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Modelos ortodoxos de inflação alta: uma análise crítica

Orthodox models of high inflation: a critical analysis

RESUMO

Este artigo argumenta que os modelos ortodoxos de alta inflação para países em desenvolvimento, baseados no modelo seminal de hiperinflação de Cagan, apresentam alguns pontos fracos ao ignorar a complexidade trazida à economia pela alta inflação, além de assumir que os agentes econômicos podem permanecer nessa situação, porque eles são dotados de uma “racionalidade ilimitada” para tomar suas decisões. O artigo também argumenta que, para entender esse processo e sugerir políticas adequadas, é necessário reconhecer que um processo desinflacionário requer políticas graduais que permitam aos agentes econômicos ajustar seu comportamento às novas circunstâncias provocadas por essas políticas. A hipótese a ser feita sobre esse comportamento é a caracterizada por uma “racionalidade limitada”.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; hiperinflação; estabilização

ABSTRACT

This paper argues that orthodox models of high inflation for developing countries, based on seminal Cagan’s model of hyperinflation, present some weak points by ignoring the complexity brought to the economy by high inflation, as well as by assuming that economic agents can dwell in this situation because they are endowed with an “unbounded rationality” to take their decisions. The paper argues too, that in order to understand this process and to suggest proper policies, it is necessary to recognize that a desinflationary process requires gradual policies that allow economic agents to adjust their behavior to the new circumstances that are brought about by these policies. The hypothesis to make about this behavior is that is characterized by a “bounded rationality”.

KEYWORDS:
Inflation; hyperinflation; stabilization

INTRODUÇÃO

Um economista observou que os homens de negócios que conhecem alguma coisa de economia tendem a desprezá-la, porque lhes parece descrever “o comportamento de pessoas tremendamente oniscientes e perspicazes às voltas com situações incrivelmente simples”.1 1 Daniel Heymann, citado em Leijonhufvud (1993, p. 2). Quando, no entanto, consideramos as realidades econômicas, constatamos que elas são altamente complexas e os agentes econômicos não são tão racionais e oniscientes como parece supor a teoria; tal constatação toma-se mais adequada quando a realidade considerada é marcada por altas taxas inflacionárias, as chamadas inflações altas, isto é, aquelas que são mais elevadas que as inflações moderadas mas não chegam a ter as características das hiperinflações.2 2 Para uma tipologia dos ritmos inflacionários, ver Lopes (1989, cap. 2). As inflações altas são bastante interessantes no sentido de que as estruturas financeiras distorcidas sobrevivem por longos períodos de tempo, enquanto na hiperinflação essas estruturas desaparecem rapidamente.

Na análise neoclássica convencional, as inflações altas são associadas com a monetização de persistentes déficits fiscais e são modeladas “como formas de equilíbrio geral com distorções fiscais decorrentes da tributação inflacionária, mas de forma global não diferentemente de economias que funcionariam sob condições de estabilidade monetária. A realidade, no entanto, é bastante diferente” (Leijonhufvud, 1992LEIJONHUFVUD, A. (1992) “High inflation and contemporary monetary theory”. Economic notes by Monte dei Paschi di Sienna, 21 (2), pp. 211-24., p. 212).

Tal análise deixa de considerar um enorme aumento de complexidade que é trazido basicamente pelos seguintes fenômenos:

  • a permanência da moeda nacional, que continua em uso mesmo com taxas inflacionárias elevadas, o que não ocorre nas hiperinflações, quando geralmente se utiliza moeda estrangeira;

  • o desaparecimento de mercados. Os países com inflação alta têm uma estrutura muito pobre de mercados intemporais;

  • excessiva variabilidade dos preços relativos.

Esses fatores têm uma influência negativa do ponto de vista do desempenho dos agentes econômicos. Sabe-se que os melhores exercícios de previsão de preços podem ser frustrados no espaço de um mês, de tal maneira que uma taxa média de inflação pode perder qualquer significado. Os erros tendem a ser potencializados por períodos mais longos, tornando extremamente arriscados os contratos que vão além do curto prazo. De outro lado, a permanência da moeda nacional, cuja razão será discutida adiante, torna impossível a estabilização dos preços relativos, a qual geralmente tende a ocorrer em períodos de hiperinflação quando se passa a usar como numerário uma moeda forte estrangeira.

Outra dificuldade mencionada tem a ver com o encolhimento da estrutura intertemporal dos mercados, ou ainda com o desaparecimento de alguns deles, começando com os que operam em períodos mais longos. Nas inflações moderadas costumam desaparecer apenas os mercados de títulos de renda fixa e as hipotecas de taxas prefixadas. Em economias com inflação alta, empréstimos bancários e os mercados de títulos com maturidade de poucas semanas podem ser os únicos instrumentos financeiros sobreviventes no setor privado.

Diante disso, este trabalho se propõe a realizar: uma exposição dos principais modelos ortodoxos de inflação alta (seção I); uma crítica dos pressupostos teóricos de tais modelos (seção II); e, finalmente, uma discussão de suas implicações em termos de propostas de políticas anti-inflacionárias e de estabilização no contexto da economia de “inflação alta” (seção III).

I

Os modelos convencionais de inflação alta constituíram-se a partir da análise seminal desenvolvida por Philip Cagan (1956CAGAN, PH. (1956) “The monetary dynamics of hyperinflation”. In Milton Friedman, ed., Studies in the quantity theory of money. Chicago, University of Chicago Press.) para fornecer uma base teórica para diversos episódios de hiperinflação. Tal análise foi reelaborada por Sargent & Wallace (1973SARGENT, T. & WALLACE (1973) “Rational expectations and the dynamics of hyperinflations”. International Economics Review, v. 14, pp. 328-50.), tendo em vista definir certas condições em que, contrariamente à visão de Cagan, as inflações altas e as hiperinflações poderiam ser controladas rapidamente sem grandes custos sociais.

A hipótese básica do modelo de Cagan é a existência de uma função de demanda monetária estável em que as modificações na taxa de juro real são consideradas sem importância, quando comparadas com as variações exógenas das expectativas inflacionárias.

