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A América Latina entre duas crises* * Agradeço a valiosa colaboração de Arturo León, principalmente na apresentação das mudanças da estrutura socioeconômica durante o período 1950-1990. Tradução do espanhol de Everton Pinheiro de Souza Gonçalves e revisão de Camila Faria Lima.

Latin America between two crises

RESUMO

Este trabalho, inicialmente, chama a atenção para o claro contraste entre a intensidade e a evolução da crise dos anos 30 e a que ocorre no início dos anos 80, originando a chamada “década perdida” que, de fato e com exceção de poucas exceções, ainda não foi superado. Várias questões principais são enfatizadas. Por um lado, a incidência da primeira crise foi substancialmente mais grave que a segunda. Por outro lado, as circunstâncias externas foram mais desvantajosas e prolongadas devido à repercussão da crise nas “economias centrais” e à incidência da Segunda Guerra Mundial. Apesar dessas circunstâncias, a maioria dos países latino-americanos poderia iniciar sua recuperação e manter o chamado “desenvolvimento interno” até aproximadamente os anos sessenta. Na última parte, após analisar diferentes fatos que influenciaram a evolução - principalmente o papel desempenhado pelas economias centrais nas duas crises recordadas -, é enfatizada a possibilidade de “vivermos em outra América Latina” e é necessário, acima de tudo, constituir outras aglomerações sociopolíticas inerentes às realidades internas e externas da atualidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Crise econômica; história econômica da América Latina

ABSTRACT

This work, to begin with, draws attention to the clear contrast between the intensity and evolution of the crisis of the thirties and the one that bursts into the early eighties, originating the so-called “lost decade” which, in fact and except for few exceptions, has not yet been overcome. Several main issues are emphasized. On the one hand, the incidence of the first crisis was substantially more serious than the second. On the other, the external circumstances were more disadvantageous and prolonged due to the repercussion of the crisis on the “central economies” and the incidence of the Second World War. In spite of these circumstances, most of the Latin American countries could initiate their recuperation and maintain their so-called “inward development” up to, approximately, the sixties. In the last part, after analysing different facts which influenced the evolution - mainly, the role played by the central economies in the two recalled crisis -, emphasis is made on the fact that we “live in another Latin America” and that it is necessary, above all, to constitute other socio-political agglomerations inherent to the internal and external realities of present time.

KEYWORDS:
Economic crisis; economic history of Latin America

1. A COMPARAÇÃO ENTRE OS ANOS 30 E 80

A crise que irrompeu no início dos anos 80, consumando as advertências da década anterior, permanece até hoje um tema fundamental na América Latina. A “década perdida” e outras metáforas similares batizaram inumeráveis análises e debates que, por sua vez, também foram complementados com proposições de retificação, como o “desenvolvimento com justiça” delineado pela Cepal, que se propõe a ajustar suas ideias iniciais às novas exigências mundiais, regionais e nacionais, conceituais e instrumentais, exigidas pela época em que vivemos. Com orientações muito diferentes, às vezes antagônicas, tanto as origens quanto as terapias diante do abalo têm caminhado ao lado da “ressurreição ortodoxa” que, com diversos ajustes e ampliações, além de respaldos poderosos, domina o cenário ideológico, embora este não seja o tema principal destas notas.

Não pretendo adentrar com profundidade, devido à envergadura e à complexidade da matéria e, sobretudo, pela necessária projeção para o futuro, o que deve motivar principalmente a gente mais jovem, a quem corresponde traçar seu próprio futuro.

Em troca, talvez os “veteranos” possuam alguma “vantagem comparativa” no exercício de cotejar o presente com o passado que já tenham vivido e experimentado, suas semelhanças e contrastes. Em poucas palavras, somos tentados a “entender o presente pela história”1 1 A imagem pertence a G. Lukács, que adaptou de Paul Sweezy para seu livro The present as history, Nova York, Montlhy Review Press, 1962.

Esse exercício nos conduziu a uma comparação das turbulências dos anos recentes com o grande sismo que sacudiu a economia mundial durante o início da década de 30 e que teve profundas e duradouras repercussões nos quadros econômico, político e social. Devemos admitir que não pretendemos nos aventurar em um contraponto cabalístico, mas sim chamar a atenção sobre algumas diferenças significativas entre as duas experiências. Com efeito, aqui se tem em vista especialmente o excelente conjunto de trabalhos próprios ou recopilados por Rosemary Thorpe, que tem sua atenção voltada para o caso latino-americano e os antecedentes da Cepal2 2 Ver Latin America in the 30’s, the role of the periphery in world crises. Nova York, St. Martin’s Press, 1984. Dirigida com a participação de Rosemary Thorpe. .

