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Hirschman e a retórica da reação

Hirschman and the rethoric of reaction

RESUMO

A comunicação trata do livro de 1991 de Albert O. Hirschman, Retórica da reação: perversidade, futilidade, risco, mostrando sua importância em relação ao debate contemporâneo sobre as possibilidades do estado de bem-estar social. A tese de Hirschman é que a crítica conservadora contemporânea ao estado de bem-estar é um renascimento da tese que já havia sido discutida antes de se opor à expansão dos direitos civis e políticos. Do mesmo modo que esses direitos, os direitos sociais contemporâneos: (i) produzem o contrário do que é o desejo dos formuladores de políticas; (ii) não produzem efeito algum; (iii) custam muito, comprometendo a democracia ou o crescimento econômico. Perversidade, futilidade e risco são os principais atributos da ação, segundo a visão conservadora; é por isso que sua proposta é tão reacionária. Por isso, considerando também o perigo da ação, seu sucesso repousa na sua competência de persuadir a história de não permitir que nada seja feito ou criado. A política é apenas um caso de habilidades administrativas.

PALAVRAS-CHAVE:
Resenha; Hirschman

ABSTRACT

The communication deals with the 1991’s book of Albert O. Hirschman, Rhetoric of reaction: perversity. futility. Jeopardy, showing its importance in relation with the contemporary debate on the possibilities of the welfare state. The thesis of Hirschman is that the contemporary conservative criticism on the welfare state is a revival of the thesis that had been already argued before opposing the expansion of civil and political rights. The same way as those rights, contemporary social rights would: (i) produce the contrary of what is the desire of policymakers; (ii) produce no effect at all; (iii) cost too much, jeopardizing democracy or economic growth. Perversity, futility and jeopardy are the main attributes of action according to the conservative view; that’s why its proposal is so reactionary. That is why, as well, considering the danger of action, its success rests on its competence to persuade that history not allowing anything to be done or to be created. Politics is just a case for administrative skills.

KEYWORDS:
Review; Hirschman

“Too much of a good thing can be wonderful”

Mae West, atriz

Os anos 80 se iniciaram não apenas prenunciando a avassaladora supremacia política conservadora no Ocidente, mas principalmente a supremacia ideológica do que se convencionou denominar neoliberalismo ou neoconservadorismo. Não se tratava apenas que Margaret Thatcher e Ronald Reagan chegassem ao poder das duas mais conspícuas nações da história do século XX; mais importante que isso era a vitória de uma moralidade privada sepultando a ética da equidade por meios públicos que, desde o pós-guerra, vinha sustentando as energias políticas e ideológicas de nosso tempo, fôssemos conservadores, liberais ou socialistas. Considerações sobre obrigação, justiça, bem-estar e proteção substituíam-se por outras que ressaltavam termos como liberdade, iniciativa, responsabilidade pessoal e desregulamentação.

Retrospectivamente, aquela vitória parece ter sido como a de Pirro e o que se anunciou como uma nova hegemonia não se estabeleceu com a força pressentida. Pouco tempo passado, não apenas sua liderança política já foi substituída pela versão suave de Majors e pálida de Bush, quanto as ideias do novo conservadorismo começam a evidenciar o fato de que sempre foram velhas, simplórias e destituídas de qualquer elemento de compaixão humana.

Claro está que, se seu fracasso econômico não tivesse sido tão retumbante, teria sido mais difícil o reconhecimento tão rápido de sua trivialidade ideológica: certamente Albert Hirschman teria escrito suas ponderações sobre quão reacionários foram os conservadores nos últimos dez anos até mesmo porque, embora os fatos tivessem quase sempre comprovado suas ideias, elas sempre se sustentaram em seus próprios termos e em virtude de sua indisputada lógica. No entanto, o impacto que vem causando teria sido provavelmente menor se um Ocidente rejuvenescido e dinâmico se tivesse gestado, ainda que por ideias antiquadas.

O fato, contudo, de que o fracasso tenha se dado não somente no terreno que é caro aos opositores, isto é, no desemprego e na pobreza que suas políticas provocaram, mas também no terreno de suas mais fundamentais crenças, no orçamento que desequilibraram e na carga fiscal que não reduziram, terminou por constituir um elemento importante a forçar o debate político a retornar ao mainstream do século XX: como compatibilizar equidade com igualdade; compaixão aos destituídos com respeito ao mercado; combate à pobreza que requer a taxação da riqueza com investimentos que apenas a riqueza é capaz de realizar. As bem-sucedidas experiências de intervenção do Estado na economia que os “tigres asiáticos” e a Comunidade Europeia evidenciaram, bem como o desastre que as tentativas de regulação pelo mercado provocaram nos EUA e na Inglaterra, acrescentam lenha à fogueira que consome as experiências laissez-fairianas recentes, práticas e teóricas.