Assim, tal demanda pode ser expressa por

h = M P Y = exp ( - α Π e ) (1)

em que (h) é a demanda monetária, como um percentual da renda monetária, PY (sendo P nível de preços e Y a renda real de pleno emprego) corresponde a exp(-αΠe), sendo “exp” a base do logaritmo natural é uma constante e Πe é a taxa de inflação esperada. De modo sucinto pode-se dizer que h é uma função decrescente da taxa de inflação esperada.3 3 Introduziu-se uma pequena modificação em relação ao modelo original de Cagan.

A base monetária M vai variar positivamente desde que o governo esteja emprestando do Banco Central para financiar seu déficit. A regra do financiamento deste pode ser expresso por:

h = M ˙ P Y (2)

sendo M a variação do estoque monetário (o ponto sobrescrito indica a derivada em relação ao tempo); note que d=M˙/PY pode ser reescrito como

d = M ˙ M M P Y = m h = m . exp ( - α Π e ) (3)

em que m corresponde à taxa de crescimento da moeda, ou seja, m=M˙/M.

E finalmente estabelece-se

Π ˙ e = β ( Π - Π e ) (4)

em que Пe é a taxa de inflação esperada, П é a taxa de inflação efetiva, p o coeficiente de correção das expectativas inflacionárias, e Π˙e a variação da taxa de inflação esperada.

Diferenciando (1) em relação ao tempo obtemos

M ˙ M - P ˙ P - Y ˙ Y = m - Π - n = - α Π e (5)
4 4 Para se obter (5) expressou-se (1) sob forma logarítima 1nM–1nP–1mY=1nexP(-αПe)

sendo n a taxa de crescimento de Y.

Substituindo o valor de П dado na equação (5), isto é, П=αПe+mn, na equação (4) e manipulando vamos obter

Π ˙ = β ( m - n - Π e ) 1 - α β (6)

Partindo-se de uma situação inicial de steady state em que П=Пe=mn, supondo-se uma elevação de m para m1, supondo-se também 0<β<1,0,5 5 Essa hipótese é realista desde que se admita que jl, o coeficiente de correção das expectativas, tenha um valor reduzido, o que pode ocorrer em economias que têm uma reduzida informação sobre as decisões governamentais. pode-se verificar por (6) que Π˙e terá um valor positivo. Ora, dado que a demanda monetária, como percentual da renda, é função inversa de Пe, ela tenderá a cair. Diante disso, os agentes vão procurar livrar-se do excesso de saldo monetário, aumentando a demanda por bens e serviços, elevando os preços até que esse processo reduza os saldos efetivos ao valor dos saldos desejados (uma elevação em P reduzirá o valor de M/PY). O ponto crucial da análise de Cagan é que, nesse processo, devido ao efeito duplo sobre os preços de uma elevação inicial de m e posteriormente de uma redução dos encaixes monetários, os preços sobem mais rapidamente que a oferta monetária nominal.

A hiperinflação nesse contexto resulta de o governo continuar emitindo para financiar seu déficit, tornando as expectativas de inflação muito sensíveis, de tal modo que a velocidade com que as pessoas se desfazem de seus saldos monetários aumenta muito e consequentemente a taxa de elevação de preços se torna exponencial.

Assim, para explicar a hiperinflação, Cagan supõe que a moeda tenha um crescimento exógeno, ou seja, que as autoridades não consideram o nível de preços na sua decisão de emitir e supõem que as expectativas são função de taxas inflacionárias passadas, isto é, são adaptativas.

Sargent & Wallace (1973SARGENT, T. & WALLACE (1973) “Rational expectations and the dynamics of hyperinflations”. International Economics Review, v. 14, pp. 328-50.), na sua crítica ao modelo de Cagan, consideram que as expectativas adaptativas não seriam compatíveis com uma suposta racionalidade dos agentes, mas que, se supusermos que a oferta monetária é endógena, os resultados obtidos por Cagan podem ser compatibilizados com a hipótese de expectativas racionais, pois se a oferta monetária fosse exógena, seria difícil admitir que as autoridades continuassem emitindo e gerando mais inflação. A ideia que propõem e que é mais plausível, é a de que o governo tenha um certo nível planejado de rendimentos que não pode ser alcançado mediante tributação; dessa maneira passa a substituí-la por criação monetária. Como resultado, os preços se elevam e as autoridades devem emitir mais, constituindo-se um processo cumulativo de emissão e elevação de preços, caracterizando-se a endogeneidade.

Nesse caso, a regra de crescimento de base monetária adotada pelas autoridades será determinada pela inflação passada, de tal modo que a antecipação da taxa de inflação feita racionalmente, a partir do reconhecimento daquela regra, coincide com expectativas adaptativas.

Segundo Sargent, “uma implicação dessa visão seria a de que a inflação pode ser detida muito mais rapidamente do que a concepção das expectativas adaptativas tem indicado e que são errôneas as suas estimativas do período de tempo e do custo de se deter a inflação em termos de produção perdida ... Bastaria uma mudança abrupta da política em curso para se estabelecer déficits, agora e no futuro, que sejam suficientemente restritos a fim de merecer ampla credibilidade” (Sargent, 1988, p. 47).

De acordo com esse raciocínio, o fato de os agentes formarem suas expectativas racionalmente, incorporando o que sabem sobre uma nova conduta governamental, levará a uma redução abrupta das taxas inflacionárias.

Na verdade, o interesse das “teorias fiscalistas” da inflação acima discutidas é bastante limitado, já que estamos interessados em experiências recentes de “inflação alta”, em que altas taxas inflacionárias podem coexistir com valores reduzidos de déficit público; assim, contrariamente às hiperinflações tradicionais, em países como Argentina e Brasil, que passaram por surtos de inflações altas, estas não foram acompanhadas por taxas elevadas de déficits fiscais e senhoriagem.