De imediato, ressalta o agudo contraste entre suas respectivas incidências. Como se pode observar na Tabela 1 e no Gráfico 1, entre 1930 e 1934, a América Latina viu se reduzirem pela metade suas exportações e a um terço suas importações. Considerando os três maiores países (Brasil, México e Argentina) e o Chile, para os quais se registram as cifras correspondentes a 1928 e 1929, as dimensões são ainda maiores. Por outro lado, tomando uma perspectiva de prazo mais longo, o Gráfico 1 sinaliza que, quarenta anos depois, a evolução oscilante posterior não recupera os níveis de alguns indicadores-chave do relacionamento externo vis-à-vis o incremento da população (aspecto sobre o qual se voltará mais adiante).

Tabela 1:
Incidência da crise dos anos 30 na América Latina

Gráfico 1:
América Latina: Evolução da produção e de alguns indicadores do Comércio Exterior, entre 1928-29 e 1970

Radicalmente diferente foi a evolução das transações com o exterior na crise dos anos 80. Sem entrar em um reconto comprimido de seus aspectos sobressalentes - que têm sido examinados ad infinitum na documentação sobre a matéria - nós nos limitaremos a algumas facetas apropriadas à comparação e nos restringiremos ao quinquênio mais significativo, isto é, 1981-1985.

Começando pelos dados básicos sobre o ponto chave da matéria, podemos apreciar na Tabela 2 o comportamento díspar das exportações e importações, que resultou no quinquênio numa variação positiva de 23,7% nas exportações e uma redução de 35,9% para as importações. Esse contraste é muito menor que o apontado na Tabela 1, sendo muito mais notório no que diz respeito aos países para os quais se contaram os antecedentes sobre os anos de 1928 e 1929.

Tabela 2:
A. América Latina: Taxas de crescimento das exportações e importações (1981-1985)

Voltando ao tema da primeira conjuntura, nela foram afetados, com intensidades distintas, ambos os fluxos do comércio exterior. Na segunda, a restrição somente afetou radicalmente as importações. Como se vê na Tabela 2, algumas destas foram severamente prejudicadas no ano mais duro (1983), o que se repetiu com menor intensidade em 1985. Esse contraste, na essência, é explicado pelas transferências ao exterior, questão que será abordada posteriormente.

Observando por outro ângulo, e sem poder comparar com dados da” grande crise”, os registros da Tabela 3 e o Gráfico 2 permitem apreciar a incidência negativa da evolução do produto per capita no quinquênio 1981-1985. Para a região, a variação acumulada alcançou cerca de 8%, no que contribuíram retrocessos tão importantes como o da Argentina. Assim, todos os vaivéns externos resultaram muitíssimo menores que os produzidos durante a crise dos anos 30. Em troca, as incidências internas, particularmente as ressacas inflacionárias, tiveram magnitudes exorbitadas e persistentes em muitas economias da região, a qual nos referiremos depois.

Tabela 3:
Evolução do produto interno bruto per capita (taxas anuais de crescimento)

Gráfico 2:
America Latina e Caribe Produto interno bruto por habitante

Por fim, enquanto a crise dos anos 30 foi um verdadeiro cataclismo que afetou profundamente as principais economias e grande parte do mundo periférico, a dos anos 80 teve consequências mais moderadas urbi et orbi, que atingiram com menor dureza as vinculações externas que no passado produziram desequilíbrios inflacionários de tipo distinto e muito mais complexos que os do abalo dos anos 30, desequilíbrios que serão abordados ao final deste trabalho.

Para continuar o exame, vamos nos propor a explorar alguns aspectos da realidade latino-americana que incidiram durante a “grande crise”, para aquilatar a recuperação e a conduta posterior da economia global e dos países à luz dos antecedentes disponíveis na Cepal e especialmente na Divisão de Estatísticas e Projeções. Por último, trataremos de nos aventurar numa tentativa de comparação dos fatores que redundaram em comportamentos tão díspares nas crises dos anos 30 e 80.

