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A proteção à indústria automobilística na Europa e no Mercosul

The protection of the automobile industry in Europe and Mercosur

RESUMO

A indústria automobilística é um oligopólio internacional que tem uma longa tradição de influenciar negociações comerciais e políticas nacionais. Devido ao tamanho do setor e às ligações de produção, as decisões de investimento tomadas pelas montadoras geralmente geram consequências econômicas que podem ser facilmente transformadas em poder político. Este artigo discute as regras implementadas pela União Europeia nesta década para enfrentar esse desafio, destaca as diferenças em relação às medidas aplicadas pelo governo brasileiro desde 1995 e sugere que as políticas europeias sejam especialmente adequadas ao Mercosul.

PALAVRAS-CHAVE:
Política industrial; protecionismo; oligopólio; indústria automobilística

ABSTRACT

The auto industry is an international oligopoly that has a long tradition of influencing trade negotiations and national policies. Due to the industry’s size and production linkages, the investment decisions made by the assembly firms often generate economic consequences that can be easily transformed into political power. This paper discusses the rules implemented by the European Union during this decade to face this challenge, highlights the differences in regard to the measures applied by the Brazilian government since 1995 and suggests that the European policies are especially suitable for Mercosur.

KEYWORDS:
Industrial policy; protectionism; oligopoly; auto industry

1. INTRODUÇÃO

A indústria automobilística é um oligopólio internacional com longa tradição de influenciar tratados comerciais e políticas nacionais. Entre os exemplos notáveis dessa tradição, incluem-se as estratégias de industrialização do Brasil, Argentina e México nas décadas de 50 e 60; o pacto Canadá - Estados Unidos de 1965; as políticas latino-americanas de promoção de exportações nos anos 70 e 80; o acordo VER entre Estados Unidos e Japão de 1981; a recorrente competição entre governos estaduais na oferta de incentivos fiscais, sobretudo nos Estados Unidos, na União Europeia e no Brasil; as atuais medidas vigentes no Mercosul etc. Devido ao tamanho da indústria e aos seus vínculos inter-setoriais, as decisões de investimento feitas pelas montadoras costumam gerar impactos não só no nível de emprego e nas condições de crescimento macroeconômico, mas também no balanço de pagamentos e no ritmo de progresso técnico do país. Como essas cifras podem ser facilmente transformadas em poder político, os fabricantes de automóveis têm sido capazes de extrair privilégios governamentais no mundo inteiro há várias décadas. Atualmente, com exceção do Japão, onde as tarifas aduaneiras para veículos e autopeças são nulas e a única restrição à importação são as normas de segurança e de impacto ambiental, essa indústria é protegida em todos os países em que opera.

Reconhecendo a importância econômica e o poder político das montadoras, a Comissão Europeia editou, em 1989, o seguinte protocolo: (a) Qualquer projeto superior a 12 milhões de Ecus (European Currency Unit), relacionado à produção de veículos ou de motores, que receba auxílio governamental está sujeito a notificação prévia à Comunidade. A notificação deve indicar os motivos que levaram o governo a conceder o apoio, bem como a natureza do projeto, a ser classificada segundo as metas perseguidas nas áreas de reestruturação de plantas industriais, desenvolvimento regional, introdução de novos produtos e processos, P&D em estágio pré-competitivo, e custeio de operações correntes da empresa. (b) Os Estados membros devem apresentar relatórios anuais descrevendo todos os tipos de suporte concedidos a essa indústria, independentemente de seu valor, seguindo a mesma metodologia aplicada no item anterior. (c) A assistência concedida através do European Investment Bank também é supervisionada. (d) Com base nas informações acima, a Comissão examina o impacto dos projetos nos âmbitos macroeconômico, setorial, regional e social. Todavia, a avaliação final focaliza primordialmente as distorções provocadas nas condições de concorrência, tanto entre as firmas europeias como em relação ao resto do mundo1 1 “Community framework on State aid to the motor vehicle industry”, Official Journal of the European Communities (OJ), C 123, 18.5.89, p.3. .

Entre 1989 e julho de 1996, a Comissão analisou 57 projetos sob o amparo desse protocolo, no valor total de 5,4 bilhões de Ecus de subsídios explícitos, que corresponderam a montantes anuais bem inferiores àqueles que eram usuais no passado. No período de 1977 a 1987, os fabricantes de veículos haviam recebido cerca de 26 bilhões de Ecus concedidos pelos Estados membros (cf. OJ, C 279, 15.9.97). Além de haver criado um mecanismo transparente para o diálogo com a indústria, a implementação do protocolo vem revelando outros méritos, como o de disciplinar a competição entre os governos locais na concessão de incentivos fiscais, o de reduzir a assimetria das informações compartilhadas pelo governo e o setor privado, e o de utilizar exclusivamente instrumentos compatíveis com as normas da Organização Mundial do Comércio (OMC), evitando, assim, disputas comerciais.

Este artigo compara o protocolo europeu com os incentivos concedidos pelo governo brasileiro à indústria automotiva a partir de 1995, visando estabelecer um marco de referência para uma eventual política dos países do Mercosul em relação a esse setor. A seção 2 descreve as normas europeias e as características gerais de sua implementação na presente década. Esses elementos servem de base para a seção 3, que examina os benefícios destinados às montadoras pelo Decreto 1.761, de 26.12.95, ratificados posteriormente através da Lei 9.440, de 14.3.97, cuja vigência se estende até dezembro de 1999. Por fim, a seção 4 conclui a análise, sugerindo a convergência entre os estilos de política industrial do Mercosul e da União Europeia.