No Brasil, em um período de vinte anos (1974-1985), Kiguel e Liviatan observam que “alterações da inflação para patamares mais altos não estiveram associadas a sensíveis elevações na senhoriagem, a qual permaneceu razoavelmente estável ao longo dos anos (entre 1,5% e 3,5% do PNB)” (Kiguel & Liviatan, 1991KIGUEL, M.A. & LIVIATAN, IV. (1991) “The inflation stabilization cycles in Argentina and Brazil”. In Michael Bruno et al., eds., Lessons of Economic stabilization and its aftermath, Cambridge, Massachusetts, The MIT Press., p. 196). Na Argentina, considerado o período posterior ao Plano Austral, verifica-se que “uma contínua elevação da média inflacionária no período posterior ao choque heterodoxo, depois de uma queda inicial da inflação, não foi acompanhada de uma clara elevação na senhoriagem” (idem, p. 202). No entanto, “poder-se-ia argumentar que, embora a visão fiscal não possa explicar o padrão inflacionário durante o ciclo, ela pode ser útil para explicar a tendência global da inflação no período posterior aos choques heterodoxos ... Embora tal argumento possa ser válido para a Argentina ... , a elevação da inflação média no Brasil nesses anos foi acompanhada por déficits orçamentários e níveis de senhoriagem relativamente estáveis (ou decrescentes, segundo algumas estimativas)” (ibidem, p. 206).

Uma possível explicação para esses fatos seria a de que taxas inflacionárias elevadas consistentes com déficits reduzidos seriam necessárias devido à redução da demanda monetária. Ocorre que essa explicação, quando considerada em uma perspectiva temporal, é circular, pois o deslocamento da demanda monetária para a esquerda deve ser explicado pela introdução pelo governo de substitutos de dinheiro sob a forma de instrumentos financeiros líquidos indexados. Entretanto, observa Liviatan: “a razão para se introduzir tais instrumentos financeiros seria a de compensar a perda de liquidez em razão da elevação da inflação e da expansão do setor financeiro, e em virtude da crescente complexidade da administração de portfólio sob condições inflacionárias. Assim, enquanto a posição da curva de demanda monetária é um parâmetro importante, em cada momento do tempo, ela não pode explicar os fatores básicos que causam a elevação da inflação ao longo do tempo” (Liviatan, 1994LIVIATAN, N. (1994) Theoretical aspects related to Brazil’s inflation. Mimeo., pp. 2 e 3).

Uma explicação alternativa seria a do modelo de dois equilíbrios desenvolvido por Bruno & Fischer (1990BRUNO, M. & FISCHER, S. (1990) “Seigniorage, operating rules and the high inflation trap”, Quarterly Journal of Economics, May, pp. 353-74.), no qual a emissão monetária continuaria sendo a única forma de financiamento do déficit. A possibilidade de dois equilíbrios ocorreria em situações em que uma economia se encontrasse em um equilíbrio de inflação alta, quando com a mesma política fiscal (isto é, a mesma relação M/PY) poderia estabilizar-se em uma taxa inflacionária reduzida (Bruno & Fischer, 1990BRUNO, M. & FISCHER, S. (1990) “Seigniorage, operating rules and the high inflation trap”, Quarterly Journal of Economics, May, pp. 353-74., p. 353).

Em seu modelo, Bruno e Fischer usam a mesma equação da demanda monetária de Cagan (equação 1), que, combinada com as equações (2), (3) e (4) mencionadas anteriormente, permitirá estabelecer as equações (5) e finalmente (6) como no modelo de Cagan, isto é:

Π ˙ e = β ( m - n Π e ) 1 - α β (6)

O gráfico a seguir permitirá entender melhor a especificidade de tal modelo.

Partindo-se da equação (3) definida anteriormente, isto é:

d = m . e x p ( α П e ) (3)

podemos representá-la no Gráfico 1 como GG, isto é, como uma relação logarítmica que estabelece as combinações de m e Пe, capazes de financiar o mesmo valor do déficit d, dado na intersecção de GG com o. eixo horizontal. Os equilíbrios de steady state são determinados pela combinação de GG com uma linha de 45º, que tem sua origem no ponto n do eixo horizontal. (Note que sem correspondesse apenas ao valor de n, isto é, se o déficit fosse nulo, Пe seria nulo, de tal modo que, de acordo com (6), Пe=0). A combinação dessas duas linhas permite estabelecer dois equilíbrios: A, com taxa de inflação baixa, e B, com taxa de inflação alta.

GRÁFICO 1

O estudo das condições de estabilidade desses equilíbrios será feito mediante duas fontes de comportamento dinâmico: “expectativas adaptativas” e “expectativas racionais”.

Consideremos inicialmente as primeiras, admitindo que isso é realista, em condições em que há pobreza e/ou pouca confiabilidade de informações sobre as regras de financiamento do déficit.

Considerando-se a Figura 1, veremos que, desde que a β<1,0 (ajuste de expectativas bastante lento), e utilizando-nos da equação (6), para todos os pontos abaixo da linha de 45º, Π˙e>0, pois nesses pontos Пe<mn; ao passo que para os pontos acima da linha de 45º, Π˙e<0, pois Пe>mn. Isso significa que A é um equilíbrio estável, pois, como mostram as flechas, qualquer valor em GG abaixo e acima de A convergirá para A. Ao passo que o oposto ocorre em relação aos valores em GG, acima e abaixo de B. Estes se distanciarão de B, como também mostram as flechas.

Um aumento do déficit de d para d’ levará a um deslocamento de GG para GG’.

Nesse caso haverá um ajustamento da inflação esperado de A para A’ passando pelo ponto C, não ocorrendo de outro lado uma passagem de B para B’.

Consideremos agora o caso de expectativas racionais, que pode ser interpretado, inicialmente, como o caso limite de expectativas adaptativas com β. Dividindo-se ambos os lados da equação (6) por b, e fazendo β, a dinâmica dessa situação pode ser representada por

Π e = Π + n - m α (7)
6 6 Teremos Пe(1-αβ)/β=(m–nПe)/β, que, manipulada, após fazer-se β→∞, dará a equação (7).

De acordo com a equação (7) qualquer ponto acima da linha de 45º, (П+n>m),П˙e>0, e abaixo da linha implicará que П˙e<0. Assim, um ponto em GG à direita de A convergirá sempre para B, e um ponto em GG à esquerda de A se distanciará de A. Assim, nesse caso, A é um equilíbrio instável e B um equilíbrio estável.

