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Consumo do governo, juros externos e inversão reprimida: o problema da dívida externa revisitado* * Os autores agradecem os comentários de Isaias Coelho e dos pareceristas desta Revista, assumindo, porém, responsabilidade plena pelo conteúdo do artigo.

Government consumption, foreign interest and repressed investment: the problem of external debt revisited

RESUMO

Este artigo analisa a evolução dos gastos do setor público brasileiro durante a segunda metade da década de 80. É criticada a interpretação segundo a qual a crise fiscal é exógena e causada pelos juros da dívida externa. Discute-se o grande aumento das despesas atuais após 1984, juntamente com uma restrição orçamentária que limita o investimento público. Com base nisso, o consumo do setor público, e não os pagamentos de juros da dívida externa, é considerado o fator mais importante responsável pela trajetória do investimento público ao longo do tempo nos últimos cinco anos.

PALAVRAS-CHAVE:
Gasto público; crise cambial; crise da dívida

ABSTRACT

This paper analyses the evolution of Brazilian public sector expenditures during the second half of the 1980’s. The interpretation according to which the fiscal crisis is exogenous and caused by the external debt interest is criticized. The great increase in current expenditures after 1984, together with a budget restriction that limited public investment is discussed. Based on it, public sector consumption and not external debt interest payments is considered the most important factor responsible for the public investment trajectory over time during the last five years.

KEYWORDS:
Public expenditure; currency crisis; debt crisis

1. INTRODUÇÃO

No início dos anos 80, os diversos países devedores da América Latina foram seriamente afetados pela crise da dívida externa, devido aos impactos internos provocados pela decisão dos bancos privados internacionais de não seguir refinanciando o pagamento dos juros através de novos empréstimos. A partir de então, muitos países prejudicados por essa recusa viveram uma história com muitos pontos em comum entre si, entre os quais podem ser mencionados fenômenos como a estatização da dívida externa, a desvalorização real do câmbio, a transferência de recursos reais ao exterior, o aumento do peso dos pagamentos dos juros externos no orçamento público e uma aguda crise fiscal.

Durante vários anos e por muitos economistas - tanto locais como de outros países -, o caso brasileiro foi analisado como mais um entre os inúmeros casos de países cujos esforços em favor da redução do déficit público se viram em grande parte compensados - ou até totalmente esterilizados - pelo montante de recursos comprometidos com o pagamento dos juros da dívida pública externa. Diversos analistas apontaram então para o “problema da dívida” como causa fundamental do agravamento da crise do setor público brasileiro e, por extensão, da inflação, como ocorrido em outros países do continente.

O objetivo deste artigo é questionar a validade dessa interpretação no período referente à segunda metade dos anos 80, elaborando uma explicação alternativa, segunda a qual a evolução do gasto público ao longo da década passada pode ser desdobrada em duas etapas distintas entre si, onde a segunda foi marcada, não por um aumento, e sim por uma queda da importância relativa do custo da dívida externa.

Deve-se ressalvar, contudo, que toda a análise acerca do impacto do serviço da dívida nas contas públicas será centrada no problema dos juros, sem considerar, portanto, as amortizações. Nesse sentido, o fato de procurar mostrar a perda de importância relativa do ônus associado aos juros externos não significa ignorar os problemas recentes relacionados com a dívida externa, associados ao resultado negativo da conta de capitais, causado, entre outras coisas, pela amortização efetiva de uma parte da dívida. Além disso, não pretendemos ignorar as consequências negativas que a dívida externa acarreta sobre a política monetária, a instabilidade cambial e a formação de expectativas. Em outras palavras, o que se deseja é polemizar acerca do ônus fiscal associado ao pagamento de juros da dívida externa, mas sem desconhecer outros problemas que esta última provoca.

O trabalho está organizado da seguinte maneira. Depois desta pequena introdução, a segunda parte resume o ponto de vista segundo o qual a crise externa seria a principal responsável pela piora da situação das contas do setor público. Dando continuidade a isso, a terceira parte analisa a mudança da estrutura dos gastos públicos no Brasil nos anos 80. A quarta seção associa o comportamento dos investimentos públicos ao aumento do consumo corrente do governo e das empresas estatais, num contexto de restrição orçamentária. Por último, busca-se entender as causas da evolução do dispêndio com o pagamento dos funcionários públicos e do consumo de bens e serviços por parte do Estado.

2. A INTERPRETAÇÃO SOBRE AS CAUSAS EXTERNAS DA CRISE: UMA SÍNTESE

Após a decisão mexicana de decretar a moratória temporária de sua dívida externa e a consequente determinação dos bancos privados internacionais de não seguir refinanciando o pagamento dos juros com novos empréstimos, os efeitos negativos causados pela nova situação, do ponto de vista dos países devedores, foram, num primeiro momento, interpretados como um típico problema de falta de poupança externa. Tendo em mente o “modelo de dois hiatos”, isso significava que, à medida que o pagamento dos juros fosse coberto por saldos positivos na balança comercial, a eliminação do déficit em conta corrente implicaria uma queda do coeficiente de poupança total e, portanto, da taxa de investimento. Este último, por sua vez, provocaria um deslocamento para baixo da trajetória esperada de crescimento.