2. O PROTOCOLO EUROPEU

A tabela 1 mostra a distribuição geográfica da indústria automobilística em 1995, cujo traço mais notável é a concentração da produção em três localidades principais - Europa, Estados Unidos e Japão - responsáveis por cerca de 80% da oferta global de veículos leves (automóveis e utilitários). Não obstante o dinamismo da indústria japonesa nas últimas décadas, o maior centro de produção continua a ser a Europa Ocidental2 2 A Europa Ocidental constitui, de fato, um único mercado, dado que não existem mais barreiras comerciais entre a União Europeia e os membros da Associação Europeia de Livre Comércio. , com 33,8% do total mundial. Os demais produtores com alguma expressão internacional - Coréia do Sul, Canadá e Brasil - representam menos de 15% daquele total3 3 Conforme ocorre com estatísticas mundiais, esses percentuais apenas sugerem ordens de grandeza, em virtude das inevitáveis dificuldades de compilação. Segundo os dados da Anfavea, por exemplo, a produção brasileira de veículos leves em 1995 foi de 1.536 mil unidades, e não 1.462, como indica a tabela 1. . Em 1993, após uma década de esforços de reestruturação e de redução contínua de postos de trabalho, o setor automotivo ainda gerava direta e indiretamente 4,5 milhões de empregos na União Europeia, cerca de 15% do mercado de trabalho industrial da Comunidade (Holmes e Smith, 1995HOLMES, P., e SMITH, A. (1995). “Automobile industry”. In BUIGUES, P., JACQUEMIN, A. e SAPIR, A. (orgs.). European policies on competition, trade and industry. UK: Edward Elgar, Aldershot.).

Tabela 1
Produção Mundial de Veículos Leves, 1995

Em contraste com sua projeção internacional e com os quarenta anos de formação do mercado comum, a indústria automobilística permaneceu relativamente à margem do processo europeu de integração. Conforme mostram as tabelas 2 a 4, ainda hoje as montadoras concentram suas operações em seus mercados nacionais, com moderadas incursões no resto da região. Cabe registrar, entretanto, algumas mudanças recentes. Na França, por exemplo, os dez modelos mais vendidos, que absorviam 61,9% do mercado em 1989, reduziram sua participação para 50,9% em 1995. Na Itália, tais parcelas caíram de 59,1 % para 46,1 %, entre 1989 e 1994. Contudo, a despeito dos elevados investimentos americanos, japoneses e coreanos realizados na Europa durante os últimos vinte anos, as empresas locais perderam apenas 5% do mercado regional entre 1984 e 1994, conforme indica a tabela 5.

Tabela 2
Modelos mais Vendidos na Alemanha, 1989 e 1995
Tabela 3
Modelos mais Vendidos na França, 1989 e 1995
Tabela 4
Modelos Mais Vendidos na Itália, 1989 e 1994
Tabela 5
Mercado Europeu de Automóveis segundo a Origem das Empresas, 1984-1994

Da mesma forma, os processos produtivos continuam organizados essencialmente em bases locais. Em 1988, as montadoras europeias adquiriam, em média, mais de 80% de autopeças através de empresas localizadas nas vizinhanças de suas instalações (cf. Jones, 1992JONES, D. (1991). “From protection to global players: corporate strategy and the European auto industry”. In MATTSSON, L. e STYMNE, B. (orgs.). Corporate and industry strategies for Europe. North-Holland.). Além disso, segundo o estudo realizado por Ernst e Young para a Comunidade em 1997, as empresas fabricantes de autopeças são, em geral, controladas por capitais locais: 86,2% na Alemanha, 60,2% na França, 57,5% na Itália, e 54,4% no Reino Unido (Comissão Europeia, 1997Comissão Europeia (1997). The single market review, impact on manufacturing: motor vehicles. Bruxelas: Estudo preparado por Ernst & Young., p.112). Tais peculiaridades retardaram a adaptação das montadoras às novas condições de competição internacional estabelecidas a partir dos anos 80. Como observou Dorothea Noble: “European firms face issues not felt by their competition. National loyalty inhibits plant closure and moves to lower cost locations. Saab and Volvo rejected merger because logically it would involve plant closure at home. Volkswagen faced union action on moving production from Germany to Spain, and subsequent concern in Spain when East Germany seemed likely to attract VW investment. Brand loyalty influenced European firms to retain wide ranges, involving uneconomic production runs. US firms in Europe have been quicker to standardize European models and badge for national preference. European firms are beginning to adopt the same principle; Fiat and Rover have talked of a joint venture to replace the Metro, to be Lancia-badged for Fiat. A joint research project between national rivals Peugeot and Renault was annouced in 1990” (1992NOBLE, D. (1992). “Industry dynamics in Europe: the motor industry”. In YOUNG, S. e HAMILL, J. (orgs.). Europe and the multinationals. UK: Edward Elgar, Aldershot.: 106).