Há casos, porém, em que as expectativas racionais não podem ser interpretadas como um caso limite de expectativas adaptativas com β; são aqueles em que a economia já se encontra em um equilíbrio inicial, digamos A. Nesse caso, os agentes conhecendo as regras que regulam a ação governamental, no caso de um deslocamento GG para GG’, nada impede que A se desloque diretamente para A’, sem passar por C.

Qual a implicação que Bruno e Fischer tiram dessa hipótese? Como existem várias taxas inflacionárias correspondentes a vários déficits e, portanto, a várias injeções monetárias, é possível atribuir um papel fundamental à política monetária na determinação da taxa inflacionária preferida. Essa possibilidade pode efetivar-se no caso em que os agentes são racionais e têm suficiente informação sobre as decisões das autoridades monetárias; o governo, ao anunciar as sequências de injeções monetárias compatíveis com uma taxa de inflação baixa, poderá constranger tais agentes a estabelecer uma taxa de inflação baixa.

Em princípio seria possível que, se a inflação estivesse no ponto B do Gráfico 1 e o governo anunciasse uma injeção monetária compatível apenas com A, a nova taxa de inflação se estabelecesse nesse ponto. Contrariamente à visão fiscalista (Cagan, Sargent), uma taxa de inflação mais baixa poderá ser conseguida mesmo sem redução do déficit.

De outro lado, o problema com essa proposta, como observam Heyman e Leijonhufvud, é que, “para usar uma regra monetária, para ancorar as expectativas, o governo deve obter credibilidade em suas políticas. Mas, dado que a economia se encontra em uma situação de inflação alta, é praticamente impossível que isso ocorra e, portanto, que se estabeleça a inflação na taxa escolhida” (Heyman & Leijonhufvud, 1995HEYMAN, D. & LEIJONHUFVUD, A. (1995) High inflation. Oxford, Clarendon Press., p. 23).

Em um contexto social como a economia, o comportamento de alguns agentes está condicionado pelo comportamento de outros agentes; assim, em situações de inflação alta, altamente complexas do ponto de vista da economia e nas quais provavelmente (pelo menos do ponto de vista convencional) o governo agiu oportunisticamente, é certo que este não vai obter credibilidade nos anúncios que fizer a respeito da inflação que pretende praticar. A pergunta que se coloca então é se haveria alguma maneira de o governo obter a reputação que eventualmente venha permitir uma desinflação rápida, sem que seja necessário passar por uma longa batalha pela credibilidade que resulte em uma longa recessão.

Ora, essa batalha pela reputação pode ser entendida como um jogo disputado entre agentes que têm certos objetivos, podendo chegar a um resultado de equilíbrio, que é condicionado pelas expectativas desses agentes, bem como pelos seus objetivos.

Partindo-se da hipótese de que o governo se beneficia da senhoriagem, e que compara esses benefícios apenas com os custos sociais implícitos na elevação da taxa de inflação efetiva (П), bem como da inflação antecipada (Пe), sem incluir nesses custos o custo de sua perda de reputação, pode-se mostrar, o que será feito adiante, que a taxa de inflação de equilíbrio se encontrará sempre no nível mais alto, que no Gráfico 1 corresponde ao valor B.

A situação, no entanto, será diferente se o governo procurar criar uma reputação, isto é, tomar-se confiável para o público, por exemplo, ao anunciar uma certa taxa de inflação e seguir o que anunciou. Nesse caso estará estabelecendo um regime de regras.

Para mostrar como se dá a passagem de um regime discricionário para um regime de regras, Robert Barro e David Gordon (Barro & Gordon, 1983BARRO, R. & GORDON, D. (1983) “Rules, discretion and reputation in a model of monetary policy”. Journal of Monetary Economics, 12 (2): 101-21.) desenvolveram um modelo de jogos no qual supõem certos tipos de comportamento para o setor público e o setor privado. Inicialmente supõem que as autoridades procurarão minimizar certos custos sociais que decorrem da taxa de inflação (П) e do fato de a taxa de desemprego U ser maior que a taxa meta de desemprego (U*). Dessa maneira minimizarão a função Z abaixo:

Z = f ( П , U * U )

De outro lado, tomando-se como base a função de oferta agregada de Lucas, podemos expressar Z por:

Z = f { П , [ U * - α ( П - П e ) ] } (8)

em que se admite que toda vez que П>Пe. haverá uma queda do salário real, e de U, quando os trabalhadores supõem que o poder de compra do seu salário é determinado por Пe, isto é, pela taxa de inflação esperada, e não pela taxa de inflação efetiva (П).

O objetivo das autoridades monetárias seria o de determinar um certo valor de П capaz de minimizar Z. (Note que um П elevado teria o efeito benéfico de reduzir a taxa de desemprego, fazendo aproximar-se de U*; de outro modo traria resultados negativos, devido à elevação dos custos inflacionários.) Da equação (8), podemos inferir ainda que quanto mais elevado for Пe, mais elevado deverá ser П, para que se consiga uma redução de U.

Para esclarecer este processo de minimização, consideremos o Gráfico 2, reproduzido de Hoover (Hoover, 1988HOOVER, K. (1988) The new classical macroeconomics: a sceptical inquiry, Cambridge, Massachusetts, Basil Blackwell., p. 82).

GRÁFICO 2

Na sua parte superior estão representados os diferentes valores de П capazes de minimizar Z para diferentes valores de Пe. Esses valores estão representados na linha П*, cuja intersecção com o eixo vertical determinaria o custo de se ter uma taxa de inflação zero.7 7 A função П* é determinada por Barro e Gordon pela minimização de uma função de custos Zt=(a/2)(Пt)2–bt(Пt–Пte) com a, bt>0. Nessa função, (a/2)(Пt)2 é o custo da inflação e b, (Пt–Пte) o seu beneficio em termos de redução de U, sendo que b, varia ao longo do tempo, de acordo com a previsão da inflação (Barro & Gordon, 1983, p. 105).

