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Sobre dinheiro e valor: uma crítica às posições de Brunhoff e Mollo

On money and value: a critique to Brunhoff and Mollo’s approach

Resumo

Este artigo trata da relação entre dinheiro e valor na obra de Marx. Tem três propósitos. A primeira (seção I) é criticar a abordagem de Brunhoff a esse assunto em “Money in Marx” (1978). A segunda (seção II) é demonstrar que essa concepção pode implicar em resultados que parecem inadequados para uma correta compreensão do capitalismo. Por fim, a seção III visa responder algumas considerações críticas feitas por Mollo (1991)MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. sobre a abordagem de Fausto sobre a questão. Chama-se atenção para aspectos metodológicos e teóricos no trabalho como um todo.

Palavras-chave:
Teoria do valor; marxismo; moeda

Abstract

This paper deals with the relation between money and value in Marx’s work. It has three purposes. The first (section I) is to criticize Brunhoffs approach to this subject in “Money in Marx” (1978). The second (section II) is to demonstrate that this conception may imply results that seem inadequate to a correct comprehension of capitalism. Finally, section III aims to reply some critical considerations made by Mollo (1991)MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. about Fausto’s approach to the question. Attention is called to methodological and theoretical aspects in the paper as a whole.

Keywords:
Theory of value; Marxism; money

Este artigo é uma versão modificada do Apêndice 1 à Parte II de minha tese de doutoramento “Do conceito de dinheiro e do dinheiro como conceito” (1991). Três são seus objetivos. O primeiro (primeira seção) é realizar uma crítica tanto metodológica quanto teórica (na realidade a segunda deriva da primeira) à leitura desenvolvida por Suzanne de Brunhoff sobre A Moeda em Marx (1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. ). O segundo (segunda seção) é mostrar que análises desenvolvidas a partir desse tipo de leitura, como a de Mollo (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. ), parecem pouco adequadas para a compreensão do capitalismo. Finalmente (terceira seção), aproveito a oportunidade para responder a algumas críticas de Mollo (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , Apêndice) à leitura de Fausto (1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. ).1 1 O texto de Mollo que comentamos neste artigo foi publicado na Revista de Economia Política, 11 (2), abr-jun 1991, mas teve uma versão preliminar apresentada em dezembro de 1989, em Fortaleza, por ocasião do XVII Congresso da ANPEC. Naquela oportunidade fui escalada como debatedora.do texto, e baseei meus comentários e críticas às posições da autora na feitura de Fausto (1983). Quando da publicação do texto na Revista, Mollo, entre outras alterações ao texto inicial, incluiu um apêndice em que visa rebater as críticas e questionar esse tipo de leitura. São essas considerações que agora comento.

I

A posição de Brunhoff funda-se na concepção, derivada, ao que tudo indica, das leituras althusserianas - mais especificamente das leituras de Benetti e Cartelier -, de que, em Marx, a sociedade mercantil e o capitalismo são duas “espécies” do gênero “sociedade monetária”.2 2 Fausto (1983, capítulo 4). No intuito de esclarecer de que forma a posição de Brunhoff se vincula ao althusserismo, torna-se necessário tecer inicialmente algumas considerações sobre essa postura.

A concepção althusseriana pode ser caracterizada, grosso modo, a partir de dois elementos: o horror à dialética (e daí a dificuldade de entender o capital como uma relação social que remete sempre à noção de movimento, de processo) e a concepção estruturalista3 3 Cabe notar que os althusserianos não se sentem confortáveis com a denominação de estruturalistas. Procuram, na realidade, se livrar dela. Contudo, como mostra Fausto (1983, pp. 69-70), a despeito das alegações de que os elementos invariantes não funcionam como noções primeiras, visto que “mudariam de sentido” de acordo com as articulações, os textos althusserianos percorrem sempre um movimento que vai dos elementos às articulações, de modo que, nessa leitura, inevitavelmente, é ao quadro de invariantes que cabe a função fundante. da história social do homem, que implica a virtual impossibilidade de compreender qualquer de seus momentos específicos na inexistência de uma “teoria geral”. A despeito de estarem os dois elementos indissoluvelmente ligados nas leituras althusserianas, comentaremos, por ora, apenas o segundo, visto que o primeiro constitui a base de toda a crítica esboçada neste artigo.

Na concepção estruturalista, como é sabido, inexiste o agente sujeito, seja este o homem individualmente considerado, seja qualquer outro (por isso o estruturalismo é também um antiantropologismo, ainda que, no caso do althusserismo, essa postura sofra, como mostra Fausto (1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. ), uma interversão - vale dizer, uma inversão que vem de dentro da própria coisa, que decorre de sua própria natureza). A história material do homem é compreendida aí como uma sucessão de distintas articulações a partir de um quadro de elementos que são invariantes, a saber: o trabalhador (a força de trabalho), os meios de produção e o não-trabalhador. Esses três elementos combinar-se-iam sempre a partir de duas relações, que também podem ser entendidas, segundo Fausto (1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. , pp. 66,71), como elementos do quadro de invariantes: a relação de propriedade e a relação de apropriação real (que remete à forma de apropriação dos meios de produção pelo trabalhador no processo de trabalho). Esse quadro, portanto, permitiria a compreensão de cada uma das diferentes formas segundo as quais se organizou a reprodução da existência material do homem ao longo da história. Marx, nessa leitura, só teria podido entender a especificidade do processo de trabalho no capitalismo porque teria construído inicialmente um quadro desse tipo, o qual lhe teria mostrado o modo de produção capitalista como uma particular forma de articulação dos elementos invariantes.