A magnitude dos ajustes requeridos pelas novas circunstâncias gerou em muitos a suspeita de que o ajuste exigido seria simplesmente impossível de alcançar e os países endividados não seriam capazes de gerar tal quantidade de recursos necessários para poder pagar os juros sem recorrer a novos empréstimos externos. Em alguns países, essas dúvidas mostraram-se corretas e, de fato, os bancos tiveram de aceitar mecanismos de capitalização parcial dos juros.

Dentro desse panorama, o Brasil revelou-se um caso notável, pois em menos de dois anos passou de uma situação de virtual equilíbrio na Balança Comercial a outra, caracterizada pelos chamados “mega-superávits” de mais de US$ 10 bilhões, o que lhe permitiu honrar integralmente os compromissos externos depois de 1983.1 1 A moratória de 1987 deve ser vista como uma mera interrupção temporária desse processo, já que seus efeitos foram compensados pelo overshoot de 1988, quando o superavit comercial de US$ 19 bilhões permitiu cobrir os pagamentos atrasados.

Aos poucos, foi se notando que saldos comerciais dessa magnitude representavam um sério ônus à capacidade de crescimento da economia em termos similares aos do famoso debate de Keynes e Ohlin sobre o “problema da transferência” (Keynes, 1929KEYNES, J.M. (1929). “The German transfer problem”. Economic Journal, 39, março.; Ohlin, 1929OHLIN, B. (1929). “The reparation problem: a discussion”. Economic Journal, 39, junho.). Havia, porém, uma outra consequência negativa relacionada com o pagamento dos juros externos: o seu impacto sobre as contas fiscais. A questão central, em torno da qual passou a girar o debate da dívida externa, foi de que esta era em sua maior parte pública, enquanto os superávits comerciais eram integralmente gerados pelo setor privado. Assim, o equilíbrio externo alcançado estaria intrinsecamente ligado a um desequilíbrio interno, fiscal e monetário, pois o Estado pagava os juros externos comprando as divisas dos exportadores e, com isso, aumentando a emissão monetária e de dívida pública intensa, com efeitos perturbadores sobre a evolução da inflação e da taxa de juros interna.

Tudo isso se viu agravado pela circunstância de que, ao ser vítima de uma repentina - e profunda - crise cambial, o Brasil, como quase todos os países em situação similar, foi obrigado a aplicar uma forte desvalorização real ao cruzeiro em 1983, medida que contribuiu para estimular as exportações e, assim, equilibrar a conta corrente do balanço de pagamentos. Contudo, provocou também um incremento do custo real dos juros da dívida externa do setor público, ampliando dessa forma o déficit fiscal, o que - em caso de tomada de medidas para se contrapor ao fato - exigiria uma redução compensatória do déficit primário - que exclui juros - do setor público.

O problema da “dupla transferência” é sintetizado por Bacha com as seguintes palavras:

“Primeiro, é preciso aumentar os impostos, ou reduzir os gastos correntes do governo, para se obter os recursos necessários à transferência externa. Segundo, é preciso que esses recursos assumam a forma de divisas - ou seja, de excessos de exportações sobre importações - para que o governo possa fazer a transferência na moeda exigida pelos credores ( ... ). Toda a interpretação da crise da dívida externa brasileira e latino-americana teve o raciocínio acima como pressuposto. O problema era gerar as divisas, a transferência interna de alguma forma seria feita ( ... ). Ocorre que a história brasileira na década de oitenta não correspondeu à hipótese de ser a escassez de divisas a principal restrição para o país manter-se em dia com o pagamento de sua dívida externa. Graças à adoção de uma agressiva política econômica ( ... ) foi possível gerar superávits comerciais suficientemente altos para pagar os juros da dívida externa, sem necessidade da obtenção de dinheiro novo dos bancos credores. O que não se conseguiu foi gerar superávits fiscais, ou seja, fazer a transferência interna de recursos, do setor privado para o governo, previamente necessária para que este pudesse honrar o serviço da dívida externa” (Bacha, 1990BACHA, E. (1990). “O fisco e as divisas: uma proposta para a renegociação da dívida externa”. Texto preparado para a Secretaria de Planejamento da Presidência da República.).

Os efeitos fiscais do ajuste externo foram sintetizados por Werneck (1986) como se segue no Gráfico 1.

Gráfico 1

No gráfico, yp, ye e yf representam a participação no PIB da renda disponível do setor privado e do Estado e a renda líquida enviada ao exterior, respectivamente. A reta HH corresponde a um conjunto de postos nos quais o coeficiente yp/ye é constante e a reta RR é uma restrição determinada por yf, dado que yp + ye = 1 - yf. De acordo com Werneck, a distribuição proporcional do custo da dívida externa entre os setores público e privado causaria um deslocamento do ponto g para k, com uma queda da renda disponível tanto do setor público como do privado, de ye0 para ye1 e de yp0 para yp1, respectivamente. Todavia, como o ônus do ajuste incidiu fundamentalmente sobre o setor público, este sofreu em maior medida os efeitos do aumento de uf, a ponto de ye cair para ye2, enquanto a participação da renda disponível do setor público no produto se mantinha estável em yp0, no ponto m, apesar do deslocamento de RR para R’R’.

