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Financiamento do desenvolvimento urbano

Urban development financing

RESUMO

Este artigo trata de um aspecto polêmico das políticas públicas brasileiras: a forma como o investimento urbano e a prestação de serviços urbanos são financiados. O fracasso das soluções padronizadas, baseadas em um processo decisório altamente centralizado de canalização de recursos orçamentários e poupanças forçadas aos governos estaduais e locais, levou a uma situação em que as dificuldades financeiras se tornaram um dos principais motivos da deterioração da infraestrutura urbana e dos serviços urbanos maioria das grandes cidades brasileiras. Neste contexto, o artigo defende uma revisão completa da forma e dos meios de financiamento do desenvolvimento urbano, com base nas recomendações de reunir os recursos disponíveis, implementar a gestão profissional e avançar em direção a uma melhor coordenação intergovernamental das políticas urbanas. A confiança nas novas regras e na sua manutenção ao longo do tempo também é enfatizada como um importante requisito para atrair capital privado para áreas importantes, como saneamento, transporte e habitação.

PALAVRAS-CHAVE:
Urbanização; desenvolvimento econômico; gasto público

ABSTRACT

This paper deals with a controversial aspect of the Brazilian public policies: the way urban investment and the provision of urban services are financed. The failure of pat solutions, based on a highly centralized decision-making process of channeling budgetary resources and forced savings to state and local governments, led to a situation in which financial difficulties became one of the main reasons of the deteriorating urban infrastructure and urban services in most of the major Brazilian cities. Against this background the paper argues for a through revision of the way and means of urban development financing, based on recommendations of pooling available resources, implementing professional management and moving toward better intergovernmental coordination of urban policies. Confidence in the newer rules, and in its maintenance over time, is also emphasized as an important requisite for attracting private capital to important areas, such as sanitation, transportation and housing.

KEYWORDS:
Urbanization; economic development; public expenditure

1. INTRODUÇÃO

A crise de financiamento das políticas governamentais atingiu em cheio os diferentes segmentos da economia brasileira, acarretando atrasos tecnológicos, retardamento de projetos de expansão, deterioração da infraestrutura básica e dos serviços urbanos e acúmulo das carências de atendimento das demandas sociais. Por razões distintas, embora todas elas associadas ao efeito perverso da prolongada crise econômica e do fracasso das tentativas de passado recente de promover a estabilização da economia e a retomada do crescimento, os mecanismos financeiros que sustentaram ambiciosos programas de investimento de meados dos anos 60 ao início dos anos 70 perderam impulso e força, transformando-se em pálidos reflexos das imagens que exibiam nos anos dourados do desenvolvimento brasileiro da segunda metade deste século.

A coincidência do agravamento da crise econômica com a aceleração do calendário da distensão política durante o último período de governo do regime militar, que evoluiu com a posse dos candidatos vitoriosos nas eleições presidenciais de 1984 e culminou com a promulgação da nova Carta Constitucional pela Assembléia Constituinte em fevereiro de 1988, agregou novos elementos de degradação dos mecanismos financeiros criados ou fortalecidos na fase anterior. Como se sabe, a centralização e o caráter arbitrário das decisões sobre a utilização dos recursos administrados pelo governo estiveram no epicentro das críticas relacionadas às mazelas do autoritarismo. Assim, em que pese a procedência das críticas quanto aos excessos do centralismo, a desorganização resultante de uma reação emocional à centralização e a fragmentação administrativa provocada por mal concebidas reformas na estrutura organizacional da administração pública realizadas a partir de 1985 agravaram velhos problemas, entre os quais sobressaem-se: a pulverização dos recursos, a descoordenação das aplicações, a descontinuidade dos investimentos e a inadequação das fontes de financiamento à natureza das atividades a serem financiadas.

A crise fiscal e financeira do Estado brasileiro manifesta-se de forma particularmente perversa no campo das políticas governamentais que se vinculam mais diretamente com a questão urbana. Do lado fiscal, a capacidade de o governo federal financiar o desenvolvimento urbano com recursos do Orçamento Geral da União foi sendo progressivamente reduzida com a descentralização tributária iniciada em meados dos anos 80 e consagrada pela Constituição de 1988, e com as dificuldades encontradas para reequilibrar o orçamento através de profundos cortes no gasto. Do lado financeiro, o prolongamento da crise econômica e a crise de confiança que se seguiu aos fracassados choques de estabilização erodiram a base de formação dos fundos de poupança compulsória, também comprometidos pela liberalização das regras de saque e pela inadimplência.

A espúria associação entre autoritarismo e centralização contribuiu para fortalecer as demandas por descentralização fiscal. Já no início dos anos 80, as pressões de governadores e prefeitos por maior autonomia financeira encontravam eco no último período de governo do regime militar que trabalhava na direção de uma transição tranquila do autoritarismo para a democracia. Tais pressões ganharam novo vigor a partir de 1982, com a restauração da autonomia política dos estados (nesse ano ocorreu a primeira eleição direta para governadores após quinze anos de jejum eleitoral) e atingiram o ápice na campanha presidencial de 1984. Não por acaso, um dos principais compromissos políticos assumidos pelo presidente eleito Tancredo Neves foi o atendimento das demandas por autonomia financeira de estados e municípios, vista como indispensável para o exercício pleno da autonomia política recém-alcançada e para a construção de uma nova federação.

A Assembleia Constituinte instalada em fevereiro de 1986 foi, no campo fiscal, dominada pelo mesmo tema. Aproveitando-se da omissão do governo federal e do fato de que os demais lobbies organizados estavam preocupados com outros temas, as bancadas estaduais e a frente municipalista dispunham de campo aberto para conquistar novas posições. Assim, ao invés de seguir o mais árduo caminho de uma profunda reforma estrutural, calcada em uma proposta consistente de construção de um novo equilíbrio federativo, optaram elas pela via mais fácil de ampliar a transferência da receita federal para estados e municípios de modo a dispor de maior autonomia para gastar sem o ônus da contrapartida de cobrar os tributos para financiar o gasto.

A maneira fragmentada pela qual o processo de elaboração da Constituição de 1988 foi conduzido contribuiu para que a crise fiscal da União, que já vinha se agravando por força da instabilidade econômica, adicionasse um componente estrutural de efeito devastador. Ao mesmo tempo em que a receita tributária do governo federal foi significativamente reduzida, ampliaram-se suas responsabilidades e aumentou a rigidez do gasto, em função principalmente da ampliação dos direitos sociais e das novas vantagens concedidas ao funcionalismo. Além disso, a proibição da vinculação da receita de impostos a investimentos, inspirada em nobres princípios de flexibilidade orçamentária, abriu espaço para a prática desenfreada do clientelismo na aplicação das pequenas disponibilidades de recursos do Tesouro, provocando uma pulverização incompatível com as necessidades do momento.

O agravamento da crise econômica no final dos anos 80, o rápido fracasso do novo choque aplicado na economia no início dos anos 90 e as sequelas por ele deixadas contribuíram para inviabilizar as tímidas tentativas de ajuste fiscal promovidas nesse período. Sem um amplo acordo político que permita negociar os distintos conflitos de interesses que se manifestam em torno de qualquer proposta mais abrangente de reforma fiscal, as chances de obtenção de resultados concretos são mínimas, como bem o demonstrou o fracasso recente da tentativa de revisão constitucional.

A crise econômica também contribuiu para esvaziar a capacidade de atuação da União pelo lado do crédito. A principal fonte de recursos voltada para a área urbana - o FGTS - sofreu a erosão provocada pela ausência de crescimento sustentado do nível de emprego, pela queda dos salários e pela crescente informalização do mercado de trabalho, além do baixo índice de retorno de suas aplicações.

