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Pós-fordismo no Brasil

Post-Fordism in Brazil

Resumo

Práticas inovadoras em empresas brasileiras líderes foram observadas em uma série de publicações de pesquisas recentes. As inovações ocorreram principalmente nas áreas de tecnologia, organização e nos processos produtivos e de trabalho. Até que ponto essas mudanças recentes precisariam se desenvolver e se difundir para constituir um modelo nacional de produção e gestão do trabalho? Este artigo explora as alternativas disponíveis para o Brasil na década de 1990, equilibrando o potencial dessas mudanças para o crescimento - ou para a estagnação - em face das recentes tendências internacionais de novos estilos de produção e gestão do trabalho.

Palavras-chave:
Fordismo; sistema de produção; organização do trabalho

Abstract

Innovative practices in leading Brazilian companies have been noted in a number of recent research publications. Innovations have occurred mainly in the fields of technology, organization and in the production and labour processes. How far and deep would these recent changes need to develop and diffuse in order to constitute a national model of production and labour management? This article explores the alternatives available to Brazil in the 1990s by balancing the potential of these changes for growth - or for stagnation - in face of recent international trends towards new production and labour management styles.

Keywords:
Fordism; production system; labor management

1. INTRODUÇÃO

Este artigo explora as alternativas disponíveis de modelo de desenvolvimento para o Brasil em face das tendências recentes internacionais, e em curso no País, em direção a novos sistemas de gerenciamento da produção e do trabalho. Num nível geral o enfoque recai sobre o modelo fordista e suas transformações advindas do impacto da supremacia dos estilos japoneses de produzir e gerenciar, e, num nível específico, trata-se de explorar as possibilidades brasileiras de modificações do seu peculiar modelo fordista.

Caracteriza-se como fordismo o modelo industrial de expansão econômica e progresso tecnológico baseado na produção e consumo de massa, na crescente divisão do trabalho em todos os níveis da atividade econômica, na extensa mecanização e no uso de máquinas dedicadas e de trabalho não qualificado (Freyssenet, 1979FREYSSENET, Michel. Division du Travail et Mobilisation Quotidienne de la Main-d ‘ouvre. Paris, Centre de Sociologie Urbaine, CNRS, 1979. ; Tolliday e Zeitlin, 1985).

Tem sido largamente observado que o crescimento econômico mundial, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial, foi profundamente marcado pelo estilo fordista de gerenciamento da produção e do trabalho (Aglietta, 1979AGLIETTA, Michel. A Theory of Capitalist Regulation. The US Experience, Nova York, New Left Books, 1979. ; Boyer, 1991BOYER, Robert. “New directions in management practices and work organization. General principies and national trajectories”. CEPREMAP, CNRS, EHESS, nº- 9130, Paris, agosto 1991. ). Todavia, a partir da década de 70, com o aumento de competitividade das empresas japonesas em setores importantes da economia mundial, como o automobilístico e de produtos eletrônicos, várias interpretações emergiram na tentativa de compreender os novos estilos de gerenciamento e as razões do sucesso japonês.

Um vigoroso debate teórico então se estabeleceu, particularmente nos Estados Unidos (Piore e Sabel, 1984; Kenney e Florida, 1988KENNEY, Martin e FLORIDA, Richard. “Beyond mass production: production and the labor process in Japan”. Politics and Society 16(1), pp. 121-58, 188. ), na França (Aglietta, 1979AGLIETTA, Michel. A Theory of Capitalist Regulation. The US Experience, Nova York, New Left Books, 1979. ; Boyer, 1986BOYER, Robert. “Rapport salarial, croissance et crise: une dialectique cachée. Introduction à une comparaison de Sept Pays Européens”. Boyer, R. (ed.) La flexibilité du travail en Europe. Paris, Editions La Découverte, pp. 11-30, 1986. , Coriat 1990CORIAT, Benjamin. L ‘Atelier et le Robot. Essai sur le Fordisme et la Production de Masse à l ‘Age de l ‘Electronique. Paris, Christian Bourgois Editeur, 1990. ) e na Inglaterra (Tolliday e Zeitlin, 1986TOLLIDAY, Steven e ZEITLIN, Jonathan. (eds.) “Between fordism and flexibility”. Introduçao em The Automobile Industry and Its Workers: Between Fordism and Flexibility. Cambridge, Polity Press/Basil Blackwell, pp.1-25, 1986. ; Wood, 1989WOOD, Stephen. “The transformation of work?” (Introdução), Londres, Unwin Hyman, pp. 1-43, 1989. ). Os temas centrais desse debate são: (i) a continuidade ou a ruptura do modelo japonês com relação ao modelo fordista precedente; (ii) as variações regionais, nacionais e históricas do fordismo; e (iii) os vários componentes do modelo japonês em sua especificidade, as relações de técnicas específicas de gestão com a sociedade abrangente e as questões da transferabilidade das técnicas, ou do modelo como um todo, aos países ocidentais.