A leitura de Brunhoff segue o mesmo compasso. Marx, de posse do quadro, teria percebido que, dependendo da forma segundo a qual os elementos se articulam, a moeda pode ou não ser necessária. Mas não é só a articulação capitalista que requisita a moeda; outras também o fazem. Daí que Marx teria construído inicialmente (na parte primeira do livro I) uma “teoria geral da moeda”, na qual a moeda teria sido estudada “fora do capitalismo”, passo indispensável para determinar a natureza da moeda e evitar assim a “confusão” entre moeda e mercadoria: “Uma análise ‘dedutiva’ é, portanto, necessária, no início, para determinar a natureza da moeda, separada de suas formas concretas e do seu emprego sob o capitalismo. Ela deve permitir evitar duas confusões que impedem a compreensão do papel da moeda no capitalismo: a confusão entre moeda e mercadoria e a confusão entre moeda e capital” (1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. , p. 11). Brunhoff imputa a Marx esse método e aponta as consequências para quem não o compreende. “Este método [o de Marx] pode desconcertar se se compreendeu mal o objeto de uma teoria da moeda e se não se vê que tomar por ponto de partida a moeda, tal como funciona no modo de produção capitalista, é, por aparente fidelidade ao marxismo, cometer um contrassenso, desconhecer a teoria marxista da moeda como determinação de uma “relação monetária” distinta da relação capitalista de produção, e tornar incompreensível a relação entre moeda e crédito. É um engano, por exemplo, considerar a parte primeira de O Capital ( ... ) como uma espécie de teoria da não-teoria da moeda. Esta interpretação está errada ( ...) [a partir dela] no que respeita à moeda

não se vê como as leis gerais da circulação monetária continuam a funcionar no modo de produção capitalista” (Brunhoff, 1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. , pp. 14-15, grifos meus). O referido contrassenso, contudo, é preciso frisar, não é cometido por quem lê cuidadosamente os contrassensos que Marx desvenda, mas pertence ele ao próprio real e é por ele operado. Daí que, de fato, “não se vê como as leis gerais da circulação monetária continuam a funcionar no modo de produção capitalista”, porque não se vê logicamente (se a lógica for a da identidade), só se “vê” fenomenicamente, visto que tais leis, a partir de seu próprio desenvolvimento categorial, se intervertem - mas só assim são elas mesmas.

Para Brunhoff, então, Marx tem um método que vai do simples ao complexo, sendo esse “simples” uma abstração que Marx realiza para poder construir sua teoria geral da moeda. Daí que “o ponto de partida necessário da teoria geral da moeda é o estudo da circulação ‘simples’, simplificação ou abstração fecunda” (1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. , p. 20), ou, ainda, “uma boa abstração, indispensável para determinar o caráter específico de toda relação monetária” (1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. , p. 17). Esse método, que ela supõe ser o de Marx, torna-se, assim, indispensável para que se possa enquadrá-lo nos cânones da lógica da identidade e, portanto, para que Marx, na leitura de Brunhoff, possa afirmar sem hesitação: “moeda é moeda”, “moeda não é mercadoria” (pois ele tem, afinal, de se livrar da “confusão” entre moeda e mercadoria).

Prosseguindo em sua leitura, Brunhoff vai concluir que, em Marx, “o entesouramento completa a determinação econômica da moeda na circulação de mercadorias” (1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. , p. 31, grifos meus), porque é uma demanda de moeda como equivalente geral, que não teria sentido sem as duas outras funções da moeda (medida dos valores e meio de circulação), mas que é fundamental para completar sua determinação econômica, visto que o entesouramento exerce uma função reguladora ao “absorver a quantidade de moeda que excede as necessidades nascidas das transações” (1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. , p. 38).

Por fim, o dinheiro como meio de pagamento vai surgir para Brunhoff, em O Capital, não como a função que, juntamente com a do entesouramento (porque oposta a este), fixa o dinheiro como única existência adequada do valor de troca, mas sim como uma “derivação” da moeda como “instrumento(?) de entesouramento”, que Brunhoff divide em duas partes: a) o entesouramento e b) a moeda “meio de pagamento”. Daí que a característica essencial do dinheiro como meio de pagamento é, para Brunhoff, a de ser “meio de saldar transações” (desentesoura-se e pagam-se os débitos, uma deriva da outra),justamente o contrário do que afirma Marx. Para ele, o fundamental é que o meio de pagamento nega o dinheiro como meio de circulação4 4 É surpreendente que a própria Brunhoff, depois de tornar o meio de pagamento como essencialmente meio de saldar transações, apresente, para justificar sua afirmação, justamente uma citação de Marx (extraída da Contribuição à Crítica da Economia Política) na qual ele afirma literalmente ser o meio de pagamento “negação do meio de circulação”, e a autora, mesmo assim, não se apercebe do discurso contraditório que realiza sobre o trabalho de Marx (v. Brunhoff, 1978, pp. 42-3). , ou seja, a determinação essencial do dinheiro nesse momento, que permite elevar a oposição mercadoria/ dinheiro ao nível da contradição absoluta, é justamente o fato de poder ele sair da circulação, deixando de ser simples forma evanescente da mercadoria, e não o fato de que ele “volte” para saldar transações (pois, mesmo quando volta, ele é negação do meio de circulação, já que a circulação se deu a despeito de sua inexistência). Contudo, se, em O Capital, não é tão explícita a contradição que vincula as determinações do dinheiro umas às outras, constituindo-o objeto obscuro, é impossível não enxergá-la quando se recorre às obras anteriores, os Grundrisse e a Contribuição à Crítica da Economia Política.5 5 Quanto aos Grundrisse, Marx deixa explícita sua influência da lógica hegeliana em carta a Engels de 14 de janeiro de 1858: “No mais, dou com magníficas descobertas. Por exemplo, captei no ar toda a teoria do lucro tal como existia até agora. No método de elaboração do tema há algo que me prestou um grande serviço; por mera casualidade havia voltado a olhar a Lógica de Hegel” (1986b, p. 315). Rosdolsky (1985ROSDOLSKY, R. Genesis y Estructura de El Capital de Marx. Cidade do México, Siglo XXI, 1985.), por exemplo, lembra que na primeira formulação da teoria marxiana do dinheiro, que aparece nos Grundrisse, o dinheiro só se constitui tal, quando “não serve mais como simples intermediário do processo de troca, quando, pelo contrário, enfrenta as mercadorias como meio de não-circulação” (1985ROSDOLSKY, R. Genesis y Estructura de El Capital de Marx. Cidade do México, Siglo XXI, 1985., p. 182, grifo meu).