Como lembra Albert Hirschman, aceitando a contribuição do iluminismo escocês, forçoso é o reconhecimento de que a maior parte das ações humanas produz resultados inesperados e efeitos laterais não previstos antecipadamente em suas motivações. Daí, poder-se-ia aduzir, a exigência ética de que as ações não sejam consideradas por seu papel estratégico, mas estabelecidas como valorativas em seus próprios termos.

A reação conservadora ao dilema dos efeitos não deliberados das intenções prévias não foi gerada por qualquer consideração ética, mas por uma contraproposta de paralisia do desejo, abdicação da ação e desdém pelo movimento. Em suma, ela postulou que, dado que agir é inerentemente perigoso pela reação que origina, o lugar da ação seja tomado por Deus, pela natureza ou pelo mercado, o que vem a dar no mesmo.

Rhetoric of reaction preocupa-se com o episódio conservador recente, a organização e a proveniência de suas crenças. A tese que defende é a de que a reação à ação se estabeleceu porque agir foi considerado perverso, fútil e custoso. Ela se demonstra dissecando as ideias de alguns expoentes desse episódio e argumentando que o discurso reacionário não teve sequer fôlego analítico para postular uma nova lógica em sua crítica ao welfare state e ao reconhecimento que este empreendia de direitos sociais como próprios ao cidadão. Em outras palavras, tais ideias sucederam, sem rompê-la, pelo contrário, duplicando-a, à reação que os direitos civis e políticos provocaram, quando foram postulados séculos antes.

Quando o que se convencionou denominar neoliberalismo forçou sua entrada no terreno político, ao menos discursivamente, os direitos civis e direitos políticos não mais constituíam um campo sério para debates. Mas, embora ninguém negasse que o acesso a uma certa dignidade material fosse desejável para qualquer membro de uma sociedade, os neoliberais promoveram o retorno de uma disputa que parecia ultrapassada desde a vitória do Partido Trabalhista inglês após o término da Segunda Guerra e o estabelecimento do estado de bem-estar em todo o mundo desenvolvido, inclusive, embora lentamente, nos EUA. Em outras palavras, voltou-se a pugnar acerca da desejabilidade, possibilidade e competência da intervenção social na esfera do bem-estar individual.

As armas escolhidas pelo revival conservador em sua peleja contra o establishment liberal/social democrata que, mesmo pendularmente, vinha comandando a vida política no Ocidente desenvolvido nos últimos quarenta anos, foram a denúncia reiterada dos resultados das políticas de bem-estar, mesmo que não intencionais: déficit público, no plano do governo; transferência de recursos dos mais pobres aos mais ricos, no plano da economia; cidadãos welfarizados complacentes com a própria pobreza e com a subsistência no desemprego, no plano da sociedade.

A primeira presunção que Hirschman encontra na ressurgência da retórica conservadora é a de que a solidariedade pública produz, mesmo que inadvertidamente, consequências perversas. O recurso intelectual é ousado e, como observa, se verdadeiro, devastador em sua afirmação de que um movimento, para empurrar a sociedade em uma certa direção, empurrá-la-á em direção contrária: seria atemorizante a percepção de que “tentativas de buscar a liberdade farão a sociedade mergulhar na escravidão, a busca da democracia produzirá a oligarquia e a tirania, e programas de bem-estar social criarão mais, não menos, pobreza” (p. 12).

Procurando o fundamento dessa presunção de perversão, Albert Hirschman descobre que ele data, pelo menos, de Hobbes (to do no more than reform the commonwealth shall find they do thereby destroy it); mas ele também ressoou no apiário mandevilliano e na nação rica, mas maneta, de Smith; possuiu suas veleidades literárias com Flaubert (“o sonho de elevar o proletariado ao nível de estupidez da burguesia”); e experimentou seu momento mais nobre nas considerações de Burke sobre a Revolução Francesa.

Nada disso teria muita importância, exceto para o conhecimento culto da história, se esse mecanismo contorcido, mas cuja engenharia é misteriosa, não se fizesse ainda presente em algumas das mais importantes críticas que, durante os últimos anos, prevaleceram sobre os resultados da ação do Estado em geral e, em particular, de suas políticas previdenciária e de welfare.

