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As vicissitudes do orçamento

The vicissitudes of budgeting

RESUMO

O objetivo deste artigo é avaliar a aplicação de novos regulamentos da Constituição sobre orçamento. Essa avaliação é realizada na situação crítica das finanças públicas brasileiras e leva em consideração os efeitos positivos no controle dos gastos públicos que devem ser produzidos com a plena implementação de novas diretrizes constitucionais. A avaliação conclui que algumas determinações constitucionais ainda não foram regulamentadas. Esse fato permitiu ofensas graves contra a Constituição e facilitou o Congresso e a administração do governo em ações casuísticas relacionadas a assuntos orçamentários. Ao final do trabalho, são apresentadas algumas medidas que devem ser implementadas para obter melhor eficiência e eficácia na alocação de recursos públicos, através da introdução de melhorias no processo orçamentário.

PALAVRAS-CHAVE:
Orçamento; gasto público

ABSTRACT

The purpose of this paper is to appraise the application of new regulations of Constitution about budgeting. This appraisal is carried out in the critical situation of Brazilian public finance and takes into consideration the positive effects on the control of public expenditure that should be produced with the full implementation of new constitutional directives. The appraisal concludes that some constitutional determinations have not been regulated yet. This fact has permitted serious offenses against the Constitution and has facilitated Congress and the Government administration in casuistic actions regarding budgeting affairs. At the end of the paper some measures are presented which must be implemented in order to obtain better efficiency and efficacy in the allocation of public funds, through introducing improvements in the budgeting process.

KEYWORDS:
Budget; public expending

“A hipocrisia é a concessão que o vício faz à virtude.”

1. INTRODUÇÃO

A nova Constituição promoveu bons avanços em matéria de orçamento público, especialmente no que se refere às possibilidades de transparência e de controle dos gastos governamentais. Na prática, porém, a experiência do processo orçamentário federal tem sido recheada de frustrações. Não há definição concreta de prioridades, e as diferentes leis orçamentárias aprovadas, além de pulverizarem os escassos recursos para investimentos, guardam considerável distância de sua execução. Do ponto de vista da opinião pública, há a nítida sensação de que falta austeridade; os recursos são mal alocados e o Congresso Nacional trabalha irresponsavelmente nessa matéria.

Os reais fatores responsáveis pelas frustrações são a instabilidade econômica - que afeta negativamente a receita tributária e desacredita o planejamento dos investimentos-, o desconhecimento das novas regras constitucionais, a não aprovação da lei complementar das finanças públicas, a interpretação “enviesada” de dispositivos constitucionais, a não-observância de normas constitucionais e legais e a cultura centralizadora e fisiológica dos diferentes poderes da República.

2. INSTABILIDADE E RECEITA ORÇAMENTÁRIA

A instabilidade econômica, expressa na inflação elevada e na retração econômica que a acompanha, tem duas implicações significativas.

Em primeiro lugar, o Executivo tende a subestimar sistematicamente os índices de atualização de preços da proposta orçamentária, a fim de sinalizar a reversão da superinflação. A previsão das receitas e a fixação das despesas tornam-se extremamente difíceis no contexto da superinflação, exigindo constantes revisões orçamentárias, diminuindo a transparência dos gastos públicos e ampliando a distância qualitativa e quantitativa entre as leis orçamentárias originalmente aprovadas e os orçamentos executados.

Para amenizar essas dificuldades, em 1990 adotou-se uma regra de indexação do orçamento, mas os problemas operacionais foram tantos que a ideia teve de ser abandonada nos anos subsequentes.1 1 A experiência de indexação enfrentou dois obstáculos: primeiro, alguns órgãos da administração federal não estavam à época inseridos on line no Sistema de Administração Financeira (Siafi); segundo, parte das despesas estava sendo registrada na contabilidade como “despesa a classificar”. Isso dificultava o levantamento do montante executado e, por conseguinte, inviabilizava o cálculo da base das dotações a serem corrigidas. Além disso, em muitos casos, o indexador aplicado sobre todas as dotações não guardava qualquer relação com as respectivas fontes de recursos.

