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Federalismo fiscal no Brasil

Fiscal federalism in Brazil

RESUMO

O federalismo fiscal brasileiro é fortemente marcado pelas desigualdades regionais e pela forte tradição municipalista do país. Esses aspectos foram dominantes para a construção do modelo finalmente adotado pela Constituição de 1988, que agravou os desequilíbrios verticais e horizontais na distribuição dos recursos fiscais, trazendo novas reivindicações para novas reformas. Este artigo aborda as dificuldades enfrentadas desde então para empurrar propostas para corrigir os desequilíbrios mencionados acima e aponta os desafios a serem enfrentados para alinhar o processo de descentralização fiscal com os objetivos finais de eficiência e responsabilidade no uso de recursos públicos.

PALAVRAS-CHAVE:
Federalismo fiscal; relações intergovernamentais; arrecadação tributaria

ABSTRACT

Brazilian fiscal federalism is heavily marked by the regional inequalities and the strong municipalist tradition of the country. These aspects were dominant for building the model finally adopted by the 1988 Constitution, which aggravated the vertical and horizontal unbalances in the distribution of fiscal resources, bringing new claim for further reforms. This paper addresses the difficulties faced since then for pushing proposals for redressing the above-mentioned unbalances and point out the challenges to be met in order to bring the fiscal decentralization process in line with the ultimate goals of efficiency and accountability in the use of public resources.

KEYWORDS:
Fiscal federalismo; intergovernamental relations; tax

1. INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 inaugurou uma nova etapa do federalismo fiscal brasileiro, que ainda não está, todavia, concluída. Nela, as demandas de estados e municípios por descentralização das receitas públicas foram atendidas, mas as dificuldades encontradas para fazer com que a descentralização das receitas fosse acompanhada de uma concomitante descentralização das responsabilidades públicas, em especial no campo das políticas sociais, provocaram desequilíbrios que ainda precisam ser corrigidos.

A nova Constituição é um marco importante de um processo que se iniciou bem antes da sua promulgação. A lenta agonia do regime militar instaurado em 1964 foi acompanhada de renovadas pressões de governadores e prefeitos por maior autonomia financeira, pressões essas que se acentuaram após a recuperação da autonomia política de estados e municípios, alcançada em 1982. Ao aproximar-se a sucessão presidencial de 1985, com a transição do autoritarismo para a democracia, as demandas por autonomia financeira, reconhecida como indispensável ao exercício da autonomia federativa, ganharam maior força. Não por acaso, a campanha presidencial do candidato vitorioso nas eleições indiretas de 1984 teve no fortalecimento da federação a sua grande bandeira.

De certa forma, o ímpeto descentralizante beneficiou-se de uma espúria associação entre autoritarismo e centralização, favorecida pela longa duração do regime militar e pelas reformas centralizadoras por ele promovidas. Assim, a Assembleia Constituinte instalada no início de 1986 foi dominada no capítulo tributário pelas forças da descentralização. Não obstante, como veremos a seguir, a ruptura institucional não foi suficiente para alterar hábitos e costumes que comandam as decisões políticas nessa área. A autonomia financeira foi confundida com liberdade para gastar sem a equivalente responsabilidade de tributar. A natureza da descentralização promovida pela Constituinte não contribuiu, portanto, para a construção de um novo federalismo.

A persistência da crise econômica brasileira dificultou ainda mais o avanço no sentido da correção dos desequilíbrios provocados pela não-conclusão das reformas consagradas pela nova Constituição. Com a economia presa no atoleiro e fustigada por taxas elevadas de inflação que resistiram a todas as tentativas recentes de combatê-las, o comportamento das receitas do setor público ficou muito aquém das expectativas. A frustração dessas expectativas contribuiu para arrefecer o movimento da descentralização. Embora notem-se alguns avanços com respeito à absorção por estados e municípios de maiores responsabilidades por gastos em programas sociais, como consequência da redução dos aportes federais, eles ainda não configuram um esforço coordenado em busca de um novo equilíbrio federativo. Este ainda está na dependência da solução dos desequilíbrios macroeconômicos e da realização de novas - e profundas - reformas institucionais.