No Brasil, alguns textos acadêmicos tratam desse debate (Carvalho e Schmitz, 1990CARVALHO, Ruy de Quadros e SCHMITZ Juberi. “O Fordismo está vivo no Brasil”. Novos Estudos Cebrap nº-27, pp. 148-56, julho 1990. ; Silva, 1991SILVA, Elizabeth Bortolaia. “Refazendo a fábrica fordista. Contrastes da indústria automobilística no Brasil e na Grã-Bretanha”. São Paulo: HUCITEC-FAPESP, 1991. : pp. 28-37 e 349-76 e 1992SILVA, Elizabeth Bortolaia. “Crises e mudanças na indústria automobilística sul­americana. A Autolatina em foco”. Cadernos JG - Unicamp 2(2), 1992 (a). ); enquanto uma prolífera produção no início da década de 90 tem levantado questões relativas à japonização (A. Fleury, 1992FLEURY, Afonso. “Nouvelles tecnologies, compétence technologique et procês de travail: comparaison entre les modeles japonais et brésilien”. Hirata, op.cit., pp. 31-47, 1992. ; Ruas, Antunes e Roese, 1992RUAS, Roberto, ANTUNES, José A., e ROESE, Mauro. “Avancées et reculs du ‘modele japonais’ au Brésil: quelques études de cas”. Hirata, op. cit., pp.105-25, 1992.; M.T. Fleury, 1992FLEURY, Maria Tereza Leme. “Changements et persistences dans les modeles de gestion du personnel: le cas des secteurs de tecnologie de pointe”. Hirata, op.cit., pp. 127-42, 1992. ; Salerno, 1992SALERNO, Mário. “Modéle Japonais, Travail Brésilien”. Hirata, op. cit., pp. 143-56, 1992. ; Humphrey, 1992HUMPHREY, John. “L’adaptation du ‘modele japonais’ au Brésil”. Hirata, op.cit., pp.231-53, 1992.; Souza-Lobo, 1992SOUZA-LOBO, Elisabeth. “Modele japonais et pratiques brésiliennes”. Hirata, op. cit., pp. 267-73, 1992. ; Fleury e Humphrey, 1992FLEURY, Afonso e HUMPHREY, John. “Human resources and the diffusion and adaptation of new quality methods in Brazilian manufacturing”. Brighton, IDS, 1992 (mimeo). ).

Os métodos japoneses têm sido analisados sob uma vasta nomenclatura: toyotismo, niponização, fujitsuísmo, ohnoísmo, sonyismo (Wood, 1992WOOD, Stephen. “Toyotisme et/ou Japanisation?”. Hirata, op. cit., pp. 49-8, 1992. Revista de Economia Política, vol. 14, nº 3 (55), julho-setembro/1994, p. 49). Esses rótulos caracterizam, de modo geral, a predominância de um sistema organizacional, como o just in time desenvolvido amplamente na Toyota por iniciativa de seu diretor Sr. Ohno, nas décadas de 50 e 60. O termo japonização engloba esses sistemas organizacionais e técnicas variadas, denominando um processo de criação de um novo paradigma organizacional.

Uma outra denominação para esse novo paradigma industrial é pós-fordismo, que implica maior universalidade do modelo, ao mesmo tempo que endereça a base histórica das tendências recentes de progresso tecnológico e expansão econômica. Contrastando com o fordismo clássico, as tendências industriais recentes baseiam-se em menores volumes de produção, grande diversidade de produtos, equipamento flexível e maior uso de trabalho qualificado.

Esse processo de transformação de modelos no Brasil é analisado neste artigo a partir da avaliação das perspectivas econômicas e sociais recentes. Seguem-se considerações sobre as heranças do fordismo atual. Atenção especial é dada ao desenvolvimento do fordismo na década de 80. A seção final do artigo explora duas alternativas de desenvolvimento para o Brasil na década de 90: fordismo nostálgico ou pós-fordismo.

2. PERSPECTIVAS BRASILEIRAS RECENTES

A modernização gerencial da produção e do trabalho no Brasil foi impulsionada pelas multinacionais no início da década de 80, não muito depois do que em alguns dos países de economia mais avançada. Mas a difusão e profundidade das mudanças têm sido mais estreitas e superficiais do que nos últimos.

Por um lado, os empresários têm relutado em investir em inovações ou têm direcionado investimentos da produção para os mercados financeiros. Por outro lado, não tem havido bases claras, quer na produção industrial, quer na política nacional, sobre as quais os trabalhadores possam avaliar as vantagens ou desvantagens da modernização dos sistemas de produção.

A posição dos trabalhadores advém menos da ignorância do que de outras pressões, atraindo a atenção das organizações de base e dos sindicatos. A inflação crescente e as ameaças contínuas de desemprego resultantes da crescente crise econômica têm impedido reflexões mais abrangentes dentro do movimento sindical a respeito dos caminhos a seguir. Contudo, não existem obstáculos óbvios a mudanças nos sistemas de produção e de organização do trabalho. A propósito, em 1991, ao debater as propostas sobre uma política industrial nacional, o presidente de um dos sindicatos de ponta (Metalúrgicos de São Bernardo) questionava: “ ... quem poderia acreditar que, diante do elevado nível de ociosidade industrial e das perspectivas da economia, as empresas se arriscariam a comprar volumes significativos de equipamentos modernos, aqui ou no exterior?” (Silva, ago. 1991SILVA, Vicente Paulo da. “Política industrial: os trabalhadores têm propostas”. Agosto de 1991 (mimeo). ). Além do mais, como foi demonstrado pelos estudos comparativos internacionais de processos de produção e relações de trabalho, as condições de emprego e de trabalho no Brasil têm sido historicamente flexíveis, de maneira a não impedir os empresários de adotar novos métodos de produção e de organização do trabalho, e sem necessidade de negociação para tal (Silva, 1991SILVA, Elizabeth Bortolaia. “Refazendo a fábrica fordista. Contrastes da indústria automobilística no Brasil e na Grã-Bretanha”. São Paulo: HUCITEC-FAPESP, 1991. pp. 343-8).

Esse quadro das condições atuais do setor industrial moderno no Brasil restringe o escopo para a adoção extensiva de práticas “japonesas”, ou de estratégias de “produção enxuta”.1 1 O termo “produção enxuta” deriva do conceito, em língua inglesa, de lean production, criado para identificar a eliminação de excessos na produção (matéria-prima, espaço, insumos, número de trabalhadores, horas de trabalho etc.) intrínseca ao modelo japonês (Womack, Jones e Ross, 1990).