Conclui-se, pois, que, para Brunhoff, Marx foi obrigado a incluir tanto o entesouramento quanto sua derivação, o meio de pagamento, “abstratamente” na circulação simples, para rematar sua teoria geral da moeda. Uma vez que tanto a sociedade mercantil quanto a capitalista são “sociedades monetárias” - espécies do mesmo gênero -, tal teoria deveria servir às duas, ou seja, o capitalismo não poderia contradizê-la, mas sim afirmá-la. Assim, uma vez que tanto o entesouramento quanto o meio de pagamento surgem como “auxiliares” da circulação, Brunhoff transforma, para pesar de Marx, a própria economia capitalista numa economia cuja principal finalidade é produzir e circular mercadorias.

Em sua concepção, a teoria da moeda de Marx se mantém, mesmo quando já existe a eliminação prática da moeda pelo crédito (ou seja, mesmo no capitalismo), porque - e Brunhoff usa indevidamente as palavras de Marx - nas crises há uma “súbita transformação do sistema de crédito em sistema monetário”. Brunhoff percebe, ao que parece, que a economia capitalista “degenera” a sagrada função do dinheiro, mas como a teoria geral da moeda de Marx tem de valer também para o capitalismo, então ela vale na crise, que é justamente o momento no qual se mostra a contradição constitutiva do sistema, e que o dinheiro encarna. Mas Brunhoff, por não admitir a contradição, por querer expulsá-la do capitalismo e da concepção de Marx, fixa-se no dinheiro como instrumento de circulação essencialmente (isso é cristalino na segunda parte de seu livro).6 6 Uma prova irrefutável desse procedimento de Brunhoff é o próprio título que ela dá a seu livro. Não é por acaso, ao que parece, que, em vez de denominá-lo “O Dinheiro em Marx”, ela o denomina “A Moeda em Marx”; é que Marx chama o dinheiro (Geld) de moeda (Münze) quando ele é simplesmente meio de circulação. Brunhoff, portanto, não se apercebe de que isso é só a aparência (necessária) do fenômeno, uma aparência que é contraditada pela essência e que exatamente nas

crises quer expulsar essa essência que lhe causa problemas. Ela não percebe ainda que, se Marx inclui, no dinheiro, o entesouramento e o meio de pagamento ainda antes de chegar categoricamente ao capital (isto é, ainda na seção 1), é porque eles de fato existem no nível da aparência e se mostram aí como meros auxiliares da circulação: “O dinheiro por conseguinte é agora [depois da determinação meio de pagamento] o valor de troca tornado autônomo (e como tal ele aparece como meio de troca ... )” (Marx, 1986aMARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse). Cidade do México, Siglo XXI, 1986a. , p. 154, grifo meu).

É evidente, todavia, que, para quem quer fixar o dinheiro e a mercadoria cerno objetos simplesmente diferentes (que não podem e não devem se confundir), tendo cada um sua identidade completamente determinada indiferentemente à existência do outro, então o caminho e a conclusão - da compreensão do capitalismo e da leitura de Marx - não poderiam ser outros. Brunhoff, portanto, não alcança, a meu ver, seu intento, que é o de revelar a diferença da teoria monetária de Marx relativamente à teoria ortodoxa, bem como o de mostrar que teria Marx antecipado Keynes.7 7 As referências de Brunhoff a Keynes são também bastante discutíveis. Para ela, a preferência pela liquidez definida por Keynes tem por origem um desequilíbrio entre a oferta limitada de disponibilidades monetárias e a demanda de moeda como moeda, que cresce em razão de “motivos psicológicos”. Se fosse apenas isso, um aumento na oferta de moeda resolveria sempre o problema. Maior dificuldade, no entanto, apresenta sua conclusão de que teria sido Keynes obrigado a escapar para a esfera psicológica precisamente por haver tentado considerar a moeda no capitalismo, enquanto Marx disso teria se safado por ter construído uma teoria geral da moeda, na qual, portanto, o entesouramento tem lugar na circulação simples. Sua forma de ler O Capital acaba por empobrecer a riqueza da contribuição marxiana nessa questão.

II

Esse mesmo tipo de leitura implica ainda outros resultados que são pouco adequados para a compreensão do capitalismo tal como Marx tenta apresentar. É o caso, por exemplo, da análise de Mollo (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. ) sobre a relação entre moeda e valor. Baseando-se fundamentalmente em Brunhoff, a autora procura mostrar de que modo o vínculo entre valor e moeda, tal como indicado por Marx, impede a aplicação da lei do valor de forma direta e imediata, mas obriga sua imposição, ainda que “em última instância”, pela restrição monetária. Tomando a sociedade capitalista como sociedade mercantil, ou pelo menos como possuindo um “caráter mercantil”, e tendo mostrado antes a necessidade da existência de moeda numa sociedade desse tipo, Mollo indica de que forma essa existência se constitui, a despeito de sua autonomia, no instrumento pelo qual a lei do valor acaba por se impor. Mas o que é esta “lei do valor”, o que a constitui? Veremos que, partindo desse tipo de leitura, a lei do valor apresenta o capitalismo como uma sociedade regida de fato, ou seja, em sua essência, pela troca de equivalentes, mesmo se se toma a cautela do “em última instância”. Pressentem-se já aqui os resultados problemáticos desse tipo de interpretação. Alguns destes contradizem a intenção da autora, e outros reduzem o potencial compreensivo da análise crítica marxiana. Antes de considerá-los, porém, é preciso que demonstremos porque essa leitura transforma o capitalismo numa sociedade em que, em sua essência, mercadorias são trocadas pelo seu valor.