O quadro atual é repleto de incertezas. Não só o Brasil ainda se debate com as dificuldades que vêm sendo encontradas para estabilizar a economia e promover a retomada do desenvolvimento, como também as condições necessárias para a realização das reformas estruturais indispensáveis à construção de um novo federalismo fiscal ainda não foram alcançadas. O adiamento da revisão constitucional prevista na própria Carta de 1988 é a demonstração concreta das dificuldades para promover as reformas necessárias na ausência de um amplo entendimento nacional sobre temas que encerram grande controvérsia, como é o caso da reforma fiscal. As esperanças depositam-se, agora, no reconhecimento pelo novo Governo, da necessidade de promover as transformações necessárias à recomposição de condições satisfatórias de governabilidade.

2. CARACTERÍSTICAS E PECULIARIDADES DO FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO

Para que se possa compreender melhor a natureza dos problemas atualmente enfrentados pelo Brasil no campo do federalismo fiscal, é necessário ter presentes suas características marcantes, bem como algumas peculiaridades decorrentes da acomodação do sistema ao longo dos anos.

De início, convém destacar dois aspectos fundamentais: as enormes disparidades regionais e a forte tradição municipalista do País. Como de hábito, em regimes federativos cabe à União envidar esforços para reduzir as disparidades regionais de desenvolvimento, e os instrumentos fiscais costumam desempenhar um importante papel a respeito. No Brasil, a marcante presença do Estado na vida econômica contribuiu para dar ao sistema tributário um papel de relevo na política de desenvolvimento regional, colocando em conflito, com frequência, as demandas por maior autonomia tributária dos estados mais desenvolvidos com as pressões por aumento das transferências compensatórias executadas pelos estados de menor grau de desenvolvimento.

Outro condicionamento importante é o que resulta da forte tradição municipalista. A força dessa tradição está hoje refletida no caráter singular assumido pela federação brasileira após a promulgação da Constituição de 1988. Nela, os municípios foram reconhecidos como membros da federação, em pé de igualdade com os estados no que diz respeito a direitos e deveres ditados pelo regime federativo. As principais consequências desse fenômeno, do ponto de vista do federalismo fiscal, são o largo campo de competência impositiva dos municípios e a instituição de transferências compensatórias federais semelhantes às que beneficiam os estados. A relativa independência dos municípios em relação ao poder público estadual, conferida pela posição singular que ocupam no sistema tributário brasileiro, é causa de importantes distorções que acentuam os desequilíbrios verticais e horizontais na repartição da receita tributária nacional, tomando mais difícil a negociação de reformas capazes de sedimentar propostas de um novo equilíbrio federativo.

Aos dois fatores acima mencionados soma-se o elemento político. Por razões distintas, as duas grandes reformas fiscais realizadas no Brasil nos últimos trinta anos produziram resultados semelhantes do ponto de vista do federalismo fiscal. A reforma de 1967, realizada pelo regime militar, promoveu uma concentração das competências tributárias na União, mas instituiu, em contrapartida, um amplo e inovador mecanismo de transferências intergovernamentais de receitas, em benefício, principalmente, dos estados menos desenvolvidos e dos municípios menos populosos. A reforma de 1988 reduziu parcialmente a competência tributária federal e ampliou ao máximo as transferências intergovernamentais instituídas 25 anos atrás, sem alterar, contudo, a fisionomia do sistema fiscal. A magnitude das transformações ocorridas e as diferenças entre os dois momentos assinalados estão demonstradas no Quadro 1.