Como consequência das características do ajuste externo, a literatura viu-se enriquecida por numerosos trabalhos com a conclusão de que aquele havia agravado o desequilíbrio interno, trabalhos esses que derivaram na formulação de novos esquemas teóricos, como o “modelo de três hiatos” (Bacha, 1989BACHA, E. (1989). “A three-gap model of foreign transfer and the GDP growth rate in developing countries”, trabalho elaborado para a Unctad, abril.), que além dos gaps de divisas e de poupança, passaram a agregar o chamado “hiato fiscal”.

Tal diagnóstico - em nossa opinião, essencialmente correto em seu momento - foi ganhando força nos meios acadêmicos e contagiando aos poucos as esferas oficiais.

Nosso propósito, no restante do trabalho, será o de questionar a interpretação acerca da importância dos fatores exógenos na explicação da crise fiscal brasileira. Os trabalhos que destacam tais fatores serão vistos como uma contribuição válida na primeira metade da década passada, mas que exigiriam uma revisão, à luz do ocorrido no Brasil na segunda metade da década, que distingue não só esta da primeira, mas também o caso brasileiro de outras experiências vividas por países endividados da América Latina.2 2 As objeções que serão expostas se referem àqueles trabalhos de autores cujas posições sobre o tema não mudou, apesar das transformações econômicas que serão comentadas na próxima seção. Este não é o caso de autores como Sacha e Werneck, cuja ênfase com respeito a que medidas deveriam ser tomadas pelo governo foi sendo modificada à medida que a própria realidade sofria alterações. O fato de terem sido citados como defensores de uma tese que passaremos a questionar - a de que o agravamento da crise fiscal foi causado pela dívida externa - se deve apenas à circunstância de que escreveram textos clássicos sobre o tema. Nossa crítica, portanto, não deve ser entendida como dirigida a esses autores ou à tese em si, mas apenas à persistência de outros autores em sua defesa, quando, devido às mudanças ocorridas a partir de 1984, teria perdido grande parte de seu poder explicativo para a crise do setor público.

3. AS MUDANÇAS NA ESTRUTURA DO GASTO PÚBLICO

Nossa preocupação, nesta seção, será comparar exclusivamente a evolução dos gastos em consumo e investimento do setor público com o impacto orçamentário dos juros da dívida externa do mesmo setor público.3 3 Em todo o texto, chamaremos “setor público” ao agregado composto pelo governo - que inclui o governo federal e os governos estaduais e municipais - e as empresas estatais do governo federal. Os dados que se referem aos governos são do IBGE, enquanto os das empresas estatais são do organismo responsável por seu controle (Sest). Evidentemente, para uma análise global do problema do déficit fiscal, deveríamos analisar outras variáveis, tais como as tarifas públicas, a arrecadação tributária e os juros da dívida interna. Tais assuntos, no entanto, vão além dos limites deste artigo, não só porque, à medida que o texto se concentra em um aspecto específico, há possibilidade de tratá-lo em maior profundidade, mas também porque aqueles temas já foram tratados em vários artigos à disposição de leitores interessados.4 4 Ver, por exemplo, Giambiagi (1989), Rezende et al. (1989) e o já citado Werneck (1986).

3.1 Os juros da dívida externa

A importância relativa do pagamento de juros da dívida externa do setor público depende de uma série de fatores. São eles:

  1. a dívida externa do país;

  2. a participação do setor público na dívida externa total; e) a taxa de juros externa;

  3. a taxa de câmbio real;

  4. a magnitude do PIB - que afeta a relação Dívida Externa/PIB e o coeficiente juros externos/PIB.

O efeito conjunto dos dois primeiros fatores representa o valor da dívida externa agregada do setor público - incluindo governo e empresas estatais. Depois de 1984, embora não tenha chegado a ocorrer uma reversão drástica em relação ao que havia se verificado previamente, houve uma modificação no ritmo de crescimento dessa variável, como resultado de um aumento menor da dívida externa total do país e do esgotamento natural do processo de estatização da dívida. À guisa de exemplo, a relação dívida externa líquida do setor público/dívida externa líquida total, que era de 54% em 1979, passou a ser de 72% em 1984 e desde então aumentou relativamente pouco, sendo ligeiramente superior a 80% durante os últimos anos. Dessa forma, a dívida em dólares do setor público, que havia duplicado em quatro anos durante 1981/84, cresceu apenas em torno de um terço, em termos nominais, entre 1984 e 1988. Se levarmos em conta a inflação internacional, a conclusão é que, ainda que o câmbio tivesse se conservado no nível de 1984, a dívida externa teria passado a crescer a uma taxa real relativamente pequena, em comparação com o passado.

A taxa de juros externa, por sua vez, ainda que com algumas oscilações, também caiu com respeito aos níveis em que se encontrava em meados dos anos 80, passando de 12% ao ano em 1984 - para o caso da libor de seis meses - para o nível de 8/9% em 1990. Para o Brasil, a redução foi ainda maior levando em conta a queda dos spreads, que entre meados e fins da década apresentou uma variação negativa de cerca de 1 %, diminuindo de 2% para 1 %, aproximadamente.