Em segundo lugar, a combinação da superinflação com a estagnação, ou mesmo com o encolhimento do PIB e, em maior proporção, da produção industrial, principal fonte das receitas tributárias, mantém comprimida a receita tributária no âmbito da União. Essa circunstância foi agravada desde o início dos anos 80 pelo contínuo aumento da fatia de estados e municípios na divisão do bolo dos Impostos de Renda (IR) e dos Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI).2 2 A participação dos estados e municípios na arrecadação do IR e do IPI subiu de 20% em 1980 para 28% em 1984 e para 33% em 1988. Ainda em l988, logo após a promulgação da Constituição, a participação dos estados e municípios saltou para 38% do IR e 48% do IPI (inclusive os 10% para os estados exportadores) e, depois, como previsto, elevou-se gradualmente até o nível atual de 44% e 54% do IR e do IPI, respectivamente. Houve também sérios equívocos na condução da política tributária entre 1990 e 19923 3 Entre os equívocos destacam-se: a desindexação da arrecadação tributária do Plano Collor II (janeiro/9l) e a Lei 8.200. Na revisão do IRPF para 1991 (arrecadado em 1992), promoveu-se a elevação da faixa de isenção, o retorno das deduções de gastos com ensino e a indexação da tabela à inflação acima dos índices de reajuste salarial. O excesso de alterações na legislação tributária contribuiu para o crescimento das demandas judiciais. , desmantelamento da máquina arrecadadora e perda de recursos em decorrência do calote generalizado que a União sofreu nos créditos que detém junto aos estados e aos municípios.4 4 Segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional, em setembro de 199 l, quando foram propostos pela primeira vez a moratória e o refinanciamento das dívidas estaduais e municipais (no âmbito do chamado “Emendão”), o saldo vencido e não pago era da ordem de US$ 2,6 bilhões ou 13% do montante total, considerados apenas os empréstimos bancários. Se nada do que venceu até 1992 foi pago (hipótese provável), o montante da inadimplência no final desse ano terá subido para cerca de US$ 7 bilhões. Isso tudo sem considerar as dívidas mobiliária e externa dos estados e municípios.

A penúria financeira da União recaiu principalmente sobre o orçamento fiscal, afetando em menor proporção as ações da seguridade social, beneficiadas pela criação e majoração das contribuições sociais.5 5 A incidência das contribuições sociais foi substancialmente ampliada após a Constituição de 1988: (i) no caso das contribuições previdenciárias: majoração das alíquotas dos empregados, por faixa salarial dos trabalhadores, em 1989; (ii) contribuição para Finsocial: majoração da alíquota de 0,5% (1989) para 1% (1989), depois para 1,2% (1990) e, finalmente, para 2% (1990); (iii) criação, no final de 1988, da contribuição sobre o lucro líquido com alíquota de 8% para empresas e 10% para instituições financeiras. Em 1990 essas alíquotas foram elevadas para 10% e 14%, respectivamente, e no segundo caso, aumentadas novamente para 15% (1991) e 23% (1992); (iv) contribuição ao PIS/PASEP: mudança da base de cálculo do lucro e folha salarial para a receita operacional, no caso da maioria das empresas. A alíquota foi majorada de 0,5 para 0,65%. Ressalte-se que os prazos de recolhimento e de indexação dos débitos de todas as contribuições foram reduzidos. No caso das empresas estatais, a escassez de recursos para investimentos também tem sido dramática, devido ao achatamento tarifário que corroeu sua poupança própria, às restrições para acesso ao crédito, ao esgotamento de importantes e tradicionais fontes de financiamento, e à impossibilidade de o Tesouro Nacional realizar significativos aportes de capital.

À falta de dinheiro se sobrepõem a inflexibilidade dos “gastos de pessoal” e as vinculações orçamentárias (que cresceram com a nova Constituição), bem como a incompressibilidade das despesas federais com transferências intergovernamentais constitucionais, benefícios previdenciários e serviço da dívida. Para investimentos não sobram nem l0% das receitas totais, exclusive as oriundas da emissão de títulos públicos para rolagem da dívida mobiliária.

Essa situação, agravada pela grande quantidade de projetos inconclusos, exaspera setores do Congresso sequiosos de patrocinar novas obras, fomentando as tentativas de “fabricação” de recursos e de descumprimento de normas legais, além de tornar surrealista o debate sobre prioridades do gasto público.

3. LEI EM FALTA

A Constituição de 1988 fixou a exigência de elaboração e aprovação de um Plano Plurianual (PPA) com vigência de cinco anos e de uma Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) a ser aprovada no primeiro semestre de cada exercício financeiro.