Quadro 1:
Federalismo Fiscal no Brasil: 1967 e 1988

Em 1967, a centralização tributária promovida pelo regime militar tinha por objetivo, entre outros, o de assegurar o apoio político de estados mais pobres e de municípios de menor porte, mediante a aplicação direta de recursos do orçamento federal e a participação garantida nos fundos compensatórios então criados (vale lembrar que a oposição política ao regime se localizava nos estados mais desenvolvidos e, em especial, nas cidades de grande porte). Em 1988, os limites e a natureza da descentralização tributária foram traçados pelos que se beneficiaram do sistema criado em 1967, os quais, em decorrência da confortável maioria de que dispunham no Congresso, lograram não só alcançar seus objetivos como também ampliar de forma expressiva os ganhos obtidos anteriormente.

Não foi, assim, o conhecido desequilíbrio da representação política no Congresso Nacional que desenhou o formato perverso hoje exposto pelo federalismo fiscal brasileiro, marcado por enormes desequilíbrios na repartição das receitas fiscais. É certo que a absoluta predominância de representantes das regiões mais pobres no Congresso Nacional, decorrente dos quocientes eleitorais previstos na Constituição e do número mínimo de representantes de cada Estado na Câmara Federal, amplia o conflito de interesses entre aqueles que defendem a descentralização de competências e os que querem a descentralização da arrecadação. Nessa disputa, os municípios desempenham um papel decisivo, em face da posição por eles desfrutada na federação e da inclinação da avassaladora maioria deles por associar-se àqueles que preferem maior participação nas receitas federais em vez de maior competência para tributar.

Em 1988, o conflito foi solucionado à custa do esvaziamento do governo federal, que, por razões ditadas pela conjuntura política do momento, manteve-se à margem das negociações que conduziram ao desenho do novo sistema. O tardio reconhecimento pelo governo federal dos problemas criados pela omissão da época e o aumento da capacidade de resistência de estados e municípios a mudanças que, a seu juízo, firam seus interesses (a Constituição de 1988 aumentou o número mínimo de deputados federais para oito por Estado, o que, somado à criação de três novos estados e quase mil novos municípios, aumentou o desequilíbrio entre as forças que definem o perfil da descentralização fiscal) explicam, em boa medida, as dificuldades do momento.

A solução do conflito regional pela via do aumento das transferências intergovernamentais reverteu o desequilíbrio vertical na repartição da receita tributária nacional - a expensas da União-, mas ampliou em muito os já graves desequilíbrios horizontais, em decorrência das dificuldades encontradas para modificar as regras de partilha dessas transferências. Comparativamente a 1960, a distribuição das receitas tributárias entre a União e os estados mostra-se mais bem balanceada e bem próxima do padrão vigente no período anterior à instauração do regime militar, ao passo que os números referentes à participação dos municípios revelam ganhos substanciais, conforme mostra a Tabela 1. No entanto, as assimetrias intra-estaduais e intramunicipais alcançaram índices injustificáveis.

Tabela 1:
Brasil: arrecadação própria e receita tributária disponível por nível de governo (em porcentagem do total)

Desafortunadamente para aqueles que esperavam ver a continuidade do processo de fortalecimento do regime federativo iniciado com a Constituição de 1988, a permanência das dificuldades econômicas, o calendário político1 1 No curto período pós-Constituição foram realizadas três eleições nacionais: para presidente em 1989, para governadores e Congresso em 1990 e para prefeitos em 1992. e o agravamento da crise fiscal contribuíram para frustrar parcialmente essas expectativas. Entre 1989 e 1992, a carga tributária nacional, inclusive as contribuições previdenciárias, manteve-se abaixo dos níveis alcançados no início da década de 70. Em um cenário fiscal dominado por fortes restrições orçamentárias no plano federal, as expectativas de que a descentralização das receitas fosse acompanhada de uma ampla e concomitante descentralização dos encargos públicos não se transformaram em realidade, apesar de serem encontrados alguns sinais positivos nessa direção.