Diante disso, Barro e Gordon estabelecem a seguinte questão: por que não praticar uma inflação zero eliminando-se o custo da inflação e passando-se a aceitar o custo do desemprego como inevitável?

Tal solução não seria viável segundo eles, pois em princípio atribuem ao governo um comportamento oportunista. Assim, “se os particulares esperam inflação zero, então as autoridades vão aplicar uma taxa de inflação positiva, a fim de obter alguns benefícios do choque inflacionário” (Barro & Gordon, 1983BARRO, R. & GORDON, D. (1983) “Rules, discretion and reputation in a model of monetary policy”. Journal of Monetary Economics, 12 (2): 101-21., p. 107).

Supondo-se que isso acontecesse, e o público tivesse expectativas racionais e informações adequadas sobre a conduta das autoridades, o público não se deixaria enganar, revisaria suas expectativas de inflação para cima, estabelecendo-se assim uma taxa de inflação de equilíbrio discricionário, no ponto de intersecção das linhas П* e П=Пe, isto é, no ponto b, da parte superior do Gráfico 2. Isso porque, do ponto de vista das autoridades, qualquer política que não corresponda à função П* não é ótima; e do ponto de vista do público qualquer ponto que não esteja sobre a função П=Пe é dinamicamente inconsistente. Apenas o ponto b satisfaz essas duas restrições.

Diante desse resultado, qual a possibilidade de se conseguir um melhor resultado do que o equilíbrio discricionário dado pelo ponto b? Tal será possível se as autoridades desenvolverem uma “reputação”, isto é, se se tornarem dignos de crédito seus anúncios das taxas inflacionárias que desejam praticar. Para tanto, as autoridades deverão incorporar ao seu modelo decisório o custo de perderem sua “reputação”, que compararão com o benefício que obtêm de “enganar” o público, tal como representado na parte inferior do Gráfico 2.

Para se entender como se chegaria a uma inflação que corresponderia a um Regime de Regras, os autores pressupõem um certo comportamento do público e do governo. Eles supõem o seguinte mecanismo de formação de expectativas.

П t e = П t * s e П t - 1 = П t - 1 e П t e = П t s e П t - 1 П t - 1 e

o que significa dizer, na primeira linha, que se a taxa de inflação efetiva no período t-1, (Пt-1), concordar com a inflação prevista pelo público (Пt-1e) no mesmo período, então a taxa esperada pelo público no período t será igual à anunciada pelo governo (Пte=П*). Caso contrário, se Пt-1 for diferente de Пt-1e, a taxa de inflação prevista no período t corresponderá à taxa discricionária (Пt) (b no nosso Gráfico 2). Em outras palavras, se o governo violar uma regra, estabelecer-se-á uma taxa inflacionária não cooperativa. Porém, “se não ocorrer nova violação por parte do governo, no período t+1, a credibilidade será restaurada no período t+2, isto é, as coisas passam a ocorrer como se nenhuma violação tivesse acontecido” (idem, p. l09). Em outras palavras, o público perdoa o governo, se este não o enganar durante um período e o governo tem essa informação.

Outro equilíbrio poderá ser aceito pelo público, desde que corresponda a uma situação que seja consistente, e desde que o governo aceite que a discrição leva sempre a um equilíbrio inferior em relação a outras alternativas. Assim, um equilíbrio que não seria ótimo (que do ponto de vista de Barro e Gordon corresponderia à situação em que П=0, na qual o governo não quisesse estabelecer uma meta de desemprego U*), mas que seria melhor que o discricionário, estabelecer-se-á desde que o governo incorpore em sua decisão, como mencionamos anteriormente, o custo da discrição, isto é, de enganar. Esse custo será comparado com o benefício da discrição ou a “tentação de enganar”. Essa tentação, que está representada na parte inferior do gráfico, corresponde à linha dcb, e é uma função da diferença absoluta entre as funções П* e П=Пe representadas na parte superior. Tal valor tenderá a diminuir conforme o valor de rrc se eleva, sendo nulo no nível de equilíbrio da taxa de inflação discricionária, isto é, o ponto b.

O custo de enganar para cada nível de Пe está dado na parte inferior do Gráfico 2 pela linha ecb. Esse custo é maior quando П é baixo e tende a cair conforme П se aproxima de b. Na verdade, ele tende a ser menor para taxas de inflação mais elevadas, porque nesse caso a reputação a ser perdida é pequena. Tal custo, que corresponde ao componente П da função Z, é descontado porque vai ocorrer em um período posterior ao descumprimento por parte do governo da taxa de inflação anunciada.

Assim, comparando-se ebc e dbc, verifica-se que “uma regra que pode ser aceita pelo público é dada por qualquer ponto entre c e b, na qual os custos impostos às autoridades, se estas fossem agir discricionalmente, superariam a sua tentação de fazê-lo, sendo a melhor regra o ponto e, isto é, a taxa mais baixa de inflação correspondente a uma situação em que os custos da discrição são iguais aos da tentação”(Hoover, 1988HOOVER, K. (1988) The new classical macroeconomics: a sceptical inquiry, Cambridge, Massachusetts, Basil Blackwell., p. 84). Dessa maneira, Barro e Gordon procuram justificar a possibilidade de uma economia passar de uma situação de “inflação alta” para uma situação de inflação moderada, mediante a adoção de um “regime de regras”.

II

Uma restrição inicial que se pode fazer aos modelos de inflação alta já considerados é a de que tais modelos pressupõem uma mesma estrutura de informação tanto para as economias sem inflação ou com inflação moderada como para as economias de inflação alta.

Na verdade, não é isso que ocorre. Uma das características dessas economias, como já mencionado no início deste artigo, é o encolhimento das estruturas intertemporais dos mercados. Nas economias de inflação moderada, tendem a desaparecer apenas as aplicações de títulos de longo prazo, de 30 anos ou mais, e as hipotecas com taxa determinada. Ao passo que, em economias de inflação alta, sobrevivem apenas empréstimos bancários e comerciais de prazo muito curto. O limite desse processo ocorre, nas hiperinflações, com o desaparecimento dos mercados spot, por falta de preços.