É na evolução da taxa de câmbio que se nota a inflexão mais notável ocorrida na metade da década, como se pode ver na Tabela 1. O benefício causado por esse fenômeno pode ser interpretado de duas formas. Ao considerar as contas em moedas nacionais, a preços constantes, isso implica uma queda do valor real dos juros externos. Já raciocinando em termos da moeda estrangeira, o que ocorre é um aumento do PIB medido em dólares. Em ambos os casos, a relação juros externos/PIB se reduz.5 5 Cabe notar, com relação às exportações, que embora estas tenham perdido competitividade nos últimos anos, a perda foi muito menor do que sugere a terceira coluna da Tabela l. Isto porque, além da inflação externa - que em caso de ser adotada uma política de purchasing power parity reduziria o valor da taxa real de câmbio, mas não a competitividade externa ·, o país, ao desvalorizar a moeda usando como parâmetro de referência o dólar, viu-se beneficiado pela depreciação deste frente às demais moedas fortes, depois de 1984. Observe-se que, no período 1984/1990, a redução do valor real interno do dólar no Brasil, captada pela terceira coluna da Tabela 1, foi de 53%, enquanto a perda efetiva de competitividade das exportações, refletida na coluna da taxa efetiva real, foi bastante menor (31%).

Tabela 1:
Evolução da taxa de câmbio real

Por último, o próprio crescimento real do PIB tenderia a reduzir a importância relativa do pagamento dos juros, mesmo supondo que estes conservassem seus valores em dólares correntes ou que aumentassem a uma taxa igual ou inferior à inflação internacional. É interessante assinalar, nesse sentido, a diferença entre as situações do Brasil, de um lado, e dos demais devedores, de outro. Entre 1984 e 1989, por exemplo, os países da América Latina e do Caribe, segundo dados do Banco Mundial e da Cepal, acumularam um crescimento real de 12,3%. Entretanto, enquanto a economia brasileira - que corresponde a algo em torno de 40% do PIB da região - teve uma taxa de crescimento acumulado de 24,1%, o restante dos países cresceu apenas 5,3% em todo o período (Seain, 1990SEAIN - SECRETARIA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS. (1990). “Boletim de Conjuntura Internacional”. Seplan, Brasília, março.).

O resultado dos cinco fatores discutidos foi uma mudança significativa na evolução da relação entre os juros externos pagos pelo setor público e o PIB, apresentada na Tabela 2.6 6 É preciso esclarecer que, na tabela, os valores de 1987 referem-se ao registro contábil dos juros que deveriam ter sido pagos, mesmo que não o tenham sido na prática, devido à moratória. O mesmo se aplica a 1989 e 1990.

Tabela 2:
Despesas com juros da dívida externa líquida do setor público

Como se pode ver claramente na última coluna, entre 1980 e 1984, a importância dos juros da dívida externa pública cresceu significativamente e de forma ininterrupta, acumulando um aumento equivalente a quase 2% do PIB; depois de 1984, o impacto da variável foi igual ao que se registrou há dez anos.

3.2 Os gastos não-financeiros

Uma vez exposto o comportamento dos gastos representados pelo pagamento dos juros da dívida externa, é importante nos determos na análise das variações sofridas, em termos reais, pelos gastos não-financeiros do setor público, tanto de consumo como de investimento.

Para isso, as variáveis nominais serão deflacionadas por índices de preços específicos para o consumo e para o investimento. Estes últimos podem ser obtidos comparando as variações nominais das Contas Nacionais (CN) de cada uma das variáveis - agregando os setores público e privado - com as respectivas variações reais, em ambos os casos informadas pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

O tratamento conjunto dos setores público e privado se explica porque, nas contas a preços constantes divulgadas por essa instituição, não há distinção entre um e outro. A hipótese implícita que resulta de adotar o critério mencionado para deflacionar as contas do setor público é que a taxa de variação do índice de preços dos bens de consumo é a mesma para o setor público e para o setor privado, o mesmo ocorrendo - embora com outra taxa - no caso do índice de preços da FBKF - formação bruta de capital fixo. Os deflatores implícitos obtidos dessa forma serão, por sua vez, utilizados para calcular as variações reais do consumo corrente das empresas estatais, de um lado, e dos seus gastos em investimento, de outro. Os dados básicos considerados, neste caso, foram extraídos de diversas publicações da Sest - Secretaria Especial das Empresas Estatais.

Sabemos que somar os dados do Governo (CN) aos da Sest é, em parte, incorreto do ponto de vista metodológico, já que as informações básicas tiveram origem em fontes diferentes e foram obtidas por critérios nem sempre homogêneos, os quais não cabe aqui detalhar. Contudo, dada a importância alcançada na economia brasileira pelas empresas estatais, pensamos que omitir da análise seus gastos seria um erro ainda maior.