Num contexto de maior escassez de recursos, a dispersão provocada pela tentativa de acomodar todas as demandas (quase todas legítimas, é bom que se diga) diluiu os recursos disponíveis, em contradição com a recomendação usual em momentos de maior aperto financeiro: reunir os meios disponíveis e selecionar melhor as aplicações para maximizar seus resultados.

Embora a redução da capacidade financeira da União seja uma consequência lógica no marco de uma proposta nacional de construção de uma nova federação, o acentuado desequilíbrio reinante é incompatível com o papel a ela reservado no campo das preocupações com as desigualdades regionais e sociais. Maiores disponibilidades orçamentárias de estados e municípios constituem um fato importante para ampliar o menu de opções com respeito a alternativas de política urbana mais adequadas ao tratamento das peculiaridades de cada caso. Urge, no entanto, buscar um novo equilíbrio a partir de uma proposta consistente de definição das responsabilidades de cada ente federado que contemple, adicionalmente, novas possibilidades de parceria entre o poder público e o capital privado no campo do financiamento do desenvolvimento urbano.

Não se trata, porém, de defender a recentralização dos recursos como providência necessária para corrigir os vícios apontados, mesmo porque eles não foram adquiridos recentemente. Trata-se, sim, de promover a reunião dos recursos disponíveis através da associação de interesses e não da centralização das fontes de financiamento em uma única esfera de poder. O associativismo proposto é uma alternativa tanto ao excesso de centralização quanto à exagerada dispersão. Ele significa o estabelecimento de novos arranjos institucionais que viabilizem a cooperação dos três entes federados - União, estados e municípios - no campo do financiamento do desenvolvimento, arranjos estes que preservem a autonomia de cada um deles e abram espaço para a adoção de novas formas de cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, em obediência às tendências do momento.

O ponto central defendido neste paper é o de que o rearranjo institucional é pré-condição para a recomposição da capacidade de o poder público orquestrar o financiamento do desenvolvimento, superar as limitações ao aporte de recursos públicos pela mobilização adicional de recursos privados e de fontes externas, e submeter as prioridades de aplicação às necessidades apontadas pelo planejamento estratégico do desenvolvimento do país. Não basta ampliar os recursos existentes, é indispensável construir um novo modelo de financiamento das políticas públicas coerente com os desafios a serem enfrentados neste final do século.

2. O QUADRO ATUAL

2.1. O lado fiscal

O quadro atual é fruto de importantes transformações ocorridas ao longo do período que sucedeu ao tardio reconhecimento oficial da crise brasileira e da necessidade de tomar providências para administrar a situação. No início dos anos 80, a situação fiscal do país refletia a opção adotada na segunda metade da década anterior de enfrentar as adversidades externas através de uma política ativa de promoção do crescimento impulsionada pela ampliação do investimento público e do crédito governamental. O crescimento do déficit público, inicialmente dissimulado pela multiplicidade de orçamentos, tornou-se evidente a partir das primeiras negociações com o Fundo Monetário Internacional conduzidas no início da década e das sucessivas reformulações orçamentárias voltadas para a unificação dos orçamentos federais.

A posição proeminente assumida pelo déficit público, tanto no debate acadêmico quanto no discurso governamental, teve trágicas consequências para as políticas públicas em geral, em particular aquelas relacionadas com a questão urbana. Embora tenham variado ao longo da década a interpretação oficial das causas do déficit e as terapias utilizadas para combatê-lo, a descontinuidade da gestão fiscal provocou uma enorme desorganização das contas públicas, acentuando a instabilidade do gasto e comprometendo, em maior medida, os programas cujo componente mais significativo é o investimento. Recursos do orçamento fiscal destinados ao desenvolvimento urbano foram comprometidos, em especial na segunda metade dos anos 80 e início dos anos 90, pela pressão exercida pela área de saúde, em decorrência da absorção das contribuições previdenciárias com o pagamento de benefícios.1 1 Ver Piola e Camargo (1992).

Além do impacto provocado pela ausência de uma estratégia coerente e continuada de combate ao déficit, o financiamento do desenvolvimento urbano sofreu as consequências adversas de importantes mudanças impulsionadas pela transição do autoritarismo para a democracia. Cabe destacar, a esse respeito:

  1. descentralização fiscal;

  2. desvinculação de receitas;

  3. a fragmentação orçamentária.

A descentralização fiscal caracterizou-se por sucessivos incrementos na parcela das receitas federais transferidas para estados e municípios através dos fundos de participação. Ao longo dos últimos 25 anos, a percentagem da arrecadação dos dois mais importantes tributos da União - o Imposto de Renda e o IPI - repassada aos Fundos de Participação cresceu vertiginosamente, alcançando 44% em 1993 - mais do dobro do índice relativo a 1967. Somados os novos fundos criados em 1988 (ressarcimento da não-incidência do tributo estadual nas exportações de manufaturados e apoio ao desenvolvimento regional), cerca da metade da receita desses impostos é transferida. A mudança na composição das receitas públicas revelada na Tabela 1 é o resultado das transformações ocorridas.

Tabela 1:
Brasil: Arrecadação Própria e Receita Tributária Disponível por Nível de Governo (Em Porcentagem do total)

A predominância das transferências consolidou um formato distorcido de federalismo fiscal. O objetivo primordial dos Fundos de Participação - o de exercer uma função compensatória em benefício das unidades federadas de incipiente base de arrecadação - foi suplantado com a transformação desses fundos em fontes principais de receita orçamentária da maioria absoluta dos estados e da quase totalidade dos municípios brasileiros.

Uma consequência negativa da maior liberdade para gastar desacompanhada da ingrata tarefa de ter de cobrar os tributos para financiar a decisão de gasto foi a utilização da maior parcela do acréscimo da receita estadual e municipal para atender a pressões por aumento no custeio governamental. Em 1991 o total dos gastos de custeio de estados e municípios cresceu para 9,6% do PIB (6,3% em 1970), registrando um crescimento equivalente ao observado nos gastos com o funcionalismo (6,5% do PIB em 1991 contra 4,7% em 1970).

Outro problema de dimensões graves foi o alargamento das diferenças com respeito à disponibilidade per capita de recursos orçamentários entre estados e entre municípios, em prejuízo das unidades mais populosas. Como o critério de rateio das transferências reflete o motivo original da criação dos Fundos de Participação - o de exercer uma função compensatória -, os recursos fluem majoritariamente para os municípios pequenos (em população) e para regiões menos desenvolvidas, contrastando com as tendências de concentração das demandas sobre o Estado nas áreas urbanas mais populosas e de maior densidade demográfica. Cabe notar que embora o critério de rateio fosse coerente com o espírito compensatório dos fundos, a multiplicação dos recursos desses fundos com a consequente mudança na sua natureza exigiria uma alteração nos critérios de repartição para reduzir os desequilíbrios apontados. Embora a Constituição preveja essa modificação, é fácil entender por que uma modificação dessa envergadura é quase impossível de promover.

Tabela 2:
Razão Transferências/Receitas Próprias e Transferências Per Capita - 1991

Um efeito secundário, mas não menos relevante, da ampliação exagerada das transferências e da não-modificação dos critérios de rateio dos fundos foi a multiplicação de estados e, principalmente, de municípios. No passado recente, a divisão em dois do antigo estado do Mato Grosso e a transformação dos territórios do Acre e Rondônia adicionou três novas estrelas à bandeira brasileira. Com a Constituição de 1988, dois novos estados foram incorporados à União, os ex-territórios de Roraima e Amapá, e o Distrito Federal adquiriu autonomia política que, na prática, o equiparou às demais unidades federadas. Pós-1988, a criação do estado do Tocantins, desmembrado de Goiás, foi a primeira reivindicação a ser atendida. Demandas por novos desmembramentos são frequentemente reapresentadas.