Várias pesquisas feitas no Brasil recentemente identificam práticas inovadoras em empresas brasileiras, sobretudo nos campos da tecnologia, da organização e processos do trabalho e da produção. (Peliano et ai., 1987; Carvalho, 1987CARVALHO, Ruy de Quadros. Tecnologia e Trabalho Industrial. As Implicações Sociais da Automação Microeletrônica na Indústria Automobilística. Porto Alegre, L&PM Editores, 1987. e 1992CARVALHO, Ruy de Quadros. “Projeto de Primeiro Mundo com conhecimento e trabalho do Terceiro?”. Texto para Discussão nº-12, Departamento de Política Científica e Tecnológica, IG/Unicamp, 1992. ; Silva, 1988 e 1991SILVA, Vicente Paulo da. “Política industrial: os trabalhadores têm propostas”. Agosto de 1991 (mimeo). ; Leite, 1988LEITE, Márcia. “O trabalhador e a máquina na indústria metal-mecânica”. São Paulo, Instituto Labor, 1988. ; Gitahy, Rabello e Costa, 1991GITAHY, Leda, RABELO, Flávio e COSTA, Maria Conceição da. “Inovação tecno­lógica, relações industriais e subcontratação”. Texto para Discussão n.10, Departamento de Política Científica e Tecnológica, IG/Unicamp, 1991.; Fleury e Humphrey, 1992FLEURY, Afonso e HUMPHREY, John. “Human resources and the diffusion and adaptation of new quality methods in Brazilian manufacturing”. Brighton, IDS, 1992 (mimeo). ). As novas práticas identificadas apontam no sentido da competitividade das empresas ou, no limite, da sobrevivência da economia nacional. As estratégias das empresas diferem segundo sua ligação com o mercado internacional e conforme as pressões da competição no mercado interno. As investigações empíricas identificam intervenções pontuais, como a adaptação de sistemas específicos de inovação tecnoló­gica, gerenciamento do trabalho, envolvimento dos trabalhadores, organização de estoques, controle de inventário de produção e controle de qualidade.

Em que medida as transformações recentes nas empresas de ponta da economia brasileira estão sendo modeladas pelo que se convencionou categorizar como modelo japonês? (Hirata, 1992HIRATA, Helena (ed.) Autour du Modéle Japonais: Automatisation, Nouvelles Formes Dorganization et de Relations de Travail. Paris, Editions L’Harmattan, 1992. ) Como as transformações recentes nas empresas brasileiras de ponta podem vir a constituir um modelo nacional de produção e gerenciamento do trabalho? Como a relação entre Estado e mercado e a intervenção do Estado nas relações entre empregadores e empregados, típicas do contexto brasileiro, podem favorecer ou dificultar o desenvolvimento de características de sucesso econômico, nas linhas do caso japonês, ou nas linhas das economias ocidentais avançadas no momento presente?

3. AS HERANÇAS DO FORDISMO

Visto numa perspectiva histórica, o desenvolvimento do fordismo no Brasil apresentou estilos diferentes, em correspondência ao regime político e às políticas econômicas dominantes em diferentes períodos.

As configurações históricas do fordismo variam largamente, e o Brasil tem tido suas variantes particulares. O Estado e o regime político, seja populista, autoritário ou democrático, sempre foram condições especiais para o desenvolvimento do fordismo no Brasil.

Algumas das características definidoras do modelo fordista, particularmente a produção de massa e os mercados de massa, têm sido restritas no Brasil e têm se desenvolvido apenas em regiões particulares (principalmente no Sul e Sudeste) e nos setores industriais modernos. Todavia, os estilos de gerenciamento das regiões e indústrias mais avançadas têm tido um grande impacto sobre o padrão geral de desenvolvimento brasileiro.

A fase inicial de desenvolvimento industrial e gerencial ocorreu sob regimes populistas, levando a formas paternalistas de relações entre o capital, o trabalho e o Estado. Seguiu-se a ditadura e, dado o estilo anterior de gerenciamento da produção, alternativas históricas muito diferentes existiam. Mas por mais de vinte anos os militares estabeleceram as condições de desenvolvimento econômico. Embora estas tenham sido estabelecidas sob algumas das condições institucionais existentes previamente, o caráter autoritário das relações nos diferentes níveis - o local de trabalho, os sindicatos, a Justiça do Trabalho e o Estado - expandiu-se enormemente, alimentando um ao outro. Esse é o período fortemente identificado com o fordismo clássico.

Na década de 80 o padrão se modificou ao longo da democratização do regime político. Essa modernização ocorreu paralelamente a mudanças nas economias avançadas, envolvendo a adoção de sistemas flexíveis de produção. A instabilidade de políticas econômicas, todavia, tem impedido a continuidade dos investimentos, inovações e difusão das tecnologias e técnicas organizacionais.

Até a década de 80 o Brasil teve taxas de crescimento econômico impressionantes. Desde então tal tendência diminuiu consideravelmente, acompanhada de taxas de investimento declinantes advindas da crise da dívida e da alta inflação. Todavia, entre 1980 e 1985 o crescimento das exportações foi enorme. Produtos exportados abrangiam aço, papel e papelão, soja processada e equipamentos de transporte.

No início da década de 80, parecia que a rápida difusão de nova tecnologia, particularmente das máquinas-ferramenta de controle numérico, iria indubitavelmente aumentar a competitividade da indústria brasileira, e o processo de democratização seria um componente importante para o salto qualitativo no desenvolvimento econômico (Tauile, 1984TAUILE, José Ricardo. “Microelectronics, automation and economic development. The case of numerically controlled machine tools in Brazil”. Ph.D. Thesis, New School for Social Research, 1984. ). Existiam, todavia, grandes preocupações relativas aos efeitos da nova tecnologia e das novas técnicas de gerenciamento, tais como Círculos de Controle de Qualidade, sobre o mercado de trabalho e sobre o controle gerencial do processo de trabalho (SEI, 1984SEI-Impactos Sócio-Econômicos da Automação. Extrato dos Relatórios Finais das Comissões Especiais. Brasília, Secretaria Especial de Informática, 1984.; Hirata, 1983HIRATA, Helena. “Receitas japonesas: realidade brasileira”. Novos Estudos Cebrap 2(2), 1983. ; Salerno, 1985SALERNO, Mário. “Produção e participação: CCQ e Kanban numa nova imigração japonesa”. Fleury e Fisher (eds.). Processo e Relações de Trabalho no Brasil. São Paulo, Atlas, 1985. ).