No mesmo contexto do desaparecimento de mercados deve ser incluída a enorme variabilidade de preços. “Ambos resultam das dificuldades cognitivas enfrentadas pelos agentes em uma economia monetária instável ... A memória do sistema se encurta da mesma forma que a capacidade de previsão. Os economistas se prendem muito à ideia de que as expectativas determinam os preços e de que o papel da memória na formação das expectativas é suprimido. Na verdade, as economias reais se baseiam grandemente na memória para coordenar suas atividades. O conhecimento necessário para determinar preços não se cria de novo a cada dia ... nas inflações altas a previsão torna-se terrivelmente difícil porque a memória não serve mais como guia” (Heyman & Leijonhufvud, 1995HEYMAN, D. & LEIJONHUFVUD, A. (1995) High inflation. Oxford, Clarendon Press., p. 175).

O verdadeiro problema com que a teoria se defronta é justamente o de explicar o que acontece quando a inflação alta aumenta a complexidade da realidade de tal maneira que a memória passa a ser um instrumento de pouca valia. A teoria econômica convencional, ao introduzir expectativas e conhecimento completo da realidade por parte dos agentes, deixa de lado tal problema. Se os mercados que vão desaparecendo podem ser substituídos por preços racionalmente esperados, o processo inflacionário deixa de ser um problema para a coordenação das economias e, portanto, deixa de ser um problema na teoria.

O que realmente acontece é que, quando a complexidade aumenta além de um certo ponto, os agentes são levados a simplificar suas estratégias de decisão. Em certas situações passa a existir um gap de conhecimento entre a competência do agente para avaliar certas situações e a dificuldade apresentada por tais situações. “Esse gap competência/dificuldade·decorre de mudanças não previstas nas circunstâncias presentes e/ou da habilidade de o agente reagir corretamente a essas mudanças. Ambos os fatores levam a uma maior incerteza relativa aos efeitos de se mudar um certo tipo de comportamento, o que faz com que os agentes reduzam seu repertório de ações” (Gowdy, 1985GOWDY, J. (1985-6) “Expectations and predictability”. Journal of Post Keynesian Economics, Winter, v. VIII, nº 2, pp. 192-200., p.193).

Assim, não é que os agentes optem por não agir a partir de uma informação de que dispõem, mas sim, que podem escolher simplesmente não avaliar uma informação mesmo que esta seja sem custo, de maneira análoga à hipótese do “comportamento satisfatório” desenvolvido por Herbert Simon.

O que é importante nessa análise desenvolvida por Ronald Heiner (1983HEINER, R. (1993) “The origin of predictable behavior”. American Economic Review, September, pp. 560-95.) é que o bloqueio de informação é diferente da informação imperfeita, que é vista tipicamente pela visão ortodoxa a partir de uma unbounded rationality, como algo que pode ser tratado pela simples incorporação dos custos adicionais da informação nas funções. Essa solução é contraditória e leva a uma regressão ao infinito. Assim como observa Christian Knudsen:

Se no cálculo de otimização tentamos levar todos os custos em consideração, inclusive o custo do próprio cálculo, o resultado é que é impossível estabelecer uma decisão ótima. Tomar uma decisão envolve custos; portanto, deve-se decidir se vale a pena tomar uma decisão. Mas se uma decisão implica custos, teremos que decidir se vale a pena tomar uma decisão sobre se vale a pena tomar uma decisão. Desde que essa regressão só pode ter um fim em um ponto arbitrário, será impossível achar uma solução ótima para esse problema decisório (Knudsen, 1993KNUDSEN, C. (1993) “Equilibrium, perfect rationality and the problem of self-reference in economics”. In Uskali Maki et al., eds., Rationality institutions and economics methodology, London, New York, Routledge., p. 161).

Crítica análoga pode ser feita a todos os jogos não cooperativos com conhecimento completo por parte dos jogadores, como ocorre com o jogo incorporado ao modelo de Barro e Gordon: “Sendo a estrutura do jogo de conhecimento comum ou mútuo entre os jogadores, decorre daí que eles conhecem as ações possíveis dos demais agentes A1...An e suas funções, de preferência R1...Rn; mas isso, por sua vez, é sabido ser sabido, que por sua vez é sabido ser sabido ser sabido... ad infinitum. Da mesma forma, a consciência de racionalidade respectiva implica que cada jogador acredita que o outro é racional; que cada jogador acredita que cada outro jogador acredita que cada outro jogador é racional, e assim ad infinitum”. Para escapar a essa regressão contínua de conjecturas e para se poder determinar um equilíbrio a partir de uma decisão, teóricos como Selten, Kreps, são obrigados a introduzir no início do jogo uma imperfeição arbitrária (uma mão que treme ao se tomar uma decisão, uma informação imperfeita). No modelo de Barro e Gordon não está presente tal assimetria inicial. (Para mais detalhes, ver Knudsen, 1993KNUDSEN, C. (1993) “Equilibrium, perfect rationality and the problem of self-reference in economics”. In Uskali Maki et al., eds., Rationality institutions and economics methodology, London, New York, Routledge., p. 155 e seguintes).

III

Sabemos que geralmente os processos de inflação alta estão associados à monetização de déficits elevados e persistentes. Em função disso, os modelos neoclássicos são formulados como modelos de equilíbrio geral com distorções decorrentes do processo inflacionário, mas de forma não diferente de como funcionaria uma economia com estabilidade monetária.

A realidade, no entanto, é diferente. Por razões que foram consideradas anteriormente, o comportamento do agente econômico em um ambiente de elevadas taxas inflacionárias tende a aproximar-se muito mais do que se chama agente de “racionalidade limitada” do que do otimizador caro aos modelos de equilíbrio geral do tipo Arrow-Debreu. Note-se que, ao se admitir essa realidade, não se estão introduzindo elementos de natureza não econômica, mas está-se apenas supondo que os agentes em situação econômica complexa optam por estratégias mais flexíveis, que lhes permitam pospor uma decisão ou mesmo revogá-la quando indesejada.8 8 O conceito de flexibilidade como uma possibilidade estratégica oferecida pelo próprio mercado foi desenvolvido por Hicks a partir da generalização do conceito de preferência pela liquidez de Keynes (Hicks, 1974, pp. 43 e 57).