Conforme mostram os números na página anterior, os índices de participação de estados e principalmente dos municípios no bolo tributário nacional, em 1992, foram bem superiores aos índices alcançados em 1989, como consequência das modificações aprovadas pela nova Constituição. Não obstante, a melhor posição relativa na repartição do bolo tributário nacional foi insuficiente para impulsionar um processo abrangente e organizado de descentralização do gasto. Ao mesmo tempo em que estados e municípios beneficiaram-se da descentralização tributária, eles tiveram que enfrentar renovadas pressões pela recomposição do seu gasto. De um lado, a sindicalização dos servidores públicos garantida pela nova Constituição reforçou as demandas por recomposição salarial. De outro, a duração da crise econômica contribuiu para aumentar as demandas por programas sociais, num momento em que as verbas federais sofreram profundos cortes. Assim, em 1991, as despesas de consumo de estados e municípios como um todo subiram para valor equivalente a 9,6% do PIB (6,3% em 1970), acusando um crescimento equivalente ao observado nos gastos com o funcionalismo (6,5% do PIB em 1991 contra 4,7% em 1970). Embora alguns analistas insistam em ver no incremento dos gastos de consumo e de pessoal de estados e municípios a evidência dos vícios da descentralização (empreguismo e clientelismo), a interpretação alternativa é a de que eles já estariam refletindo, parcialmente, a absorção de maiores responsabilidades sociais em decorrência da redução do gasto federal nesses programas.2 2 Segundo levantamento recente, o gasto federal em programas sociais, exclusive previdência, caiu para 4,4% do PIB em 1991 (5,4% em 1989) como consequências da crise fiscal (Piola & Camargo, 1992).

Evidências esparsas de absorção de maiores responsabilidades por programas urbanos e sociais corroboram a assertiva de que o aumento dos dispêndios com pessoal não é, necessariamente, um sintoma da ineficiência provocada pela descentralização. Trabalho recente (Afonso, 1993AFONSO, J. R. (1993) “Descentralização fiscal na América Latina: estudo de caso do Brasil”. Rio de Janeiro, mimeo. ) mostra um significativo incremento das despesas de investimento de estados e municípios, pós-1988, bem como uma ampliação das verbas por eles atribuídas a programas sociais. Como tais programas têm um forte componente de mão-de-obra, o aumento observado nos dispêndios de pessoal deve ter sofrido essa influência.

Importa destacar a magnitude do processo de municipalização. Contrariamente ao que nos faria pensar, o enorme incremento das transferências federais e estaduais para os municípios não comprometeu o seu esforço próprio de arrecadação. Ao contrário, o esforço de arrecadação do conjunto dos municípios brasileiros concorreu para um crescimento de quase l00% na receita própria entre 1989 e 1992, ao mesmo tempo em que a receita disponível crescia pouco menos de 50%. Em consequência, a participação dos recursos próprios no orçamento municipal aumentou para cerca de 1/3. Os maiores incrementos no gasto também são observados no âmbito municipal, conforme mostram os números reunidos na Tabela 2.

Tabela 2:
Alguns itens de receita e despesa por níveis de governo (em% do PIB)

O desequilíbrio da representação política dos estados no Congresso Nacional, anteriormente mencionado e agora retratado na Tabela 3, dificulta a busca de um novo pacto federativo no campo fiscal. Mas isso não é tudo. O amplo reconhecimento de que a grande maioria dos representantes do povo no parlamento nacional atua como “vereadores federais” constitui um fato político tão ou mais importante que o anterior para as chances de sucesso de novas propostas de reforma. Além disso, as indefinições mais gerais no tocante ao papel do Estado e às responsabilidades do setor público reduzem a nitidez do quadro sobre o qual deve assentar-se a proposta de construção de um novo federalismo. Na impossibilidade de estabelecer-se um rígido cardápio que determine em detalhe as responsabilidades da União, de estados e de municípios, em face das enormes disparidades socioeconômicas regionais, a recomposição do equilíbrio federativo depende da superação dos conflitos quanto à repartição dos recursos fiscais, de modo a propiciar a acomodação progressiva a uma nova realidade.