Assim, em 1989, quando o protocolo automotivo foi assinado, a indústria europeia enfrentava três desafios interdependentes: a defasagem tecnológica em relação ao Japão, os novos padrões de controle ambiental e o excesso de capacidade produtiva. Conforme documentaram Womack et al. (1990WOMACK, J., JONES, D., e ROOS, D. (1990). The machine that changed the world. Londres: Macmillan.), o atraso tecnológico podia ser resumido através de um indicador básico, o tempo de montagem de um veículo, cuja média japonesa era inferior à metade da europeia. A questão ambiental implicava um conjunto de medidas que ia além do redesenho dos motores e do aumento de eficiência no uso de combustíveis, envolvendo temas tão variados como engenharia de trânsito, horários de trabalho, normas de segurança ambiental, metrologia e certificação de desempenho de veículos. E a capacidade ociosa impunha uma restrição adicional à definição dos investimentos necessários para superar os dois desafios anteriores, uma vez que também se tratava de um problema estrutural de longo prazo4 4 Não obstante as disciplinas impostas pela Comunidade e os esforços de reestruturação realizados pelas empresas na presente década, o excesso global de capacidade produtiva da indústria automotiva europeia, que foi de 28,2% em 1994, será, provavelmente, de 26,4% no ano 2000, segundo as estimativas mais recentes (Vide Comissão Europeia, 1997a). .

Do ponto de vista da Comunidade, esses problemas correspondiam a três prioridades de política econômica. A primeira era a de conter a guerra fiscal entre os governos locais diante das oportunidades de desenvolvimento regional geradas pelas decisões de investimento das montadoras. Nesta indústria, a localização das instalações constitui um elemento central das estratégias de competição das empresas, tanto para aquelas já estabelecidas como para os novos competidores, e tais opções afetam o destino das regiões escolhidas. Esta situação costuma originar um leilão de recursos públicos, no qual as empresas tentam maximizar os benefícios a serem extraídos dos governos, ao mesmo tempo em que estes competem entre si na formulação de ofertas atraentes. A segunda prioridade era a de compatibilizar tais privilégios com as regras de concorrência fixadas pelo Tratado de Roma. A terceira era a de não agravar o problema da capacidade ociosa.

De fato, esses temas já constavam da agenda da Comunidade desde o início dos anos 80. Em 1982, a Comissão chegou a formular um projeto de protocolo que visava monitorar a posteriori os subsídios concedidos aos fabricantes de veículos. O projeto discriminava os diferentes tipos de auxílios governamentais bem como as rotinas para o seu acompanhamento anual. Entretanto, os governos não conseguiram aprová-lo devido a divergências de ordem técnica - como os critérios para analisar os impactos dos subsídios, escopo das atividades a considerar, definição dos mercados relevantes etc. - e políticas, uma vez que isto significava novas regras supranacionais a serem adicionadas às já existentes (Dancet e Rosenstock, 1996DANCET, G., e ROSENSTOCK, M. (1996). “State aid control by the European Comission: the case of the automobile sector”. In STUYCK, J., ABRAHAM, F. e GOEMANS, C. (orgs.). Subsidies and competition in the European Union. Leuven University Press.).

Finalmente, em maio de 1989, o consenso foi alcançado. O protocolo restringia-se às montadoras e aos fabricantes de motores, a fim de simplificar o monitoramento, e apenas os subsídios a projetos de grande porte seriam objeto de notificação prévia5 5 Inicialmente, o tamanho mínimo dos projetos a serem notificados previamente era de 12 milhões de ECUs. Esse limite foi elevado, em 1995, para 17 milhões. Em 1997, foi introduzido um critério dual: projetos superiores a 50 milhões ou aqueles que tenham recebido subsídios superiores a 5 milhões. . Seus princípios básicos eram promover a transparência das relações entre os governos nacionais e a indústria, assegurar a proporcionalidade entre o montante dos subsídios oferecidos e a magnitude dos problemas que visavam resolver, e subordinar as metas setoriais e regionais aos interesses gerais da Comunidade. A partir de então, as condições de concorrência no mercado comum europeu passaram a ser reguladas essencialmente pelas normas do protocolo, ao lado de dois outros instrumentos complementares: a tarifa de 10% sobre os veículos importados e o peculiar memorando de entendimento assinado com o governo japonês em 16 de outubro de 1991, destinado a controlar os fluxos comerciais com aquele país até dezembro de 19996 6 O memorando define quotas anuais de importação, mas, curiosamente, não indica os mecanismos para administrar tais metas. Conforme comentaram Holmes e Smith: “It is like the grin on the Cheshire Cat in Alice in Wonderland. A measure has been notified to GATT, but the measure itself does not actually exist” (1995: 147). . Uma inovação introduzida pelo protocolo foi enunciar as modalidades de suporte governamental consideradas legítimas pela Comunidade, distinguindo-as daquelas que poderiam ser concedidas em caráter excepcional e, sobretudo, daquelas que estariam proibidas formalmente. O primeiro grupo inclui os subsídios ao desenvolvimento regional, às atividades de P&D, à capacitação de recursos humanos e à introdução de novas tecnologias com efeitos sistêmicos, O segundo grupo refere-se ao apoio à reestruturação de empresas em dificuldades, que só pode ser autorizado após detalhado escrutínio7 7 Conforme esclarece a seção 3 do protocolo: “In principle, rescue and restructuring aid should only be approved in exceptional circumstances. The aid must be linked to a satisfactory plan, and only granted where it can be demonstrated that the Community interest is best served by keeping a manufacturer in business and by reestablishing its viability. lt will be necessary to ensure that the aid will not allow a beneficiary to increase its market share at the expense of its unaided competitors. In cases where certain companies still have excess capacity, for example, in the commercial vehicle sector, the Commission may require reductions in capacity in order to contribute to the overall recovery of the sector” (OJ, C 123, 18.5.89: 3). . O terceiro grupo abrange os esforços de adaptação às normas ambientais - porque são metas impostas pela legislação da Comunidade, a serem cumpridas com recursos próprios das empresas - e as atividades operacionais das empresas.