Aqui, o sarcasmo de Hirschman se exerce principalmente sobre três textos que ele considera exemplares da engenhoca dialética: o primeiro, o artigo de Jay W. Forreste, conselheiro do Clube de Roma e pioneiro em simulação social, que teria substituído a Divina Providência por feed-back loop dynamics apenas para constatar que a ação faz a sociedade pior do que ela seria, se deixada a seu curso natural.

Nathaniel Glazer escreveu o segundo de seus exemplos, o artigo de 1971 “The limits of social policy”; Charles Murray, o terceiro em 1974, de longe o mais influente, o livro Losing ground. Ainda se fazem referências para mostrar como o mecanismo se faz presente em certas críticas ao seguro-desemprego porque este, desajuizadamente, produziria mais desemprego ao desencorajar aqueles que o recebem das tentativas de encontrar um outro emprego; ou de programas de welfare como, por exemplo, o norte-americano AFDC (Aids to Families with Dependent Children), que, oferecendo benefícios em dinheiro a mães solteiras pobres e desempregadas, desestimularia a constituição de laços familiares estáveis.

Hirschman ataca com propriedade lógica, mas também com inúmeros e importantes exemplos, os dois supostos da teoria da não-ação conservadora, contestando, em primeiro lugar, que a racionalidade humana seja tão atabalhoada que esteja sempre a ser surpreendida pelos resultados de seu exercício; em segundo, que esses resultados, quando inesperados, sejam sempre pervertidos. Mas existe uma outra vertente conservadora que alega, diferentemente, que o problema com a ação não é seu destino contrariador mas sim sua permanente futilidade. Plus ça change...

O número dos que esposam o pressuposto é vasto. Com a variedade de sua amostra, Hirschman mostra que, em algum momento desesperado, o recurso a ele pode ter ocorrido a quase todos, inclusive a Tocqueville (“cada vez que, {desde a Revolução}, queremos destruir o poder absoluto, conseguimos apenas colocar a cabeça da Liberdade no corpo de um escravo”). Certamente, e com incontroversa persistência, ocorreu àqueles que desenvolveram a teoria das elites e a lei de ferro da oligarquia - Pareto, Mosca e Mitchels.

Interessante é o ressurgimento contemporâneo dessa velha ideia de predestinação histórica: não teria Lampedusa inspirado o artigo de George Stigler, “Director’ s law of public income distribution”? Hirschman insinua que sim. Director, por acaso, é um cunhado de Milton Friedman, que escrevera que o destino do gasto público sempre é financiar a classe média com recursos dos ricos e dos pobres. Stigler modifica a fórmula, mas mantém o princípio: através de maquinações eleitorais, gastos públicos em educação, previdência, habitação etc. representam transferência dos pobres para os medianamente aquinhoados. Conclusões sobre a ignorância daqueles que defendem alguma política de welfare se impõem: afinal, nada resulta em desobedecer às leis que as ciências sociais estabeleceram. Em outras palavras, a política social consistiria em um exercício de futilidade e, como consta de um título da nova safra conservadora, a política de bem-estar (welfare) atinge somente os que já dele dispõem (well-to-do).

À primeira vista, assinalar a futilidade da ação humana parece menos grave que enfatizar seu permanente destino de provocar o contrário do que almeja. Mas, se é menos grave pela irrelevância na qual a humanidade é posta, o insulto é maior. A perversidade, ao menos, teria resultado de uma maldição do sobrenatural; a futilidade, de uma maldição da ciência. Portanto, da ignorância.

Essa, talvez, a razão que tenha feito o ataque monetarista à economia keynesiana fundar-se, não na tese de sua perversidade, mas de sua futilidade. Ele, assim, seria mais letal. Citando: “ ... os novos críticos não argumentavam que as políticas monetária ou fiscal keynesianas aprofundariam a recessão ou aumentariam o desemprego; pelo contrário, foi mostrado como políticas keynesianas ativas levariam, especialmente se largamente antecipadas, a expectativas e correspondente comportamento por parte dos operadores econômicos de tipo a anular as políticas oficiais, tornando-as inoperantes, portanto, fúteis” (p. 74, grifos no original).

Que os que adotaram a tese tenham se transformado em ativistas políticos, disputado eleições, dispondo-se a governar e implementar políticas é apenas a primeira das observações, a mais ferina, que a eles se pode fazer. E Hirschman a faz. Mas a mais importante é a de que a futilidade é proclamada cedo demais e, no longo prazo, é sempre disputável. E Hirschman a disputa. Em outras palavras, a tese contém uma predisposição para cumprir sua própria profecia porque o descrédito que imputa à possibilidade de que ocorram mudanças concorre para que não se joguem as cartas que promovem mudanças. Por exemplo, porque não cria oposição a ela, a consideração da inevitabilidade da dominação política pelos que já detêm o domínio político com frequência favorece o estabelecimento desse domínio.

