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Imposto inflacionário e transferências inflacionárias no Brasil* * O autor agradece a Paulo César Coimbra Lisboa e a Anaja Cysne M. Neves pelo apoio na geração de dados.

Inflationary tax and inflationary transfer in Brazil

Resumo

O artigo fornece dados históricos de impostos inflacionários e transferências inflacionárias para bancos comerciais no Brasil.

Palavras-chave:
Imposto inflacionário; sistema financeiro; inflação

Abstract

The paper provides historical data of inflationary tax and inflationary transfers to commercial banks in Brazil.

Keywords:
Inflationary tax; inflation; financial system

1. INTRODUÇÃO

Define-se em economia imposto inflacionário (II) como a sistemática perda de poder aquisitivo da moeda, penalizando a população e beneficiando o Banco Central, decorrente do fato da moeda render juros nominais nulos e, em consequência, estar sistematicamente desprotegida contra a inflação.

Ocorre que os depósitos à vista do público nos bancos comerciais também não rendem juros, o que torna as instituições financeiras autorizadas a emiti-los (bancos comerciais) sócias do Banco Central neste processo ilegal e camuflado de transferência de renda do setor não bancário (empresas não financeiras, pessoas físicas etc.) para o setor bancário (Banco Central e bancos comerciais) da economia. É ilegal por se tratar de um imposto arbitrário, sem que haja qualquer legislação que o tenha instituído. E camuflado porque, ao contrário do que ocorre com os outros impostos, não gera uma operação de arrecadação (por tratar-se de um ganho de capital). A autoria do processo, entretanto, cabe ao Banco Central, o único que tem o poder de aumentar continuamente a oferta de meios de pagamento, e não aos bancos comerciais.

Aos ganhos brutos dos bancos comerciais neste processo dá-se o nome de “transferências inflacionárias” (TI). Os ganhos líquidos são bem inferiores, visto que os preços diretos de serviços bancários no Brasil, ao já levarem em consideração os elevados juros reais negativos pagos pelos depósitos à vista menos os encaixes, são bastante reduzidos. Ao total representado pelo imposto inflacionário (que representa ganho do Banco Central) e pelas transferências inflacionárias (que representa ganho bruto dos bancos comerciais) dá-se o nome de “transferências” inflacionárias totais (TIT=II+TI). Este total mede a perda global da sociedade decorrente da superposição do fato de haver inflação, dos meios de pagamento não estarem protegidos contra esta inflação, e da população ser obrigada a transacionar com estes meios de pagamento (cédulas de cruzeiros reais e saldos de depósitos à vista).

As transferências inflacionárias totais representam os juros reais negativos (hoje em dia, com 30% de inflação mensal, da ordem de 96% ao ano) pagos pelos meios de pagamento (moeda corrente e depósitos à vista) ao setor não bancário da economia. Da mesma forma, o imposto inflacionário representa os juros reais negativos “pagos” pela base monetária e as transferências inflacionárias, os juros reais negativos “pagos” pela diferença entre os meios de pagamento e a base monetária (que é igual ao excesso dos depósitos à vista sobre os encaixes totais dos bancos comerciais).

É importante assinalar que as transferências arbitrárias de renda aqui aludidas independem totalmente do fato dos salários acompanharem ou não a inflação. Elas são perdas realmente sistemáticas, que só deixariam de existir se não houvesse meios de pagamento emitidos pelo sistema bancário brasileiro, se estes meios de pagamento fossem indexados, ou se não houvesse inflação. A primeira alternativa representa a abdicação de senhoriagem nacional em prol de alguma senhoriagem importada. Alguns países (o Panamá, por exemplo) já embarcaram nesta não muito recomendável experiência, misto de declaração explícita de incompetência e opção por um caro caminho de menor esforço (na medida em que a senhoriagem passa agora a ser apropriada por não residentes). A segunda alternativa representa o caminho mais rápido para a hiperinflação, visto que retira do Banco Central a capacidade de fechar as contas públicas através da captação de imposto inflacionário. Por último, a inexistência de inflação é descartada pela nossa experiência histórica, que aponta uma taxa média de elevação dos preços de 85,9% entre 1947 e 1992.