Grandes mudanças no mercado de trabalho e no gerenciamento do trabalho ocorreram no Brasil na década de 80. Elas derivaram principalmente das mudanças no regime político. Estas, especificamente, envolveram mudanças na demanda de mercado, nas estruturas de emprego, nas relações no local de trabalho e nas relações institucionais entre os trabalhadores, os empresários e o Estado.

Na década de 70, o mercado para bens de consumo duráveis expandira-se graças a políticas governamentais favorecendo a renda das classes médias. A velocidade da concentração de renda fora mais alta, durante os anos do milagre econômico, do que a do aumento dos custos de empréstimos de capital internacional, resultando na expansão do mercado doméstico condicionada pela concentração da renda (Oliveira, 1977OLIVEIRA, Francisco de. A Economia da Dependência Imperfeita, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977. , pp. 114-39). Devido aos custos crescentes dos empréstimos internacionais e às limitações políticas das políticas de disparidade de renda, o mercado doméstico brasileiro foi se encolhendo.

Nos anos da década de 80 os mercados de exportação tornaram-se mais atraentes, o que deu um grande empurrão para a modernização tecnológica e organizacional. Isso criou um padrão duplo de renovação tecnológica no setor industrial moderno, em que os processos de produção ligados às exportações foram atualizados em maior velocidade e amplitude. Assim, investimentos em produtividade e qualidade foram relacionados basicamente à orientação para o mercado exterior.

Com relação à estrutura de empregos, a década de 80 parece ter apresentado uma tendência em direção à maior demanda por trabalhadores mais qualificados naquelas empresas que adotaram novos métodos de produção. Essa tendência no Brasil não se defrontou com escassez desse tipo de trabalhadores em nenhuma proporção maior do que em países de economias mais avançadas, nem mostrou direções peculiares.

Entre 1980 e 1986, uma pesquisa em 61 empresas (autopeças, máquinas-ferramenta e equipamentos aeronáuticos) conduzida por A. Fleury (1988FLEURY, Afonso. “Automação na indústria metal-mecânica: tendências da organização do trabalho e da produção”. Rosa Maria Fisher et. al. Anais do Seminário “Padrões tecnológicos e políticas de gestão: processos de trabalho na indústria brasileira”. São Paulo, CODAC/USP, 1988. ) mostrou um aumento no número de trabalhadores horistas e de técnicos (inclusive trabalhadores de manutenção). Políticas de admissão enfatizavam “conhecimento tácito”, e os trabalhadores cujas tarefas eram relacionadas aos processos automatizados recebiam salários mais altos do que aqueles que trabalhavam com máquinas tradicionais. Existia uma associação dessas políticas com tentativas de estabilizar a força de trabalho de maneira a incrementar a experiência do contingente de pessoal no manejo da nova tecnologia. Em linhas similares, E. Leite (1988LEITE, Elenice Monteiro. “Inovação tecnológica, emprego e qualificação na indústria mecânica”. Rosa Maria Fisher et al. Anais do Seminário “Padrões tecnológicos e políticas de gestão: processos de trabalho na indústria brasileira ”. São Paulo, CODAC/USP , 1988. ) verificou uma grande expansão do emprego de trabalhadores qualificados entre 1985 e 1988 nas indústrias mecânicas de São Paulo, em sua pesquisa sobre os impactos da microeletrônica sobre o nível de emprego e qualificações. O nível educacional dos novos recrutados era mais alto (primário completo para operadores e secundário para os programadores e trabalhadores de manutenção). Além disso, o requerimento mais importante para empregos de maior responsabilidade era uma média de tempo de serviço de 7 anos de firma.

Portanto, outro fator relacionado tanto ao mercado de trabalho quanto ao controle do local de trabalho que mudou foi a rotatividade, a partir do aumento da demanda por longevidade de serviço. As taxas de rotatividade de mão-de-obra eram mais altas na década de 70. Apesar de não terem sido alcançados direitos à estabilidade do emprego na década de 80, o caráter das políticas de rotatividade mudou em direção à estabilização da força de trabalho. Nesse aspecto, contudo, os privilégios dos trabalhadores mais qualificados parecem ter permanecido.

Nas relações no local de trabalho, o poder dos supervisores imediatos foi diminuído. Algumas restrições ao poder gerencial foram alcançadas via demandas em negociações coletivas, ou via políticas internas das empresas que implementaram novas relações de trabalho. Outras restrições derivaram da nova configuração do processo de produção em que o controle da qualidade ou do nível de inventário é dado diretamente ao trabalhador. A organização dos trabalhadores no local de trabalho difundiu-se com o maior reconhecimento das Comissões de Fábrica pelas gerências. Alguns programas desenvolvidos para alcançar maior envolvimento dos trabalhadores nas atividades de produção tiveram considerável sucesso, conforme demonstrado por dados comparando qualidade de produto internacionalmente (Silva, 1991SILVA, Elizabeth Bortolaia. “Refazendo a fábrica fordista. Contrastes da indústria automobilística no Brasil e na Grã-Bretanha”. São Paulo: HUCITEC-FAPESP, 1991. ). Uma força de trabalho mais motivada estava sendo criada no setor moderno industrial conjuntamente com o processo de democratização dos regimes políticos nacional, sindical e fabril.