Em curto período, portanto, o número de estados saltou de 21 para 26, um acréscimo de quase 25%. Mais impressionante ainda foi o ritmo de criação de novos municípios, que ganhou força a partir de 1988. Desde então, ao redor de mil novos municípios foram criados em todo o Brasil, aumentando para mais de cinco mil o total de municípios existentes no país.

A criação de novos estados e a proliferação de municípios ampliou o desequilíbrio da representação política no Congresso Nacional, aumentando as resistências a propostas de alteração no caráter do federalismo fiscal brasileiro. Como a Constituição de 1988 elevou para oito o número mínimo de representantes por estado, as bancadas dos estados das regiões menos desenvolvidas aumentaram a vantagem numérica no Congresso, comparativamente à bancada de representantes das regiões de maior grau de desenvolvimento. Aos interesses das regiões menos desenvolvidas soma-se a forte tradição municipalista do Brasil que mobiliza representantes de todas as regiões do país em defesa do regime de transferências definido pela Constituição.

Tabela 3:
Composição das Bancadas Regionais no Congresso

Num movimento oposto ao ocorrido do lado das receitas, a Constituição Federal ampliou as responsabilidades da União ao ampliar os benefícios da seguridade social e estender o campo das competências concorrentes a praticamente todos os setores mais importantes da atividade governamental. Apesar dos princípios de descentralização inscritos na Carta Constitucional, as competências atribuídas aos municípios, principalmente no que respeita à provisão de serviços sociais, preveem sempre a assistência financeira da União.

Tão importante quanto a enviesada descentralização fiscal para a desorganização do financiamento governamental do desenvolvimento urbano foi a maneira pela qual a autonomia orçamentária ratificada pela nova Constituição foi exercida. Dois aspectos dessa autonomia merecem ser salientados: a permissão para o Congresso emendar livremente o orçamento (com as ressalvas mencionadas no art. 166) e a proibição da vinculação de receitas de impostos a fundos ou programas (art. 167, IV).

Em tese, a liberdade do Congresso para emendar a proposta orçamentária do Executivo é uma exigência inerente ao pleno exercício da democracia. Na mesma linha, a proibição da vinculação de receitas coincide com as recomendações em favor da livre alocação dos recursos orçamentários por decisão soberana dos representantes do povo. Todavia, ambas as medidas não foram acompanhadas de providências concretas para assegurar responsabilidade na alocação dos recursos públicos, provocando ineficiência e desperdícios.

Na prática, as modificações promovidas pela Constituinte substituíram as vinculações setoriais de tributos no plano federal por um brutal incremento da vinculação da receita federal aos fundos constitucionais (além dos Fundos de Participação, a Constituição reinstituiu a vinculação tributária a Fundos de Desenvolvimento Regional, voltados estes para o apoio a projetos privados de investimento). A maior rigidez do orçamento federal foi a contrapartida da maior liberdade dos orçamentos estaduais e municipais, com consequências negativas para o financiamento das políticas públicas.

A rigidez orçamentária federal tem sido objeto de insistentes queixas das autoridades econômicas governamentais. Estima-se que menos de 2,5% dos recursos da União (Orçamento fiscal e da Seguridade Social) podem ser livremente aplicados atualmente. Como os recursos federais estariam em um patamar equivalente a 17% do PIB, a parcela disponível para livre decisão do Executivo e do Congresso corresponde a cerca de 1,5 bilhão de dólares, apenas2 2 Consultar Velloso (1993). .

Tão magros recursos exigiriam uma enorme disciplina na decisão de gasto e uma rígida obediência a prioridades. Não obstante, a cultura orçamentária brasileira não contribui para que as coisas se passem dessa maneira. A proposta enviada pelo Executivo ao Legislativo já contempla uma indesejável pulverização de recursos que se multiplica a partir das incontáveis emendas aprovadas no Congresso. Desconsiderando a escassez do orçamento federal e o aumento das transferências constitucionais, grande parte das verbas consignadas nesse orçamento destina-se a apoiar pequenos projetos a cargo de estados e municípios mediante convênios com organismos federais. Em 1991, as transferências não-tributárias (aquelas não determinadas pela Constituição) chegaram a representar pouco menos de 50% do montante transferido por determinação constitucional. Embora elas devam ter se reduzido a partir de então, o repasse de recursos via convênios ainda é uma prática significativa3 3 Os dados são de Afonso (1993). .

Um exemplo conspícuo da fragmentação apontada é fornecido pelos dados relativos à aplicação de recursos do OGU no período 91/93 em programas de saneamento. De acordo com estudo recente4 4 Aliança, Pesquisa e Desenvolvimento (1994). , os recursos do OGU destinados ao setor teriam correspondido a cerca de 380 milhões de dólares, em média, no triênio citado - um montante apreciável se administrado de forma eficiente, mas que tem nenhuma eficácia quando repartido, de forma clientelista, entre centenas de beneficiados.

O principal corolário das transformações ocorridas no cenário fiscal foi o abandono de uma ação coordenada de financiamento do desenvolvimento urbano. A perda da capacidade de liderança do governo federal não foi acompanhada da instituição de novos mecanismos capazes de evitar a pulverização dos recursos, a superposição de intervenções e a descoordenação das ações governamentais.

Evidências recentes de que a omissão forçada do governo federal foi acompanhada de uma maior destinação de recursos municipais a programas sociais, revelada na Tabela 4, constituem um sinal positivo com respeito a novas possibilidades abertas pela descentralização, mas levantam novas questões relacionadas à coordenação das decisões, ao adequado tratamento dos problemas regionais e às possibilidades de atendimento de uma pauta mínima de demandas essenciais no nível regional e local.

Tabela 4:
Despesa Consolidada dos Governos Municipais por Funções de Governo - 1988/92 Evolução Real: US$ Milhões Médios de 1992

Dois problemas principais devem ser ressaltados: o financiamento dos investimentos e a possibilidade de acesso da população menos favorecida aos serviços. Por mais que estados e municípios possam sustentar com tarifas e tributos a operação de serviços urbanos, os investimentos na infraestrutura, principalmente aqueles de maior vulto em habitação, saneamento, transporte coletivo e controle ambiental não prescindem da assistência financeira federal sob a forma de linhas de crédito em volume e condições adequados ao alcance de metas mínimas de atendimento das demandas existentes.

A questão do acesso da população de baixa renda é um problema mais delicado. Em que pese a descentralização de receitas apontada anteriormente, as pressões sobre os orçamentos estaduais e municipais pelo lado do gasto requerem uma prévia definição com respeito a que programas devem ser preferencialmente financiados com recursos fiscais em função de sua própria natureza.

A descentralização de atribuições forçada pela redução das receitas federais deverá enfrentar, em breve, o desafio posto pelas exigências da nova reforma tributária cuja necessidade é, hoje, uma das poucas unanimidades nacionais. Alvo de algumas propostas de reforma tributária, as contribuições sociais (sobre o faturamento e o lucro), previstas na Constituição de 1988, têm sido, agora, a válvula de escape do governo federal para contornar parcialmente as limitações do orçamento fiscal. (O aumento recente da arrecadação federal provém basicamente de acréscimo na receita dessas contribuições decorrente do aumento de suas alíquotas.)