2. O FUNDO SOCIOECONÔMICO DA CRISE DOS ANOS 30

A explosão da crise dos anos 30 e seu desenvolvimento posterior estão vinculados às realidades e mudanças profundas no quadro político, social e também ideológico em quase toda a região.

Logo, se em muitos países as reações iniciais tiveram um selo claramente ortodoxo, aos poucos tanto as políticas como os instrumentos adotados foram sobrepassando esse modelo e derivaram em outros caminhos, cujos meios e fins contrastavam com a cartilha do passado, quer na orientação geral, quer na instrumental. Sua razão fundamental era disfarçar o trauma externo e abrir novos caminhos para reativar a economia e apaziguar a tensão sociopolítica. Os trabalhos reunidos no livro de Rosemary Thorpe contêm um valioso material que realça essa busca por outros rumos e evidencia também os contrastes no comportamento dos distintos países estudados. Aqui pesavam tanto as condições geográficas, a formação histórica e política, como a natureza dos recursos produtivos e a maior ou menor dependência às potências dominantes e à estrutura dos mercados externos, comerciais ou financeiros. Assim, por exemplo, ao norte do âmbito latino-americano, sobressaíram as realidades contrastantes do México e das pequenas nações centro-americanas, seja por história, tamanho ou pelo fato mais importante para esta discussão: o México já tinha conquistado um raio de manobra nacional que permitiu uma resposta heterodoxa ao desafio da crise. Diferenças parecidas se distinguem mais ao sul, como as do Brasil e Colômbia, associados por seu principal produto de exportação - o café -, porém ambos tendo seguido caminhos diferentes em função de suas respectivas potencialidades de diversificação interna e do contexto, ou interesses dos grupos decisórios.

Em definitivo - e sem poder estender-me neste quadro de coincidências e diferenças--, pode-se repetir uma das conclusões de Carlos Díaz-Alejandro (destacado economista cubano prematuramente falecido, autor de vários exames sobre os destaques deste tema):

“quaisquer que tenham sido as vinculações e improvisações do início dos anos 30, até a segunda metade da década, os países latino-americanos “reativistas” haviam desenvolvido um respeitável arsenal de instrumentos monetários e fiscais como também a vontade para usá-los para evitar uma deflação”.

Para complementar essas observações, queria tocar nos pontos que dizem respeito aos antecedentes históricos e às razões e consequências de ordem social e política que antecedem a crise dos anos 30 e do novo ciclo que se abre, com diferentes conteúdos e projeções.

Em primeiro lugar, sobressai-se o fato de que, desde o século passado, as opções ortodoxa e heterodoxa, em relação ao comércio exterior, vinham se defrontando em vários países da região. Diante do império dominante do chamado então “câmbio livre”, imposto principalmente pela escola e prática liberal inglesa, se levantaram diversas orientações protecionistas que se prolongaram na busca de uma diversificação produtiva que tinha como eixo o desenvolvimento e, por fim, a superação do modelo “primário-exportador”. Curiosamente, muitos argumentos a respeito se inspiravam na literatura produzida nos EUA, no tempo em que se gerava sua própria Revolução Industrial, e também na experiência similar da Alemanha, que teve List como um de seus porta-vozes de maior irradiação3 3 Estas questões foram examinadas - principalmente sob o ângulo da experiência chilena - nos trabalhos do autor destas notas. O primeiro foi Chile. Um caso de desarrollo frustrado, 1959. Editorial Universitaria, Chile. O segundo foi Politica y desarrollo, 1968, Editorial Universitaria, Chile. .

Tendo em vista a experiência chilena, nesta comparação, será perdoada a inclusão de um resumo de seu conteúdo extraído do trabalho lembrado4 4 Em Politica y desarrollo, op. cit. :

“Diante da depressão e do vendaval de acontecimentos que a seguiram, tanto no Chile como em outras partes, se expuseram duas atitudes sobressalentes: a dos que poderíamos chamar ‘acadêmicos’ e a dos ‘empíricos’. Os primeiros não conseguiram entender a dimensão do problema e a projeção de suas consequências. Pensaram que se tratava de outra conjuntura transitória de contração exterior e sustentavam a ‘doutrina sã’ da ‘defesa da moeda’ na restrição fiscal e monetária. Os ‘empíricos’ estavam no comando político e tiveram de dar respaldo a esse discurso para arbitrar todos os meios à mão com o objetivo de fazer frente ao declínio econômico e a seu principal efeito, a inatividade.