Também foi prevista lei complementar de finanças públicas que estabeleceria os princípios fundamentais dos novos instrumentos e disporia sobre exercício e gestão financeira e patrimonial da administração pública, direta e indireta. Apresentei projeto regulando essa matéria e procurando suprir as brechas da legislação vigente, em particular da Lei 4.320, de 1964, incompleta e desatualizada em face do novo texto constitucional. Até agora, porém, o Congresso não deliberou sobre o assunto, nem o Executivo exerceu qualquer pressão ou tomou qualquer iniciativa nesse sentido. É fácil compreender que a ausência dessa lei incentiva as improvisações, estimula as mudanças de regras a cada ano (ou dentro do mesmo ano) e dificulta a correta utilização dos novos instrumentos criados pela Constituição.6 6 A ausência da lei complementar tem seis efeitos: (i) a inexistência de uma padronização e hierarquização rígida dos diversos instrumentos que autorizam o gasto público; (ii) a indefinição dos objetivos, diretrizes, metas e prioridades no PPA e nas LDOs, faltando também definir o significado de cada conceito; (iii) a não-atualização das classificações das despesas, em especial da funcional-programática; (iv) a inexistência de prazos adequados para o processo orçamentário; (v) a ausência de uniformidade dos orçamentos e balanços dos três níveis de governo; e (vi) a indefinição das condições para a instituição e funcionamento dos fundos.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias tem sido utilizada para preencher aquele vazio legal. Nela são apreciadas dezenas de dispositivos legais que deveriam fazer parte da lei complementar que não existe.7 7 Por exemplo, os dispositivos que tratam tanto da organização e da estrutura da lei orçamentária como das conceituações relativas à classificação das despesas e da regra a ser estabelecida no caso de os orçamentos não serem aprovados até 31 de dezembro do exercício financeiro anterior. Mais ainda, são frequentes as alterações, que poderiam ser naturais num processo de aprendizagem e aperfeiçoamento, até serem fixadas as regras definitivas. Mas a experiência tem mostrado que existem motivos bem menos ortodoxos para explicá-las.

Assim, mesmo os dispositivos das LDOs que têm caráter não permanente - referentes às metas de política fiscal, ao financiamento do déficit público e às diretrizes orçamentárias propriamente ditas - têm sofrido reiteradas alterações em cada exercício, nem sempre em razão de mudanças do cenário econômico ou da necessidade de aperfeiçoamentos técnicos. Tais mudanças terminam por descaracterizar as LDOs e, em geral, têm caráter casuístico. Elabora-se uma LDO no primeiro semestre do ano e, poucos meses depois, promovem-se alterações já durante a análise e a aprovação da proposta orçamentária, e, no ano seguinte, numerosas mudanças durante a execução. Em suma, o novo instrumento da Lei das Diretrizes Orçamentárias ainda está longe de atingir o grau esperado de eficácia. A esse respeito, é notável o descaso em relação a aspectos relevantes e constitucionalmente obrigatórios, como é o caso da: (i) autorização específica das LDOs para a concessão de quaisquer vantagens ou aumentos de remuneração, criação de cargos, alteração de estrutura de carreiras e admissão de pessoal; (ii) apresentação nas LDOs das alterações na legislação tributária; e (iii) anexação das despesas de capital para o exercício financeiro subsequente.

A primeira ausência não se justifica tecnicamente e tem sido parcial e ilegalmente suprida por dispositivos de caráter geral que nada autorizam em termos específicos, como exige a Constituição. A segunda ausência vem sendo explicada como consequência das incertezas e da instabilidade econômica. A nosso juízo, no entanto, o motivo é a absoluta incapacidade do Executivo para atuar com um mínimo de antecipação em matéria tributária, bem como do Legislativo (e do Tribunal de Contas) para fiscalizar plena e corretamente o cumprimento da Constituição. A terceira ausência tem sido justificada em função das dificuldades para definir o conteúdo e a abrangência do Plano Plurianual (PPA), em face da instabilidade da economia e das mudanças políticas recentes. Essas dificuldades são reais, mas são reforçadas pela espantosa falta de vontade e de competência do Executivo e do Legislativo para propor soluções às questões que envolvem o médio e o longo prazos na economia.

Em resumo, o aspecto mais grave na experiência atual das LDOs é o não-atendimento das suas atribuições constitucionais essenciais, ou seja, da exigência de metas tisicas e prioridades definidas das ações governamentais. Por isso, elas deixam de servir como ligação entre o plano de médio e longo prazos e o orçamento anual.

