália. Um seminário ítalo-polonês, realizado em Ancona, abordou essa questão em 1965.

II.

Equiparada à constatação banal da existência lado a lado de um setor privado e de um setor público, a noção de “economia mista” como categoria descritiva (morfológica) não tem grande interesse por si, como não o tem a quantificação das partes respectivas desses setores no PNB, ou ainda as fórmulas demasiadamente gerais do tipo: “tanto mercado quanto possível, menos planejamento do que necessário”.

Em contrapartida, vista sob o ângulo de um sistema articulado de setores, de instrumentos de regulação e das representações explicando e justificando o seu funcionamento, a noção de “economia mista” remete a problemáticas absolutamente centrais para a análise institucional, notadamente:

  • a articulação dos mercados múltiplos e interligados de bens e serviços com o fora-do-mercado constituído pela economia doméstica e associativa e o setor estatal;8 8 Ver Sachs, I. “Market, Non-market, Quasi-market and the Real Economy”. In: The Balance between Industry and Agriculture in Economic Development. Proceedings of the Eighth World Congress of the International Economic Association. Delhi: Macmillan Press, 1988, vol. 1.

  • as relações entre os setores privado, público e social (cooperativo, mutuário, comunal, associativo);

  • o agenciamento dos diferentes espaços do desenvolvimento do local para o transnacional;

  • as formas de regulação democrática das “economias mistas”, o papel do Estado, as modalidades e os instrumentos de sua intervenção nos cinco níveis distinguidos por Streeten: micro-micro, micro, meso, macro e macro-macro.9 9 Streeten, P. (1989) Mobilizing Human Potential, the Challenge of Unemployment. Nova York: UNDP.

III.

Esse vasto campo oferecido à observação, à reflexão e à experimentação, requer uma abordagem que obedeça a várias normas.

A primeira é aquela do respeito absoluto da democracia como valor fundamental, o que significa rejeitar o autoritarismo como solução transitória escolhida em nome da eficácia na mobilização social e econômica necessária para a decolagem (sem que para tanto seja preciso renunciar ao paralelo fecundo entre a economia em fase inicial de desenvolvimento e a economia de guerra; cf. O. Lange e J. Sapir10 10 Sapir J. (1990), L ‘Économie Mobilisée. Paris: La Découverte. ).

Na terminologia de A. Sen, a democracia é um valor fundador, absoluto, mas o mercado, com o perdão dos liberais intransigentes à la Von Hayek, constitui uma categoria certamente muito importante, porém apenas instrumental. Não poderia ser de outra maneira já que o respeito do princípio democrático requer que não se prejulgue a escolha feita democraticamente do papel conferido ao mercado no modelo econômico.11 11 Sen, Amartya (1989) “Socialism, Markets and Democracy”, Presidential address at the Annual Meeting of the Indian Economic Association, Trivandrum, 30 de dezembro.

Sen está certo em insistir sobre a necessidade de uma análise profissional, desprovida de qualquer dogmatismo, das possibilidades e das limitações do mecanismo do mercado nas diferentes configurações institucionais. Ele pede cautela quanto à substituição de um dogma por outro de sinal invertido. “É tão ingênuo ver no mercado uma ameaça geral para o socialismo, quanto recomendá-lo como remédio infalível para a eficácia.”

IV.

A segunda norma é o respeito da equidade social, ou melhor, da subordinação do econômico ao social. A finalidade do desenvolvimento é sempre social, ao passo que a eficácia econômica pertence ao domínio instrumental, cuja importância é inegável, mas que, entretanto, não deve ser erigida como objetivo em si e muito menos como critério supremo, até mesmo único, da avaliação da trajetória e do desempenho das sociedades humanas.

No plano teórico, a obra de Polanyi oferece um apoio sólido à crítica do reducionismo economicista e à introdução de juízos de valor qualitativos que autorizem a distinção entre desenvolvimento e mal-desenvolvimento.12 12 Sachs, 1. (1984), Développer les Champs de Planification Paris: Université Coopérative Internationale. (Série Cahiers de l’U.C.I., 2).

No plano prático, temos alguns exemplos isolados de sucesso em matéria de políticas sociais, a despeito do constrangimento econômico e de uma série de catástrofes sociais provocadas pelas políticas ortodoxas de ajuste econômico. “O ajuste com face humana” generosamente postulado pela UNICEF13 13 Cormia, G. A.; Jolly, R.; Stewart, F. et al. (1987) O Ajuste com Face Humana - Proteger os Grupos Vulneráveis e Favorecer o Crescimento. Paris: UNICEF/Economica. é, no estágio atual, muito mais um desejo do que uma proposta operacional de envergadura, suscetível de modificar a atuação do planejador de maneira que inscreva como prioridade absoluta, no plano de ajuste, um núcleo duro de políticas sociais.