Considerando o capitalismo como um tipo de sociedade mercantil - sociedade, portanto, também monetária-, a lei do valor, vale dizer, a da troca regida pelos valores, a da troca de equivalentes, tem subitamente elevado o seu estatuto: de aparência negada do sistema, ela passa a fundamento dele, transforma-se em sua essência. Segundo Mollo, “a análise da forma valor8 8 Ainda que se possa dizer que, na sociedade mercantil, contrariamente a outros tipos de formação econômica, o trabalho assume necessariamente a “forma valor”, o uso da expressão pode levar a equívocos. Na realidade, os produtos do trabalho humano assumem, na efetividade dessa sociedade, a forma de mercadoria, e, em consequência disso, o trabalho assume a forma de valor de troca ou de dinheiro. O valor é o fundamento dessas formas (logo, o que há são “formas do valor”, e não a “forma valor”), e a substância dele é o trabalho abstrato permite, por um lado, que Marx compreenda a relação fundamental de uma economia mercantil, tendo sempre em mente que a economia capitalista é mercantil. Assim, ele consegue perceber que o problema do valor só se coloca neste tipo de economia, porque só aí o trabalho precisa de uma forma para se representar9 9 Não é verdade que é só na economia mercantil que o trabalho precisa de uma forma para se (sic) “representar”. Também nas outras formações, o trabalho humano tem de se apresentar sob uma forma, só que esta é aí diretamente a forma de objetos de uso. Nessas sociedades, portanto, o “valor de uso” não é negado (pelo valor), nem o trabalho concreto é suprimido, visto que ele é diretamente trabalho social. ( ... ) Por outro lado, Marx pode, a partir do valor, compreender e explicar o comportamento de uma economia capitalista no tocante a seu caráter mercantil” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 45); e a autora acrescenta ainda numa nota de pé de página referente a essas afirmações: “Observe-se que não foram introduzidas até aqui, como também não o foram nos três primeiros capítulos de O Capital, as relações capitalistas ou o caráter capitalista propriamente dito” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 45, nota 6). Qual é a leitura então? A leitura é a seguinte: Marx teria feito, na seção I, uma espécie de “teoria geral das sociedades mercantis”, portanto, também sociedades monetárias, teria aí descoberto seu fundamento e teria feito isso para poder tratar depois de um caso particular desse tipo de sociedade, a sociedade capitalista, já que “até aí as relações capitalistas de produção não foram introduzidas”. Mas, se a sociedade capitalista é mercantil, seu fundamento - a lei do valor ou da troca de equivalentes - tem de permanecer também aí, e permanecer como fundamento, pois, de outra forma, nem será geral tal teoria nem se poderá chamar de sociedade mercantil ao capitalismo. A diferença, para Mollo, é que, com a introdução das relações capitalistas, “as categorias mercantis se modificam assim como as formas de moeda” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 53), e, particularmente, a autonomia da moeda “é responsável pela impossibilidade de imposição da lei do valor de forma direta e imediata” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 56), mas “a lei do valor se impõe, entretanto em última instância” (idemMOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. ).

Contudo, e este é o primeiro dos resultados problemáticos que prometemos analisar, se entendemos dessa forma a questão, perdemos aquilo que, para Marx, era fundamental: que a sociedade capitalista, apesar de aparecer como uma sociedade em que mercadorias são trocadas pelo seu valor, apesar de aparecer, pois, como uma sociedade na qual a lei máxima é a da troca de equivalentes, tem como seu fundamento a troca de não-equivalentes, já que existe nessa sociedade uma mercadoria especial - a força de trabalho - cujo valor de uso é o de produzir valor. Assim, se apresentamos a lei do valor como a essência ou fundamento da sociedade capitalista, não conseguimos entender a valorização do valor. Querendo “salvar” a lei do valor, perdemo-la; querendo afirmá-la, negamo-la. O que aparece como interversão do discurso de Mollo é, contudo, a interversão da própria lei, do próprio real, pois que a lei do valor só é lei se alcançar também a força de trabalho, se transformar também a ela em mercadoria. Aí, porém, a lei não é mais a da troca de equivalentes - ainda que ela permaneça no fenômeno -, mas a da valorização do valor.10 10 Usualmente, a discussão em torno da validade ou não da lei do valor no modo de produção capitalista não se dá nos marcos aqui colocados, mas remete à famosa questão da transformação dos valores em preços de produção. O argumento, bastante conhecido, é que, no capitalismo, as mercadorias são trocadas não segundo seus valores, mas segundo seus preços de produção, o que jogaria por terra a lei do valor. Apresentado dessa forma, o problema se resumiria ao seguinte: ou bem se salva a lei do valor ou da troca de equivalentes (e, portanto, também a da apropriação pelo trabalho próprio) pagando-se o preço da não-compreensão do fenômeno tal como ele se apresenta, ou bem se busca explicar o fenômeno - o da troca segundo os preços de produção-, mas aí, ao custo de jogar fora seu fundamento e destruir com isso toda a base racional da economia política. Fausto (1983, pp. 114- 20) mostra que Marx tinha absoluta consciência do caráter contraditório da resposta que ofereceu ao problema, mas que ele a atribuía, no entanto, a contradições do próprio real. E qual foi a resposta que ele ofereceu? Não há como compreendê-la sem uma concepção dialética do funcionamento das categorias, se não, vejamos. Para Marx, é a aplicação reiterada da lei do valor com todas as suas consequências que a interverte em lei da apropriação capitalista. A base dessa interversão é a transformação da própria força de trabalho (que fornece a substância do valor) em mercadoria, e, a partir daí, o processo de reprodução ampliada (de acumulação propriamente dita) que se torna possível. Assim, a lei do valor se nega a si mesma, ou seja, em razão de sua própria lógica, mas só assim ela é o que é, só assim tem existência efetiva. Que os valores existam como preços de produção (que a mais-valia apareça como lucro e gere a ilusão de que o capital é, por si só, fonte geradora de valor) é exigência interna e lógica do funcionamento da própria lei. Fausto lembra com propriedade uma afirmação de Marx a esse respeito na seção VII do Livro I de O Capital: “Dizer que a interposição do trabalho assalariado falseia a produção de mercadorias quer dizer que, se a produção de mercadorias quiser se manter não falseada, ela não pode se desenvolver” (Marx, apud Fausto, 1983, p. 120). Como se percebe, as duas discussões - a que aparece em meu diálogo com Mollo e a da transformação dos valores em preços de produção - estão interligadas, já que a interversão da lei do valor tem por base a existência da mercadoria força de trabalho e do preço dela, o salário, o qual não existe, entretanto, sem que apareça, no outro polo, o lucro. De todo modo, ainda que sob a forma de preços de produção, o sistema opera fenomenicamente como se o seu fundamento fosse a troca de iguais. (A oportunidade desse reparo surgiu em razão da apresentação das ideias aqui expostas no programa de seminários acadêmicos do IPE/USP, em setembro de 1992). Assim, a lei do valor só existe se não existir, só conseguimos afirmá-la se a negamos, porque ela mesma se nega. A recusa em aceitar essa contradição, que é do real, desloca-a para o discurso, fazendo deste um discurso contraditório.11 11 No que tange à nota 6 de Mollo (p. 45), anteriormente transcrita, cabe notar que a afirmação é verdadeira, mas a leitura que daí se deriva não o é. De fato, Marx só introduz as relações capitalistas de produção no capítulo 4 (seção lI). Contudo, isso não significa que elas não estejam presentes nos capítulos anteriores. Elas estão lá, só que suprimidas (há quem prefira usar nesse caso o termo “subsumidas” em vez de “suprimidas”. Este último termo, no entanto, parece-me mais correto, visto que a ideia aí é mesmo de supressão, e não de subsunção: trata-se de um “estar não estando”, que se filia à ideia da Aufhebung, ou seja, da negação que conserva, enquanto subsunção remete à subordinação ou redução de vários elementos a um único. Assim se diz, por exemplo, que “com a maquinaria há uma subsunção real do trabalho ao capital” ou que “o dinheiro subsume em si todas as mercadorias”). Mas é o próprio capitalismo que faz isso, visto que, fenomenicamente, ele se mostra como o contrário do que na realidade é, ele se mostra como sociedade mercantil simples, aquela em que impera a troca de equivalentes. O que Marx faz, a partir do capítulo 4, é pôr a nu essa essência, expressar e apresentar no seu discurso aquilo que o fenômeno nega.