A perspectiva de que estados e municípios deverão assumir progressivamente maior responsabilidade pela sustentação financeira das enormes demandas dos setores de saúde e educação apresentam novos desafios para a área urbana. Quanto maior for a necessidade de abrigar nos orçamentos das unidades federadas o financiamento da saúde, do ensino básico e da assistência social, em conformidade com as propostas de descentralização e municipalização, menor será o espaço disponível para subsidiar o acesso da população de baixa renda aos serviços urbanos essenciais - habitação, transporte, saneamento, por exemplo -, tornando mais difícil equacionar o problema apontado. Claro está que uma parte do problema pode ser resolvido pelo manejo adequado da política tarifária, mas o espaço para aplicação de subsídios cruzados também se reduz como consequência do processo de municipalização.

Um novo espaço poderá ser aberto por redução de custos - e de tarifas - propiciados pela adoção de alternativas mais baratas resultante da flexibilização engendrada pela descentralização. Isso não dispensará, todavia, a necessidade de o governo aportar recursos fiscais. Nesse caso, algum esquema nacional para a sustentação de tarifas subsidiadas deverá ser pensado com o envolvimento simultâneo dos três entes federados.

2.2. O lado financeiro

Do lado do crédito, os problemas vivenciados decorrem principalmente do esvaziamento do fundo constituído pela poupança compulsoriamente formada através das contribuições para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço-FGTS - em decorrência:

  1. do estreitamento da base de incidência das contribuições para o FGTS resul­tante da crescente informalização das relações de trabalho;

  2. da instabilidade econômica e deterioração dos padrões salariais;

  3. do desvirtuamento do propósito original do FGTS mediante ampliação das possibilidades de saque dos recursos depositados;

  4. da má gestão dos recursos;

  5. da inadimplência dos mutuários.

Dados do IBGE indicam que os empregados formalmente registrados representam um contingente equivalente ao total dos trabalhadores urbanos do setor informal. Em números absolutos, o emprego formal em março de 1994 nas mais importantes áreas metropolitanas do país situara-se na mesma faixa do início dos anos 80 (cerca de 7,5 milhões), a despeito do crescimento do PIB e da população economicamente ativa nesse período. Como o salário médio real dos assalariados com carteira assinada apresentou queda nos últimos dez anos, a base contributiva é hoje significativamente menor em comparação com a alcançada quinze anos atrás5 5 Dados do DIEESE/SEADE para a Grande São Paulo apontam para uma redução da ordem de 30% no rendimento real médio dos assalariados na Grande São Paulo entre março de 1985 e março de 1994. .

A instabilidade econômica, a aceleração dos saques e o alto grau de inadimplência dos mutuários ampliaram as demandas sobre uma base cada vez mais reduzida. Em consequência, os financiamentos com recursos do FGTS despencaram para níveis equivalentes a apenas 15% dos valores alcançados no início dos anos 80.

Cabe indagar sobre as chances de recuperação do FGTS como fonte principal do crédito público para programas de desenvolvimento urbano. Embora as previsões apontem para disponibilidades da ordem de dois bilhões de reais, em média, nos próximos anos a sobrevivência do FGTS é alvo de contestação.

Sua principal função, a de oferecer proteção ao trabalhador involuntariamente desempregado, praticamente deixou de ser exercida, pelo menos para os trabalhadores de baixa renda, em decorrência não só do seu debilitamento financeiro, mas também da enorme rotatividade no emprego. Como regra geral, um empregado no setor privado em ocupações de um salário mínimo não consegue acumular importância equivalente ao salário de um único mês, uma vez que não se sustenta no emprego por tempo superior a um ano. A cada dispensa teria, portanto, direito a sacar do fundo uma importância insuficiente para cobrir o período de permanência na condição de desempregado.

Na prática, a proteção oferecida pelo FGTS para a grande maioria dos trabalhadores que percebem menos de cinco salários mínimos por mês é inferior à ajuda financeira concedida através do programa de seguro-desemprego. Estimativas realizadas com base em dados do FGTS indicam que trabalhadores cujo salário situa-se entre um e cinco mínimos mensais poderiam sacar por motivo de dispensa, importância equivalente a 4,5 salários mínimos, o que representa menos do montante concedido pelo programa de seguro-desemprego atualmente (o valor médio do seguro-desemprego é de 1,6 salários mínimos mensais por um prazo de até quatro meses)6 6 As estimativas do valor de saque no FGTS são de Roberto Zamboni (1994). .

A incapacidade de o FGTS desempenhar hoje a função para a qual foi concebida foi reconhecida pelo ex-ministro do Trabalho Walter Barelli, que defendeu publicamente a extinção do FGTS e sua substituição por outras formas de proteção ao emprego derivadas da regulamentação do art. 7º da Constituição Federal. As pressões por redução dos encargos que oneram a folha de salários das empresas e empurram grande parte da força de trabalho para a informalidade também concorrem para reforçar as perspectivas de extinção ou reformulação desse fundo. Aqueles que poderiam lutar pela sua sobrevivência - os segmentos mais organizados do mercado de trabalho, onde se incluem os empregados das mais importantes empresas estatais - parecem estar mais interessados em buscar saídas para evitar o próprio prejuízo que adviria de uma liquidação forçada do fundo.

A essência das propostas de reformulação que estão sendo contempladas está na concessão do direito de retirada para aqueles que optarem por transferir o patrimônio acumulado no FGTS para outro fundo, cuja administração deveria ser inicialmente feita por um agente financeiro federal, mas com critérios mais livres de aplicação, podendo os recursos desse novo fundo ser inclusive direcionados para o programa de privatização. Ao que parece, o problema da contribuição está em aberto. Para alguns, as novas contribuições, no caso dos que optarem por sair do FGTS, deveriam ir também para o novo fundo. Para outros, as novas contribuições permaneceriam dentro das normas vigentes. A questão da contribuição é crucial para o problema do financiamento do desenvolvimento urbano, pois a prevalecer a tese de que os novos recursos seriam também canalizados para o novo fundo, a atual fonte de recursos para o crédito público a programas urbanos tenderia a desaparecer.

A despeito da ausência de mérito, a implosão do FGTS, implícita em propostas que estão sendo discutidas no próprio colegiado encarregado de sua gestão, coloca em evidência a necessidade de rediscutir-se o papel do Estado no tocante à proteção oferecida ao desempregado. A estatização das provisões para atender a indenizações trabalhistas, promovida em 1967 com a criação do FGTS, não condiz com a realidade do momento. A proteção social garantida pelo Estado deve voltar-se com prioridade para assistir os mais desfavorecidos, impondo-se um limite em função do nível de renda e condições socioeconômicas do trabalhador.

A reforma previdenciária que vem sendo longamente discutida e preparada fornece um bom exemplo da tendência que deve ser seguida em outros segmentos da política social. Aí já parece ser consensual a tese de que a previdência estatal deve propiciar um benefício limitado, para atender à massa de trabalhadores que não tem condições de formar por conta própria o pecúlio necessário para cobrir os riscos decorrentes da doença, de acidentes, da velhice e da morte. A proteção ao desemprego deve subordinar-se ao mesmo princípio. Nesse caso, a substituição do FGTS por um programa ampliado de seguro-desemprego seria uma alternativa coerente com o princípio defendido e uma opção mais satisfatória para a grande maioria dos trabalhadores brasileiros.

Uma alteração do porte da anteriormente aventada implica a reformulação da principal fonte do crédito público para investimentos urbanos, mas não deve ser encarada como uma providência danosa aos interesses do financiamento do desenvolvimento urbano. Ao contrário, ela pode criar uma nova oportunidade para redesenhar a estratégia de financiamento, de modo a torná-la mais compatível com a natureza dos investimentos necessários e com a importância de reduzir os desequilíbrios no acesso aos serviços urbanos entre categorias da população.

