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A crise monetária no Brasil: migrando da âncora cambial para o regime flexível

Brazilian monetary crisis: migrating from the exchange rate anchor to the flexible regime

RESUMO

O autor começa perguntando por que os formuladores de políticas brasileiros optaram por direcionar a taxa de câmbio para estabilizar a inflação quando essa estratégia já falhou no México. A resposta: não era mais possível acomodar a alta taxa de inflação do país através do uso generalizado da indexação de preços e de uma política competitiva de taxa de câmbio. Sob condições de inflação alta, a ancoragem da taxa de câmbio no Plano Real foi o caminho mais rápido para a estabilidade de preços. No entanto, o sucesso das políticas também exigiu um ajuste fiscal profundo, e a política tradicional brasileira resistiu obstinadamente às reformas tributárias necessárias. Em contraste com o México, onde a queda do peso foi alimentada por imprudentes gastos e empréstimos do setor privado, a desvalorização do Brasil em janeiro de 1999 foi desencadeada por déficits fiscais cronicamente altos. A rápida recuperação do Brasil sob um regime de moeda flexível sugere que os fundamentos macroeconômicos estão de volta aos trilhos; o desafio agora reside na elaboração de uma coalizão política viável a favor da reforma que possa romper os numerosos interesses paroquiais que convergiram para provocar a desvalorização de 1999.

PALAVRAS-CHAVE:
Plano Real; estabilização; regime cambial

ABSTRACT

The author begins by asking why Brazilian policymakers opted to target the exchange rate to stabilize inflation when this strategy had already failed in Mexico. The answer: it was no longer possible to accommodate the country’s high inflation rate through the pervasive use of price indexation and a competitive exchange rate policy. Under conditions of high inflation, the anchoring of the exchange rate within the Real Plan was the quickest route toward price stability. However, policy success also required deep fiscal adjustment, and traditional Brazilian politics stubbornly resisted the necessary tax reforms. In contrast to Mexico, where the peso crash was fueled by reckless private sector spending and borrowing, Brazil’s January 1999 devaluation was triggered by chronically high fiscal deficits. Brazil’s rapid recovery under a flexible currency regime suggests that the macroeconomic fundamentals are back on track; the challenge now lies in the crafting of a viable pro-reform political coalition that can cut through the numerous parochial interests that converged to provoke the 1999 devaluation.

KEYWORDS:
Real Plan; stabilization; exchange rate regime

A queda do Real, em janeiro de 1999, se encaixa num conhecido padrão de crise de países que privilegiam a taxa cambial para atingir a estabilidade inflacionária. A cada vez, a supervalorização leva a insustentáveis déficits em conta corrente e, eventualmente, à queda da moeda. Esse padrão não tem nada de novo - os países do Cone Sul já enveredaram por processos de estabilização semelhantes nos anos 70 e obtiveram os mesmos resultados. Por que, então, o Brasil seguiu esse tipo de estratégia, em particular após o México ter exposto suas limitações novamente em 1994? Seria o Brasil diferente o bastante a ponto de garantir otimismo quanto aos resultados?

Essa é uma história cuja trama básica foi prevista muito antes da queda do Real. Alguns investidores calcularam mal o momento e a intensidade da desvalorização, porém não sua inevitabilidade. A maioria previu o desfecho e realizou consideráveis lucros. As próprias autoridades não foram nem ingênuas nem cínicas - a verdade é que simplesmente não existia uma estratégia que permitisse uma saída elegante. E o fato mais irônico é que muitos escolheriam novamente um plano de estabilização baseado na taxa cambial, caso tivessem que enfrentar o mesmo tipo de cenário.

Este capítulo busca tirar lições da experiência brasileira. A primeira parte se debruça sobre os motivos que levaram à adoção da âncora cambial em 1994, e a segunda descreve de que maneira essa estratégia levou à sua própria extinção. A terceira parte discute a dinâmica das perdas de reservas do Banco Central, a decisão de desvalorizar e os esforços empreendidos para evitar que a taxa de câmbio excedesse seu próprio ajuste.

POR QUE O PLANO REAL?

O crescimento sustentado a longo prazo - suficiente para garantir o emprego do termo “Milagre Brasileiro” - não passa de mera lembrança do passado. O rápido crescimento do Brasil após a Segunda Guerra Mundial resultou em crise econômica e inflação de três dígitos em 1964, seguido, contudo, por um período de estabilização sustentada. Apesar das crises do petróleo impostas pela OPEP no início dos anos 70, prevaleceram as altas taxas de crescimento econômico, especialmente em termos de padrões regionais. Entre 1968 e 1980, o PIB per capita cresceu à razão de 6% ao ano. No mesmo período, houve maior diversificação de exportações, que apresentaram, em média, um índice de 22%, de crescimento ao ano. Os elevados índices de reservas públicas aliados ao grande dinamismo do setor de empresas estatais também caracterizaram o início desse período. Entretanto, a confiança nos empréstimos comerciais para financiar tanto os investimentos públicos como as onerosas importações de petróleo levaram à crise da dívida do início dos anos 80. Desde então, o crescimento não vem mantendo um comportamento regular. Entre 1980 e 1998, a taxa de crescimento anual real do PIB registrou 2%, um desempenho medíocre para uma economia que vinha apresentando, desde 1949, um crescimento médio da ordem de 7,3% ao ano.