4. MAIS TRANSGRESSÕES

Outro importante avanço da Constituição de 1988 foi a regulamentação básica da atuação do Congresso na apreciação do projeto de lei orçamentária. Além de vedar emendas de parlamentares que utilizassem os recursos destinados para pessoal, encargos sociais e pagamento de dívida, o texto constitucional também estabeleceu que as emendas deveriam ser compatíveis com o PPA e a LDO aprovada no semestre anterior, e que o Congresso não poderia rever as previsões de receita, exceto por “erros e omissões”. Do contrário, as emendas não poderiam ser aprovadas pelo Congresso, nem sancionadas pelo presidente da República. Porém, em nenhuma oportunidade desde 1988 essa norma foi obedecida.

Ao não autorizar a revisão das projeções de receita do Executivo (feita no projeto de lei orçamentária), a Constituição procurou evitar a criação de fontes ilimitadas e fictícias de expansão de gastos sem base em receita efetiva. Tal proibição não significava ampliar o poder de arbítrio do Executivo sobre o orçamento, pois qualquer revisão futura de receita (no caso de subestimativa) deveria ser aprovada pelo Congresso, juntamente com a correspondente destinação para o gasto. Note-se - e aqui dou um testemunho pessoal - que a possibilidade de o Legislativo rever a receita prevista com base nos “erros e omissões” (artigo 166 da Constituição) foi introduzida no final do processo constituinte com o exclusivo propósito de corrigir falhas técnicas, eventualmente embutidas nas projeções das receitas. O espírito dessa autorização, porém, tem sido sistemática e escandalosamente pervertido.

Já em 1989, e em todos os anos seguintes, o Congresso passou a alterar substancialmente as projeções das receitas orçamentárias, com base nos “erros e omissões”. Diga-se de passagem, que, até agora, os parlamentares somente “descobriram” erros e omissões nas projeções de receita, nunca em outros aspectos dos projetos. Mais ainda, e como é óbvio, todas as alterações feitas pelo Legislativo nas previsões de receita têm sido no sentido de elevá-las.

Na verdade, o Congresso tem trabalhado com a conveniente hipótese de que o Executivo sempre subestima a previsão da arrecadação, mesmo quando este sinaliza ter superestimado a receita, como já ocorreu mais de uma vez. Assim, na proposta para 1989, o Executivo estimou que um esforço de fiscalização proporcionaria um ganho de receita de 3% do PIB, hipótese claramente irreal, e o Congresso endossou. Os parlamentares, por sua vez, ampliaram no projeto de lei do orçamento para 1991 a previsão de receita em 3,9% do PIB. Para o orçamento de 1992, a Comissão Mista do Congresso refez as projeções e aumentou os números originais em 0,5% do PIB. A proposta orçamentária para 1993, até o momento, contempla um acréscimo feito pelo Congresso de 0,7% do PIB. O mais fascinante dessa história é que em nenhum desses casos o Executivo exerceu seu direito de veto.

Pior ainda: sequer é verdadeiro, em tese, o pressuposto de que o Executivo tende sistematicamente a subestimar as projeções das receitas; esse artificio nem sempre atenderia às suas conveniências. Poderia interessar-lhe, por exemplo, combinar superestimativa e contingenciamento, de modo a não ter de voltar ao Congresso durante a execução do orçamento e de apresentar previsões mais otimistas sobre o déficit público às instituições financeiras internacionais. Aliás, a elevação artificial das receitas pelo Congresso tem dado ao Executivo a justificativa para realizar drástico e rotineiro contingenciamento das dotações, além de fortalecer o papel da política financeira, de controle de caixa, em detrimento do planejamento e da alocação mais adequada dos recursos públicos.

5. O VÍCIO DA CENTRALIZAÇÃO

Outro fator importante da frustração em relação ao processo orçamentário tem sido a persistência da cultura centralizadora de gastos, que afeta tanto o Executivo quanto o Legislativo. A Constituição de 1988 piorou as coisas ao descentralizar receitas, enfraquecendo a capacidade da União de realizar investimentos típicos de estados e municípios, sem, ao mesmo tempo, descentralizar clara e ordenadamente encargos e despesas.

Desde a primeira LDO, em 1989, têm sido feitas tentativas de forçar a descentralização, proibindo ou conferindo prioridade secundária às obras típicas de estados e municípios - o que, no contexto de um orçamento apertado, significaria exclusão dessas obras. No momento de aprovar a LDO, tanto o Executivo quanto o Legislativo costumam pôr-se de acordo em relação a esse dispositivo. Porém, quando a área econômica do governo tenta fazer cumprir na proposta orçamentária a “operação desmonte” (como no orçamento para 1989), os demais ministérios e autarquias articulam, com sucesso, a desmontagem de tal operação pelo Congresso.