A dimensão social não parece ter sido suficientemente levada em conta na reforma polonesa. Aos olhos de Ivan T. Berend, trata-se, entretanto, de uma parte essencial das reformas do pós-comunismo na Europa Oriental, a ponto de justificar um Estado forte para conduzi-las, o que não é contraditório com a desestatização e a liberalização da economia.14 14 Berend, Ivan T. (1990) In: “L’ Aprés-cornmunisme: une Troisiéme Voie?”, Débat (59):10, março-abril.

O paralelismo com um país como o Brasil é contundente: de um lado é preciso reduzir o setor público demasiado pesado e heterogêneo e sobretudo eliminar as consequências da “privatização” do Estado - isto é, da sua subordinação aos interesses de grupos privados que se beneficiavam com a conivência dos governos autoritários; privatizações seletivas sob o controle do Congresso são necessárias. Mas ao mesmo tempo, o Brasil necessita de uma vigorosa política de redistribuição de renda, de ações públicas em matéria de educação, saúde, habitação popular e pesquisa, para reduzir a imensa “dívida social” e para assegurar a modernização do país. Em outras palavras, ele precisa de um Estado mais ativo, submetido ao controle democrático, e cujas funções ultrapassem aquelas do Estado-mínimo do liberais, mas se situem aquém do estatismo que grassa nos regimes autoritários e populistas; ou seja, um “Estado socialmente necessário” (F. H. Cardoso15 15 Ver Cardoso, Fernando Henrique (1989) “Os Desafios do Brasil e do PSDB”, Brasília; e (1990) “Desafios da Social-democracia na América Latina”, Novos Estudos CEBRAP 28:29-49, out. ).

Acrescentemos que o baixo nível dos salários médios deveria permitir que os países do Terceiro Mundo, como aqueles da Europa Oriental, criassem muitos empregos no setor dos serviços sociais sem grande desequilíbrio financeiro: é o paradoxo das condições favoráveis ao crescimento de um Estado-protetor nos países pobres, invertendo a sequência histórica seguida pelos países industrializados.16 16 Ver Sachs, I. (1971) “A Welfare State for Poor Countries”, Economic and Political Weekly, Bombaim, 6(3-4):367-370, janeiro. Os soviéticos tinham entendido isso desde os anos 20, bem como, mais recentemente, os chineses e os cubanos, assim como Sri Lanka ou Costa Rica. Entretanto, essa aquisição pode perder-se na nova geração das reformas.

Para complementar esse rápido exame dos argumentos em favor do “Estado socialmente necessário” é preciso assinalar recentes disposições, tomadas nos Estados Unidos, que vão no mesmo sentido e retomam de certa maneira o espírito do New Deal.

Lá, as infraestruturas urbanas e redes de transporte estão decadentes. Os Estados e as coletividades sociais endividaram-se durante o governo Reagan para financiar os programas sociais abandonados pela administração central em nome do federalismo. A política de pesquisa civil esgotou-se. Enfim, nas palavras de F. Rohatyn, “se as economias de comando faliram, a nossa própria experiência com o mercado livre e a economia desregulada está longe de constituir um sucesso”. Para estar à altura da imagem que dela têm os europeus do Leste, os Estados Unidos têm de investir na infraestrutura, nos próximos dez anos, 500 bilhões de dólares, financiados, na maior parte, pela redução das despesas militares e por um imposto adicional sobre a gasolina.17 17 Rohatyn, F. (1990) “Becoming What They Think We Are”, The New York Review of Books, 12 de abril. Ver também Heilbroner, R. (1990) “Seize the day”, The New York Review of Books, 15 de fevereiro.

V.

A terceira norma que deve ser respeitada é uma relação de simbiose com a natureza que substitua a relação de dominação. O desenvolvimento deve esforçar-se em ser um jogo de soma positiva com a natureza e não um jogo de soma zero contra ela. A condição catastrófica do meio ambiente e as práticas de exploração predatória dos recursos naturais colocam um problema de solução mais difícil para os países da Europa Oriental (como também para os do Terceiro Mundo) por serem submetidos ao mesmo tempo aos constrangimentos das políticas de ajuste estrutural.