Conforme mostra a tabela 6, dos 57 casos examinados entre maio de 1989 e julho de 1996, cerca de 90% dos subsídios foram absorvidos por oito projetos localizados em quatro países (Itália, Alemanha, Portugal e Espanha). Fiat e Volkswagen foram as empresas mais beneficiadas, participando nos seis maiores empreendimentos, que corresponderam a 83,3% dos 5,4 bilhões de Ecus doados pelos governos europeus a essa indústria durante o período em análise. De fato, só um dos projetos da Fiat consumiu mais da metade dos recursos, enquanto os projetos da Volkswagen receberam cerca de 26% daquele total.

Tabela 6
Principais Projetos Subsidiados pela Comunidade no Setor Automotriz, 1989-96 (Milhões de Ecus)

Esses oito projetos também revelam o estilo de conduta adotado pela Comissão Europeia após a edição do protocolo de 1989. O projeto da Fiat, por exemplo, foi submetido à consideração da Comunidade em 15 de abril de 1991 e deu origem a quinze meses de debates, não obstante o consenso preliminar quanto aos méritos do empreendimento. Os ECU 2,9 bilhões de subsídios destinavam-se a apoiar os investimentos da empresa no período 91-5, visando transferir 55% de sua capacidade produtiva para a região do Mezzogiorno, no sul da Itália. O projeto iria gerar, direta e indiretamente, 30 mil novos postos de trabalho na região, além de assegurar a manutenção de outros 8 mil já existentes e criar pelo menos 12 mil novos empregos fora da região. Outra meta importante era a de elevar os índices de produtividade da empresa aos níveis da fronteira tecnológica internacional, através da introdução de processos produtivos inéditos na Europa. Tais propósitos eram convergentes com as prioridades do governo italiano quanto à melhoria das condições de vida no Mezzogiorno, que sempre contaram com o apoio político da Comunidade.

A discussão que precedeu à aprovação do projeto concentrou-se em três pontos. O primeiro era o de que a Fiat estava operando em 1991 a 75% de sua capacidade, e os novos investimentos dariam origem anualmente a 450 mil carros e 800 mil motores. Logo, a empresa teria que se comprometer a reduzir, em caráter permanente, sua capacidade produtiva no Norte da Itália. O segundo ponto dizia respeito à relação entre os subsídios oferecidos e o impacto regional do projeto. Neste caso, tratava-se, basicamente, de averiguar a fidedignidade das projeções da empresa e quantificar as desvantagens iniciais de localizar a produção no Mezzogiorno. O terceiro ponto era o de avaliar os efeitos sistêmicos das inovações que seriam introduzidas com o projeto, e a conclusão não poderia ter sido mais favorável à Fiat, conforme atestam estes comentários: “From its examination the Commission is satisfied that the innovative programme is particularly ambitious and genuinely innovative at Community level. If successful, it implies achieving exceptionally high levels of automation and productivity, world first standards of flexibility, speed in model changeover, system reliability and product design, with particular regard to aerodynamics and fuel efficiency. On the other hand, there are considerable risks entailed in the programme by virtue of its very innovative character. Given these considerations [...], the Commission can accept the aid [...] notified by your Government as compatible with the framework on State aid to the industry” (OJ, 11.2.93, C 37: 19).

Nem sempre o período de análise dos projetos foi longo. A joint venture Ford-Vokswagen para estabelecer uma planta em Setúbal, Portugal, foi apresentada em 16 de abril de 1991 e aprovada em 31 de outubro daquele ano, sem qualquer objeção. A Comissão resolveu ainda cofinanciar o projeto, a fim de fortalecer as componentes relativas à capacitação de recursos humanos e aos investimentos em infraestrutura regional. Da mesma forma, os ECU 229 milhões de subsídios concedidos pelo governo italiano ao consórcio Fiat-Pegeout-Citroën para modernizar uma fábrica em Abruzzo foram aprovados rapidamente.

Entretanto, os investimentos realizados pela Volkswagen e General Motors (Opel) na antiga Alemanha Oriental após a reunificação provocaram graves confrontos entre a Comissão e o governo alemão. Segundo o parecer da Comissão, os auxílios concedidos violavam as regras do Artigo 93 do Tratado de Roma, promoviam uma expansão indevida da capacidade produtiva da indústria no âmbito do mercado europeu, distorciam as condições de concorrência, e eram incompatíveis com os critérios de desenvolvimento regional fixados pelo protocolo de 1989. Um traço notável deste conflito foi o de que, apesar da extensão das divergências e da atitude irredutível da Comissão ao impor as normas comunitárias, o espaço para negociação foi continuamente preservado, como revela esta nota: “In early January 1993, at a time when the Commission had completed its analysis of the case and was ready to take a final decision, Volkswagen informed the Commission off the record that it was reviewing its investment plans in the new Länder and suggested that the Commission defer its decision until completion of that review. The suggestion was supported by the German authorities” (OJ, 29.11.96, L. 308: 47). Outro detalhe fundamental foi a transparência da polêmica, que ao invés de ficar restrita à confidencialidade dos gabinetes, foi extensamente relatada no diário oficial da Comunidade.

Divergências similares também ocorreram com os projetos da Suzuki em Andaluzia e da Volkswagen na Catalúnia. Tal como no caso da Alemanha, os subsídios só foram aprovados pela Comissão depois que o governo espanhol redefiniu os projetos segundo as normas comunitárias. Não obstante esses incidentes, dos 57 casos examinados pela Comissão entre 1989 e julho de 1996, apenas 2 foram vetados completamente (cf. Comissão: 1996aComissão Europeia (1996a). A study on the efficiency of the community framework on State aid to the motor vehicle industry. Bruxelas: Relatório de Pesquisa preparado por EuroStrategy Consultants.).