As dificuldades para enxugar os gastos da União em áreas que deveriam, grosso modo, ser cobertas por estados e municípios, têm como contrapartida a pulverização das aplicações de recursos e a descaracterização de prioridades, reforçada pelo desleixo do Executivo em propor e negociar o PPA e LDOs menos imprecisos e mais abrangentes, e, em seguida, exigir o cumprimento dessas leis.

Poder-se-ia argumentar que é universal a tendência dos parlamentares de procurar sempre atender às regiões que representam, levando-lhes um plus de obras e serviços mesmo quando não prioritários em face de critérios nacionais. No Brasil, porém, essa tendência tem sido exacerbada pela fraqueza do Executivo, que usa a centralização de gastos como condição para a manipulação e para a conquista de votos no Legislativo, bem como pela condição de “vereadores federais” que os sistemas de governo e eleitoral impõem à esmagadora maioria dos parlamentares.

A precariedade dos retornos dos gastos públicos em investimentos é agravada pela tendência de autoridades do Executivo e do Congresso a privilegiar o início de novas obras em detrimento da conclusão de outras em andamento e dos próprios gastos de manutenção. A ambas parece interessar mais o benefício político (para dizer o mínimo) do anúncio e início de obras que a conclusão das que estão em andamento, ou a ampliação dos recursos de manutenção dos serviços já existentes. Para as empresas privadas que prestam serviços ao setor público também interessa o início de novas obras, pois confiam que, mais cedo ou mais tarde, arrancarão os recursos para a continuação das obras já iniciadas. Várias LDOs tentaram evitar esse problema, determinando que as prioridades fossem dadas a obras em andamento. Mas o Executivo e o Legislativo têm desrespeitado solenemente a assinatura que ambos costumam firmar nas LDOs.

6. O QUE FAZER?

Além de confiar, ao menos a médio prazo, na estabilidade da economia e na retomada do crescimento - que possibilitariam, num círculo virtuoso, melhores condições para resgatar o planejamento como instrumento de política orçamentária e para reorganizar o respectivo processo -, tenho a esperança de que, no decorrer do tempo, seja realizado o aprendizado necessário sobre as regras e as vantagens do novo sistema de planejamento e orçamento da Constituição. Muito dependerá, também, do que venha a acontecer com os sistemas de governo e eleitoral do País.

Em todo caso, providências concretas deveriam ser adotadas, como a aprovação de uma adequada lei complementar de finanças públicas e a fixação, na próxima revisão constitucional, de um ritual e de um quorum mínimo que dificultem mudanças na lei do PPA e nas LDOs depois de aprovadas. Por exemplo, explicitando que quaisquer mudanças só poderiam ser feitas mediante projetos de lei específicos aprovados por maioria absoluta do Congresso, prevendo-se que sua eficácia sobre o orçamento ocorreria somente depois da aprovação e da sanção da lei que as promoveu. Deve-se também eliminar a permissão para que o Congresso emende a proposta orçamentária a partir dos “erros e omissões”, ou pelo menos limitar drasticamente a abrangência. Por último, serão necessárias punições e sanções para desvios das normas constitucionais e legais sobre os orçamentos públicos. Isso poderá ter início quando o Tribunal de Contas e o Ministério Público reconhecerem a relevância e a gravidade dessas transgressões.

Do mesmo modo, deve ser feita a descentralização radical de encargos e despesas, a ser levada às últimas consequências, até como condição para a sobrevivência de um poder central com um mínimo de força e eficácia.

O desrespeito às boas regras constitucionais e legais sobre o orçamento tem criado um certo ceticismo sobre sua utilidade. Trata-se de um estado de espírito que, involuntariamente, se acrescenta ao instinto homicida dos que são movidos pelas más razões, isto é, que pretendem suprimi-las para relaxar as limitações que, bem ou mal, os dispositivos vigentes impõem aos desvarios populistas.

Não compartilho do ceticismo. A Constituição, em matéria de orçamento e gasto público, não é prolixa nem detalhista. Seus dispositivos não são irrealistas em virtude de impossibilidades aritméticas, físicas ou químicas. Correspondem, além disso, a anseios da sociedade. Tanto é assim que, nos discursos e nas declarações de intenção, esses dispositivos têm merecido sempre um razoável número de adesões, tanto do Legislativo quanto do Executivo. Isso se reflete inclusive em leis inicialmente aprovadas, como no caso das LDOs.