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

A metodologia que utilizamos aqui para o cálculo dos juros reais negativos respectivamente, sobre a base monetária, sobre diferença entre os meios de pagamento e a base monetária e, por último, sobre os meios de pagamento pode ser obtida em Simonsen e Cysne (1989SIMONSEN, M. e CYSNE, R.A. Macroeconomia. São Paulo: Livro Técnico, 1~ edição, 1989. Revista de Economia Política, vol. 14, n 3 (55); julho-setembro/1994) ou em Cysne (1990)CYSNE, Rubens P. “Contabilidade com juros reais, déficit público e imposto inflacionário”. Pesquisa e Planejamento Econômico, 20 (1), abril de 1990..

Se B(t) e P(t) representam, respectivamente, a base monetária e o nível geral de preços em função do tempo, o imposto inflacionário entre os instantes de referência 0 e 1, em moeda de poder aquisitivo do instante j, é dado por

II = P j · 0 1 B t P t 2 · d P t d t dt (1)

Para o cálculo das transferências inflacionárias para os bancos comerciais (TI) substitui-se B por M-B, sendo M os meios de pagamento. No caso das transferências inflacionárias totais (TIT) troca-se, na fórmula acima, B por M. Tem-se assim que TIT=TI+II.

Como exemplo, se a base monetária permanece em termos reais, obtém-se:

II j = P j B j P j 0 1 1 P t dP dt · dt = Bj · ln I + π (2)

sendo π=(P1-P0)/P0 a taxa periódica de inflação.

A fórmula (2) costuma ser utilizada para um cálculo aproximado do imposto ou transferência inflacionária. Tomemos, a título de ilustração, o saldo médio de 93,65 trilhões de cruzeiros (antigos) existentes em março de 1993, quando a inflação foi de 27,81%. Sob as hipóteses efetuadas na dedução de (2), o imposto inflacionário obtido pelo Banco Central teria sido, em moeda de março de 1993, da ordem de 22,98 trilhões de cruzeiros. Ao câmbio da época, isso equivale a algo em tomo de 1,02 bilhões de dólares. Com um multiplicador bancário de 1,73, isto implica em transferências inflacionárias da ordem de 0,74 bilhões de dólares e em transferências inflacionárias totais em torno de 1,76 bilhões de dólares. Em termos anualizados, ter-se-ia transferências totais da ordem de grandeza de 21 bilhões de dólares.

Afora as hipóteses simplificadoras arbitrárias sobre a evolução no tempo da base monetária e do nível de preços, a fórmula (1) deve ser aproximada por somatórios e cálculos computacionais. Se i representa a taxa nominal e r a taxa real de juros, tem-se, por definição, que:

1 + r = 1 + i / 1 + π

Como a moeda paga juros nominais nulos, a taxa de juros real paga pela moeda é dada por tt/(1+n)=(P,+1-P,)/P,+1 O montante de juros reais incidentes sobre o estoque monetário B em moeda do instante j é dado multiplicando-se Pj(B/P) pelos juros reais, obtendo-se PjBtPt-BtPt+1.

O quadro abaixo apresenta a evolução de II, TI e TIT entre 1947 e 1992. Os dados são apresentados com percentagem do PIB em dólares constantes de 1987.

Sobre os dados da tabela a seguir devem-se observar os seguintes pontos:

  1. entre 1947 e 1979 utilizou-se para efeito de cálculo a base monetária em final do período, calculada pelo conceito antigo, que incluía os depósitos à vista do público no Banco do Brasil. De 1980 a 1992, utilizou-se o novo conceito de base monetária, em que o Banco do Brasil é tratado como um banco comercial como outro qualquer. Embora esta modificação só tenha ocorrido no primeiro trimestre de 1986, o Banco Central retroagiu a série de base monetária sob esta nova metodologia até o início de 1980. Em adição, os valores utilizados entre 1980 e 1992 refletem a média mensal dos saldos diários, e não mais (como entre 1947 e 1979) a posição dos agregados monetários ao final do mês.