O segundo resultado problemático implica o resvalamento do valor para alguma coisa da ordem do natural, de modo que ele perde assim aquilo que o determina, ou seja, seu caráter supra-sensível. Mollo, baseada nas afirmações de Brunhoff, insiste na necessidade de trabalhar com duas categorias distintas para entender o processo de imposição da lei do valor: de um lado, o valor imanente individual - ou valor individual ou valor intrínseco-, e, de outro, o valor social - ou o “preço social mercantil”. A primeira categoria é associada ao valor, a segunda ao valor de troca, e “o valor de troca não se confunde com o valor porque este exprime algo ligado a uma mercadoria em particular, e o valor de troca, sendo sempre relativo e se expressando a partir de outras mercadorias, pode aparecer de diversas formas”, e isso mostra “que o valor de troca é uma representação do valor, mas não se confunde com ele” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , pp. 44-5, grifo meu). Tal distinção seria então necessária para entender o processo de imposição da lei do valor, porque, a despeito da autonomia da circulação e, depois, da autonomia da moeda, ensejando as duas divergências entre os dois valores, a lei do valor se impõe “em última instância”, ou seja, nos momentos de crise, obrigando sua convergência. Entender o valor e o valor de troca dessa maneira torna-se, pois, uma necessidade para entender a sociedade capitalista como sociedade mercantil. Todavia, se é verdade que o valor não se confunde com o valor de troca, a relação que existe entre os dois não é exatamente essa. Nessa leitura, tudo se passa como se o valor de troca e a moeda, em determinados momentos, falseassem ilegitimamente o “verdadeiro” valor da mercadoria, seu valor particular e intrínseco. Cabe então perguntar: o que é esse valor verdadeiro da mercadoria, o que o constitui, ou melhor, se ele existe, como interpretá-lo? Parece claro que a única interpretação que se pode dar a esse “valor imanente individual” é a de um determinado quantum de horas de trabalho. Com isso, porém, não só a abstração real que constitui o trabalho como universal concreto fica transformada numa abstração pura, abstração meramente ideal, como também a substância do valor fica transformada num substrato, em algo sustentado e referendado por um elemento natural. Ora, não se trata disso. A relação que vincula o valor ao valor de troca não é uma relação de representação - que implica, no mínimo, a congruência dos dois elementos em algum momento-, mas uma relação de apresentação de um fundamento; essa apresentação, que constitui a coisa como coisa contraditória, é a existência desse fundamento, mas uma existência que se suprime a si mesma na aparência. A relação é, pois, de negação dialética, isto é, o valor de troca expressa, negando, seu fundamento, que é o valor; esse é, contudo, o único jeito de ele existir. Não faz sentido, portanto, falar em “valor imanente individual”, porque ele não existe enquanto tal, assim como não existe nenhum falseamento “ilegítimo” do valor pelo valor de troca ou pela moeda. Assim a autora, mais uma vez, transporta uma contradição que é do real para o seu discurso, pois, ao mesmo tempo em que vê o trabalho abstrato como “fruto de um processo de abstração que é real” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 58), nega isso em sua leitura das categorias.

Essa negação, como já se indicou, implica o deslizamento do valor para algo da ordem do natural, e isso é visível também em outras partes do texto. Ela diz, por exemplo, que “o problema da autonomia do valor de troca com relação ao valor imanente de uma mercadoria é uma expressão da autonomia da forma do valor, sempre relativa, com relação ao seu conteúdo, que é absoluto” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 51). Como se vê, a insistência na existência enquanto tal do “valor imanente individual” obriga o discurso da autora a conferir ao conteúdo ou substância do valor esse caráter de absoluto, de substrato, de algo, portanto, imóvel e independente das formas de sua expressão. Se o valor imanente individual não existe enquanto tal, não pode ter nenhum conteúdo absoluto, a menos, cabe repetir, que o entendamos como horas de trabalho, de modo que a substância do valor adquire, nessa leitura, uma consistência natural, tempo despendido e contado no relógio.