A maior mudança na relação entre trabalhadores, empresários e o Estado na década de 80 ocorreu no campo da negociação coletiva. Salários, condições de trabalho e outras questões foram extensamente discutidas entre trabalhadores e empregadores, face a face. O estabelecimento dos rituais de negociação e de procedimentos claros mudou grandemente a cena da década de 80 em comparação àquela prevalecente na década de 70.

O início da década de 80, em especial, ilustra a importância crescente de aspectos políticos relacionados à representação em nível de fábrica, e do papel do Estado na regulação das relações entre o capital e o trabalho. Depois de um período de violência e repressão crescentes da parte tanto de empregadores quanto do Estado (o governo civil foi instituído apenas em março de 1985), o sistema de relações industriais começou a mudar. A indústria automobilística liderou o caminho para o reconhecimento da representação de fábrica, e os sindicatos começaram a se envolver na organização em nível fabril. (A Comissão de Fábrica da Ford, por exemplo, foi estabelecida desde seu início como agência sindical porque a gerência não acreditou que se pudesse efetivamente excluir o sindicato. A Volkswagen havia tentado tal exclusão e falhou.)

No entanto, apesar dos objetivos do projeto democrático, a “Nova República” apresentava considerável continuidade com o regime precedente. Não houve rupturas decisivas com a estrutura institucional de gerenciamento do trabalho. O autoritarismo não fora incompatível com a lucratividade na década de 70. A produtividade em vários setores industriais, na indústria automobilística, por exemplo, foi ascendente até meados da década de 80 e era acompanhada por crescente organização dos trabalhadores, inovação tecnológica e novas técnicas organizacionais. Seria realmente necessária a participação dos trabalhadores para que a produtividade aumentasse? Haveria algum estímulo para ganhos econômicos na estratégia de democratização? Uma afirmação clara foi dada em 1985 pelo então presidente da Ford no Brasil, Sr. R.M. Gerrity. Ele declarou numa coletiva de imprensa que “ ... sem os metalúrgicos organizados como estão hoje, teria sido muito difícil para a Ford alcançar os níveis de produtividade e de qualidade que lhe permitiu vender carros na Europa ... “ (Gazeta Mercantil, 17 /05/85GAZETA MERCANTIL, 17/05/1985. ). Todavia, a visão gerencial não apresentava consenso. A mais importante organização dos empregadores, a FIESP, rachou nas questões da estabilidade de emprego e representação dos trabalhadores (Silva, 1991SILVA, Elizabeth Bortolaia. “Refazendo a fábrica fordista. Contrastes da indústria automobilística no Brasil e na Grã-Bretanha”. São Paulo: HUCITEC-FAPESP, 1991. , Cap.8).

O debate acadêmico tampouco apresenta consenso na análise dessa década. Alguns veem-na como um período de fortalecimento do fordismo (por exemplo, Carvalho e Schmitz, 1990CARVALHO, Ruy de Quadros e SCHMITZ Juberi. “O Fordismo está vivo no Brasil”. Novos Estudos Cebrap nº-27, pp. 148-56, julho 1990. ), aqui entendido como o estilo brasileiro de fordismo autoritário. Noutro artigo eu comento tal controvérsia (Silva, 1992bSILVA, Elizabeth Bortolaia. “L’usine fordiste, un renouvellement? Tecnologie et relations industrielles au Brésil à la findes annés 1980”. Hirata, op. cit., pp. 209-30, 1992b. ). Existem evidências suficientes na literatura apontando para um estilo de gerenciamento democratizante na década de 80, particularmente na indústria automobilística. No entanto, esse foi um período de transição e o processo não foi homogêneo.

As transformações pelas quais passou a indústria brasileira na década de 80 parecem ao mesmo tempo relativamente extensas e limitadas. A conclusão geral das pesquisas e estudos de caso sobre o desempenho da indústria brasileira é que existe uma defasagem substancial em relação ao padrão mundial de fabricação (Braga, 1987BRAGA, H. “Tecnologia e produtividade na indústria brasileira: uma análise explo­ratória”. Rio de Janeiro, FTI, 1987 (mimeo). ; Fundação Vanzolini, 1986FUNDAÇÃO VANZOLLINI. “Qualidade industrial: análise e proposições”. São Paulo, Fundação Vanzolini, 1986 (mimeo). ). Uma pesquisa feita em 1990 abrangendo 220 firmas (Sequeira, 1990SEQUEIRA, J.H. “Manufatura de classe mundial no Brasil. Um estudo da força competitiva”. Report São Paulo, Ernest and Young, 1990. ) concluiu que os produtos tinham baixos níveis de qualidade, com um número muito grande de peças defeituosas sendo produzidas, consumidores insatisfeitos com suas compras, baixo nível de circulação de estoques, muito tempo despendido na mudança de fabricação de um produto para o outro. A pesquisa demonstrou que menos de 10% das empresas brasileiras alcançavam padrões internacionais em mais de um dos indicadores de eficiência.

Dessa herança duas alternativas emergem na década de 90. Ou o estilo mais progressista de gerenciamento que emergiu na década de 80 é fortalecido e prevalece pelo País afora, ou esse potencial de competitividade é perdido com estilos gerenciais obsoletos que eclipsam transformações positivas.

4. ALTERNATIVAS NA DÉCADA DE 90

O rótulo de década perdida para os anos 80 deriva da queda dos indicadores econômicos nacionais, excetuando-se a inflação e a dívida externa, que aumentaram enormemente, e dos indicadores sociais, que também tiveram alta. Os maiores perdedores, ou os que em geral sofreram maiores privações, foram os trabalhadores.