O que interessa destacar é que o ‘cambio de rota’ que experimentou a economia chilena no decênio decisivo dos anos 30 passou por quase completo despercebimento para os teóricos da economia. O país rumou para a industrialização sem se dar muita conta do que fazia, impelido pelas circunstâncias e sem orientações gerais ou ‘racionalização’ de suas transformações.”

O último ponto a sublinhar é que o abalo dos anos 30, além de aplicar um golpe contundente - maior ou menor de acordo com cada caso nacional - à economia primário-exportadora, também abalou os alicerces da estrutura sociopolítica. Em outras palavras, o enfraquecimento conseguinte, mais ou menos radical da ordem oligárquica, abriu caminho a outras formas de poder, nos quais aparecem ou se promovem outros grupos de interesses, sejam as classes médias civis ou militares, sejam os grupos de trabalhadores mais organizados, inspirados em novas concepções e interesses, que às vezes se revestiram de um poder significativo. Como é evidente, a experiência do México se antecipou a esses processos que, de outras maneiras, fortaleceram os eventos dos anos 30, em especial a nacionalização do petróleo. Assim, salvo pequenas e limitadas exceções, abre-se um período onde se distingue um outro balanço de poder e de interesses distintos dos que tinham dominado quase sem oposição durante a economia primário-exportadora. Voltaremos a este aspecto quanto atentarmos para as novas circunstâncias que prevalecem no outro ciclo sob observação.

3. A RECUPERAÇÃO DO PÓS-CRISE

Convém agora examinar a recuperação que toma corpo após os anos críticos que, em geral, são os iniciais da década de 30 e tendem a melhorar a partir do segundo quinquênio (Gráfico 1).

O livro organizado por Rosemary Thorpe, conforme alusão anterior, inclui um valioso apêndice estatístico e informações complementares para os países examinados com respeito ao período 1925-1940, especialmente no que diz respeito à América Central e que fundamentou Victor Bulmes-Thomas. Em geral, os antecedentes ratificam as tendências conhecidas no período, que vão da prosperidade que culmina em 1928-29 à queda drástica dos anos 1932-33 e à ainda irregular e limitada reação dos anos finais da década.

A Cepal, em seus estudos iniciais dos primeiros anos, não pode intentar uma recapitulação mais ou menos compreensiva. Somente em 1963 é que se publicou o importante trabalho El desarrollo económico de América Latina en la post-guerra5 5 ‘O estudo identifica o “produto interno da produção líquida interna e o ingresso real como o volume de bens e serviços de que dispõe o país após efetuado o intercâmbio de uma parte desse produto por bens e serviços que se incorporam do exterior, tendo em conta os saldos da balança comercial ou do balanço de pagamentos segundo qual proceda” (ver págs. 6 e 7). , do qual extraímos a Tabela 4, que compreende o período 1945-61 e registra as estimativas, sobre a região e grupos de países, da evolução do produto, do ingresso real, da população e do nível por habitante com respeito ao produto e ao ingresso.

Tabela 4:
América Latina: Ritmo de crescimento do produto e do Ingresso real por grupos de países (taxas acumuladas anuais em porcentagem)

Como se pode ver na tabela reproduzida, as taxas de crescimento para a região são relativamente altas - 4,6% a.a. - ainda que declinantes, o que resulta em crescimento per capita de 1,9% a.a. Atentando para os conjuntos de países, ressaltam-se as taxas mais elevadas para o trio Brasil, México e Venezuela (que somam a maioria da população da região) e as situações intermediárias para o conjunto Colômbia, Equador e Peru, seguidos pelos outros dois conjuntos, particularmente do composto pelas economias do extremo sul, no qual gravita significativamente a Argentina.

Seja como for, não é meu propósito aprofundar nas dimensões econômicas do problema. Desejo, entretanto, deslocar a análise para um terreno mais substantivo e que tem suscitado interesse crescente nestes tempos, que é o do “balanço social”. Como na máxima evangélica, afinal de contas, “por vossos frutos vos conhecereis”. Resta apontar que tal dimensão, talvez mais que a estritamente econômica, está exposta aos extremos do “catastrofismo” e do “triunfalismo”, além das predeterminações de disposição ideológica. Embora creia que o esforço realizado nesse campo, desde muito tempo e por múltiplas pessoas e instituições - entre as quais têm exercido um papel relevante a Cepal e outros organismos das Nações Unidas -, tenha permitido identificar mudanças substantivas e debilidades na evolução do cadastro social.