Em 1996, a Comissão contratou a empresa EuroStrategy Consultants para avaliar o protocolo automotivo, focalizando especialmente os resultados obtidos na regulação das condições de concorrência no mercado europeu e no controle dos incentivos ao desenvolvimento regional. O estudo constatou que o protocolo havia cumprido suas metas principais e sugeriu alguns ajustes operacionais, como o de refinar a metodologia das análises custo/benefício. Adveio daí uma providência importante, introduzida em 1997, que foi a de explicitar o conceito de mobilidade geográfica, cuja aplicação intuitiva havia orientado várias decisões da Comissão nos anos iniciais da implementação do protocolo. Segundo esse conceito, para demonstrar a necessidade de um incentivo regional, a empresa recipiente tem que provar que existe, na Europa, uma localização alternativa mais eficiente para o projeto ou alguma de suas subdivisões, e o montante do subsídio deve corresponder à diferença entre os custos de produção nas duas localidades. Assim, ficam proibidos os subsídios a projetos sem mobilidade geográfica, isto é, quando sua localização já é a alternativa mais eficiente para a empresa.

Talvez devido aos problemas técnicos e políticos que antecederam à edição do protocolo em 1989, os documentos da Comissão procuram descaracterizá-lo como instrumento de política industrial8 8 Por exemplo, segundo a última versão do protocolo, de 15.9.97: “The assessment of aid must take account of general economic and industrial factors, sectoral considerations and regional, environmental and social factors. The Commission does not intend, however, to impose an industrial strategy on the sector” (OJ, C 279: 4). . Entretanto, conforme vimos acima, seu principal mérito tem sido, justamente, o de enfrentar os três desafios clássicos de política industrial, que são os de manter coerência em relação às demais políticas públicas, impedir que os instrumentos sejam capturados por interesses particulares e corrigir a assimetria dos conhecimentos disponíveis pelo governo e o setor privado. Tais normas constituem, portanto, um marco de referência útil aos países do Mercosul, cujos governos estão comprometidos a estabelecer uma política regional para o setor automotivo a partir do ano 2000, não obstante as dificuldades discutidas a seguir.

3. O CASO BRASILEIRO

Além de haver instalado a indústria automobilística no Brasil, o governo Kubitschek inaugurou o estilo de intervenção estatal que nos trinta anos seguintes serviu de modelo para as estratégias de substituição de importações na América Latina. As medidas implementadas pelo Grupo Executivo para a Indústria Automotiva (GEIA) a partir de 1956 compreendiam dois subconjuntos de instrumentos. Por um lado, o governo procurou consolidar diversos tipos de incentivos que até então haviam sido usados de forma parcial em tentativas anteriores de desenvolvimento industrial na região. A coletânea incluía a reserva do mercado doméstico para as firmas instaladas no país, isenção de impostos nas importações de bens de capital e outros insumos, redução de outros tributos domésticos, preços subsidiados de energia e auxílios eventuais para despesas de instalação. Por outro lado, o GEIA supervisionava o cumprimento das metas assumidas pelas empresas em troca dos incentivos, especialmente quanto aos prazos de nacionalização do processo produtivo.

Como descreveu Helen Shapiro: “Os incentivos financeiros mais importantes do plano envolviam os subsídios destinados a transações cambiais. Durante esse período, o país alocou quotas cambiais a cinco categorias segundo sua essencialidade, sendo a taxa de câmbio final em cada uma dessas categorias fixada através de leilões. Criou-se, com isso, um sistema híbrido, parte determinado pelo mercado, parte determinado por quotas. [...] As empresas automobilísticas estrangeiras estavam qualificadas para usufruírem dos benefícios providos pela instrução 113 - uma medida política emitida pelo Conselho Monetário em 1955 permitindo que todo equipamento que entrasse no país como investimento estrangeiro direto fosse importado sem cobertura cambial. As empresas poderiam, portanto, ignorar o sistema de leilões e evitar a taxa embutida nas transações cambiais. [...] As quotas cambiais eram reservadas para a importação de peças não produzidas no país; além disso, tais quotas eram oferecidas a taxas subsidiadas que variavam de acordo com o tipo de veículo. Importações de produtos relacionados a automóveis estavam isentas de tarifas alfandegárias e de impostos sobre vendas. Finalmente, as empresas automotivas podiam se candidatar aos créditos e avais oferecidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE)” (1997: 33).

Tais privilégios visavam atrair o interesse das montadoras americanas, acostumadas até então a suprir o mercado brasileiro a partir de suas matrizes, e céticas quanto às metas do governo devido às reduzidas dimensões do mercado e à fragilidade da infraestrutura industrial do país. Além disso, como arguiu Guimarães (1981GUIMARÃES, E. (1981). Acumulação e crescimento da firma. Rio de Janeiro: Zahar Editores.), as prioridades internacionais daquelas corporações naquele momento estavam concentradas em expandir suas operações na Europa. Não obstante o empenho pessoal do presidente Kubitschek, que acompanhava de perto as negociações (Shapiro, 1997SHAPIRO, H. (1997). “A primeira migração das montadoras: 1956-1968”. In ARBIX, G. e ZILBOVICIUS, M. (orgs.). De JK a FHC: a reinvenção dos carros. São Paulo: Edições Sociais.), os incentivos foram insuficientes para alterar a conduta das empresas americanas, que só viriam a se instalar no Brasil no final da década seguinte. Entretanto, “[...] ao mesmo tempo em que a Europa se constituía na principal fronteira de expansão das firmas norte-americanas, os países em desenvolvimento se tornavam a fronteira de expansão das firmas europeias” (Guimarães, 1981GUIMARÃES, E. (1981). Acumulação e crescimento da firma. Rio de Janeiro: Zahar Editores.: 136). Assim, para empresas como Volkswagen, Mercedes Benz e Scania Vabis, os incentivos oferecidos pelo governo brasileiro revelaram-se atraentes e oportunos, e permitiram a realização dos planos de JK.