Até mesmo os setores mais fortes apresentaram tendências declinantes no salário e na produção. Os salários na indústria automobilística decresceram enormemente entre 1985 e 1992. Em setembro de 1992 o total de salários montava a apenas 58% do total em abril de 1985 (Documento DIEESE, out.1992DIEESE. “Salários e distribuição de renda no Brasil: é preciso mudar esta degradante realidade”. Sub-seção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, outubro 1992.). Isso, todavia não significou imediata queda de lucros. A estrutura de preços dos carros brasileiros foi modificada devido a reduções no custo de matéria-prima e do fator trabalho. A maioria dessas modificações resultou de ajustamentos nas taxas de inflação. Para alguns afortunados, tais mudanças reverteram em ganhos. Por exemplo, entre março de 1986 e outubro de 1992 os lucros dos fabricantes mais que dobraram por carro vendido no mercado doméstico, indo de 10,5% do preço total para 29,7%! (idem).

A falta de estabilidade da política econômica no Brasil tem se tornado o maior obstáculo para investimento, inovação e difusão de tecnologias e técnicas organizacionais. A escassez responde por algumas das razões para tal, enquanto ganhos respondem por outras. Recursos que poderiam ser direcionados para atividades produtivas têm tido maior rentabilidade quando aplicados no mercado de capitais. É senso comum entre a classe média brasileira, incluindo-se pequenos empresários, que o investimento exigido para trabalhar é maior do que para permanecer inativo, uma vez que os rendimentos do dinheiro deixado no banco aumentam mais rapidamente do que quando se sujam as mãos ou se cansa no trabalho. Sempre que as empresas mais importantes adotaram tal prática, mostraram ter bastante habilidade para se proteger das perdas advindas da crise econômica e da inflação alta. A maioria entrou na década de 90 financeiramente forte, com potencial de crescimento, apesar de as taxas de crescimento nacional terem decaído.

Quais são, então, as perspectivas em termos de práticas gerenciais e de organização do trabalho que poderiam emergir desse legado no Brasil? Como estão elas alinhadas com as tendências que prevalecem internacionalmente?

A renovação internacional dos estilos de gerenciamento no final da década de 80 apresentava como princípios básicos o reconhecimento das habilidades e do envolvimento dos trabalhadores, a descentralização da gerência, e contratos de longo prazo com os fornecedores (Boyer, 1991BOYER, Robert. “New directions in management practices and work organization. General principies and national trajectories”. CEPREMAP, CNRS, EHESS, nº- 9130, Paris, agosto 1991. :i). Também houve convergência quanto ao reconhecimento da necessidade de reorganizar a continuidade dos fluxos produtivos, de renegociar um novo plano de relações industriais, e de obter envolvimento, compromisso e produtividade dos empregados. Essas têm sido vistas como as áreas de maior investimento, consideradas de maior importância do que a área de equipamento em forma de microeletrônica. Tais mudanças identificam um movimento para além do fordismo, criando um modelo pós-fordista. Esse novo estilo de gerenciamento, como o antigo fordismo, varia de país para país.

Todavia, a adoção de novos estilos de gerenciamento pode provar-se muito difícil, e a economia nacional pode continuar a ser afligida por uma certa nostalgia que percebe o novo como inatingível ou não desejado, reafirmando a maneira tradicional de fazer as coisas como sendo a melhor. No debate acadêmico esse é, por exemplo, o caso de análises que falham em reconhecer os benefícios da nova tecnologia e da reorganização do processo de trabalho e dos sistemas de participação de empregados, apontando em direção à persistente e inexorável degradação da vida dos trabalhadores.2 2 Nessa linha de argumento, o trabalho de Braverman (1974) teve grande influência. Um exemplo dessa linha de reflexão com relação ao caso brasileiro é o artigo de Carvalho e Schmitz (1990). No dia-a-dia das empresas, as práticas de gerenciamento e de organização do trabalho tradicionais significam baixos índices de produtividade, não aumento de qualificações, ausência de envolvimento/compromisso, altos custos de produção e perdas gerais em competitividade.

Estas duas categorias de estilo de gerenciamento - pós-fordismo e fordismo nostálgico - propiciam uma estrutura analítica bastante adequada para avaliar os caminhos à frente para mudanças na trajetória brasileira.3 3 A minha avaliação das condições para o desenvolvimento desses dois estilos de gerenciamento no Brasil é parcialmente construída a partir dos cenários para a década de 90 analisados por Ferraz, Rush e Miles (1992, Cap. 9), com base em extensa pesquisa sobre as inovações modernizantes no Brasil.

5. FORDISMO NOSTÁLGICO

Fordismo nostálgico pode ser o futuro caminho se o Brasil permanecer marcado pela heterogeneidade estrutural: grande dispersão da distribuição de renda, disparidades regionais fortes, altos diferenciais de produtividade entre os setores econômicos e dentro deles. A permanência desse quadro se casa com a ausência de mudanças drásticas na estrutura institucional, nas tendências econômicas e nas práticas empresariais.

Se o comportamento predatório, incluindo o uso predatório do trabalho, permanecer e se difundir com a prevalência de relações de conflito, com a persistência da instabilidade econômica e com a deterioração contínua dos padrões econômicos e sociais, a base industrial será destruída e as capacidades de produção perecerão. Então, as empresas terão que equilibrar a produção para a exportação com aquela para o mercado doméstico. Mas o crescimento orientado para o mercado de exportação é limitado, porque depende de ocorrências em nível internacional. (No caso da produção automobilística, devido à subordinação com relação aos planos mundiais das matrizes, tal limitação apareceu, por exemplo, no caso da Ford quando da suspensão da exportação dos Escorts para o mercado escandinavo - Silva, 1992SILVA, Elizabeth Bortolaia. “Crises e mudanças na indústria automobilística sul­americana. A Autolatina em foco”. Cadernos JG - Unicamp 2(2), 1992 (a). ; a Mercedes-Benz adotou uma estratégia parecida de exportar peças e componentes de sua fábrica em Campinas para a Alemanha, mas mudou recentemente sua base produtora e exportadora para a Turquia, procurando acesso mais favorável ao Mercado Comum Europeu - Conceição, n.d.CONCEIÇÃO, Jefferson José. “O setor automobilístico no Mercosul: as propostas sindicais”, Confederação Nacional dos Metalúrgicos, Central Única dos Trabalhadores, São Paulo, n.d.)