Recorrendo à Divisão de Estatísticas e Projeções da Cepal - a que se somaram também outras fontes, foi possível organizar a síntese representativa que configura a Tabela 5 (ver página 339, ao lado).

Tabela 5:
América Latina: Evolução de alguns indicadores selecionados (1950-1990)

A população ativa cresce em um ritmo ligeiramente superior à total; enquanto a radicada no setor primário reduz sua participação para a quase metade da de 1950, já a do terciário eleva a sua a pouco mais da metade do total ativo. Por sua vez, a taxa de participação feminina se eleva apenas moderadamente.

Educação e saúde exibem alterações consideráveis e mais positivas. O analfabetismo (sobre a população com quinze anos ou mais) baixa de 44% para 15%; as taxas de escolarização assinalam avanços notórios e a população ativa com mais de seis anos de estudos sobe de 12% para quase 49%. A expectativa de vida ao nascer se eleva de 52 para 68 anos durante o período estudado, enquanto a mortalidade infantil se reduz de 128 para 60 (por mil nascidos vivos).

Em resumo, a observação desta amostra significativa abona a hipótese geral de que a profunda crise dos anos 30 deu passagem a uma recuperação mais ou menos rápida e substantiva, que - sem contar exceções únicas ou nacionais - conseguiu se manter por várias décadas.

Deixando assentados os indicadores relativos à população, que contrastam a dinâmica de sua expansão quantitativa com a moderação de suas taxas de crescimento, os relativos à produção por habitante se elevam até o decênio 1970-80.

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRISE DOS ANOS 80, SUAS CARACTERÍSTICAS ORIGINAIS E PROBLEMAS NOVOS

Parece justificado concordar que, efetivamente, a crise dos anos 30 foi mais drástica e profunda que a dos anos 80. Por outro lado, que conseguiu abordar seus problemas mais agudos e inclusive projetar as futuras novas estruturas socioeconômicas. Os antecedentes apresentados anteriormente abonam essa apreciação. Embora não seja menos certo que neste lapso também afloraram contradições e debilidades que foram amadurecendo e que só podemos repassar resumidamente.

De imediato - e priorizando o aspecto central destas notas - deve-se ter em vista que as relações externas - em particular o endividamento - foram se deteriorando sensivelmente. Para economizar tempo, senti-me tentado a reproduzir uma avaliação resumida do assunto realizada no Estudo Econômico da Cepal de 1971, em que, sob o título de “Perspectivas e incógnitas para el decenio de los 70”, se delineava o seguinte:

“ A concentração do progresso técnico e de seus frutos nos países industrializados tem significado na prática uma crescente marginalização das economias da periferia, o que, contudo, se deu ao lado de correntes importantes de empréstimos institucionais ou oficiais e de inversões diretas, originando-se assim outra contradição principal e que afeta de diversas maneiras os países em desenvolvimento, de acordo com a natureza e intensidade dos fenômenos pertinentes. Com efeito, a perda de posição relativa desses países nos fluxos do comércio internacional não é congruente com a magnitude em ascensão dos compromissos que envolvem as transferências de capitais e créditos. E por fim, o desajuste entre estes movimentos tem derivado em um incremento inusitado do endividamento, em uma diminuição dos aportes líquidos, em uma afetação onerosa dos ingressos de exportação e, por último, em situações de grande vulnerabilidade e de precária capacidade para importar”.

Vale acentuar que as previsões se cumpriram plenamente. A crise do petróleo de 1973 abonou com acréscimo os temores antecipados, repercutindo em direções distintas. De um lado, beneficiava de forma espetacular os produtores, tanto do lado dos preços como pelo endividamento através do sistema financeiro internacional. Por outro lado, os não-produtores ou deficitários, através dos mesmos canais, também participaram de apreciáveis transferências, impulsionados pelos mesmos entrepostos e compartilhando no possível da euforia coletiva.

O doloroso despertar do início dos anos 80 destruiu esse jogo de miçangas e ambos os grupos enfrentaram a “hora da verdade”, mais ou menos dura e prolongada conforme a situação e conduta dos países afetados.