Existe, por fim, um outro momento em que esse deslizamento é visível, ainda que se expresse de outra forma, visto que o “valor intrínseco” acabará sendo reduzido agora ao valor de uso. Comentando as modificações que surgem quando da introdução da moeda de curso forçado vis-à-vis da moeda-mercadoria ouro, diz a autora: “Se, no caso da moeda-mercadoria ouro, com cunhagem livre, a lei do valor se impõe pela conversão das mercadorias em moeda equivalente geral ( ... ) como se coloca esta questão para a moeda de curso forçado, inconversível, sem valor intrínseco? ( ... ) Como a lei do valor se impõe ao equivalente geral quando a moeda não tem valor intrínseco, de modo a torná-la apta a impor a lei do valor ao conjunto de mercadorias através da restrição monetária?” (1991, p. 53). Temos aqui uma pista para descobrir afinal o que é, para a autora, o valor imanente individual. Segundo suas palavras, a moeda ouro tem valor intrínseco, e a moeda de curso forçado não. Mas em que difere uma moeda da outra? É que o ouro é uma mercadoria “verdadeira”, e o papel-moeda não, ou seja, na moeda ouro, ainda que suprimido (ou latente), o valor de uso está lá como suporte do valor (e do modo como ele existe, ou seja, como valor de troca), e no papel-moeda esse valor de uso não existe. Nessa abordagem, portanto, o valor intrínseco que o ouro tem, e o papel-moeda não, explica-se pelo fato de que horas de trabalho são gastas para produzir o ouro como valor de uso que ele é. Conclusões como essa são, contudo, necessárias para a autora. Ao fazer da generalidade o fundamento do discurso de Marx - deslocando para segundo plano a finalidade da produção de riqueza material, que é primeira para ele e é o que quebra essa generalidade fundante (v. Fausto, 1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. ) - e ao entender a partir daí a sociedade capitalista como sociedade mercantil, sociedade, portanto, em que a lei do valor tem de vigir, Mollo, a despeito da seriedade de seu trabalho, que estamos longe de questionar, inadvertidamente converte a aparência da sociedade capitalista em sua essência. Assim como Brunhoff, Mollo transforma a economia capitalista, ainda que seu discurso diga o contrário, numa economia cuja principal finalidade é produzir e circular mercadorias, de modo que logicamente não há como evitar nem a “naturalização” do valor nem sua redução ao valor de uso.

III

No apêndice ao artigo de Mollo que viemos a analisar a autora busca, como antecipei, rebater as críticas às suas posições que tomem por base a leitura de Fausto (1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. ). Basicamente, Mollo tenta mostrar aí que entender o trabalho abstrato como fruto de um processo de abstração que é real não implica negar a necessidade de trabalhar com duas categorias distintas, quais sejam o valor imanente individual e o valor social. Sua resposta, contudo, não me parece suficiente, e, mais uma vez, torna contraditório o discurso da autora. Vejamos por quê.

Mollo inicia o referido apêndice da seguinte maneira: “Em concepções como a de Fausto (1987)12 12 Trata-se da segunda edição do mesmo Marx: Lógica e Política, vol. 1. A edição por mim usada é a primeira, de 1983. pode parecer que não faz sentido falar em valor individual. Nessa concepção o trabalho concreto é individual e o trabalho abstrato é social (p. 92). Sendo este último a substância e o fundamento do valor não haveria sentido em falar em valor individual” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 57). É exatamente disso que se trata: se a substância do valor é o trabalho abstrato e se o trabalho abstrato é social - porque fruto de um processo social de abstração-, então não há sentido em falar em valor individual, ou seja, em valor no nível dos trabalhos concretos. Mollo rejeita essa concepção (de trabalho abstrato como social e de trabalho concreto como individual), mas sustenta que, mesmo assim, podemos aceitar a noção de trabalho abstrato não como mera idealidade a habitar a cabeça dos teóricos, mas como fruto de um processo de abstração que é real: “não concordamos com Fausto quando sugere a interpretação de trabalho abstrato como social e trabalho concreto como individual. Vemos o trabalho abstrato como fruto de um processo de abstração que é real, mas a realidade dele envolve tanto o que ocorre com o produtor privado quanto o que ocorre quando o processo de abstração se completa” (1991, p. 58). Na mesma linha, Mollo não se vê impedida de aceitar, como Fausto, que o trabalho socialmente necessário não é necessariamente o trabalho médio, mas o trabalho que se impõe socialmente. Sustentamos, ao contrário, que as duas concepções são incompatíveis. Antes de mostrar por quê, cabe acrescentar que Mollo vai ainda mais longe ao afirmar que a leitura de Fausto “em vez de impedir, nos permite aceitar a noção de valor individual” (1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 58).

Para Mollo, Marx teria empregado a noção de trabalho abstrato para mostrar que, nas economias mercantis, a contradição privado-social se resolve por um processo de socialização dos trabalhos privados, e que esse processo opera pela imposição da lei do valor pela restrição monetária. Mas o que significa para a autora a imposição da lei do valor? Significa a necessidade que se impõe, nas sociedades mercantis (na sociedade capitalista não diretamente, mas só em última instância), de que a troca respeite os valores individuais e intrínsecos das mercadorias. Contudo, se a lei do valor é isso (e se sua imposição é necessária), e se o valor “verdadeiro” é o valor intrínseco, então o fundamento do valor não é o trabalho abstrato, mas o trabalho concreto, ou seja, a prioridade (no sentido de “noção primeira”) cabe ao trabalho concreto - que produz valores de uso -, e não ao trabalho abstrato - que produz valor. Como a lei do valor se impõe também no capitalismo, também nesta sociedade é o trabalho concreto que comanda “em última instância” o trabalho abstrato, vale dizer, a produção de valores de uso é que comanda a produção de valor (resultado, de resto, ao qual já havíamos chegado, por outras vias, na seção anterior).