Peça central dessa nova estratégia seria a criação de um novo fundo patrimonial, em substituição ao PIS/PASEP e ao FGTS, capaz de dar sustentação financeira a um programa ampliado de seguro-desemprego e de recriar linhas de crédito de longo prazo para o financiamento de investimentos na infraestrutura. Tal fundo poderia contar, ainda, com o aporte de recursos do orçamento da União, mediante verbas próprias consignadas no Orçamento Plurianual, de forma a permitir que o financiamento dos investimentos em áreas carentes e regiões menos desenvolvidas possa ser feito em condições favorecidas do ponto de vista de taxa de juros e prazos de pagamento.

Em resumo, o quadro atual caracteriza-se:

  1. pela abrupta queda na taxa de poupança e de investimento do setor público, acompanhada de uma profunda mudança na sua composição. Os traços marcantes da experiência recente a respeito foram: a redução a pouco mais da metade da contribuição do setor público (exceto estatais) para a formação bruta de capital fixo do país, comparativamente aos índices alcançados no início da década de 70; o virtual desaparecimento da poupança e do investimento capitaneados pelo governo federal, cuja predominância histórica foi superada por estados e municípios (os municípios somados investem hoje duas vezes mais que o governo federal); a modificação na repartição espacial dos recursos orçamentários no sentido de um maior volume de disponibilidades per capita em municípios de pequeno porte;

  2. pelo encolhimento das bases de sustentação dos fundos patrimoniais, formados por poupanças compulsórias criadas em obediência a preceitos constitucionais de interesse dos trabalhadores, em particular os que estipulam sua participação nos lucros e atribuem ao Estado o dever de assegurar a proteção do trabalhador contra a dispensa imotivada. A instituição do PIS/PASEP inspirou-se no primeiro dos dispositivos citados e a criação do FGTS deu novo formato à garantia contra o desemprego involuntário. Tais contribuições foram preservadas pela Constituição de 1988, mas a destinação de dois terços do PIS/PASEP ao programa de seguro-desemprego e a imposição de regras mais restritivas à contratação e dispensa de trabalhadores, somadas ao pesado ônus sobre a folha de salários das empresas, esvaziaram os fundos em questão;

  3. pela perda da capacidade de autofinanciamento das estatais em decorrência da descontinuidade da política tarifária, da perda de recursos fiscais cativos oriundos dos antigos Impostos Únicos, e dos pesados encargos financeiros de seu endividamento;

  4. pelo esvaziamento dos incentivos fiscais ao desenvolvimento regional e pela ausência de articulação desse instrumento financeiro com a política de aplicação dos recursos dos Fundos Constitucionais (FNO, FNE e FCO) para o financiamento do desenvolvimento do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Não obstante as evidências de que os recursos fiscais utilizados no financiamento de investimentos controlados pelo poder público tenham perdido substância comparativamente aos resultados alcançados nos anos 70, as disponibilidades atuais não representam uma soma desprezível. Somados, os investimentos realizados pela União, estados e municípios são da ordem de 3% do PIB. Os fundos patrimoniais - PIS/PASEP (parcela atribuída ao BNDES) e FGTS - dispõem de recursos equivalentes a 1% do PIB. Outros O, 15% do PIB alimentam os fundos constitucionais de desenvolvimento regional. Finalmente, os incentivos fiscais e a parcela deles atribuída ao PIN/PROTERRA representam recursos da ordem de 0,1 % do PIB. No total, portanto, o setor público comanda investimentos superiores a 4,2% do PIB, não computados neste montante os investimentos realizados com recursos próprios das empresas estatais.

A multiplicação das instâncias encarregadas da administração desses recursos, nas esferas federal, estadual e municipal, e a ausência de mecanismos capazes de articular as decisões de investimento e propiciar uma eficiente coordenação das aplicações, tanto no plano setorial quanto no espacial, foram sem sombra de dúvida fatores de consequências muito mais deletérias do que a queda nas disponibilidades para o financiamento de novos investimentos. Tivesse a redução do volume sido acompanhada de um esforço de racionalização das aplicações e de rígida aderência às prioridades do ajustamento da estrutura produtiva brasileira às exigências ditadas pela globalização dos mercados e a integração competitiva ao mundo moderno, o melhor direcionamento dos investimentos teria atenuado o impacto da maior restrição financeira.

Na ausência de fatores propícios à articulação e coordenação das decisões de investimento predominaram a pulverização, o casuísmo e o clientelismo, facilitados pela dispersão dos recursos em vários centros de decisão, cada um deles comandando uma verba insuficiente para viabilizar empreendimentos de maior porte, porém capaz de angariar apoio político em troca do suporte financeiro para realizações de pequeno vulto, com grande visibilidade eleitoreira e escasso impacto na economia e na sociedade. No âmbito do Orçamento da União, a estratégia predominante foi a distribuição de pequenas doses de recursos a um grande número de pretendentes através de convênios de duvidosa utilidade e garantida ineficácia.

Recursos dos fundos constitucionais para o desenvolvimento regional, bem como os incentivos fiscais a ele direcionados tiveram um destino semelhante. A própria Constituição restringiu a liberdade de aplicação desses fundos e a possi­bilidade de eles serem direcionados para necessidades mais urgentes e específicas de cada região, ao impor uma regra uniforme para todos que vincula os recursos desses fundos a investimentos no setor produtivo. A isso somou-se a orientação adotada pela legislação que os regulamentou de dar prioridade ao atendimento dos pleitos de pequenas empresas, ainda que as condições do crédito não fossem condizentes com essa finalidade. Por mais nobres que fossem as intenções desses dispositivos, a pulverização das aplicações e o alto grau de inadimplência dos mutuários foi a consequência.

Do lado dos incentivos fiscais, o quadro é ainda mais dramático. Como a carteira de projetos aprovados é várias vezes maior que as disponibilidades anuais dos respectivos fundos (FINAM e FINOR) e as pressões políticas não dão espaço para uma rígida eleição de prioridades, a administração dos incentivos baseia-se em conceder uma ração mínima a cada empreendimento aprovado para evitar a morte do projeto por asfixia financeira. Já o PIN/PROTERRA, que na concepção original deveria bancar projetos capazes de promover o ordenamento territorial e a integração nacional, transformou-se também em mais uma fonte de recursos que alimenta o clientelismo na repartição dos recursos federais e os malfadados convênios de ajuda financeira a governos estaduais e municipais.

Nem mesmo os fundos patrimoniais permaneceram incólumes ao avanço de interesses menores sobre o Estado e ao casuísmo da reação do governo às pressões. O estrago provocado pela gestão irresponsável dos recursos do FGTS no início da década só agora começa a ser reparado. Por diversas vezes, recursos do FAT foram “emprestados”, com autorização legislativa, para cobrir emergências nas áreas da saúde e da previdência. Ao que parece, apenas a parcela do FAT transferida ao BNDES para aplicação em financiamentos industriais teria sido menos afetada pela onda de casuísmo e de excessiva “politização” das decisões dos investimentos na órbita do setor público no passado recente.