Esse tempo turbulento e por demais analisado interessa a todo o mundo latino-americano por suas repercussões inflacionárias, maiores ou menores, curtas ou prolongadas, conforme foram seus meios e o semblante de suas políticas, segundo as mais diversas circunstâncias, que não é possível repassar nestas notas.

Qualquer que seja o caso, todos em algum grau foram postos em xeque, ativando os impulsos inflacionários e repercutindo negativamente sobre as estruturas sociopolíticas que - de acordo com as configurações nacionais - vinham regendo ou gravitando a seu modo desde o pós-crise dos anos 30.

Evidentemente, deve-se ter cuidado para não exagerar com a incidência da crise do petróleo e das derivações do conseguinte endividamento externo. Os ajustes de pós-guerra nos anos 50 e as comoções revolucionárias pós-Cuba e suas diversas repetições, sem esquecer os “ciclos militares”, formam parte muito significativa das políticas desse tempo.

Por outro lado, este quadro tem como contrapartida visível o fortalecimento do “poder central”, estabelecido nas potências dirigentes e no aparato financeiro internacional, constituído pelas grandes agências supranacionais que controlavam e distribuíam os recursos segundo critérios praticamente uniformes e quase inapeláveis.

E, nesses casos, não faltou quem definisse essa realidade como de “irresponsabilidades compartilhadas”6 6 Sobre a matéria, urna primeira qualificação do mestre Prebisch definiu as “responsabilidades compartilhadas”. Seguimos sua análise em um trabalho apresentado na Conferência sobre Dívida Externa, realizada na Costa Rica em dezembro de 1985, sublinhando a situação e repassando distintos aspectos do assunto. ; o que se justifica quando se tem em conta a distribuição pródiga e amiúde indiscriminada dos créditos petrolíferos no período pós-1973, como mencionado anteriormente. Seja como for, essa política teve uma incidência funesta, tanto para encobrir as efetivas realidades dessa conjuntura como para agravar as dificuldades pós-19827 7 Por limitações de tempo e competência, não podemos incursionar no caso de alguns países que, embora tenham rechaçado as terapias impostas pelos centros financeiros, optaram por outras vias que contribuíram para acelerar ou sustentar o nível inflacionário. .

Recordar esse cenário estimula necessariamente a contrastá-lo com o da crise dos anos 30 e o comportamento e irradiação externa das economias do eixo daquela época, os EUA e a Grã-Bretanha. O caráter restritivo de suas políticas internas - particularmente no país do Norte e com antecedência ao “New Deal” rooseveltiano - implicou, de uma parte, que também experimentaram as consequências da crise e que não puderam impor seus custos aos devedores latino-americanos, vergados pela desarticulação de suas transações externas. Por outro lado, à parte de que não existia o aparato privado e internacional destes tempos, o grosso dos detentores de valores estava constituído, nos anos 30, por indivíduos dispersos ou pequenas entidades investidoras que viram se esfumar seus ativos8 8 Vários autores da seleção organizada por R. Thorpe, op.cit., tocam nessa questão. . Em algum grau, em definitivo; houve certa (ainda que desigual) “partilha de transtornos, ainda que não de responsabilidades”.

5. NOVOS CENÁRIOS E INCERTEZAS

As circunstâncias do presente certamente têm variado, mas estão longe de uma superação dos transtornos ainda indomados em alguns países de nossa região. E dizemos isso sem nos referirmos às comoções internacionais que nos fazem cismar a cada dia sobre seu caráter e seus reflexos sobre nós.

Para encerrar estas notas, devemos voltar para nossa preocupação central: o contraponto “entre as duas crises”, retomando uma questão decisiva entre as que promoveram a árdua recuperação após o sismo dos anos 30 e de algumas que se sobressaem hoje em dia.

Interessa-nos a recomposição das forças na primeira conjuntura que, como se assinalou, se traduziu em uma outra estrutura ou balanço de poderes, que desbancou àquela constituída pela oligarquia tradicional e assentada na economia primário-exportadora e na gravitação estrangeira sobre suas bases produtivas e financeiras. Esse deslocamento apresentou diferenças muito profundas segundo as características de cada país, em grau e forma, mas ao longo do processo foram poucos os que ficaram por completo à margem dele.

Seja como for, aquela transformação foi se desgastando, como o sugerem as turbulências que se manifestaram talvez desde os anos 50 e que se descolaram com o reforço da Guerra Fria e de suas contrapartidas.