As transgressões sistemáticas ao que é aprovado sugerem que as adesões à austeridade constitucional representam gestos de hipocrisia. Pode ser. Mas valeria, nesse caso, reler a epígrafe de La Rochefoucauld: “é melhor dispor de regras reconhecidas como corretas, mesmo desobedecidas, do que de regras que consagrem a anarquia fiscal”. As regras boas representam pelo menos um norte e um marco legal na luta pela austeridade e pela transparência dos gastos públicos. Tratemos, portanto, de aperfeiçoá-las e de forçar sua aplicação prática, plena e efetiva.

  • 1
    A experiência de indexação enfrentou dois obstáculos: primeiro, alguns órgãos da administração federal não estavam à época inseridos on line no Sistema de Administração Financeira (Siafi); segundo, parte das despesas estava sendo registrada na contabilidade como “despesa a classificar”. Isso dificultava o levantamento do montante executado e, por conseguinte, inviabilizava o cálculo da base das dotações a serem corrigidas. Além disso, em muitos casos, o indexador aplicado sobre todas as dotações não guardava qualquer relação com as respectivas fontes de recursos.
  • 2
    A participação dos estados e municípios na arrecadação do IR e do IPI subiu de 20% em 1980 para 28% em 1984 e para 33% em 1988. Ainda em l988, logo após a promulgação da Constituição, a participação dos estados e municípios saltou para 38% do IR e 48% do IPI (inclusive os 10% para os estados exportadores) e, depois, como previsto, elevou-se gradualmente até o nível atual de 44% e 54% do IR e do IPI, respectivamente.
  • 3
    Entre os equívocos destacam-se: a desindexação da arrecadação tributária do Plano Collor II (janeiro/9l) e a Lei 8.200. Na revisão do IRPF para 1991 (arrecadado em 1992), promoveu-se a elevação da faixa de isenção, o retorno das deduções de gastos com ensino e a indexação da tabela à inflação acima dos índices de reajuste salarial. O excesso de alterações na legislação tributária contribuiu para o crescimento das demandas judiciais.
  • 4
    Segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional, em setembro de 199 l, quando foram propostos pela primeira vez a moratória e o refinanciamento das dívidas estaduais e municipais (no âmbito do chamado “Emendão”), o saldo vencido e não pago era da ordem de US$ 2,6 bilhões ou 13% do montante total, considerados apenas os empréstimos bancários. Se nada do que venceu até 1992 foi pago (hipótese provável), o montante da inadimplência no final desse ano terá subido para cerca de US$ 7 bilhões. Isso tudo sem considerar as dívidas mobiliária e externa dos estados e municípios.
  • 5
    A incidência das contribuições sociais foi substancialmente ampliada após a Constituição de 1988: (i) no caso das contribuições previdenciárias: majoração das alíquotas dos empregados, por faixa salarial dos trabalhadores, em 1989; (ii) contribuição para Finsocial: majoração da alíquota de 0,5% (1989) para 1% (1989), depois para 1,2% (1990) e, finalmente, para 2% (1990); (iii) criação, no final de 1988, da contribuição sobre o lucro líquido com alíquota de 8% para empresas e 10% para instituições financeiras. Em 1990 essas alíquotas foram elevadas para 10% e 14%, respectivamente, e no segundo caso, aumentadas novamente para 15% (1991) e 23% (1992); (iv) contribuição ao PIS/PASEP: mudança da base de cálculo do lucro e folha salarial para a receita operacional, no caso da maioria das empresas. A alíquota foi majorada de 0,5 para 0,65%. Ressalte-se que os prazos de recolhimento e de indexação dos débitos de todas as contribuições foram reduzidos.
  • 6
    A ausência da lei complementar tem seis efeitos: (i) a inexistência de uma padronização e hierarquização rígida dos diversos instrumentos que autorizam o gasto público; (ii) a indefinição dos objetivos, diretrizes, metas e prioridades no PPA e nas LDOs, faltando também definir o significado de cada conceito; (iii) a não-atualização das classificações das despesas, em especial da funcional-programática; (iv) a inexistência de prazos adequados para o processo orçamentário; (v) a ausência de uniformidade dos orçamentos e balanços dos três níveis de governo; e (vi) a indefinição das condições para a instituição e funcionamento dos fundos.
  • 7
    Por exemplo, os dispositivos que tratam tanto da organização e da estrutura da lei orçamentária como das conceituações relativas à classificação das despesas e da regra a ser estabelecida no caso de os orçamentos não serem aprovados até 31 de dezembro do exercício financeiro anterior.
  • 9
    JEL Classification: E62; H11; D72.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1993
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