Mollo certamente rejeitaria essa conclusão afirmando que o processo de abstração real não envolve só a fase estritamente social do movimento, mas que envolve também o que ocorre com o produtor privado. Perguntaria, por isso, legitimamente: “Então o trabalho abstrato não existe na esfera da produção?” A resposta é que ele existe e não existe, ou seja, que, nessa esfera, ele é pressuposto. Quando o trabalho já é feito para a troca (e não importa aqui se a sociedade é mercantil ou capitalista, para ficar nos marcos com os quais trabalha a autora), vale dizer, quando a finalidade da execução dos trabalhos concretos na produção de distintos valores de uso já tendo em vista a troca, o trabalho abstrato existe aí, mas existe como não existente, existe como pressuposto. Sua posição efetiva só se dá na esfera da circulação, exteriorizando-se no dinheiro (Fausto, 1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. , pp. 94-5). E como “Marx supõe que a posição da coisa - e a posição da coisa é a existência (social) da coisa - é essencial para que ela seja o que é” (a frase é de Fausto, 1987:105, citada pela própria Mollo, 1991MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991. , p. 59, para afirmar suas posições), o trabalho abstrato ao qual se refere Marx e que, para ele, fornece a substância do valor, só pode ser o trabalho social, o qual não guarda nenhuma relação positiva (só uma relação de negação dialética, visto que o valor de uso é suporte do valor) com os trabalhos individuais e concretos. De outro lado, se se assume a posição de Mollo, o trabalho abstrato revela-se simplesmente uma categoria ideal resultante de um processo convencional de generalização que subsume todos os diferentes trabalhos específicos em “trabalho em geral” e torna possível medi-lo. É só dessa forma, com essa concepção (da generalidade em sentido fisiológico), que faz sentido falar em valor imanente individual ou valor intrínseco. E se é essa a posição, o trabalho socialmente necessário só pode mesmo ser concebido como trabalho médio, e aí fica Marx sujeito, como mostra Fausto, a críticas com a de Castoriadis.13 13 “Portanto, para ter uma teoria do valor-trabalho sobra somente a terceira interpretação: o tempo ‘socialmente necessário’ é o tempo médio. Mas esse tempo médio é uma abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética fictícia que não tem nenhuma efetividade ( ... ): não existe nenhuma razão real ou lógica para que o valor de um produto seja determinado pelo resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer.” (Castoriadis, apud Fausto, 1983, p. 126).