Podemos ilustrar inicialmente tal limitação pela caracterização das decisões governamentais relacionadas à opção por uma tributação inflacionária. Na realidade, tal opção não decorre de uma função de minimização de custos sociais tal como pressuposto, por exemplo, pelo modelo de Barro e Gordon, mas decorre antes de situações em que o governo não opera com orçamento bem definido por estar sujeito a pressões de demandas urgentes, muitas vezes de difícil previsibilidade. Assim, a tributação inflacionária, em geral, “não aparece em um contexto em que o jogo (policy-game) se realiza entre um agente governamental bem definido, dotado de preferências bem definidas, diante de um agente privado também bem definido, e no qual se podem ignorar todos os problemas de distribuição dentro do setor privado” (Heyman, 1992HEYMAN, D. (1992) “Notes on very high inflation and stabilization”. In Alessandro Vercelli & Nico la Dimitri, eds., Macroeconomics - A survey of research strategies. New York, Oxford University Press., p. 340).

Outro ponto de natureza geral em que ocorre uma simplificação (uma má abstração) é na caracterização, como se encontra no modelo de Bruno e Fischer, da inflação alta como equilíbrios de steady-state, que conflita com algumas características desse processo, como a instabilidade das taxas de inflação e das próprias políticas econômicas.

Outro problema interessante tem a ver com a adoção ou não de uma nova moeda em inflação alta. Mesmo em situações em que a taxa inflacionária diária chega a 1% não tem havido uma substituição total do dinheiro doméstico. Na Argentina, nos anos 80, quando o total de dólares em posse dos nacionais era maior que o meio em circulação, o dinheiro doméstico manteve sua função de unidade de conta, não havendo especialmente para os bens de consumo corrente uma ligação entre a variação de seus preços e a variação da taxa de câmbio. Os preços desses bens eram revisados em intervalos frequentes, e não continuamente mediante a aplicação de uma regra simples. Uma explicação possível seria a de que, apenas no limite de taxas de inflação altíssimas, uma ligação entre preços e taxa de câmbio é mais vantajosa do que ter ajustamentos de preços discretos e não sincronizados (idem, p. 345). Pode-se conjecturar também que tal ocorre como um bloqueio da informação disponível devido às dificuldades de seu processamento e utilização em termos de decisão.

Outra concepção, que é normalmente aceita pela visão ortodoxa, é de que os agentes podem apreender rapidamente o sentido de uma política de desinflação, de tal maneira que tomar pública tal política seria uma condição necessária e suficiente para a estabilização. Por exemplo, tal poderia ocorrer através de medidas correntes e do anúncio de medidas futuras, que seriam reforçadas por medidas institucionais que isolassem claramente o Banco Central de necessidades de ordem fiscal. A estabilização ocorreria através de rápidas mudanças de expectativas de tal maneira que, como sugere Sargent (Sargent, 1982SARGENT, T. (1982) “Os finais de quatro hiperinflações”. In J.M. Rego, ed., Hiperinflação - algumas experiências, São Paulo, Paz e Terra.), a inflação poderia ser controlada sem queda na produção e sem elevação do desemprego.

Um dos indicadores usados para apoiar tal visão seria a elevação na demanda monetária em termos reais, que é observada em períodos desinflacionários rápidos. Embora “a elevação nos ativos monetários reais seja gradual e não implique sempre retomo aos níveis de liquidez vigentes anteriormente, esse fato sugere uma clara mudança nas expectativas durante tais episódios; é menos claro, porém, que a percepção de uma mudança no regime fiscal seja uma condição necessária e suficiente para uma trajetória anti-inflacionária” (Heyman, 1992HEYMAN, D. (1992) “Notes on very high inflation and stabilization”. In Alessandro Vercelli & Nico la Dimitri, eds., Macroeconomics - A survey of research strategies. New York, Oxford University Press., pp. 347-8). Isso porque o anúncio de grandes alterações de políticas não é recebido de maneira homogênea por todos; embora possa haver algumas mudanças nas antecipações, estas não respondem integralmente às medidas anunciadas. No caso da política anti-inflacionária na Alemanha dos anos 20, há indicações de que a credibilidade do programa não se estabeleceu no início, enquanto algumas medidas que não tinham perspectivas de sustentação, isto é, sem muita credibilidade, tinham conseguido produzir uma curta desinflação anteriormente (Dombusch, 1970).

Algo semelhante ocorreu com a primeira tentativa de estabilização na Polônia e de forma mais clara ainda na China, em 1948.

A concepção do processo de desinflação baseado em expectativas racionais requer decisões que envolvem uma enorme complexidade: primeiro, “os agentes deveriam rever suas previsões do déficit orçamentário futuro e da expansão monetária; em função disso, alterar suas expectativas inflacionárias e admitir que os demais estão agindo da mesma maneira. Essas crenças, então, se refletiriam em suas decisões de preços” (Heyman, 1992HEYMAN, D. (1992) “Notes on very high inflation and stabilization”. In Alessandro Vercelli & Nico la Dimitri, eds., Macroeconomics - A survey of research strategies. New York, Oxford University Press., p. 349). Tais suposições fariam mais sentido se os preços se ajustassem à variação do dólar, mas, como se viu, isso geralmente não ocorre; daí a necessidade da utilização de “múltiplas âncoras” para se conseguir o início de um processo de estabilização.

Outra questão importante sobre o processo de estabilização, a respeito do qual a análise convencional em nada pode contribuir, é o debate sobre a opção de reduzir a inflação a zero ou manter uma taxa de inflação baixa; e ainda o problema de desindexar totalmente ou manter alguns contratos indexados. Obviamente a discussão não pode ser resolvida de maneira dedutiva e vai depender das condições históricas e institucionais de cada economia. As hiperinflações dos anos 20 foram praticamente reduzidas a valores inflacionários nulos. Isso, no entanto, ocorreu em economias que tiveram uma longa experiência no padrão-ouro e, portanto, a credibilidade das políticas econômicas estava ligada à realidade de inflação nula, que poderia então ser considerada a “normalidade”. No entanto, alguns programas que tiveram êxito na redução das inflações altas, como os de Israel, México e Bolívia, fizeram-no através da manutenção de taxas moderadas de inflação.