De qualquer modo, mesmo nas condições mais favoráveis, a economia de mercado, por si só, não está em estado de internalizar os imperativos da gestão do meio ambiente no sistema de preços. O Estado não pode esquivar-se, nessa área, de uma ação apoiada tanto no mercado como num leque de instrumentos de intervenção legal e administrativa.

VI.

Respeitar as três normas acima apresentadas significa, portanto, ir além da noção de Estado-mínimo em busca de um “Estado desenvolvedor” capaz de operar uma das diversas alternativas de “economia mista”, esforçando-se para compatibilizar o mercado e o plano, voltando talvez ao conceito de “economia concertada”18 18 Ver a esse respeito: Monnet, Jean (1988) Mémoires. Paris: Fayard (Le Livre de Poche), pp. 371-380. que esteve na origem do planejamento francês, rejeitando decididamente, como o recomenda J. K. Galbraith num artigo penetrante, a ideia de resolver os problemas do pós-comunismo e do pós-colonialismo através da implantação do capitalismo puro e duro:

[ ... ] aqueles que falam - com leviandade - de uma volta ao mercado livre de Adam Smith enganam-se. Trata-se de um sistema que nós, no mundo não socialista, temos abandonado, que não suportaríamos mais, ao qual não teríamos sobrevivido. O nosso sistema é uma complexa mistura de estímulos para o mercado, de regulamentação pelo Estado e de vida política. O capitalismo puro e duro não é mais desejável para os europeus do Leste do que o é para nós”.19 19 Galbraith, J.K. (1990) “Le Capitalisme, Oui, Mais Lequel?”, L’Expansion, 19 de abril, p. 77. Trata-se de uma adaptação do artigo publicado no Harpers Magazine em abril de 1990, pp. 19-21. O que esses países procuram (ou deveriam procurar) “é um Estado moderno, preocupado com a questão social e no qual os poderes públicos intervêm amplamente para suavizar e estabilizar os acontecimentos”.20 20 Ibidem, p. 76.

Esse Estado é o resultado de uma adaptação do sistema capitalista que lhe foi arrancada por um século de lutas. Como bem o diz Claude Lefort, não é o capitalismo que é a democracia, mas é a democracia que está na origem das conquistas sociais obtidas pelos trabalhadores dos países ocidentais.21 21 Lefort, C., entrevista à Veja, 22/11/1989.

Para os países engajados na transição Plano-Mercado, a terceira via é, na formulação de Jacques Sapir, uma necessidade.22 22 É também, entre outras, a opinião de Anthony B. Atkinson e de François Bourguignon na pesquisa citada de Débat. De qualquer modo, a amálgama entre a utopia liberal da “sociedade de mercado” apolítica e o capitalismo puro e duro assenta-se num mal-entendido, como o mostrou Pierre Rosanvallon ao insistir sobre a cumplicidade profunda entre o liberalismo utópico do século XVIII e o socialismo utópico do século XIX.23 23 Ver a introdução e a conclusão da nova edição de: Rosanvallon, P. (1989) Le Libéralisme Économique - Histoire de l’Idée du Marché. Paris: Seuil. Os “libertarianos” encontram-se na urdidura dessas duas correntes.24 24 Ver Van Parys, Philippe. “Quelle Réponse Cohérente aux Néo-libéralismes?”, Économie et Humanisme 306, março-abril de 1989, e Problémes Économiques 2156:24-30, 4/1/1990. mas suas ideias circulam pouco.

VII.

Pensamos que a problemática esboçada acima pode ser traduzida num programa de pesquisas comparativas capaz de trazer elementos concretos de reflexão aos países que efetuam atualmente a sua transição Plano-Mercado ou àqueles, numerosos no Terceiro Mundo, que se esforçam para efetuar a transição Estado patrimonial-Estado desenvolvedor. Um tal projeto, evidentemente, deveria também tirar proveito das experiências acumuladas pelos países industrializados engajados na construção da “sociedade-de-bem-estar”.

No estado atual da nossa reflexão, o programa poderia ser construído ao redor de cinco eixos.

a) É preciso, para começar, aproveitar os ensinamentos do passado. Se o Estado como problema político está no cerne das paixões partidárias, ele permanece, na excelente formulação de Pierre Rosanvallon, “uma espécie de não-objeto histórico”.25 25 Rosanvallon, P. (1990) L’État en France de 1789 à nos Jours. Paris: Seuil, p. 9. Se dispomos de várias histórias de ideias nesse domínio, a coisa muda de figura para a história do Estado tout court.