Os números com os quais trabalhamos, já deflacionados pelos índices de preços específicos acima citados, são expostos no apêndice. Eles serviram de base para construir as Tabelas 3 e 5, todas elaboradas com base nos dados a preços de 1980, do citado apêndice.

TABELA 3
Índice de evolução do gasto público
TABELA 4
Evolução do gasto público Em% do PIB
Tabela 5:
Taxas de crescimento real do gasto público - Média anual(%)

Neste ponto é importante fazer um esclarecimento com respeito à dinâmica exibida pelo consumo com bens e serviços das empresas estatais ao longo da década.

A simples observação dos números mostrados pode dar a falsa impressão de que tais empresas foram “perdulárias” durante os anos de ajuste no início da década de 80. Na realidade, o que ocorreu é que os dados parecem refletir o amadurecimento dos projetos de investimento iniciados a partir de 1975, durante a vigência do II PND - Plano Nacional de Desenvolvimento. Em 1980, muitos programas a cargo das empresas estatais ainda estavam em fase de implementação, com plantas não concluídas ou funcionando a meia capacidade. Quando foram completados, era natural que a produção das empresas aumentasse, o que gerou também um volume maior de compras de matérias-primas e de gastos com serviços de todo tipo.

Em linhas gerais, os números - sintetizados na Tabela 5 - mostram que:

  • (i) No período 1981/84, houve uma queda do gasto público representado pela soma dos gastos correntes e de investimentos.

  • (ii) Tal queda concentrou-se fundamentalmente nos investimentos, enquanto o consumo corrente teve um pequeno aumento, ainda que houvesse uma redução acumulada de 15% nos salários e encargos e um aumento de 16%, aproximadamente, dos gastos com bens e serviços.

  • (iii) Durante os quatro anos compreendidos entre 1985 - inclusive - e 1988, a trajetória do gasto total registrado nos quatro anos anteriores modificou-se radicalmente, quando o agregado composto pela soma do consumo e investimento do setor público sofreu uma variação positiva de nada menos que 44%.

  • (iv) Na recuperação, mais uma vez, o investimento acumulou uma nova defasagem relativa diante das outras variáveis de gasto, já que seu aumento real acumulado foi de 25%, enquanto o fluxo de pagamento de salários e encargos aumentou 66% e os gastos com bens e serviços, 38%, obtendo-se, como resultado, um aumento de 48 % do total do consumo corrente.

Em síntese, o conjunto de dados mostra que a trajetória seguida pelo gasto público no Brasil, depois de 1984, estabelece uma nítida distinção, em primeiro lugar, com a evolução prévia dessa variável no mesmo país e, em segundo lugar, com o ocorrido em outros países da América Latina, onde os esforços efetivos de contenção do gasto foram anulados devido à erosão da receita tributária e/ou aumento do serviço da dívida externa.7 7 Mesmo em outros casos geralmente tratados como exemplos de países com políticas fiscais equivocadas, registrou-se uma redução do consumo corrente no período citado. Na Argentina, entre 1984 e 1987, os gastos em consumo do governo consolidado foram reduzidos em 1% do PIB (Heymann e Navajas, 1990). No Peru, durante 1984/88, a redução foi maior, alcançando 9% do PIB (Schydlowsky, 1990). O consumo do setor público aumentou em mais de 4% do PIB, a preços de 1980, segundo a Tabela 4.

Pode-se dizer então que no debate entre “ortodoxos” e “heterodoxos”, verificado no Brasil nos inícios dos anos 80, os últimos tinham razões para afirmar que os cortes do gasto público que estavam sendo feitos a) eram reais e b) eram em parte compensados pelo aumento dos gastos com serviços da dívida externa. É válido lembrar que, naqueles anos, a crítica dirigida ao governo do outro lado do espectro teórico e ideológico, por parte da ortodoxia, era que aquele “não estava cumprindo com sua parte” no processo de ajuste, ao mesmo tempo que o problema da dívida externa era simplesmente desconsiderado.

Em meados da década, porém, a realidade começou a mudar e quase todos os elementos que compõem o gasto público passaram a apresentar um crescimento intenso, ao mesmo tempo que o gasto realizado com o pagamento de juros da dívida externa ia perdendo importância relativa diante das demais variáveis macroeconômicas.

4. RESTRIÇÃO ORÇAMENTÁRIA E INVERSÃO REPRIMIDA

Os comentários da seção anterior obrigam a repensar o esquema proposto por Werneck, segundo o qual, devido ao processo explicado com a ajuda do Gráfico 1, a origem da crise fiscal estaria associada ao aumento das transferências ao exterior. Ainda que, efetivamente, tal explicação tenha servido no passado para entender as causas iniciais da crise, a interpretação não parece adequada para compreender sua continuidade posterior, uma vez que o peso dos juros da dívida externa, embora continuasse a ser expressivo, viu-se diminuído ao longo dos últimos anos.

A comparação com um passado mais distante no tempo se vê prejudicada pela não existência de dados sobre o gasto das empresas públicas nos anos 70.8 8 A Sest só foi criada no final dessa década.