O fordismo nostálgico pode apresentar modernização, mas esta é seletiva, acontecendo em isolamento. À medida que a demanda do mercado doméstico deteriora, as empresas com acesso aos mercados de exportação tendem a abandonar o mercado local para sobreviver.

Existem vários exemplos desse estilo de gerenciamento fordista nostálgico no Brasil, assim como forças poderosas a compelir sua dominância. Um exemplo é a cultura gerencial geral, tradicionalmente autoritária e conservadora. Ela está embasada na sobrevivência da estrutura institucional do regime autoritário e na não-observância sistemática das normas legais. Existe uma economia informal extensa e crescente, com práticas de emprego irregulares e ilegais, em combinação com uma legislação bastante complexa do mercado de trabalho e das relações entre capital e trabalho.

Outra força que aponta para o fordismo nostálgico é a persistência da recessão econômica, que tem forçado empresas a regredir em progressos empreendidos. Por exemplo, Ruas (1993RUAS, Roberto. “Notes on the implementation of quality and productivity programmes in sectors of Brazilian industry”. IDS Bulletin 24(2), abril 1993. , p. 29) descreve o caso de uma empresa em que o compromisso com a estabilidade do emprego estabelecido em 1987 foi abandonado em 1990, com uma redução de 30% da força de trabalho, devido à queda na demanda. M.T. Fleury também descreve alguns casos de estratégia semelhante (1993FLEURY, Maria Tereza Leme. “The culture of quality and the management of human resources”. IDS Bulletin 24(2), abril 1993. , p. 37). Um exemplo é uma empresa de autopeças que, estando impossibilitada de atender às demandas das montadoras por aumento de qualidade e preço mais baixo, abandonou seu programa de Círculo de Controle de Qualidade, reduziu e simplificou seu programa de Controle Estatístico do Processo, eliminou a maioria do seu sistema Kanbam e suspendeu sua produção de equipamento microeletrônico.

Considerando-se não só as empresas líderes, tomando-se o setor da indústria de transformação no Brasil em seu conjunto, identifica-se uma enorme extensão da prevalência de baixo nível tecnológico e dos princípios tayloristas de produção, combinados com o estilo de gerenciamento do fordismo autoritário (grande segmentação das ocupações, baixos níveis de qualificação, baixa escolaridade, alta taxa de rotatividade do trabalho, baixos salários, intensificação do trabalho) (Carvalho, 1992CARVALHO, Ruy de Quadros. “Projeto de Primeiro Mundo com conhecimento e trabalho do Terceiro?”. Texto para Discussão nº-12, Departamento de Política Científica e Tecnológica, IG/Unicamp, 1992. , pp. 22-39). Isso indica que o fordismo nostálgico é extensivo na década de 90. Mas ele aparece combinado com o pós-fordismo, e a avaliação da dominância de um sobre o outro no tocante ao futuro do Brasil é uma empreitada difícil.

6. PÓS-FORDISMO

Esse estilo de gerenciamento tornar-se-á dominante se uma política econômica que almeje alterar profundamente os objetivos, direções e progressão do desenvolvimento industrial for estabelecida. Isso poderia ser alcançado através do desenvolvimento planejado de uma sociedade de mercado de massa (Castro, 1990CASTRO, Antonio Barros de, “O Brasil a caminho do mercado de consumo de massas”. J.P. dos Reis Velloso (ed.). Fórum Nacional: As Perspectivas do Brasil e o Novo Governo. São Paulo, Nobel, 1990. ). Uma política de distribuição da renda seria central para tal estratégia de desenvolvimento. Isso aumentaria a atração de produtores estrangeiros pelo Brasil. A abundância de matéria-prima e de trabalho, que fizeram sucesso no passado, e que ainda são recursos valiosos, seria complementada por novas técnicas organizacionais e novas tecnologias.

Uma significativa base política de apoio a tal estratégia existe no País. Por exemplo, os trabalhadores na Câmara Setorial da Indústria Automobilística, uma organização tripartite estabelecida em 1991, delinearam uma estratégia para a competitividade internacional do Brasil baseada em três aspectos: 1. distribuição da renda por um processo negociado com os partidos políticos e os sindicatos; 2. treinamento e retreinamento dos trabalhadores, combinados com redução do desemprego; e 3. aumento em produtividade industrial e em eficiência. A proposta enfatiza a expansão do mercado doméstico como condição básica para sustentar economias de escala e maior igualdade econômica e social (Documento SindicalDocumento Sindical - Reestruturação do Complexo Automobilístico Brasileiro. As propostas de trabalho na Câmara Setorial, Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, março 1992. , mar. 1992, pp. 21 e 24). Isso parece uma boa indicação de apoio favorável a um estilo de gerenciamento pós-fordista. Outros esforços em direção ao aumento da capacidade de compra dos trabalhadores foram empreendidos pelo governo em 1992 e em 1993 via Ministério do Trabalho, que aumentou significativamente o salário-mínimo como parte de um programa para maiores aumentos futuros (se voláteis altos postos governamentais permitirem que tais propósitos se concretizem).