3. IMPLICAÇÕES DA ESTABILIZAÇÃO

As perspectivas de estabilização econômica sinalizam impactos imediatos contraditórios sobre a situação fiscal. De um lado, a queda da inflação e a melhoria do nível de atividade econômica provocam efeito positivo imediato sobre os níveis de arrecadação de tributos (haja vista o excelente resultado da arrecadação federal em 1994 - mais de cem bilhões de reais - e no primeiro semestre de 1995). De outro, a ocorrência de uma maior “folga” no caixa reacende as pressões há longo tempo represadas por expansão do gasto, com precedência para as questões ligadas aos salários do funcionalismo e ao custeio dos programas governamentais - a saúde, em primeiro lugar.

Assim, embora a recuperação da receita tivesse sustentado a obtenção de um equilíbrio orçamentário (no conceito operacional) em 1984, que poderá repetir-se em 1995, a situação fiscal ainda apresenta um alto grau de instabilidade. Assim, a sustentação do equilíbrio fiscal em 1996 ainda depende de um redobrado esforço de contenção do gasto, levando em conta que a redução do ritmo de expansão da atividade econômica deverá arrefecer o crescimento da arrecadação.

O habitual cenário da troca de comando nos governos estaduais, marcado por denúncias dos novos governadores de receberem uma massa falida, e a anunciada disposição do governo federal de desta vez enfrentar o velho problema dos bancos estaduais, não permitem antever que o panorama das finanças estaduais em 1995 e 1996 possa ser muito distinto daquele que se descortina para a União. Embora a situação dos municípios seja, em geral, menos dramática, as pressões que sobre eles recaem para ampliar o gasto em serviços urbanos e sociais não deverão dar muito espaço para significativos incrementos nos seus investimentos, ainda que eles venham a beneficiar-se da melhoria das receitas federais e estaduais.

A restauração da capacidade de investimento do FGTS, fruto de uma maior austeridade no seu gerenciamento nos últimos dois anos, é um dado positivo - conforme mencionado, espera-se uma disponibilidade de cerca de três bilhões de reais para aplicações em 1995 - mas as distorções provocadas no mercado de trabalho brasileiro por normas excessivamente rígidas da legislação trabalhista e pelos pesados encargos que multiplicam o custo da mão-de-obra não permitem que os recursos desse fundo respondam à reativação da economia. Estatísticas do Ministério do Trabalho mostram que apenas setecentos mil empregos formais teriam sido criados entre setembro de 1992 e setembro de 1994, período em que a economia brasileira sustentou taxas de crescimento anuais da ordem de 5%. Outra informação relevante é fornecida pelo DIEESE: enquanto o emprego com carteira assinada na Grande São Paulo cresceu apenas 1,5% no período acima citado, o contingente de trabalhadores sem carteira cresceu 27%. Assim, embora a reativação da economia possa trazer algum efeito benéfico sobre o emprego, é possível que a estabilização dos preços force uma maior informalização das relações de trabalho, na medida em que o repasse dos encargos sociais para o consumidor já não se beneficie da falta de transparência sobre os preços praticados no mercado, que vigia no contexto de taxas elevadas de inflação.

Melhores horizontes são previsíveis no futuro imediato para o FAT, que dispõe de uma receita que responde mais diretamente ao aumento de vendas e à receita das instituições financeiras, devendo beneficiar-se, portanto, da manutenção de taxas elevadas de juros durante todo o período necessário à consolidação do real. Também os fundos constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, assim como os incentivos fiscais, deverão receber recursos adicionais oriundos do crescimento esperado na arrecadação do Imposto de Renda e do IPI, muito embora o acréscimo possível não altere significativamente a situação em que eles hoje se encontram.

Em resumo, a melhoria do quadro econômico não deve alterar substancialmente as restrições hoje existentes quanto a disponibilidades totais de recursos controlados pelo setor público para o financiamento do desenvolvimento brasileiro. No entanto, se o impacto quantitativo não deve ser expressivo, as chances de uma conjuntura econômica e política mais favorável criarem um ambiente propício à adoção de providências voltadas para uma mais eficiente utilização dos recursos disponíveis não devem ser perdidas.

4. EXPECTATIVAS DA REFORMA CONSTITUCIONAL

Falsas expectativas criadas em tomo de impacto imediato da reforma constitucional na área fiscal também precisam ser afastadas. Do lado tributário, as alterações que precisam ser feitas para eliminar as notórias distorções econômicas do sistema tributário e reduzir a iniquidade na repartição do ônus fiscal podem acarretar perda de arrecadação no curto prazo7 7 Análise da Secretaria da Receita Federal de 65 propostas de emendas ao capítulo tributário apresentadas ao Congresso Revisor conclui que a avassaladora maioria delas acarretariam queda na carga tributária e que essa queda seria mais sentida pelo governo federal. , embora essas perdas venham a ser compensadas no médio e longo prazos pela expansão da economia e a redução da evasão. Do lado do gasto, a redistribuição dos encargos públicos na federação, na linha da pretendida descentralização de encargos, também deve provocar um aumento no dispêndio do setor público, até que sejam encontradas brechas legais para solucionar os problemas relativos à administração dos recursos humanos (estabilidade e isonomia) e patrimoniais no período de transição.

A reforma previdenciária é outra fonte de equívocos, no que diz respeito a seu impacto fiscal. Ainda que venham a ser aprovadas as recomendações de extinguir privilégios, impor uma idade mínima para a aposentadoria e estabelecer um teto para os benefícios previdenciários pagos pelo Estado, o impacto dessas medidas sobre o dispêndio da previdência só terá expressividade no médio e longo prazos, a menos que vislumbrássemos a hipótese de romper com os direitos já adquiridos. No curto prazo, as pressões por recomposição do salário mínimo (também não parece provável que a tese de desvincular os benefícios previdenciários do salário mínimo saia vitoriosa) e a queda na elasticidade da arrecadação previdenciária em relação à renda (devido às distorções do mercado de trabalho) permitem prever que a administração financeira da previdência continuará sendo um ponto crítico, cuja pressão sobre o Tesouro oscilará ao sabor de pequenas variações na atividade econômica e na política salarial. Além disso, a transferência integral das responsabilidades pelo financiamento da saúde para o Tesouro federal continuará exercendo uma forte pressão sobre as disponibilidades de caixa da União, a exemplo do que já vem ocorrendo. A contrapartida de uma profunda reforma previdenciária, inspirada nos princípios básicos de um regime de capitalização e voltada para a recuperação da autonomia da previdência social, é a absorção pelo Tesouro não só do integral financiamento da saúde, mas também da responsabilidade pelo pagamento dos benefícios constitucionais não amparados na contribuição para o sistema, a exemplo da renda mínima para idosos e deficientes.

5. EM BUSCA DE NOVAS SOLUÇÕES

A solução dos problemas que vêm se arrastando há algum tempo, no tocante ao financiamento do desenvolvimento urbano, não depende apenas de se recompor a capacidade de atuação do governo federal. De acordo com o exposto anteriormente, as transformações em curso e as novas propostas que vêm sendo debatidas no âmbito das reformas constitucionais (em particular a fiscal a previdenciária) sinalizam novos caminhos a serem trilhados com respeito à redefinição do papel do Estado, à abertura de maiores possibilidades para a cooperação da iniciativa privada com o poder público e à repartição das responsabilidades públicas na federação.

Embora o desfecho dessas mudanças ainda seja incerto, três questões importantes para a consolidação de um novo modelo de financiamento do desenvolvimento urbano precisam ser consideradas. São elas:

  1. o equilíbrio na aplicação dos recursos;

  2. a eficiência na gestão;

  3. a garantia de continuidade dos investimentos.