Em suma, não parece possível, de um lado, aceitar a noção de trabalho abstrato como fruto de um processo de abstração que é social e real e, de outro, insistir na existência de um valor individual ou intrínseco que remete ao momento da execução efetiva do trabalho. Prosseguir assim é construir um discurso contraditório sem se aperceber das contradições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
  • FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983.
  • MARX, Karl. O Capital. ln Marx, Coleção Os Economistas. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
  • MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse). Cidade do México, Siglo XXI, 1986a.
  • MARX, Karl. Contribuicion a la Crítica de la Economía Política. Cidade do México, Siglo XXI, 1986b.
  • MOLLO, Maria de Lourdes R. “A relação entre moeda e valor em Marx”. Revista de Economia Política 11 (2), abr./jun. 1991.
  • PAULANI, Leda Maria. “Do conceito de dinheiro e do dinheiro como conceito”. São Paulo, IPE/USP (tese de doutoramento), 1991.
  • ROSDOLSKY, R. Genesis y Estructura de El Capital de Marx. Cidade do México, Siglo XXI, 1985.
  • 1
    O texto de Mollo que comentamos neste artigo foi publicado na Revista de Economia Política, 11 (2), abr-jun 1991, mas teve uma versão preliminar apresentada em dezembro de 1989, em Fortaleza, por ocasião do XVII Congresso da ANPEC. Naquela oportunidade fui escalada como debatedora.do texto, e baseei meus comentários e críticas às posições da autora na feitura de Fausto (1983)FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. . Quando da publicação do texto na Revista, Mollo, entre outras alterações ao texto inicial, incluiu um apêndice em que visa rebater as críticas e questionar esse tipo de leitura. São essas considerações que agora comento.
  • 2
    Fausto (1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. , capítulo 4).
  • 3
    Cabe notar que os althusserianos não se sentem confortáveis com a denominação de estruturalistas. Procuram, na realidade, se livrar dela. Contudo, como mostra Fausto (1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. , pp. 69-70), a despeito das alegações de que os elementos invariantes não funcionam como noções primeiras, visto que “mudariam de sentido” de acordo com as articulações, os textos althusserianos percorrem sempre um movimento que vai dos elementos às articulações, de modo que, nessa leitura, inevitavelmente, é ao quadro de invariantes que cabe a função fundante.
  • 4
    É surpreendente que a própria Brunhoff, depois de tornar o meio de pagamento como essencialmente meio de saldar transações, apresente, para justificar sua afirmação, justamente uma citação de Marx (extraída da Contribuição à Crítica da Economia Política) na qual ele afirma literalmente ser o meio de pagamento “negação do meio de circulação”, e a autora, mesmo assim, não se apercebe do discurso contraditório que realiza sobre o trabalho de Marx (v. Brunhoff, 1978BRUNHOFF, Suzanne de. A Moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. , pp. 42-3).
  • 5
    Quanto aos Grundrisse, Marx deixa explícita sua influência da lógica hegeliana em carta a Engels de 14 de janeiro de 1858: “No mais, dou com magníficas descobertas. Por exemplo, captei no ar toda a teoria do lucro tal como existia até agora. No método de elaboração do tema há algo que me prestou um grande serviço; por mera casualidade havia voltado a olhar a Lógica de Hegel” (1986bMARX, Karl. Contribuicion a la Crítica de la Economía Política. Cidade do México, Siglo XXI, 1986b. , p. 315).
  • 6
    Uma prova irrefutável desse procedimento de Brunhoff é o próprio título que ela dá a seu livro. Não é por acaso, ao que parece, que, em vez de denominá-lo “O Dinheiro em Marx”, ela o denomina “A Moeda em Marx”; é que Marx chama o dinheiro (Geld) de moeda (Münze) quando ele é simplesmente meio de circulação.
  • 7
    As referências de Brunhoff a Keynes são também bastante discutíveis. Para ela, a preferência pela liquidez definida por Keynes tem por origem um desequilíbrio entre a oferta limitada de disponibilidades monetárias e a demanda de moeda como moeda, que cresce em razão de “motivos psicológicos”. Se fosse apenas isso, um aumento na oferta de moeda resolveria sempre o problema. Maior dificuldade, no entanto, apresenta sua conclusão de que teria sido Keynes obrigado a escapar para a esfera psicológica precisamente por haver tentado considerar a moeda no capitalismo, enquanto Marx disso teria se safado por ter construído uma teoria geral da moeda, na qual, portanto, o entesouramento tem lugar na circulação simples.
  • 8
    Ainda que se possa dizer que, na sociedade mercantil, contrariamente a outros tipos de formação econômica, o trabalho assume necessariamente a “forma valor”, o uso da expressão pode levar a equívocos. Na realidade, os produtos do trabalho humano assumem, na efetividade dessa sociedade, a forma de mercadoria, e, em consequência disso, o trabalho assume a forma de valor de troca ou de dinheiro. O valor é o fundamento dessas formas (logo, o que há são “formas do valor”, e não a “forma valor”), e a substância dele é o trabalho abstrato
  • 9
    Não é verdade que é só na economia mercantil que o trabalho precisa de uma forma para se (sic) “representar”. Também nas outras formações, o trabalho humano tem de se apresentar sob uma forma, só que esta é aí diretamente a forma de objetos de uso. Nessas sociedades, portanto, o “valor de uso” não é negado (pelo valor), nem o trabalho concreto é suprimido, visto que ele é diretamente trabalho social.
  • 10
    Usualmente, a discussão em torno da validade ou não da lei do valor no modo de produção capitalista não se dá nos marcos aqui colocados, mas remete à famosa questão da transformação dos valores em preços de produção. O argumento, bastante conhecido, é que, no capitalismo, as mercadorias são trocadas não segundo seus valores, mas segundo seus preços de produção, o que jogaria por terra a lei do valor. Apresentado dessa forma, o problema se resumiria ao seguinte: ou bem se salva a lei do valor ou da troca de equivalentes (e, portanto, também a da apropriação pelo trabalho próprio) pagando-se o preço da não-compreensão do fenômeno tal como ele se apresenta, ou bem se busca explicar o fenômeno - o da troca segundo os preços de produção-, mas aí, ao custo de jogar fora seu fundamento e destruir com isso toda a base racional da economia política. Fausto (1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. , pp. 114- 20) mostra que Marx tinha absoluta consciência do caráter contraditório da resposta que ofereceu ao problema, mas que ele a atribuía, no entanto, a contradições do próprio real. E qual foi a resposta que ele ofereceu? Não há como compreendê-la sem uma concepção dialética do funcionamento das categorias, se não, vejamos. Para Marx, é a aplicação reiterada da lei do valor com todas as suas consequências que a interverte em lei da apropriação capitalista. A base dessa interversão é a transformação da própria força de trabalho (que fornece a substância do valor) em mercadoria, e, a partir daí, o processo de reprodução ampliada (de acumulação propriamente dita) que se torna possível. Assim, a lei do valor se nega a si mesma, ou seja, em razão de sua própria lógica, mas só assim ela é o que é, só assim tem existência efetiva. Que os valores existam como preços de produção (que a mais-valia apareça como lucro e gere a ilusão de que o capital é, por si só, fonte geradora de valor) é exigência interna e lógica do funcionamento da própria lei. Fausto lembra com propriedade uma afirmação de Marx a esse respeito na seção VII do Livro I de O Capital: “Dizer que a interposição do trabalho assalariado falseia a produção de mercadorias quer dizer que, se a produção de mercadorias quiser se manter não falseada, ela não pode se desenvolver” (Marx, apud Fausto, 1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. , p. 120). Como se percebe, as duas discussões - a que aparece em meu diálogo com Mollo e a da transformação dos valores em preços de produção - estão interligadas, já que a interversão da lei do valor tem por base a existência da mercadoria força de trabalho e do preço dela, o salário, o qual não existe, entretanto, sem que apareça, no outro polo, o lucro. De todo modo, ainda que sob a forma de preços de produção, o sistema opera fenomenicamente como se o seu fundamento fosse a troca de iguais. (A oportunidade desse reparo surgiu em razão da apresentação das ideias aqui expostas no programa de seminários acadêmicos do IPE/USP, em setembro de 1992).
  • 11
    No que tange à nota 6 de Mollo (p. 45), anteriormente transcrita, cabe notar que a afirmação é verdadeira, mas a leitura que daí se deriva não o é. De fato, Marx só introduz as relações capitalistas de produção no capítulo 4 (seção lI). Contudo, isso não significa que elas não estejam presentes nos capítulos anteriores. Elas estão lá, só que suprimidas (há quem prefira usar nesse caso o termo “subsumidas” em vez de “suprimidas”. Este último termo, no entanto, parece-me mais correto, visto que a ideia aí é mesmo de supressão, e não de subsunção: trata-se de um “estar não estando”, que se filia à ideia da Aufhebung, ou seja, da negação que conserva, enquanto subsunção remete à subordinação ou redução de vários elementos a um único. Assim se diz, por exemplo, que “com a maquinaria há uma subsunção real do trabalho ao capital” ou que “o dinheiro subsume em si todas as mercadorias”). Mas é o próprio capitalismo que faz isso, visto que, fenomenicamente, ele se mostra como o contrário do que na realidade é, ele se mostra como sociedade mercantil simples, aquela em que impera a troca de equivalentes. O que Marx faz, a partir do capítulo 4, é pôr a nu essa essência, expressar e apresentar no seu discurso aquilo que o fenômeno nega.
  • 12
    Trata-se da segunda edição do mesmo Marx: Lógica e Política, vol. 1. A edição por mim usada é a primeira, de 1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. .
  • 13
    “Portanto, para ter uma teoria do valor-trabalho sobra somente a terceira interpretação: o tempo ‘socialmente necessário’ é o tempo médio. Mas esse tempo médio é uma abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética fictícia que não tem nenhuma efetividade ( ... ): não existe nenhuma razão real ou lógica para que o valor de um produto seja determinado pelo resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer.” (Castoriadis, apud Fausto, 1983FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política, vol.I. São Paulo, Brasiliense, 1983. , p. 126).
  • 14
    JEL Classification: D46; B51; E51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1994
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