A experiência brasileira inspirou os projetos industrializantes dos presidentes Arturo Frondizi (1958-62), na Argentina, e Adolfo López Mateos (1958-64), no México, cujos governos também conferiram importância estratégica ao setor automotriz. O presidente López Mateos chegou a enviar, em 1959, uma equipe ao Brasil com o objetivo de levantar as informações disponíveis sobre o desempenho do GEIA, discutir com os técnicos desse órgão os obstáculos enfrentados ao longo da implementação do programa de metas e sugerir as adaptações necessárias às condições mexicanas. Daí surgiu o Decreto Automotivo de 1962, cuja orientação geral era similar às medidas lançadas com a criação do GEIA em junho de 1956, embora introduzindo novas componentes intervencionistas, como a limitação do número de firmas autorizadas a operar no mercado mexicano, a composição acionária dos investimentos, os tipos de veículos a serem produzidos, critérios de padronização das autopeças, e tempo mínimo de permanência dos modelos no mercado (Bennett e Sharpe, 1985BENNETT, D., e SHARPE, K. (1985). Transnational corporations versus the State: the political economy of the Mexican auto industry. Princeton University Press.).

Isenções fiscais e reserva de mercado tornaram-se a marca registrada da política industrial brasileira nos anos 60 e 70. Embora definidas como instrumentos transitórios, de promoção ao estabelecimento de novas atividades no país, tais regalias continuaram beneficiando, em graus variados, a maioria dos segmentos industriais até o final da década de 80. A indústria automobilística conseguiu preservar os seus privilégios não só ao longo desse período, mas, sobretudo, após a abertura comercial do governo Collor. Na verdade, nem mesmo durante o breve intervalo de sete meses, entre agosto de 1994 e março de 1995, em que as tarifas aduaneiras sobre veículos foram reduzidas a 20%, esse setor perdeu a singularidade de ser o mais protegido da economia. Naquele momento, a taxa média de proteção efetiva no país era de 12,3%, e veículos recebiam 44,6%; em julho de 1993, tais cifras haviam sido, respectivamente, de 14,5% e 129,8%. Em dezembro de 1995, após o Decreto 1.761, a disparidade atingiu o seu máximo histórico: 12,9% e 270,9% (cf. Kume, 1996KUME, H. (1996). “A política de importação no Plano Real e a estrutura de proteção efetiva”, Texto para Discussão n. 423, Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Conforme mostram as tabelas 7 e 8, desde o início dos anos 80 a produção brasileira de automóveis já havia adquirido as características de uma indústria madura. Com uma capacidade produtiva superior a um milhão de veículos anuais, seu coeficiente exportador frequentemente estava acima de 20%, chegando, às vezes, a 30%; e embora seu mercado externo tenha se concentrado na América Latina na presente década, já houve momentos em que mais da metade das exportações estiveram dirigidas aos países industrializados, o que demonstra sua capacidade de atender aos padrões internacionais de qualidade. Em contraste com as vicissitudes que justificaram as medidas pioneiras de JK, o Brasil é hoje uma das áreas prioritárias para as montadoras. Uma vez harmonizadas as condições de concorrência no Mercosul, a região constituirá o quarto mercado mundial, depois da Europa, Nafta e Japão, e ocupará o primeiro lugar quanto ao crescimento potencial.

Tabela 7
Produção e Exportação Brasileira de Veículos
Tabela 8
Destino das Exportações Brasileiras de Veículos, 1986-95

Ainda que dispondo de condições privilegiadas para enfrentar a concorrência das importações, a indústria automobilística brasileira revelou uma conduta de livro-texto após a abertura da economia: melhorou a qualidade dos produtos, reduziu os preços e elevou a produtividade. Como mostrou Fonseca (1996FONSECA, R. (1996). Product innovation in Brazilian autos. Berkeley: Ph.D. Thesis, University of California, mimeo.), entre 1990 e 1994, as montadoras realizaram um esforço inovativo sem precedentes na história do país. Além disso, de março de 1992 a dezembro de 1995, os preços reais dos carros nacionais caíram 40% (cf. Bedê, 1997BEDÊ, M. (1997). “A política automotiva nos anos 90”. In ARBIX, G. e ZILBOVICIUS, M. (orgs.). De JK a FHC: a reinvenção dos carros. São Paulo: Edições Sociais.), enquanto a produção de veículos por empregado passou de 7,8 para 15,6 entre 1990 e 1995. Como advertiram Quadros Carvalho e outros (1997QUADROS CARVALHO, R. et al. (1997). Abertura comercial e mudança estrutural na indústria automobilística brasileira. UNICAMP, Relatório de Pesquisa.), isso não significa que a produtividade tenha duplicado porque as empresas mudaram de perfil neste período, intensificando a produção de veículos mais leves e reduzindo o grau de integração vertical. Contudo, o aumento de eficiência foi inequívoco, ratificando as evidências levantadas por Fonseca (1996FONSECA, R. (1996). Product innovation in Brazilian autos. Berkeley: Ph.D. Thesis, University of California, mimeo.) quanto ao ritmo das inovações tecnológicas.