  2. os valores em dólares são apresentados em dólares constantes de 1987.

  3. utilizou-se aqui a fórmula mensal B1(P1+1-PyP1+1 para o imposto inflacionário relativo ao mês t. Observe-se que o índice de preços utilizado (IGP-Dl) é centrado no dia 5 de cada mês. No caso dos dados como porcentagem do PIB, somam-se os valores acima para doze meses e divide-se pelo PIB a preços correntes. Para os dados em dólares de 1987, utilizou-se, mês a mês, a taxa média de câmbio Cr$/US$. Após o somatório, procedeu-se à passagem a dólares de 1987.

Imposto inflacionário
(II), transferências inflacionárias para os bancos comerciais (TI) e transferências totais (TIT = II + TI)

Com relação à tabela acima, cabe ressaltar os seguintes pontos:

  1. devido à modificação do conceito de base ocorrido no período, a variável mais adequada a uma análise histórica é o total das transferências inflacionárias - TIT. Neste sentido, é muito informativo observar que, a despeito das muito mais elevadas taxas de inflação ocorridas na década de 80 e ao início da década de 90, o maior valor de TIT/PIB ocorreu em 1963 e 1964, quando, respectivamente, 9,03% e 7,84% do PIB foram transferidos do setor não bancário para o setor bancário da economia, devido ao “pagamento” de juros reais sobre os meios de pagamento. Evidentemente, esta observação de um maior valor do TIT/PIB com uma inflação relativamente baixa (91,9% e 81,3% em 1964 e 1963 contra 1782,9% e 1476,6% em 1989 e 1990, respectivamente) se deve ao fato de que, àquela época (1963-64), o estoque monetário tomado em relação ao PIB era muito mais elevado. Primeiro, porque a inflação esperada era muito mais baixa. Segundo, porque várias inovações financeiras existentes hoje em dia que permitem ao público trocar M1 por outros ativos que rendem juros (e vice-versa) com um custo relativamente reduzido, não existiam àquela época.

  2. nos anos mais recentes, desde 1980, o maior valor do TIT/PIB ocorreu em 1989 (6,70% do PIB). Nesse ano, a inflação teve também o seu pico, de 1782,9%. Em dólares correntes de 1988, entretanto, o maior valor das transferências totais se deu em 1987 (22,29 bilhões de dólares), com uma inflação dezembro a dezembro de 415,8%.

  3. no período 1964-85, caracterizado pelos governos militares, à inflação média (medida pelo IGP-DI) de 60,05% contrapôs-se um imposto inflacionário como porcentagem do PIB de 2,02% e um valor da transferência inflacionária para os bancos comerciais (também tomada em relação ao PIB) de 2,02%. Somando-se estes dois valores, chega-se a um número para as transferências inflacionárias totais de 4,04% do PIB, levemente inferior ao número de 4,2% registrado entre 1947 e 1992. A contribuir neste sentido, certamente se situa o período 1968-73, quando a inflação foi relativamente baixa e a variável TIT apresentou um valor médio de apenas 2,55% do PIB. Entre 1964 e 1985, os valores médios em bilhões de dólares de 1987 de II, TI e TIT foram, respectivamente, 4,26, 4,64, e 8,91.

  4. entre 1949 e 1992, as transferências inflacionárias totais apresentaram uma média de 4,20% do PIB. A grosso modo, isto significa que indivíduos e empresas têm transferido para o setor bancário da economia, em decorrência da inflação, algo que hoje em dia (com um PIB de 450 bilhões de dólares) se situa em torno de 18,6 bilhões de dólares (considerando-se o PIB de cada ano, este valor cai a 7,89 bilhões de dólares de 1987) ou que, desde 1947, a cada vinte e quatro anos, o resto do mundo, exceto o sistema bancário, tem trabalhado um ano de graça para o Banco Central (que repassa esses recursos ao governo) e para os acionistas dos bancos comerciais;

  5. no que se refere ao item (d) acima, o Banco Central ficou com algo em torno de 54% do total, o restante cabendo aos bancos comerciais;