Embora se possam tirar conclusões válidas utilizando como parâmetro de comparação os dados de 1980 dos quadros anteriores, é possível retroceder um pouco mais no tempo e - mesmo sem poder contar com dados das empresas estatais, pelo motivo citado - comparar o ocorrido durante os anos 80 com a realidade de anos anteriores, conforme faz a Tabela 6, construída, da mesma forma que as outras, com base em deflatores específicos para o consumo e o investimento.

Tabela 6:
Gastos correntes e de investimento do governo. Em% do PIB, a preços de 1980. Médias anuais.

De forma análoga ao Gráfico 1, construiremos agora um gráfico de restrição orçamentária, que serve para ilustrar o processo que se descreveu antes. É isso que se busca com o Gráfico 2.

Gráfico 2

O eixo horizontal do gráfico representa a relação entre o consumo corrente do setor público (CG) e o PIB CD, enquanto o vertical corresponde à relação entre investimento público (IG) e o mesmo denominador. A reta HH indica uma série de pontos nos quais as participações relativas dos gastos correntes e de investimentos no orçamento formado pela soma de ambos se conserva constante. A reta RR reflete uma restrição orçamentária. Essa reta se desloca para a direita em função da queda dos gastos financeiros associados ao pagamento dos juros da dívida pública - interna e externa--, do aumento das receitas do governo e do valor real das tarifas públicas, do incremento da relação déficit fiscal/PIB e, por último, do maior financiamento do déficit público obtido através do endividamento público - interno e externo - e da segniorage monetária. Por sua vez, variações no sentido oposto dessas variáveis deslocam a reta RR para a esquerda.

A crise externa, ao provocar um aumento dos gastos orçamentários associados ao pagamento dos juros da dívida, ao mesmo tempo que o crédito dos bancos internacionais praticamente desaparecia, causou um deslocamento para a esquerda de RR para R ‘R’. Se a queda do gasto público tivesse sido proporcionalmente entre o consumo corrente e os investimentos, a economia deveria passar do ponto a para o ponto b. Como a queda dos investimentos foi proporcionalmente maior, na realidade, a economia passou do ponto a para o ponto e. Quando, porém, o impacto dos compromissos externos foi se diluindo e o gasto total em consumo e investimento do setor público passou a aumentar, a economia não retornou à situação inicial, movendo-se para o ponto c. Supondo que a reta de restrição orçamentária seja semelhante à vigente antes da crise externa, isso significa que o investimento se viu reprimido não por um aumento dos lucros externos ao longo da década e sim por um aumento do consumo corrente do setor público. Essa queda fica clara, comparando os números de 1980 com os de 1988 na Tabela 4, assim como os de 1975/80 na Tabela 6.

A importância desse aspecto ultrapassa os limites das finanças públicas e se relaciona com os temas das políticas anti-inflacionárias e de desenvolvimento econômico. Considerando que o financiamento do gasto público exigiu nos últimos anos um nível de arrecadação de imposto inflacionário incompatível com o objetivo de alcançar uma meta de inflação baixa e estável, cabe deduzir que a reta orçamentária, na presença de um choque fiscal, deve num primeiro momento deslocar-se novamente para a esquerda, no Gráfico 2. Dado que o nível atual de investimento está, comparado com os níveis históricos, bastante baixo, é importante que esse ajuste incida primordialmente sobre o consumo. Isso significa, nesse gráfico, deslocar RR para baixo e compensar o movimento através de uma rotação da reta com inclinação positiva no sentido anti-horário, para que a inversão pública não volte a cair ainda mais.

Por sua vez, numa segunda etapa, seria fundamental tomar medidas para ampliar a arrecadação fiscal, voltando a deslocar a restrição orçamentária para a direita, para que a inversão pública não somente não caia, como também aumente, sem pressionar a inflação. Com efeito, para que o país possa voltar a crescer a um ritmo sustentado de 5/6% ao ano, calcula-se que a taxa de investimento da economia teria de aumentar cerca de 5 pontos do PIB. Dado o caráter complementar entre a inversão pública e a privada e a influência daquela sobre esta (Blejer e Khan, 1984BLEJER, M. & KAHN, M. (1984). “Government policy and private investment in development countries”, IMF Staff Papers, 31(2), junho., Barro, 1989BARRO, R. (1989). “A cross country study of growth, saving, and government”, NBER WP, 2855, Cambridge, MA.), parece razoável admitir que, para atingir esta meta, a inversão do setor público teria de aumentar, grosso modo, cerca de 2 % do PIB.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após mostrar a inflexão ocorrida a partir de 1984, é necessário, por último, procurar discutir que motivos explicam a evolução do consumo corrente no período ao qual se refere este trabalho.

No início dos anos 80 - e, particularmente, em 1983/84, quando o Brasil passou por um rigoroso plano de ajuste, como parte do acordo com o FMI--, o déficit e o gasto público de fato caíram. Essa época, porém, pode ser definida como um período de fiscal tension (Tanzi, 1989TANZI, V. (1989). “Fiscal policy and economic reconstruction in Latin America”, IMF Working Paper, novembro.). A situação se caracteriza por uma repressão artificial do déficit, com base em medidas ad hoc e de curto prazo, tais como a redução do salário real do funcionalismo público - sem realizar uma reforma administrativa para reduzir o contingente de pessoal--, atrasos nos pagamentos, criação de impostos tecnicamente pouco eficazes etc. Em outras palavras, a diferença entre gastos e receita diminuiu, mas não o déficit permanente (core deficit), que se obtém ao deixar de considerar os efeitos transitórios da política fiscal.