Assim, em meados dos anos 90, os fabricantes de veículos instalados no Brasil encontravam-se numa situação particularmente propícia à adoção de medidas similares àquelas descritas na seção anterior, que teriam permitido, por um lado, dar continuidade às transformações iniciadas com a abertura e, por outro, acelerar o processo de integração no Mercosul. Entretanto, em 1995, o governo preferiu reeditar o padrão de política industrial inaugurado por JK e que havia alcançado seu apogeu no governo Geisel. Em 29 de março, o Decreto 1.427 elevou para 70% as alíquotas do imposto de importação de veículos, e no dia seguinte ao Natal as montadoras foram contempladas com um outro presente: o Decreto 1.761, posteriormente transformado na Lei 9.440, de 14.3.97, que instituiu o chamado regime automotivo brasileiro. Retomando a tradição de combinar subsídios com barreiras comerciais, as montadoras voltaram a operar sob as seguintes condições: impostos de importação reduzidos (entre 90 e 100%) para compras de bens de capital, autopeças e componentes, sob o compromisso de adquirir no mercado interno montantes equivalentes às importações, que por sua vez estavam condicionadas ao desempenho exportador da empresa; isenção do imposto de renda sobre os lucros e de outros tributos domésticos, como o imposto sobre produtos industrializados (IPI) e o imposto sobre operações financeiras (IOF); redução de 50% nas alíquotas dos veículos importados pelas montadoras; e limite mínimo de 60% para o índice de nacionalização da produção.

Segundo os dados do MICT e da Secretaria da Receita Federal, estão previstos para 1998 R$ 3,9 bilhões de investimentos das montadoras e R$ 920 milhões de renúncia fiscal sob o amparo do regime automotivo. Como vimos na seção anterior, na União Europeia, cuja indústria é cerca de dez vezes maior que a brasileira, os subsídios anuais desde 1989 tem sido, em média, de ECU 770 milhões, que à taxa de câmbio de março de 1998, correspondem a R$ 950 milhões, aproximadamente. Com a eventual exceção da Indonésia, não há registro contemporâneo de outro país no planeta que conceda 270% de proteção efetiva às montadoras, além de 24% de incentivos fiscais federais para investimentos, e de outros benefícios estaduais, comentados a seguir.

No momento em que a principal prioridade macroeconômica do país é consolidar a estabilidade dos preços domésticos, o regime automotivo não só criou uma nova fonte de gastos públicos federais como abriu o precedente para a guerra fiscal entre os governos estaduais. Como notou um editorial recente da Folha de S. Paulo: “O endividado Paraná empenhará até US$ 300 milhões para se tornar sócio da Renault em investimentos de cerca de US$ 740 milhões. E não é só. [...] A empresa ainda será presenteada com um terreno de 2,5 milhões de metros quadrados e a fábrica deixará de pagar IPTU e ISS por dez anos.[...] Ainda em 97, o governo do Rio Grande do Sul foi obrigado por decisão judicial a revelar que havia fornecido à General Motors R$ 253 milhões a título de empréstimo. Minas Gerais emprestará à Mercedes Benz, segundo o faturamento da empresa, até R$ 700 milhões sem juros nem correção- isso além das isenções de impostos. A ânsia de governos estaduais por atrair investimentos comprometendo recursos presentes e receitas futuras parece ter levado a guerra fiscal ao paroxismo. Nesse ritmo, falta pouco para que os ditos investimentos estrangeiros possam ser considerados como fachada para gastos estatais” (1.2.98).

No âmbito doméstico, além da política macroeconômica, o protocolo automotivo tem dificultado a ação do governo em duas outras áreas importantes: a de comércio exterior, porque revelou a fragilidade do marco institucional que regula a política de abertura; e a de defesa da concorrência, porque elevou ainda mais o poder de mercado de um grupo de empresas oligopolistas. No plano internacional, o protocolo expôs o governo a um desgaste junto à OMC, porque viola explicitamente diversas normas acordadas na Rodada Uruguai, bem como outras mais antigas, como a de conceder subsídios vinculados ao desempenho exportador. De fato, esse desgaste tornou-se um processo cumulativo, como atesta o Decreto 2.307, de 20.8.97. Para contentar aqueles países cujas empresas não possuem filiais no Brasil, e, portanto, foram excluídas dos benefícios do protocolo, o governo acabou introduzindo uma distorção adicional na política de importações, ao reduzir em 50% as alíquotas do imposto de importação para uma quota anual de 50 mil veículos, distribuída entre a União Europeia, o Japão e a Coréia do Sul9 9 Ao regulamentar esse decreto, o ministro de Indústria e Comércio estabeleceu, através da portaria 108, de 21.8.97, restrições quantitativas raramente alcançadas durante a era da substituição de importações. Dos 50 mil carros, autorizou a entrada de um Bugatti no terceiro trimestre de vigência da portaria, um Lamborghini no quarto trimestre, dois Bentleys, um Rolls Royce e três Lotus, assim como as demais 49.992 viaturas, devidamente especificados trimestralmente por país de origem e marca do veículo. Contudo, a portaria não esclareceu os critérios usados para identificar o seleto grupo de compradores dos oito automóveis de luxo. .