Para as nossas necessidades, bastaria concentrarmo-nos sobre um número limitado de experiências passadas, trazendo elementos interessantes para os reformadores de hoje, a começar pelo caso do New Deal rooseveltiano e o caso do nascimento dos Estados-protetores como resposta aos desafios da grande depressão e à alternativa comunista que, naquela época, guardava sua credibilidade.

As discussões levadas pelos partidos de esquerda não comunistas da Europa do Leste, durante a Segunda Guerra e no período 1944-48 (antes da estalinização), oferecem um material muito rico e, em muitos casos, atual. Na Polônia, notadamente, os intelectuais do partido socialista dedicaram-se com muito afinco à elaboração de um modelo de “economia mista” com quatro setores (público, privado, cooperativo e comunal), prolongando assim os trabalhos de Oscar Lange publicados antes da guerra. O trabalho que T. Kowalik lhes consagrou confirma esse empenho.26 26 Kowalik, T. (1990) Spory o ustroj spoleczno gospodarczy Polski, 1944-1948. Varsóvia: Nowa.

b) Uma segunda parte do programa poderia comparar o funcionamento das “economias mistas” e das “sociedades-de-bem-estar” nos países escandinavos, na França e em alguns outros países ocidentais.

Um caso à parte é o do Japão. O “Estado-desenvolvedor” (Chalmer Johnson) ou, se se preferir a fórmula de Christian Sautter27 27 Sautter, Christian (1987) Les Dents du Dragon. Paris: Oxban. , o “Estado-pro” (profissional, produtor, protetor, promovedor, programador) tomou aí a forma mais elaborada.

e) Uma terceira série de estudos diria respeito ao funcionamento das “economias mistas” nos países do Terceiro Mundo com quatro casos particularmente interessantes:

  • - a Índia, que tem figura paradigmática;28 28 Para um balanço, ver Chakravarty, S. (1987) Development Planning: The lndian Experience. Oxford: Clarendon Press.

  • - a Coréia do Sul, onde o Estado-desenvolvedor funcionou bem (a esse respeito, ver os trabalhos de P. Judet);29 29 Judet, P. “A Propos d’Économie Mixte: Mise en Perspectives et Références Asiatíques”,

  • - o Brasil, onde o crescimento industrial e a modernização sob o impulso do Estado-patrimonial foram realizados às custas de um mal-desenvolvimento social muito acentuado;

  • - enfim o Egito, cujas fases sucessivas de estatização e de privatização oferecem um material de observação muito rico.

d) Um quarto conjunto concentrar-se-ia no leque de formas de “economia mista” que estão se instalando nos países da Europa do Leste, inclusive na União Soviética, enfocando tanto o ideal como o real.

e) Enfim, seria interessante poder aprofundar certos temas transversais, para o estudo dos quais a abordagem comparativa pode se revelar fecunda. Sem prejulgar a lista desses temas, podemos mencionar a título de exemplo:

  • as políticas de ajuste com face humana: Sul/Leste;

  • políticas industriais, sistemas financeiros e formação do capital;

  • as privatizações: Sul/Leste/Oeste;

  • desenvolvimento durável e economia de mercado;

  • sistemas de incentivos nas economias mistas.