Tabela 3:
Composição das bancadas regionais no Congresso

3. OS DESAFIOS DO MOMENTO

O fracasso das tentativas efetuadas nos últimos anos para modificar em profundidade o sistema tributário brasileiro revela o impasse resultante de visões distintas do problema e da ausência de entendimentos suficientes para superar os conflitos apontados. As várias sugestões de emenda constitucional encaminhadas ao Congresso por iniciativa do governo federal foram sistematicamente rejeitadas. Nem mesmo a esperança de que tal impasse pudesse ser contornado durante o prazo estipulado para a revisão constitucional, tendo em vista o quorum especial estipulado na própria Carta Magna para essa revisão (com o quorum de maioria absoluta excepcionalmente previsto para a revisão constitucional, após cinco anos de sua promulgação, teria sido mais fácil enfrentar os interesses regionalistas), mostrou-se uma atitude realista. A reforma fiscal necessária para consolidar uma nova realidade federativa no Brasil ainda carece de maior entendimento.

O grande desafio consiste em conciliar o máximo de descentralização com uma adequada capacidade de redução das desigualdades regionais. Como vimos, esse desafio não foi enfrentado em 1988. Os constituintes de 1988 esquivaram-se da tarefa de promover mudanças estruturais profundas no sistema fiscal brasileiro, optando pela via mais fácil de atender aos reclames por descentralização fiscal através do aumento exagerado das transferências intergovernamentais. A autonomia financeira pleiteada foi a autonomia para gastar, não a competência para instituir os tributos necessários ao financiamento do gasto. Com exceção do aumento da base de incidência do principal imposto estadual - o ICMS -, que beneficiou os estados mais industrializados, a receita da grande maioria dos estados e municípios cresceu em função, principalmente, do incremento nas transferências. O corolário dessa atitude foi o afrouxamento do vínculo de co-responsabilidade entre o cidadão contribuinte e os poderes públicos estadual e municipal, gerando condições propícias à irresponsabilidade e ao desperdício.

Conjugado com critérios impróprios para o cálculo do montante a ser atribuído a cada estado e município, o aumento das transferências intergovernamentais acirrou as disparidades de recursos entre as unidades da federação, principalmente no tocante aos municípios, conforme mencionado anteriormente. Esse fato já era do conhecimento dos congressistas em 1988, já que a Constituição estipulou que os critérios então vigentes perdurariam até que a lei complementar determinasse a nova fórmula de rateio; assim, a não-edição dessa lei reflete a enorme dificuldade para modificar critérios que irão afetar de modo significativo os orçamentos de pelo menos 25 estados e de mais de cinco mil municípios.

A postergação das decisões requeridas para o adequado enfrentamento dos desafios à construção de um novo federalismo fiscal ampliou as distorções vigentes, tornando mais evidente a necessidade de serem adotadas medidas enérgicas a respeito. Não obstante, a deterioração da situação econômica e do quadro político ainda não permitiu encontrar uma saída compatível com as necessidades presentes. Cresce, todavia, a expectativa de que a sucessão presidencial de 1995 possa criar condições mais favoráveis ao equacionamento do problema.

Três desafios precisam ser enfrentados com vistas à consecução do objetivo pretendido. São eles:

  • (i) o desafio do equilíbrio;

  • (ii) o desafio da eficiência;

  • (iii) o desafio da responsabilidade.