Esse fato poderá ser explicado em princípio porque a manutenção de taxas reduzidas de inflação seria um caminho mais seguro para os agentes se adaptarem a uma situação de estabilidade, que altera praticamente todas as condições da vida econômica: novas formas de alocação de recursos; alteração de preços relativos; introdução de novos tributos; eliminação de subsídios; atividades que eram atrativas e que deixam de sê-lo, etc. Nessa situação, as pessoas tendem a rever suas expectativas sempre para cima. “As expectativas são formadas em uma situação para a qual as experiências passadas são de pouco uso ... As economias recentemente estabilizadas parecem muito predispostas a falhas de coordenação” (Heyman & Leijonhufvud, 1995HEYMAN, D. & LEIJONHUFVUD, A. (1995) High inflation. Oxford, Clarendon Press., pp. 137-8).

Um problema análogo tem a ver com a indexação. Se, de um lado, é verdade que a indexação torna as economias mais sensíveis a uma retomada inflacionária em função de possíveis choques, de outro, também é verdade que a própria indexação pode servir como uma referência para a formação de expectativas em relação a vários preços da economia. Assim, “a indexação pode servir como um guia para a determinação de preços pelas firmas e como uma âncora que pode prevenir uma explosão inflacionária em uma situação de descontrole de preços” (Solimano, 1990SOLIMANO, A. (1990) “Inflation and the costs of stabilization: historical and recent experiences and policy lessons”. The World Bank Research Observer, July, pp. 167-85., p. 181). De outro lado, Dornbusch observa “que não é necessariamente verdadeiro que a desindexação seja sinônimo de estabilidade, porque choques inflacionários, como elevação de tarifas públicas ou depreciação cambial, não são inteiramente absorvidos pela redução dos salários reais. Sem indexação, o governo se torna o árbitro na determinação dos ajustes salariais. O salário se torna politizado, o que significa, invariavelmente, maior tendência a elevações salariais ... A indexação é um mecanismo que cria inércia e também preserva a inércia. Uma indexação semestral pode ser uma peça-chave para estabelecer expectativas de inflação reduzida. Uma vez que o salário é ‘ancorado’, uma retomada muito grande da inflação não será esperada. Como consequência, os horizontes podem se ampliar mais efetivamente do que na ausência de qualquer tipo de indexação formal” (Dornbusch, 1992DORNBUSCH, R. (1992) “Lessons from experience with high inflation”. The World Bank Economic Review, 6 (1): 13-31., p. 28).9 9 Deve ficar claro que as justificações da manutenção da indexação por Solimano e Dombusch nada têm a ver com a sua defesa pelos monetaristas, para os quais a indexação, à medida que estaria corrigindo a dívida pública, serviria para impedir que os governos caíssem na tentação da tributação inflacionária.

Em resumo, procurou-se colocar na parte final deste trabalho alguns problemas concretos que podem surgir nos planos anti-inflacionários e de estabilização e defender a tese de que nenhum programa, mesmo que decorra de uma estratégia bem definida, pode ter sucesso sem desenvolver um razoável volume de aprendizado através de uma flexibilização de estratégias tanto do setor público como do setor privado. O jogo da estabilização tem que ser jogado, através do tempo, e não como uma estratégia que decida de antemão os resultados futuros. Tal jogo, obviamente, seria desnecessário se os agentes econômicos reais fossem os personagens dos modelos teóricos ortodoxos, que se preocupam apenas com “deduções corretas” a partir de premissas conhecidas e nunca enfrentam problemas de aprendizado a partir das informações incompletas, que a realidade, infelizmente, insiste em apresentar.

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  • 1
    Daniel Heymann, citado em Leijonhufvud (1993LEIJONHUFVUD, A. (1993) “Towards a not-too-rational macroeconomics“. Southern Economic Review., p. 2).
  • 2
    Para uma tipologia dos ritmos inflacionários, ver Lopes (1989LOPES, F. (1989) O desafio da hiperinflação. Rio de Janeiro, Campus., cap. 2).
  • 3
    Introduziu-se uma pequena modificação em relação ao modelo original de Cagan.
  • 4
    Para se obter (5) expressou-se (1) sob forma logarítima 1nM1nP1mY=1nexP(-αПe)
  • 5
    Essa hipótese é realista desde que se admita que jl, o coeficiente de correção das expectativas, tenha um valor reduzido, o que pode ocorrer em economias que têm uma reduzida informação sobre as decisões governamentais.
  • 6
    Teremos Пe(1-αβ)/β=(mnПe)/β, que, manipulada, após fazer-se β, dará a equação (7).
  • 7
    A função П* é determinada por Barro e Gordon pela minimização de uma função de custos Zt=(a/2)(Пt)2bt(ПtПte) com a, bt>0. Nessa função, (a/2)(Пt)2 é o custo da inflação e b, (ПtПte) o seu beneficio em termos de redução de U, sendo que b, varia ao longo do tempo, de acordo com a previsão da inflação (Barro & Gordon, 1983BARRO, R. & GORDON, D. (1983) “Rules, discretion and reputation in a model of monetary policy”. Journal of Monetary Economics, 12 (2): 101-21., p. 105).
  • 8
    O conceito de flexibilidade como uma possibilidade estratégica oferecida pelo próprio mercado foi desenvolvido por Hicks a partir da generalização do conceito de preferência pela liquidez de Keynes (Hicks, 1974HICKS, J. (1974) The crisis in Keynesian economics. Oxford, Basil Blackwell., pp. 43 e 57).
  • 9
    Deve ficar claro que as justificações da manutenção da indexação por Solimano e Dombusch nada têm a ver com a sua defesa pelos monetaristas, para os quais a indexação, à medida que estaria corrigindo a dívida pública, serviria para impedir que os governos caíssem na tentação da tributação inflacionária.
  • 10
    JEL Classification: E31; E13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1996
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