  • 1
    Polanyi, Karl (1983) La Grande Transformation - Aux Origines Politiques et Économiques de Notre Temps, traduzido por Catherine Malamoud, prefácio de Louis Dumont. Paris: Gallimard. Ver também o importante artigo de 1947: “Our Obsolete Market Mentality”. In: Primitive, Archaic and Modem Economies. Nova York: Anchor Books, pp. 59-77.
  • 2
    Von Hayek, Frederich A. (1985) La Route de la Servitude. Paris: PUF. Para uma crítica pertinente do absolutismo doutrinário de Von Hayek por um liberal que se acomodava dos nossos regimes mistos, ver Aron, R. “La Définition Libérale de la Liberté’’. In: Manent, P. (org.) Les Libéraux. Paris: Hachette, 1986, vol. II, pp. 467-488.
  • 3
    Von Mises, Ludwig (1920) “Le Calcul Économique dans une Communauté Socialiste”. In: Manent, P., op. cit., pp. 384-395.
  • 4
    Kovacs, Janos Matyas (1990) “Reform Economics: the Classification Gap”, Daedalus, 119(1):215-248, inverno.
  • 5
    Camdessus, M. (1990) “Nada de Meio-Termo nas Reformas da Europa Oriental”, Gazeta Mercantil (São Paulo), 24 de abril: “se o objetivo consiste em modificar fundamentalmente o sistema, está provavelmente errado abordá-lo passo a passo”.
  • 6
    Ver Kalecki, M. e Sachs, I. (1967) Zagadnien Finansowania Rozwoju Krajow o Gospodarce Mieszanej. Varsóvia: PWN, e a obra coletiva editada pelos mesmos autores: O Gospodarce Mieszanej W Krajach “Trzeciego Swiata”, Varsóvia: PWN, 1967.
  • 7
    Ver “Merits and Demerits of the Mixed Economy in Economic Development: Lessons from India’s Experience”. In: Tsuru, S. (1976) Collected Works, vol. 13, Tóquio: Kodansha Lts., pp. 17-34.
  • 8
    Ver Sachs, I. “Market, Non-market, Quasi-market and the Real Economy”. In: The Balance between Industry and Agriculture in Economic Development. Proceedings of the Eighth World Congress of the International Economic Association. Delhi: Macmillan Press, 1988, vol. 1.
  • 9
    Streeten, P. (1989) Mobilizing Human Potential, the Challenge of Unemployment. Nova York: UNDP.
  • 10
    Sapir J. (1990), L ‘Économie Mobilisée. Paris: La Découverte.
  • 11
    Sen, Amartya (1989) “Socialism, Markets and Democracy”, Presidential address at the Annual Meeting of the Indian Economic Association, Trivandrum, 30 de dezembro.
  • 12
    Sachs, 1. (1984), Développer les Champs de Planification Paris: Université Coopérative Internationale. (Série Cahiers de l’U.C.I., 2).
  • 13
    Cormia, G. A.; Jolly, R.; Stewart, F. et al. (1987) O Ajuste com Face Humana - Proteger os Grupos Vulneráveis e Favorecer o Crescimento. Paris: UNICEF/Economica.
  • 14
    Berend, Ivan T. (1990) In: “L’ Aprés-cornmunisme: une Troisiéme Voie?”, Débat (59):10, março-abril.
  • 15
    Ver Cardoso, Fernando Henrique (1989) “Os Desafios do Brasil e do PSDB”, Brasília; e (1990) “Desafios da Social-democracia na América Latina”, Novos Estudos CEBRAP 28:29-49, out.
  • 16
    Ver Sachs, I. (1971) “A Welfare State for Poor Countries”, Economic and Political Weekly, Bombaim, 6(3-4):367-370, janeiro.
  • 17
    Rohatyn, F. (1990) “Becoming What They Think We Are”, The New York Review of Books, 12 de abril. Ver também Heilbroner, R. (1990) “Seize the day”, The New York Review of Books, 15 de fevereiro.
  • 18
    Ver a esse respeito: Monnet, Jean (1988) Mémoires. Paris: Fayard (Le Livre de Poche), pp. 371-380.
  • 19
    Galbraith, J.K. (1990) “Le Capitalisme, Oui, Mais Lequel?”, L’Expansion, 19 de abril, p. 77. Trata-se de uma adaptação do artigo publicado no Harpers Magazine em abril de 1990, pp. 19-21.
  • 20
    Ibidem, p. 76.
  • 21
    Lefort, C., entrevista à Veja, 22/11/1989.
  • 22
    É também, entre outras, a opinião de Anthony B. Atkinson e de François Bourguignon na pesquisa citada de Débat.
  • 23
    Ver a introdução e a conclusão da nova edição de: Rosanvallon, P. (1989) Le Libéralisme Économique - Histoire de l’Idée du Marché. Paris: Seuil.
  • 24
    Ver Van Parys, Philippe. “Quelle Réponse Cohérente aux Néo-libéralismes?”, Économie et Humanisme 306, março-abril de 1989, e Problémes Économiques 2156:24-30, 4/1/1990.
  • 25
    Rosanvallon, P. (1990) L’État en France de 1789 à nos Jours. Paris: Seuil, p. 9.
  • 26
    Kowalik, T. (1990) Spory o ustroj spoleczno gospodarczy Polski, 1944-1948. Varsóvia: Nowa.
  • 27
    Sautter, Christian (1987) Les Dents du Dragon. Paris: Oxban.
  • 28
    Para um balanço, ver Chakravarty, S. (1987) Development Planning: The lndian Experience. Oxford: Clarendon Press.
  • 29
    Judet, P. “A Propos d’Économie Mixte: Mise en Perspectives et Références Asiatíques”,
  • JEL Classification: B20; B25; P51.
  • *
    Tradução de Danielle Ardaillon.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1992
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