As propostas de descentralização e municipalização dos encargos públicos na federação brasileira esbarram no desencontro entre a distribuição espacial das demandas por serviços urbanos e sociais e a correspondente distribuição das receitas públicas. De um lado, as tendências econômicas e demográficas apontam para uma concentração maior das necessidades de gasto com serviços públicos nas cidades de maior porte, em função das demandas coletivas decorrentes da urbanização e do mais alto custo de atendimento dessas necessidades em áreas densamente povoadas. De outro, os critérios de rateio das transferências federais privilegiam áreas menos desenvolvidas e cidades de pequeno porte. O resultante desequilíbrio entre as demandas e a capacidade de satisfazê-las constitui um sério obstáculo ao avanço das propostas de solucionar o desequilíbrio orçamentário federal mediante transferência de encargos, em vez de retroceder na direção da recentralização dos recursos. A metropolização da pobreza torna os estados brasileiros, mesmo os mais ricos, bem como as prefeituras das grandes metrópoles, incapazes de dar conta das demandas sobre eles exercidas por suas populações. Ao mesmo tempo, a pulverização das transferências não gera recursos suficientes, ao nível das unidades menos desenvolvidas, para sustentar investimentos necessários à superação do subdesenvolvimento.

O desequilíbrio apontado resulta da extrapolação da função atribuída às transferências intergovernamentais. O caráter compensatório que presidiu sua instituição em 1967 foi abandonado em 1988, quando passaram a representar a principal fonte de recursos orçamentários dos municípios e de cerca da metade dos estados brasileiros (ver Tabela 4). Um melhor equilíbrio entre receitas próprias e transferências, acompanhado da recomposição de instrumentos tributários e financeiros capazes de impulsionar os investimentos indispensáveis ao desenvolvimento das regiões mais atrasadas, constitui uma exigência que precisa ser satisfeita.

Tabela 4:
Razão transferências/receitas próprias e transferências per capita- 1991

O reequilíbrio de fontes orçamentárias a que alude o parágrafo anterior não é apenas uma exigência indispensável ao avanço de propostas de descentralização das responsabilidades públicas na federação brasileira. Ele é, também, um requisito indispensável à maior eficiência do gasto. Ao tornar o financiamento do gasto público de estados e municípios mais dependente de recursos provenientes de transferências, a Constituição de 1988 tornou o cidadão menos consciente do ônus que suporta em decorrência dos gastos realizados por governadores e prefeitos. A desvinculação da decisão de gastar, que representa um bônus político, da decisão de instituir o tributo necessário ao financiamento do gasto, que traz um ônus político, propíciou um ambiente favorável ao descontrole e ao desperdício. A eficiência na utilização dos recursos públicos requer um controle permanente da sociedade sobre o Estado. A disposição de exercer esse controle depende de o cidadão ter uma clara percepção de para onde está indo o dinheiro que ele compulsoriamente é forçado a transferir para o Estado sob a forma de tributos. Quanto menor for sua contribuição direta para o orçamento estadual e municipal, maior será, portanto, o risco de ineficiência e desperdícios.

O desafio da eficiência confunde-se, portanto, com o desafio da responsabilidade. O contribuinte responsável requer um governo mais do que responsável. A responsabilidade do Governo está em prover os serviços dele demandados pela coletividade ao menor custo possível para os padrões de qualidade exigidos. A responsabilidade do contribuinte consiste em cumprir com as obrigações tributárias decorrentes do financiamento dos serviços prestados pelo Governo em resposta às demandas da coletividade. A quebra desse vínculo de co-responsabilidade acarreta prejuízo para todos.

4. OS CAMINHOS DA REFORMA

Conforme mencionado anteriormente, várias tentativas de reforma do sistema tributário brasileiro foram feitas nos últimos quatro anos, todas elas de antemão fadadas ao insucesso. Tal insucesso decorreu da falta de acordo prévio sobre questões já abordadas neste texto, em particular:

  • (i) sobre os mecanismos apropriados para promover a redução das disparidades regionais;

  • (ii) sobre as opções para fortalecer a autonomia política e financeira de estados e municípios;

  • (iii) sobre o papel a ser desempenhado pelo governo federal no tocante à sustentação de programas sociais;

  • (iv) sobre o grau de descentralização compatível com as desigualdades socioeconômicas da federação brasileira.