No setor industrial moderno, mudanças duradouras em práticas de emprego e trabalho têm sido reconhecidas em vários estudos recentes. Fleury e Humphrey (1992FLEURY, Afonso e HUMPHREY, John. “Human resources and the diffusion and adaptation of new quality methods in Brazilian manufacturing”. Brighton, IDS, 1992 (mimeo). ) avaliaram que as empresas brasileiras estão bastante avançadas na introdução de programas de qualidade e produtividade. Gitahy, Rabello e Costa (1991GITAHY, Leda, RABELO, Flávio e COSTA, Maria Conceição da. “Inovação tecno­lógica, relações industriais e subcontratação”. Texto para Discussão n.10, Departamento de Política Científica e Tecnológica, IG/Unicamp, 1991.), num estudo de empresas de subcontratação na região de Campinas, argumentam que os efeitos da crise econômica de 1980 no emprego foram mínimos. [Isso segue a mesma linha de evidências encontradas por Brusco (1982BRUSCO, S. “The Emilian Model: productive decentralisation and social integration”. Cambridge Journal of Economics nº- 6, 1982. ) em sua investigação da experiência de rede de subcontratação no Norte da Itália.] Essas empresas pequenas têm tido sucesso mesmo em condições econômicas adversas. Elas estabeleceram programas de treinamento para seus empregados, investiram em nova tecnologia, e planejavam acesso a mercados externos. Os autores identificaram uma transferência da cultura gerencial modernizante das montadoras para esses fornecedores, demonstrada pela redução de níveis hierárquicos e por discussões de mudanças no nível da fábrica, em vez das imposições da gerência aos trabalhadores. Políticas internas para a resolução direta de conflitos, sem recorrer a terceiros, como os sindicatos e a Justiça do Trabalho, também foram identificadas (pp. 20-32 e 33).

No nível da empresa as tendências em direção a estilos pós-fordistas de gerenciamento são ilustradas pela pesquisa de M.T. Fleury (1993FLEURY, Maria Tereza Leme. “The culture of quality and the management of human resources”. IDS Bulletin 24(2), abril 1993. , p. 39). Estudos de caso mostraram que as empresas reduziram a hierarquia gerencial eliminando funções de supervisão, investiram em educação e treinamento de trabalhadores diretos de produção, de técnicos e gerentes, e as taxas de rotatividade diminuíram grandemente.

Enquanto exemplos abundam, a novidade do processo não permite uma avaliação clara do seu potencial de sobrevivência e de difusão. Por exemplo, M.T. Fleury conclui a partir de seu estudo que as empresas confrontadas pelo desafio de competitividade em geral tiveram sucesso nas mudanças em várias áreas do processo de produção e de gerenciamento do trabalho, mas que os casos de consolidação de mudanças são escassos. As empresas que consolidaram as mudanças também demonstraram preocupação crescente em aprender e em inovar continuamente, por meio da abertura de oportunidades para participação de todos os seus empregados nas operações diárias e na sua estratégia de longo prazo.

As observações das pesquisas recentes parecem, portanto, indicar mais nostalgia, menos pós-fordismo, mas apontam inegavelmente uma combinação dos dois estilos em nível nacional, num contexto de indecisas direções de mudanças econômicas e políticas. Todavia, até esse momento ninguém pode dizer como esses estilos de gerenciamento evoluirão, porque isso muito depende do regime político e das políticas econômicas.

7. CONCLUSÕES

A modernização dos sistemas de gerenciamento da produção e do trabalho no Brasil tem sido notável em certas empresas industriais e de serviços. A expansão desse processo nacionalmente resultaria na transformação do modelo fordista, em linha com a renovação dos estilos de gerenciamento internacionais prevalecentes no final da década de 80.

O modelo pós-fordista (comas várias técnicas e sistemas de japonização incluídos) reconhece como áreas principais de investimento a reorganização dos fluxos produtivos e a renegociação de sistemas de relações industriais, visando obter envolvimento, compromisso e produtividade dos empregados. A amplitude de tais investimentos no Brasil passa pela alteração profunda do estilo de desenvolvimento nacional, centrado numa política de distribuição de rendas, para criar uma sociedade de massa.

A adoção dessa estratégia (de longo prazo) oferece enormes vantagens econômicas, sociais e políticas para o Brasil, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. As investigações empíricas indicam que a introdução de práticas inovadoras que reforçam a competitividade industrial, criadas a partir das instituições brasileiras, tem tido sucesso. Todavia, sem mudanças econômicas estruturais, várias inovações regridem ou permanecem insulares.

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  • 1
    O termo “produção enxuta” deriva do conceito, em língua inglesa, de lean production, criado para identificar a eliminação de excessos na produção (matéria-prima, espaço, insumos, número de trabalhadores, horas de trabalho etc.) intrínseca ao modelo japonês (Womack, Jones e Ross, 1990).
  • 2
    Nessa linha de argumento, o trabalho de Braverman (1974)BRAVERMAN, Harry. Labor and Monopoly Capital. The Degradation of Work in the Twentieth Century. Nova York, Monthly Review Press, 1974. teve grande influência. Um exemplo dessa linha de reflexão com relação ao caso brasileiro é o artigo de Carvalho e Schmitz (1990)CARVALHO, Ruy de Quadros e SCHMITZ Juberi. “O Fordismo está vivo no Brasil”. Novos Estudos Cebrap nº-27, pp. 148-56, julho 1990. .
  • 3
    A minha avaliação das condições para o desenvolvimento desses dois estilos de gerenciamento no Brasil é parcialmente construída a partir dos cenários para a década de 90 analisados por Ferraz, Rush e Miles (1992FERRAZ, João Carlos, Howard RUSH e Ian MILES. Development, Tecnology and Flexibility. Brazil faces the Industrial Divide. London, Routledge, 1992. , Cap. 9), com base em extensa pesquisa sobre as inovações modernizantes no Brasil.
  • 4
    JEL Classification: P12; J01.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1994
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