Como sobremesa, o declínio daquela aliança ou associação não se deve somente - nem talvez - atribuir às grandes mudanças ocorridas no plano político. O enorme deslocamento urbano-rural; a substituição da “velha classe média” dos primeiros decênios por outra (ou outras), “modernizada” e ascendente, em número e influência; a diversificação e as mudanças da própria classe trabalhadora, agora mais “compartimentada”; a crescente organização e peso do universo empresarial; a própria gravitação e novos papéis das forças armadas em muitas partes. E assim se poderia prosseguir com exemplos que, em última instância, correspondem às várias e profundas transformações do pós-30, que foram cristalizando distintas estruturas sociais, com variadas e alteradas configurações políticas e relações de poder, às vezes não decantadas, salvo poucas exceções nacionais, que não é possível valorizar agora.

Em definitivo, vivemos em “outra América Latina”, muito diferente da que emergiu nos anos 30 e que continuou se transformando nas décadas posteriores, à medida de seus próprios movimentos e das circunstâncias externas, assim mesmo mutantes e frequentemente decisivas.

Por infortúnio, a reconhecida indiferença histórica de tantos economistas e cientistas sociais (talvez maior nos primeiros do que nos segundos) não estimulou a continuação e a análise multidisciplinar desses processos. Mas a tarefa continua em pé e deverá ser abordada. Desde logo, reiteramos, porque é primordial para identificar e perfilar - no presente e até o futuro próximo - as estruturas socioeconômicas e de poder político, assentadas em realidades consistentes ou possíveis, inclusive, por certo, do contorno regional e internacional.

Esta introspecção ou reconstrução crítica e, às vezes, positiva implica grandes e persistentes esforços. Desde logo, pesa sobre eles a ressurreição do paradigma ortodoxo, que indubitavelmente tem se renovado e que poderia se chamar “economia instrumental”, deixando de lado ou repudiando o que antes se chamava “economia política”. Não será fácil ressuscitá-la e, por certo, renová-la. A Cepal será seguramente um dos principais agentes desta tarefa, porém, para ela, exigirá o vigoroso apoio da juventude profissional, a quem corresponde principalmente a grande tarefa de uma renovação criativa.

  • 1
    A imagem pertence a G. Lukács, que adaptou de Paul Sweezy para seu livro The present as history, Nova York, Montlhy Review Press, 1962.
  • 2
    Ver Latin America in the 30’s, the role of the periphery in world crises. Nova York, St. Martin’s Press, 1984. Dirigida com a participação de Rosemary Thorpe.
  • 3
    Estas questões foram examinadas - principalmente sob o ângulo da experiência chilena - nos trabalhos do autor destas notas. O primeiro foi Chile. Um caso de desarrollo frustrado, 1959. Editorial Universitaria, Chile. O segundo foi Politica y desarrollo, 1968, Editorial Universitaria, Chile.
  • 4
    Em Politica y desarrollo, op. cit.
  • 5
    ‘O estudo identifica o “produto interno da produção líquida interna e o ingresso real como o volume de bens e serviços de que dispõe o país após efetuado o intercâmbio de uma parte desse produto por bens e serviços que se incorporam do exterior, tendo em conta os saldos da balança comercial ou do balanço de pagamentos segundo qual proceda” (ver págs. 6 e 7).
  • 6
    Sobre a matéria, urna primeira qualificação do mestre Prebisch definiu as “responsabilidades compartilhadas”. Seguimos sua análise em um trabalho apresentado na Conferência sobre Dívida Externa, realizada na Costa Rica em dezembro de 1985, sublinhando a situação e repassando distintos aspectos do assunto.
  • 7
    Por limitações de tempo e competência, não podemos incursionar no caso de alguns países que, embora tenham rechaçado as terapias impostas pelos centros financeiros, optaram por outras vias que contribuíram para acelerar ou sustentar o nível inflacionário.
  • 8
    Vários autores da seleção organizada por R. Thorpe, op.cit., tocam nessa questão.
  • *
    Agradeço a valiosa colaboração de Arturo León, principalmente na apresentação das mudanças da estrutura socioeconômica durante o período 1950-1990. Tradução do espanhol de Everton Pinheiro de Souza Gonçalves e revisão de Camila Faria Lima.
  • 9
    JEL Classification: E66; N16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1992
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