O acordo sobre as questões relacionadas é ainda dificultado pela precariedade da base estatística sobre a qual são feitas as simulações do impacto de alternativas de reforma sobre a repartição das receitas fiscais. A incerteza sobre o impacto de mudanças contribui para uma atitude imobilista que prejudica o avanço das negociações necessárias à obtenção de um amplo entendimento a respeito.

Se à época da Constituinte de 1988 a bandeira da descentralização predominou nos debates da reforma fiscal, o estandarte que ganha maior destaque, agora, é o da simplificação. A prolixidade da legislação tributária e a multiplicidade de bases de incidência, somadas à tentativa do Governo de resolver suas dificuldades de caixa mediante aumento de alíquotas dos impostos existentes, contribuíram para gerar uma inédita revolta dos contribuintes brasileiros contra os excessos do fisco, ampliando as demandas da sociedade por uma profunda simplificação do sistema tributário brasileiro.

Os caminhos da simplificação chocam-se com a opção adotada em 1988 para resolver os conflitos distributivos intergovernamentais via criação de novos impostos e ampliação das transferências. A simplificação requer uma redução do número de tributos a ser obtida através da unificação das bases de incidência. Com um número menor de tributos fica mais difícil acomodar os interesses em jogo, tendo em vista a tradição brasileira de atribuir aos estados a competência para instituir um imposto geral sobre a venda de mercadorias e serviços que constitui a fonte mais importante da receita governamental.

Das várias incidências tributárias que oneram a produção, a circulação e o consumo de mercadorias e serviços no Brasil, o imposto estadual (ICMS) é de longe a mais significativa, conforme mostram os dados reunidos na Tabela 5. A reunião de todos os demais impostos e contribuições que indiretamente oneram o consumidor final de mercadorias e serviços em um único imposto abrangente sobre o consumo, segundo o figurino do IVA, levanta a delicada questão da repartição dos recursos. Um IVA estadual limitaria a competência da União ao Imposto de Renda, a alguns poucos “excises” (fumo e bebidas) e aos tradicionais tributos sobre o comércio exterior (que não têm finalidade arrecadatória). Na outra ponta, os municípios quedariam restritos à tributação da propriedade imobiliária como fonte própria de recursos.

Tabela 5:
Tributação indireta do consumo no Brasil

A simplificação que adviria da instituição de três impostos de ampla base de incidência, repartidos entre a União, estados e municípios de acordo com o alcance das respectivas jurisdições (à União, o Imposto de Renda, aos estados, o Imposto de Consumo e aos municípios o Imposto sobre a Propriedade) não é compatível, portanto, com as exigências decorrentes das enormes disparidades regionais e sociais. A descentralização das competências tributárias precisa ser temperada à luz de uma redefinição do papel do Estado e do governo federal no campo das políticas de desenvolvimento regional e social, bem como do reconhecimento da tradição brasileira com respeito à autonomia municipal.

Para muitos, a chave para a solução do problema estaria na clara definição das responsabilidades de cada ente federado no texto constitucional, em substituição ao regime de competências concorrentes em quase todos os campos das políticas públicas que prevalece atualmente. Definidas as competências de cada um seria mais fácil estabelecer a repartição de recursos compatível com o respectivo equilíbrio orçamentário. Tal proposição é lógica em sua singeleza, mas ignora o fato de que a indefinição atual resulta da absoluta impossibilidade de se elaborar um cardápio detalhado de repartição de atribuições públicas na federação brasileira em face das disparidades econômicas, sociais, financeiras e gerenciais. Além de algumas definições de ordem geral, que estabeleçam princípios e diretrizes aplicáveis a um processo de descentralização de encargos e capazes de conduzir a um novo equilíbrio entre atribuições e recursos, qualquer tentativa de impor um padrão uniforme a respeito carecerá de realismo.