Já vimos anteriormente que um dos problemas provocados pela forma particular de descentralização fiscal promovida pela Constituição de 1988 foi o desequilíbrio entre disponibilidades orçamentárias e demandas urbanas, no sentido da menor disponibilidade per capita de recursos nas cidades mais populosas e regiões metropolitanas. Tal desequilíbrio provoca novos desafios para o processo de descentralização/municipalização e para o perfil da cooperação financeira intergovernamental. A manter-se o desequilíbrio orçamentário interestadual e intermunicipal, os municípios de maior porte e até mesmo os estados mais desenvolvidos encontrarão dificuldades para atender às necessidades do financiamento urbano com recursos próprios, principalmente com respeito a investimentos e subsídios. Assim, ainda que as tarifas possam vir a cobrir integralmente os custos operacionais, a assistência financeira da União não poderá ser dispensada.

Do lado das aglomerações urbanas de menor porte, o problema coloca-se de forma invertida. A menor complexidade das soluções possíveis nesses casos levanta uma perspectiva mais favorável com respeito ao financiamento orçamentário, enquanto a escala reduzida de operação dos serviços, juntamente com o menor poder aquisitivo da população, limita as possibilidades de financiamento pela via tarifária.

Nesse contexto, a assistência financeira da União deveria pautar-se pela tentativa de atenuar o desequilíbrio na repartição espacial de recursos fiscais e equacionar os problemas dele derivados. Uma primeira providência nessa direção seria abolir a fragmentação dos recursos destinados ao setor no Orçamento Geral da União, de modo a concentrar as disponibilidades fiscais do orçamento federal em investimentos prioritários. Outra iniciativa importante consistiria na definição de um esquema financeiro para sustentar o subsídio tarifário necessário para o atendimento das demandas essenciais, conforme mencionado anteriormente.

A redução dos desequilíbrios apontados é também importante para a eficiência na gestão dos recursos destinados ao desenvolvimento urbano. A dissociação das decisões de gastar e de tributar, no nível local, reduziu as possibilidades de exercício de um maior controle social sobre o gasto público, gerando um ambiente propício à irresponsabilidade e ao desperdício. Se a revisão constitucional não enfrentar o delicado problema político de modificar a fisionomia do federalismo fiscal brasileiro, a política federal de financiamento do desenvolvimento urbano precisará contemplar com maior rigor o problema da eficiência. Nesse caso, uma regra básica consiste em submeter toda e qualquer decisão de aplicação de recursos da União à apresentação de projetos bem fundamentados e enquadrados nas prioridades da política nacional de desenvolvimento urbano. Na forma anteriormente sugerida, o ideal seria reunir os recursos do OGU aos recursos de crédito, extinguindo-se a prática de repasse mediante convênios. O subsídio de natureza social deveria ficar por conta de um fundo nacional capaz de viabilizar a utilização de tarifas de interesse social, cuja formulação e operação ainda carece de maiores reflexões e debates.

A questão da garantia de continuidade das aplicações também precisa ser repensada. Ainda que a proibição constitucional de vinculação de receitas e de tributos a fundos específicos seja mantida, urge restabelecer um mínimo de garantia financeira para evitar os desperdícios decorrentes da excessiva instabilidade que compromete o cronograma de implementação dos projetos e aumenta os custos de execução. A sugestão, anteriormente mencionada, consiste em estipular a fração do orçamento federal atribuída a programas de desenvolvimento urbano por um período de três anos, consignando-a explicitamente no Orçamento Plurianual de Investimentos e recuperando a função desse orçamento enquanto instrumento importante do planejamento governamental.

Critérios rigorosos para o acesso a recursos públicos - fiscais e creditícios - acompanhado da gestão autônoma, por agente financeiro federal, das linhas de crédito para o desenvolvimento urbano sustentadas com recursos de fundos patrimoniais constituem requisitos essenciais de uma nova política de financiamento voltada para a recuperação da capacidade de a União exercer uma mais efetiva coordenação das ações empreendidas no campo do desenvolvimento urbano e capaz de induzir uma utilização mais eficiente dos recursos disponíveis.

Uma preocupação importante dos critérios a serem estabelecidos deve ser o estímulo a parcerias - entre o poder público e a iniciativa privada e entre Estado e sociedade - capazes de, ao mesmo tempo, diversificar as fontes de financiamento do setor e propiciar condições para uma gestão mais eficiente dos recursos. Em particular, cabe estipular garantias concretas, mediante uma legislação tarifária de âmbito nacional, para a remuneração do capital privado aplicado na expansão e modernização dos serviços urbanos, e flexibilizar as regras aplicáveis à concessão de serviços de utilidade pública como pré-requisitos importantes para tornar viável o desejo de multiplicação das mencionadas parcerias.

Ainda que a reforma constitucional nos campos fiscal e previdenciário não aponte para resultados promissores no tocante a melhorias imediatas significativas das contas governamentais e da disponibilidade de recursos públicos para o financiamento do desenvolvimento, a contribuição que vier a dar para as reformas do Estado e da administração pública é fundamental para o redesenho institucional voltado para a recuperação de padrões mínimos de eficiência na gestão dos recursos disponíveis.

O novo desenho institucional deve substituir a centralização dos recursos pela coordenação das decisões, com vistas a assegurar o direcionamento das aplicações e sua aderência às prioridades nacionais; a pulverização pela reunião dos recursos, no sentido de viabilizar o financiamento de empreendimentos de grande porte e de alto efeito multiplicador sobre a economia; o apadrinhamento pela qualificação, no tocante a critérios para a aprovação dos pleitos e a liberação subsequente do financiamento.

À União cabe instituir os mecanismos apropriados para promover os efeitos desejados. Uma forma de fazê-lo é recompor um sistema nacional de financiamento urbano, cujas características básicas seriam:

  1. adesão - o sistema seria nacional e não federal. Dele participariam a União, os estados e os municípios segundo regras a serem estabelecidas posteriormente. Os recursos federais comporiam linhas de crédito específicas (por exemplo: habitação, saneamento e transporte coletivo). Estados e municípios participariam com a contrapartida de recursos próprios para reforçar as linhas de crédito que corresponderem às suas próprias prioridades de intervenção, de modo a permitir, pela reunião de fontes federais, estaduais e municipais, que projetos que ultrapassem a escala do interesse nitidamente local contem com um funding suficiente para viabilizar sua implementação;

  2. potencialização - os recursos federais poderão ser utilizados para multiplicar as disponibilidades de financiamento mediante a internalização de recursos externos e a parceria com o setor privado, onde couber. No caso de recursos externos, a contrapartida de recursos domésticos é hoje o principal obstáculo à entrada desses recursos no país. Assim, estados e municípios cujas oportunidade de acesso ao crédito externo são maiores, em função do tamanho de suas economias, poderiam compor uma equação financeira adequada com base no acesso a recursos federais para complementar a contrapartida requerida, enquanto estados e municípios menos desenvolvidos poderiam ser mais contemplados com recursos domésticos controlados pela União;

  3. participação - as decisões sobre a distribuição dos recursos seriam submetidas a um órgão colegiado, no qual teriam assento representantes dos principais interesses em jogo. De modo que a autonomia federativa seja respeitada, tal colegiado deveria ser organizado em cada uma das instâncias da federação. No âmbito federal, as decisões desse colegiado orientariam a política de aplicação dos recursos administrados pela União, o mesmo ocorrendo nos planos estadual e municipal. Estados e municípios que estabelecerem estratégias de aplicação mais consentâneas com as prioridades nacionais estariam obviamente em melhores condições para reforçar suas linhas de crédito com recursos administrados pela União;

  4. capilaridade - a reunião de recursos não deve ser confundida com uma gestão centralizada e única do crédito público para investimentos. O bom funcionamento de qualquer sistema financeiro coerente com a proposta em questão requer o estabelecimento de uma rede de agentes financeiros - públicos e privados -, credenciado pelo órgão colegiado acima referido, na qual os agentes federais deveriam exercer preferencialmente uma função de “bancos de segunda linha”, sem envolver-se diretamente com o mutuário final. A capilaridade de rede de agentes financeiros, que operaria segundo instruções baixadas pelo colegiado e seria por eles fiscalizada, é um requisito indispensável para a agilidade das decisões e para evitar os conhecidos vícios da centralização;

  5. profissionalização - uma das preocupações básicas deve ser a de eliminar o clientelismo nas decisões sobre a aplicação de recursos públicos. Para tanto recomenda-se que os pleitos de crédito para investimentos sejam respaldados em projetos elaborados em consonância com regras claras e objetivas e submetidos ao crivo de profissionais de reconhecida capacitação na área em que eles se situam, que comporiam um núcleo técnico de apoio ao funcionamento dos colegiados. A este núcleo técnico caberia também exercer a fiscalização e o controle das aplicações, bem como a responsabilidade por propor as sanções apropriadas nos casos em que for constatada qualquer espécie de irregularidade.