4. CONCLUSÃO

O protocolo automotivo da União Europeia é uma demonstração eloquente de que as regras da OMC permitem um amplo espaço para o exercício de políticas industriais. Não por acaso, os incentivos considerados legítimos concentram-se na promoção da inovação tecnológica, que é a única atividade capaz de sustentar a competitividade internacional das empresas no longo prazo. Por outro lado, as limitações impostas aos governos nacionais são justamente aquelas que visam subordinar programas setoriais e regionais aos interesses permanentes da comunidade, como a preservação da estabilidade macroeconômica, do meio ambiente e da segurança pública. De fato, como bem ilustra o regime automotivo brasileiro, os governos só entram em conflito com as normas da OMC quando adotam políticas inconsistentes com suas próprias prioridades.

Em virtude de ser uma região estratégica para os investimentos das montadoras, o Mercosul continuará submetido às pressões clientelistas discutidas nas seções anteriores, a menos que adote disciplinas similares às europeias. Conforme vimos, a aplicação dessas normas não é automática nem isenta de conflitos, mas demonstrou ser uma solução eficaz para lidar com as peculiaridades da indústria automobilística. Os países do Mercosul mostraram-se inclinados nessa direção quando assinaram em Fortaleza, em dezembro de 1996, o protocolo de defesa da concorrência, embora, como indicado em Tavares e Tineo (1998TAVARES DE ARAÚJO, J., e TINE O, L. (1998). “Harmonization of competition policies among Mercosul countries”. The Antitrust Bulletin, Vol. XLIII, n. 1.), esse protocolo tenha ainda um longo percurso a cumprir antes de se tornar efetivo. A inclusão do setor automotivo na agenda do protocolo de Fortaleza não só estimularia a conclusão do programa de trabalho ali definido, como geraria um tema oportuno para a cooperação institucional com a União Europeia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WOMACK, J., JONES, D., e ROOS, D. (1990). The machine that changed the world. Londres: Macmillan.
  • 1
    “Community framework on State aid to the motor vehicle industry”, Official Journal of the European Communities (OJ), C 123, 18.5.89, p.3.
  • 2
    A Europa Ocidental constitui, de fato, um único mercado, dado que não existem mais barreiras comerciais entre a União Europeia e os membros da Associação Europeia de Livre Comércio.
  • 3
    Conforme ocorre com estatísticas mundiais, esses percentuais apenas sugerem ordens de grandeza, em virtude das inevitáveis dificuldades de compilação. Segundo os dados da Anfavea, por exemplo, a produção brasileira de veículos leves em 1995 foi de 1.536 mil unidades, e não 1.462, como indica a tabela 1.
  • 4
    Não obstante as disciplinas impostas pela Comunidade e os esforços de reestruturação realizados pelas empresas na presente década, o excesso global de capacidade produtiva da indústria automotiva europeia, que foi de 28,2% em 1994, será, provavelmente, de 26,4% no ano 2000, segundo as estimativas mais recentes (Vide Comissão Europeia, 1997aComissão Europeia (1997a). Examination of current and future excess capacity in the European automobile industry. Bruxelas: Relatório de Pesquisa.).
  • 5
    Inicialmente, o tamanho mínimo dos projetos a serem notificados previamente era de 12 milhões de ECUs. Esse limite foi elevado, em 1995, para 17 milhões. Em 1997, foi introduzido um critério dual: projetos superiores a 50 milhões ou aqueles que tenham recebido subsídios superiores a 5 milhões.
  • 6
    O memorando define quotas anuais de importação, mas, curiosamente, não indica os mecanismos para administrar tais metas. Conforme comentaram Holmes e Smith: “It is like the grin on the Cheshire Cat in Alice in Wonderland. A measure has been notified to GATT, but the measure itself does not actually exist” (1995: 147).
  • 7
    Conforme esclarece a seção 3 do protocolo: “In principle, rescue and restructuring aid should only be approved in exceptional circumstances. The aid must be linked to a satisfactory plan, and only granted where it can be demonstrated that the Community interest is best served by keeping a manufacturer in business and by reestablishing its viability. lt will be necessary to ensure that the aid will not allow a beneficiary to increase its market share at the expense of its unaided competitors. In cases where certain companies still have excess capacity, for example, in the commercial vehicle sector, the Commission may require reductions in capacity in order to contribute to the overall recovery of the sector” (OJ, C 123, 18.5.89: 3).
  • 8
    Por exemplo, segundo a última versão do protocolo, de 15.9.97: “The assessment of aid must take account of general economic and industrial factors, sectoral considerations and regional, environmental and social factors. The Commission does not intend, however, to impose an industrial strategy on the sector” (OJ, C 279: 4).
  • 9
    Ao regulamentar esse decreto, o ministro de Indústria e Comércio estabeleceu, através da portaria 108, de 21.8.97, restrições quantitativas raramente alcançadas durante a era da substituição de importações. Dos 50 mil carros, autorizou a entrada de um Bugatti no terceiro trimestre de vigência da portaria, um Lamborghini no quarto trimestre, dois Bentleys, um Rolls Royce e três Lotus, assim como as demais 49.992 viaturas, devidamente especificados trimestralmente por país de origem e marca do veículo. Contudo, a portaria não esclareceu os critérios usados para identificar o seleto grupo de compradores dos oito automóveis de luxo.
  • 10
    JEL Classification: L52; L62; L13; F13.
  • **
    Este trabalho contou com o apoio da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe - CEPAL. Sou grato a Carlos Mussi, Fernando Barreto, Jório Dauster e Oswaldo Biato pela cooperação prestada durante a preparação deste texto. As opiniões aqui emitidas são da exclusiva responsabilidade do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1998
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