Com a redemocratização de 1985, era até certo ponto compreensível que uma série de demandas fiscais, reprimidas nos anos anteriores, aflorassem e diminuíssem, através do aumento real do gasto público, o gap entre o nível do déficit permanente - ou estrutural - e o que se verificara na prática em 1984.

A esse fator se somaram outros elementos que favoreceram o aumento do gasto. O primeiro foi a debilidade política do governo, derivada do fato de que a coligação de oposição que deu a vitória a Tancredo Neves se viu subordinada - devido ao falecimento prematuro daquele - a um presidente em relação a quem não tinha vínculos de fidelidade, como era o caso de José Sarney. Na medida em que este não tinha maioria no Congresso, a disputa distributiva, tradicionalmente associada à discussão de qualquer orçamento, não pôde ser submetida a uma arbitragem firme por parte do Poder Executivo. Dessa forma, o orçamento, em lugar de impor um “jogo de soma zero” aos agentes econômicos, foi o reflexo de demandas inconsideradas, cujo resultado foi uma situação fiscal sistematicamente deficitária.

A outra razão que explica a dinâmica do gasto depois de 1984 foi a escassa preocupação do Executivo com o equilíbrio nas contas públicas, responsabilidade que deve ser dividida entre o presidente e os gestores da economia entre 1985 e 1987.9 9 O governo, inclusive, chegou a divulgar um famoso documento elaborado com o objetivo de “esclarecer o problema do déficit público”, no qual criticava a “influência dos critérios do FMI” e afirmava que “deve se ter um certo cuidado” com as interpretações que incluem o investimento público no cálculo do déficit, propondo então sua exclusão para chegar ao conceito “relevante” do déficit público, que seria o déficit em conta corrente. Este assumiria então o valor - considerado “reduzido” pelo documento - de 0,6% do PIB (Seplan, 1986). Como os investimentos públicos respondiam por mais de 5% do PIB, isso implicava supor que uma relação déficit público total/PIB de 6% seria sustentável e compatível com a estabilidade da inflação num nível baixo, objetivo do Plano Cruzado em 1986. A importância de manter um controle estrito sobre o gasto público foi muitas vezes deixada de lado, com argumentos de um keynesianismo algo ingênuo. Segundo estes, a austeridade fiscal causaria uma recessão, quando o momento exigiria a adoção de políticas expansionistas. Na época, o risco de que isso gerasse pressão sobre a inflação não era visto como relevante.

Dada a existência de demandas reprimidas, com um governo débil e uma equipe econômica que não se preocupava em resistir às pressões, era perfeitamente natural, portanto, que o gasto crescesse a um ritmo acelerado, depois de 1985.

A partir de meados de 1987, notou-se uma nítida mudança da orientação do discurso oficial, cada vez mais comprometido, desde então, com o princípio da austeridade fiscal. Todavia, o governo teve de enfrentar os efeitos de uma sensível perda de seu espaço de manobra, no campo político, ao mesmo tempo que uma série de disposições legais, incluídas na nova Constituição de 1988, anularam, através da criação de novos gastos, os poucos cortes orçamentários que o governo aplicou. Portanto, assim como ao dividir a década em duas etapas, pode-se definir genericamente o período anterior a 1985 como uma etapa de “repressão fiscal”, talvez o adjetivo que melhor reflita o ocorrido em 1987/89 seja o de uma “frustração fiscal”, já que os cortes que se verificaram nos gastos foram em proporção muito inferior à necessária e à que as autoridades desejavam.