No plano das diretrizes, é fácil estipular que as atividades que independam da aplicação de técnicas sofisticadas, cuja execução em escala reduzida não comprometa a eficiência produtiva, cujas necessidades financeiras sejam modestas, cujo gerenciamento eficaz não estiver na dependência de recursos humanos altamente qualificados, e cujos benefícios tiverem alcance geograficamente limitado, devam ser preferencialmente atribuídas ao nível local. No outro extremo, isto é, no plano federal, estariam as atividades para as quais os mesmos atributos citados fossem diametralmente opostos: sofisticação técnica, economia de escala, vultosas necessidades financeiras, recursos humanos qualificados, e ampla difusão espacial dos benefícios prestados à coletividade. A combinação dessas várias possibilidades poderia definir, em cada caso específico, os intervalos em que se poderá situar o campo das atribuições estaduais. Não obstante a racionalidade implícita nos critérios mencionados, as enormes diferenças interestaduais e intermunicipais não permitem a adoção uniforme de regras aplicáveis a todo o território nacional.

Importa, também, estabelecer uma clara distinção entre o problema do equilíbrio entre responsabilidades e recursos do setor público e a questão das desigualdades regionais. O enfoque regionalista da reforma fiscal precisa ser revisto à luz das distorções do passado e das novas exigências do momento. O desenvolvimento regional requer um forte apoio da União a programas e projetos de investimento capazes de superar as causas da pobreza e reduzir as desigualdades de oportunidades de modernização econômica e social. Nesse sentido é indispensável reforçar os fundos federais capazes de sustentar os investimentos necessários ao progresso das regiões economicamente mais atrasadas, reduzindo a ênfase concedida em 1988 ao papel das transferências orçamentárias a esse respeito.

A busca de um novo modelo fiscal para a federação brasileira está começando a dar sinais de que se poderá, em breve, encontrar uma solução satisfatória. O reconhecimento de que o caminho não é a fecundação in vitro de um embrião concebido por uma elite de especialistas, nem a importação de figurinos ajustados a outras realidades políticas, econômicas e culturais, é o primeiro sinal positivo a respeito. A isso soma-se a insatisfação generalizada com o modelo vigente e o aumento da percepção de que é necessário rever posições para avançar na linha de uma proposta capaz de conciliar os vários interesses em jogo.

Os traços fundamentais dessa proposta já estão delineados. Um novo sistema tributário deve ter no consumo a sua principal fonte de arrecadação, mas essa base tributária não pode ser atribuída exclusivamente aos estados. Ela deverá ser partilhada com a União e com os municípios, de forma a atender às exigências de autonomia municipal e de sustentação de transferências compensatórias federais. A descentralização de encargos públicos, principalmente os referentes a programas urbanos e sociais, deve ser feita de forma gradual, apoiada em programas de assistência técnica e financeira para evitar rupturas e prejuízos para seus beneficiários. A questão regional requer atenção especial à recomposição da capacidade de a União realizar e apoiar financeiramente investimentos de maior vulto na expansão e modernização de infraestrutura, na melhoria do ensino e no desenvolvimento científico e tecnológico.

O detalhamento de um novo modelo ainda carece, todavia, de um grande esforço de negociação política, apoiado em análises rigorosas das implicações de cada alternativa. Passos mais largos no caminho do entendimento capaz de estabelecer a nova fisionomia do federalismo fiscal brasileiro são agendados para o início do novo mandato presidencial a inaugurar-se em 1995.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • REZENDE, F. (1993) “A tributação do consumo no Brasil e as perspectivas do Mercosul”. Brasília, mimeo.
  • 1
    No curto período pós-Constituição foram realizadas três eleições nacionais: para presidente em 1989, para governadores e Congresso em 1990 e para prefeitos em 1992.
  • 2
    Segundo levantamento recente, o gasto federal em programas sociais, exclusive previdência, caiu para 4,4% do PIB em 1991 (5,4% em 1989) como consequências da crise fiscal (Piola & Camargo, 1992PIOLA & CAMARGO (1992) “Brasil: gasto social federal por áreas: 1980 a 1991”. Brasília. ).
  • 3
    JEL Classification: H20; H77.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1995
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