Por isso mesmo, o ativismo político reacionário não é contraditório com seus supostos lógicos - pelo contrário, é uma forma oportuna de utilização em proveito próprio do desânimo que é capaz de provocar. Por fim, uma terceira vertente do pensamento conservador clássico se faz constante no discurso conservador atual: a mudança coloca em risco avanços previamente alcançados. Esse Ceci tuera celà (a expressão resulta da evocação de Victor Hugo), não obstante o que possa parecer, é mais que um jogo cuja soma é zero: a soma é negativa, vale dizer, seu resultado implica perda, seja porque, como se afirmou antigamente, a democracia consistiria em ameaça à liberdade, seja porque, como se afirma hoje, o welfare state consistiria em ameaça à democracia e/ou crescimento. As armas contemporâneas apontadas contra os gastos sociais são, em grande medida, uma repetição daquelas que, no século passado, foram apontadas contra a expansão do direito ao voto. Os gastos reduzem o investimento e produzem a pobreza da mesma maneira que, antes, o voto reduziria a estabilidade política e produziria a tirania.

O autor que imediatamente ocorre ao leitor é o mesmo lembrado por Hirschman como o primeiro grande crítico ao welfare state, em nome da liberdade: Friedrich Hayek, fosse em Road to Serfdom, fosse, principalmente, em The Constitution of Liberty. As ideias de Hayek se dispunham com relativa fluência: o campo de acordo em uma sociedade é muito estreito e o governo deve, por isso mesmo, se fazer estreito, atendo-se a esse campo. Fora dele, o recurso à coerção torna-se inevitável, e democracia e liberdade, alvos fáceis. À crise da democracia pelo welfare de Hayek se sucede a crise fiscal de James O’Donnell; a essa, a crise também fiscal, mas igualmente política, de Jürgen Habermas; por fim, a crise de legitimação que Samuel Huntington afirmou corroer os EUA como resultado da expansão de direitos verificada após os anos 60.

É inegável a atração de uma tese que supõe que um novo direito, que não se possui, não deva arriscar um antigo, já assegurado. O problema que o receio dos dois pássaros voando coloca, no entanto, é que nenhum deles pode estar nas mãos, vale dizer, a retórica conservadora aplica-se a quase nenhuma sociedade. Ela não se aplica, por exemplo, seja a latecomers nos quais, como na Alemanha, os direitos sociais foram reconhecidos sem que os direitos políticos o tivessem sido previamente, seja a países late latecomers do Terceiro Mundo, nos quais nenhum direito está constituído. Paradoxalmente, e ao contrário do que os reacionários pensam, a indisponibilidade de um direito que se possa arriscar para ganhar um novo não torna a tarefa política mais fácil, e sim mais difícil. Mas também a tese não se aplica aos EUA ou à Inglaterra, onde a acumulação de direitos não levou à perda de nenhum deles anteriormente assegurado e onde a crise econômica contemporânea não decorre das políticas de welfare, mas da ausência de consenso social acerca do destino acertado dos recursos públicos.

Em uma entrevista ao sociólogo sueco Richard Sweedberg, Jon Elster declarou que Hirschman e Tocqueville eram pensadores que o encantavam sobretudo em virtude de sua capacidade de descobrir e descrever mecanismos; sua admiração, pois, derivava do reconhecimento do extremo sucesso que tais autores possuem em mostrar, mais que fatos, seu funcionamento. A parte final de Rhetoric of Reaction, na qual Hirschman trata das interações entre as três teses, cumpre no limite o que Jon Elster espera e é tão ideográfico quanto ele reclama devam ser os trabalhos das ciências sociais.

Rhetoric of Reaction não conta a história recente do movimento conservador, não se preocupa com seu surgimento, não interpreta seu curso, não detalha seus caminhos, não especula sobre que grupos ou interesses o movem. Mas demonstra como funciona e aponta os mecanismos que o ativam. Fazendo-o, torna o movimento não apenas compreensível, mas, paradoxalmente, eticamente aceitável. Porque, afinal, a reação à ação, ao progresso e à história não se estabeleceu como um voluntarismo tolo, fútil ou perverso, mas contou com elementos de uma poderosa tradição discursiva, que concluiu que nenhum meio era adequado ou seguro para alcançar as finalidades que o progresso estipulava como melhores e mais justas. Hirschman nos aponta a lógica dessa razão desesperada.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

  • SWEEDBERG, Richard (1989). Economics and Sociology Nova York: University of Columbia Press.
  • 1
    JEL Classification: Y30.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1993
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