Por último, deve ser dito que, ao concluir este trabalho, há algumas mudanças em curso em relação ao quadro descrito no texto. Três delas são particularmente importantes, pela sua relação com a nossa argumentação: a) queda do nível de atividade, traduzida numa redução real de 4% do PIB em 1990 e na previsão da repetição de um resultado negativo em 1991; b) a significativa desvalorização real do câmbio, no último trimestre de 1990; e c) o ajuste fiscal promovido pelo governo Collor. Em todos os casos, são movimentos que apontam na direção oposta aos fenômenos descritos no texto. Os itens a e b causam um aumento do peso do pagamento de juros da dívida externa pública como percentagem do PIB, enquanto o item c significa que o aumento dos gastos em consumo do governo está sendo revertido. Nada disso, porém, invalida a análise feita, na medida em que ela se refere exclusivamente aos anos 80, embora os fatos possam indicar que talvez alguns dos argumentos desenvolvidos no trabalho já não se apliquem ao que está ocorrendo nos anos 90.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • TANZI, V. (1989). “Fiscal policy and economic reconstruction in Latin America”, IMF Working Paper, novembro.
  • 1
    A moratória de 1987 deve ser vista como uma mera interrupção temporária desse processo, já que seus efeitos foram compensados pelo overshoot de 1988, quando o superavit comercial de US$ 19 bilhões permitiu cobrir os pagamentos atrasados.
  • 2
    As objeções que serão expostas se referem àqueles trabalhos de autores cujas posições sobre o tema não mudou, apesar das transformações econômicas que serão comentadas na próxima seção. Este não é o caso de autores como Sacha e Werneck, cuja ênfase com respeito a que medidas deveriam ser tomadas pelo governo foi sendo modificada à medida que a própria realidade sofria alterações. O fato de terem sido citados como defensores de uma tese que passaremos a questionar - a de que o agravamento da crise fiscal foi causado pela dívida externa - se deve apenas à circunstância de que escreveram textos clássicos sobre o tema. Nossa crítica, portanto, não deve ser entendida como dirigida a esses autores ou à tese em si, mas apenas à persistência de outros autores em sua defesa, quando, devido às mudanças ocorridas a partir de 1984, teria perdido grande parte de seu poder explicativo para a crise do setor público.
  • 3
    Em todo o texto, chamaremos “setor público” ao agregado composto pelo governo - que inclui o governo federal e os governos estaduais e municipais - e as empresas estatais do governo federal. Os dados que se referem aos governos são do IBGE, enquanto os das empresas estatais são do organismo responsável por seu controle (Sest).
  • 4
    Ver, por exemplo, Giambiagi (1989GIAMBIAGI, F. (1989). “Desequilíbrio interno”, in MARKWALD, R. & REIS, E. (orgs.) Perspectivas da Economia Brasileira - 1989, cap. 3, 1989, Inpes/Ipea.), Rezende et al. (1989REZENDE, F. et al. (1989). “A questão fiscal”, in MARKWALD, R. & REIS, E. (orgs.), Perspectivas da Economia Brasileira - 1989, cap. 17, 1989, Inpes/Ipea.) e o já citado Werneck (1986).
  • 5
    Cabe notar, com relação às exportações, que embora estas tenham perdido competitividade nos últimos anos, a perda foi muito menor do que sugere a terceira coluna da Tabela l. Isto porque, além da inflação externa - que em caso de ser adotada uma política de purchasing power parity reduziria o valor da taxa real de câmbio, mas não a competitividade externa ·, o país, ao desvalorizar a moeda usando como parâmetro de referência o dólar, viu-se beneficiado pela depreciação deste frente às demais moedas fortes, depois de 1984. Observe-se que, no período 1984/1990, a redução do valor real interno do dólar no Brasil, captada pela terceira coluna da Tabela 1, foi de 53%, enquanto a perda efetiva de competitividade das exportações, refletida na coluna da taxa efetiva real, foi bastante menor (31%).
  • 6
    É preciso esclarecer que, na tabela, os valores de 1987 referem-se ao registro contábil dos juros que deveriam ter sido pagos, mesmo que não o tenham sido na prática, devido à moratória. O mesmo se aplica a 1989 e 1990.
  • 7
    Mesmo em outros casos geralmente tratados como exemplos de países com políticas fiscais equivocadas, registrou-se uma redução do consumo corrente no período citado. Na Argentina, entre 1984 e 1987, os gastos em consumo do governo consolidado foram reduzidos em 1% do PIB (Heymann e Navajas, 1990HEYMANN, D. & NAVAJAS, F. (1990). “Conflito distributivo y deficit fiscal. Notas sobre la experiencia argentina”, in ARELLANO, J.P., (org.), Inflacion rebelde en América Latina, Cieplan, Santiago de Chile.). No Peru, durante 1984/88, a redução foi maior, alcançando 9% do PIB (Schydlowsky, 1990SCHYDLOWSKY, D. (1990). “La debacle peruana: dinámica económica o causas políticas?”, in ARELLANO, J. P. (org.). Inflación rebelde en América Latina, Cieplan, Santiago do Chile.). O consumo do setor público aumentou em mais de 4% do PIB, a preços de 1980, segundo a Tabela 4.
  • 8
    A Sest só foi criada no final dessa década.
  • 9
    O governo, inclusive, chegou a divulgar um famoso documento elaborado com o objetivo de “esclarecer o problema do déficit público”, no qual criticava a “influência dos critérios do FMI” e afirmava que “deve se ter um certo cuidado” com as interpretações que incluem o investimento público no cálculo do déficit, propondo então sua exclusão para chegar ao conceito “relevante” do déficit público, que seria o déficit em conta corrente. Este assumiria então o valor - considerado “reduzido” pelo documento - de 0,6% do PIB (Seplan, 1986SEPLAN - SECRETARIA DE PLANEJAMENTO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (1986). “O Livro Branco do déficit público”, julho.). Como os investimentos públicos respondiam por mais de 5% do PIB, isso implicava supor que uma relação déficit público total/PIB de 6% seria sustentável e compatível com a estabilidade da inflação num nível baixo, objetivo do Plano Cruzado em 1986.
  • *
    Os autores agradecem os comentários de Isaias Coelho e dos pareceristas desta Revista, assumindo, porém, responsabilidade plena pelo conteúdo do artigo.
  • 10
    JEL Classification: F31; F34; H63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1992
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