Em princípio as chamadas aplicações “a fundo perdido” devem ser abolidas, ou restritas a casos muito especiais de indisputável interesse social. O subsídio creditício, este sim, pode ser contemplado de maneira explícita nas distintas linhas de crédito com base nas respectivas finalidades e na pré-definição de um mix de fontes financeiras que permita conceder o subsídio sem comprometer o retomo das aplicações feitas com recursos oriundos de fundos patrimoniais. Nos casos em que for realmente necessário, o subsídio creditício deve ser concedido a partir da reunião de recursos orçamentários e de fundos patrimoniais e limitado à participação relativa da fonte orçamentária no total das aplicações.

A busca da eficiência na aplicação dos recursos públicos disponíveis não elimina a necessidade de se efetuar um grande esforço de ampliação das possibilidades de financiamento. Em que pese o fato de que não se deve esperar incrementos significativos nas disponibilidades do setor público no futuro próximo, a mobilização de outras fontes pode vir a ser facilitada pelo rearranjo institucional acima referido. Além dos recursos administrados pelas agências internacionais de desenvolvimento, outra possibilidade sempre aventada refere-se aos fundos de pensão, cujo potencial de expansão, na hipótese de aprovação de uma reforma previdenciária que estabeleça tetos rígidos para a proteção estatal, é sempre lembrada pelos especialistas.

6. COMENTÁRIOS FINAIS

Embora a construção de um novo modelo de financiamento do desenvolvimento urbano dependa de reformas constitucionais que envolvam temas politicamente delicados - e que irão desafiar a capacidade de negociação do governo -, as vicissitudes do momento não permitem aguardar o desfecho dessas mudanças e o prazo necessário para sua vigência. Enquanto isso, há que tomar providências imediatas para recuperar desde logo alguma capacidade de a União utilizar instrumentos fiscais e financeiros como peças importantes de uma estratégia nacional de desenvolvimento urbano.

Dessa perspectiva definem-se dois momentos distintos: a) um período de transição, cujo prazo coincide com a conclusão de uma nova tentativa de revisão constitucional que está sendo promovida; b) uma etapa de consolidação de um novo modelo, cujas linhas gerais foram traçadas anteriormente e cujos contornos definitivos só poderão ser definidos após o conhecimento da amplitude e da profundidade da reforma da Constituição.

No período de transição importa trabalhar no sentido de reunir os recursos disponíveis no plano federal sob uma única direção de modo a obter melhores resultados com respeito à coordenação das aplicações e à eficiência operacional. A proposta de submeter a aplicação dos recursos fiscais e financeiros à prévia apresentação de projetos enquadrados nas prioridades do desenvolvimento urbano (que não depende de modificação constitucional) pode ser imediatamente considerada. Para tanto haveria de submeter a aprovação dos pleitos encaminhados ao governo a uma única autoridade, tanto no caso de recursos fiscais quanto para os recursos do FGTS. O ideal seria propiciar desde logo um gerenciamento conjunto das duas fontes, de modo a criar condições mais favoráveis do ponto de vista de requisitos regionais e sociais, mas essa não é uma condição essencial, de imediato. O importante é que as decisões, em ambos os casos, obedeçam a uma orientação comum, calcada em prioridades amplamente reconhecidas.

A imediata subordinação da assistência financeira concedida pela União a programas de desenvolvimento urbano às diretrizes estabelecidas para o setor constitui um passo importante para devolver ao governo federal a capacidade de induzir decisões de investimentos do setor público como um todo, no sentido da complementaridade de ações, da atenuação dos desequilíbrios e da eficiência do gasto. Além disso ela poderá contribuir para a criação de maiores oportunidades de participação do setor privado no financiamento de projetos que apresentem condições satisfatórias do ponto de vista do retorno do capital investido.

Uma questão fundamental para que a iniciativa privada se disponha a investir na área urbana é a garantia de estabilidade das regras do jogo. Não basta avaliar a rentabilidade ou não do projeto em um dado momento. É fundamental ter segurança de que a rentabilidade será preservada ao longo do tempo pela não-ingerência do poder público em decisões que interfiram no cálculo inicial, em particular no que diz respeito à questão tarifária.

A tradição brasileira de manipulação de tarifas de serviços públicos à luz de interesses da política econômica (controle dos índices de preços), de preocupações sociais e de interesses eleitoreiros constitui um importante obstáculo para que o propósito de ampliar a participação do capital privado no financiamento de projetos urbanos seja alcançado. Assim, urge trabalhar no sentido de instituir garantias sólidas para contornar a natural desconfiança com respeito à estabilidade da política tarifária.

Consolidada a estabilização monetária, o controle tarifário com o objetivo de atenuar pressões inflacionárias perde relevância e significado, mas os demais fatores intervenientes persistem, principalmente o de natureza social. Em princípio, uma legislação tarifária, de âmbito nacional, pode estabelecer princípios gerais que zelem pela integridade do cálculo tarifário, mas a definição da tarifa é matéria que deve ser da responsabilidade dos estados e, principalmente, dos municípios. Uma salvaguarda importante pode ser a exigência, na lei nacional, de que estados e municípios que concedam subsídios para atender às demandas da população de baixa renda sejam obrigados a consignar esses subsídios nos respectivos orçamentos, para tornar explícito o montante do benefício concedido (nesse caso os recursos poderiam ser repassados à empresa prestadora dos serviços ou concedidos diretamente ao usuário).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    Consultar Velloso (1993VELLOSO, Raul (1993) “Rigidez orçamentária da União”. In Velloso, João Paulo (org.) Brasil, a superação da crise. Rio de Janeiro, Nobel. ).
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  • 4
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  • 5
    Dados do DIEESE/SEADE para a Grande São Paulo apontam para uma redução da ordem de 30% no rendimento real médio dos assalariados na Grande São Paulo entre março de 1985 e março de 1994.
  • 6
    As estimativas do valor de saque no FGTS são de Roberto Zamboni (1994ZAMBONI, Roberto (1994) “Subsídios para a análise dos limites do FGTS enquanto instrumento para financiar a política de proteção ao trabalhador e de desenvolvimento urbano”. Mimeo. .).
  • 7
    Análise da Secretaria da Receita Federal de 65 propostas de emendas ao capítulo tributário apresentadas ao Congresso Revisor conclui que a avassaladora maioria delas acarretariam queda na carga tributária e que essa queda seria mais sentida pelo governo federal.
  • 8
    JEL Classification: R11; R58; O23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1997
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