  6. nos cinco anos do governo Sarney, o slogan “tudo pelo social” poderia ter sido perfeitamente substituído por “tudo pelo sistema bancário”. De fato, nesse período, algo em torno de 81,7 bilhões de dólares (em valores constantes de 1987) foram compulsoriamente pagos pela população ao sistema bancário, devido à obrigação institucional de se utilizar uma moeda (cruzeiro ou cruzado) que perdia valor a cada instante (no governo Sarney, a inflação média girou ao redor de 470% ao ano). Como porcentagem do PIB, as transferências inflacionárias totais situam-se em torno de 5,5%, sendo 2,9% de imposto inflacionário e o restante (2,6%) de transferências inflacionárias para os bancos comerciais;

  7. nos anos de suposta proteção aos descamisados (1990, 1991 e 1992), transferiram-se, respectivamente, 22,06, 16,52, e 14,54 bilhões de dólares destes últimos, dentre outros, para o setor bancário. Trata-se, como sempre, da queda do valor real do passivo monetário do Banco Central e dos bancos comerciais, decorrentes da inflação, e do fato de tal passivo encontrar-se em mãos do público.

Os gráficos abaixo apresentam a evolução no tempo das variáveis II, TI e TIT, respectivamente, como porcentagem do PIB e em dólares constantes de 1987.

Gráfico 1:
II/PIB & TIT?PIB x Tempo

Gráfico 2:
Ii & TIT x Tempo (em dólares de 1987)

Se só houvesse um indivíduo na economia, a carga tributária líquida (impostos, pagos menos transferências e subsídios recebidos) poderia servir como parâmetro de seu sacrifício fiscal. Mas esse não é o caso. Para um pagador de imposto inflacionário, pouco importa se a perda de poder aquisitivo da moeda que ele usa vai se refletir num maior volume de subsídios para empréstimos agrícolas ou num maior rigor na taxação dos bancos. O que lhe interessa é a carga tributária bruta, e não a carga tributária líquida.

Sob este prisma, o imposto inflacionário representa um pesado fardo para pessoas físicas e jurídicas (não bancárias) residentes no país e, sobretudo, para os indivíduos de menor renda, cuja porcentagem do encaixe em meios de pagamento sobre o total dos ganhos é muito maior (o que implica num maior imposto inflacionário em relação à renda) do que aquela relativa aos indivíduos de maior poder aquisitivo. Este fator atua no sentido de aumentar as desigualdades na distribuição de renda.

Além de regressivo (os de menor poder aquisitivo pagam mais), o imposto inflacionário apresenta uma particularidade em relação a todos os demais: ele não gera uma operação de arrecadação, dado que, em última instância, representa um ganho de capital. Num país em que a taxação indireta é privilegiada, o imposto inflacionário apresenta uma dupla atração para quem o usa: além de indireto, é camuflado.

Repare ainda que, como já salientamos anteriormente, os números aqui expostos refletem ganhos brutos para o sistema bancário, mas não necessariamente ganhos líquidos. O Banco Central pode efetuar empréstimos subsidiados que, em parte, compensem essas transferências. Da mesma forma, os bancos comerciais podem não ser capazes de aplicar seus recursos a uma taxa de juros superior à taxa de inflação. Isso, contudo, em nada afeta a afirmativa de que o sistema bancário recebeu juros reais do sistema não bancário no montante descrito pelo quadro anterior. O ganho bruto continua o mesmo. O líquido é que varia, pois os bancos, por sua vez, também não estão isentos de receber juros reais negativos em suas aplicações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • CYSNE, Rubens P. “Contabilidade com juros reais, déficit público e imposto inflacionário”. Pesquisa e Planejamento Econômico, 20 (1), abril de 1990.
  • Fundação Getúlio Vargas, Projeto Áries (Fonte de Dados).
  • SIMONSEN, M. e CYSNE, R.A. Macroeconomia. São Paulo: Livro Técnico, 1~ edição, 1989. Revista de Economia Política, vol. 14, n 3 (55); julho-setembro/1994
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    O autor agradece a Paulo César Coimbra Lisboa e a Anaja Cysne M. Neves pelo apoio na geração de dados.
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    JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1994
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