O fim do ciclo de crescimento rápido agravou os desafios da distribuição de renda colocados pela transição para o governo civil na década de 80. Com a cessão do poder pelos militares e a obrigatoriedade do voto dos analfabetos nos anos 80, a extrema desigualdade de renda no Brasil passou a atormentar o sono dos líderes democráticos.1 1 O coeficiente Gini brasileiro (uma medida de desigualdade de renda relacionada a uma população, na qual quanto maior o coeficiente, maior a desigualdade) figura entre os mais altos do mundo. Os orçamentos estaduais e federais viram-se premidos pelas exigências de maior igualdade trazidas na esteira da democratização. A Constituição de 1988 só veio exacerbar ainda mais essas pressões fiscais ao incorporar inúmeros privilégios para uma multiplicidade de interesses específicos. Com a capacidade dos futuros governos democráticos de agir como mediadores das exigências econômicas já desgastadas, a inflação tornou-se o mecanismo principal de gerenciamento dos desequilíbrios que os políticos não podiam ou não queriam corrigir. Alguns desses desequilíbrios estão ilustrados na figura 4.1.

Figura 4.1
Distribuição dos Gastos Sociais feitos pelo Governo Brasileiro, 1989 Bolsas Financiadas pelo Governo 78,9% vão para os 20% mais ricos da população e apenas 0,1% pas os 20% mais pobres

Entre 1981 e 1994, a taxa anual de inflação superou os 100% todos os anos, com exceção de 1986. A redução da inflação crônica, portanto, passou a ser o foco principal da política econômica. No entanto, apesar do fracasso de uma série espetacular de planos de estabilização que produziram seis reformas monetárias em dez anos, a inflação galopante não destruiu a economia brasileira. Ao contrário, os produtores, os consumidores e as autoridades se adaptaram à inflação pelo uso intermitente da indexação. Não houve uma queda significativa das rendas tributárias; na verdade, mantiveram-se altas em relação às de outros países da América Latina. Ademais, o setor financeiro e industrial do Brasil funcionou bastante bem. Com exceção de alguns breves períodos, as autoridades conseguiram manter a competitividade da taxa cambial e o país teve condições de gerar expressivos superávits comerciais até meados de 1994.2 2 As exceções ocorreram em 1986, quando a taxa cambial foi fixada, e cm 1989 e início de 1990, quando houve uma aceleração da inflação e as mini desvalorizações demoraram para se tornar uma política aberta de redução inflacionária. Essa capacidade de convivência com a inflação explica, pelo menos em parte, o fracasso do Brasil em empreender sérias mudanças estruturais. Um padrão parecido com uma catraca caracterizou o comportamento da inflação no final dos anos 80, quando uma série de intervenções de política heterodoxa resultou em taxas de inflação mais baixas por alguns meses, seguidas de um novo e rápido recrudescimento da inflação. O Plano Cruzado foi lançado em fevereiro de 1986 e durou 16 meses. O presidente José Sarney, que sucedera o presidente eleito Tancredo Neves, em razão da prematura morte deste em abril de 1985, encontrava-se numa posição política enfraquecida. Seus conselheiros econômicos o convenceram de que um programa de choque heterodoxo traria estabilidade à economia, angariando-lhe o apoio popular.

O plano congelou preços, proibiu a indexação no mercado financeiro e após decretar aumento de salários, congelou-os, assim como a taxa de câmbio nominal. Por falta de disciplina fiscal e monetária e pela incapacidade de controlar os crescentes déficits comerciais, o governo se viu forçado a liberar o controle de preços e a adotar um regime de taxa de câmbio de crawling peg, baseado em desvalorizações diárias. A inflação voltou e houve nova tentativa visando a estabilização, o Plano Bresser de junho de 1987, que também tomou por base o congelamento de preços e um esquema de indexação dos salários. Uma carta de intenções junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) foi aprovada em 1988, havendo, todavia, malogrado em função do inadequado desempenho fiscal brasileiro. Em janeiro de 1989, o Plano Verão decretou novo congelamento de preços e salários, desativado em abril com a volta da indexação formal. No início dos anos 90, a inflação já rondava a casa dos 3.000% ao ano.

Nas eleições nacionais do final de 1989, Fernando Collor de Mello, político nordestino pouco conhecido, derrotou nas urnas Luís Inácio da Silva (“Lula”), candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), no segundo turno das eleições. Collor havia prometido um novo programa econômico, cujos detalhes só foram revelados após sua posse em março de 1990. Frente a uma inflação que não mais permitia ser ajustada com indexações, o Plano Collor de março de 1990 buscou reduzir preços através de cortes drásticos na liquidez. Um congelamento arbitrário foi imposto, por 17 meses, sobre quase dois terços das reservas de dinheiro, atingindo os depósitos à vista, os fundos mútuos, títulos públicos federais, estaduais e municipais, as cadernetas de poupança e os títulos privados. Apesar de os brasileiros terem eventualmente conseguido driblar alguns desses controles, era evidente que um congelamento financeiro que atingia os ativos pessoais era claramente impopular. O plano também continha importantes componentes de reformas estruturais, incluindo a liberalização do comércio e privatização de empresas estatais com baixo desempenho e que foram sustentadas ao longo de toda a década. Em 1992, no entanto, o presidente Fernando Collor perdeu o cargo em função de um escândalo de corrupção e a espiral inflacionária prosseguiu em seu ciclo ascendente.

Quando Collor deixou o poder em dezembro de 1992, a economia já dava sinais de desgaste.3 3 As exceções ocorreram em 1986, quando a taxa cambial foi fixada, e cm 1989 e início de 1990, quando houve uma aceleração da inflação e as mini desvalorizações demoraram para se tornar uma política aberta de redução inflacionária. Outra carta de intenções firmada com o FMI, em janeiro de 1992, ditou uma mudança temporária da política econômica de caráter mais ortodoxo, dando ênfase ao aperto fiscal e monetário. Essa mudança, contudo, teve vida curta; as taxas de juros nominais caíram em 1993, cresceram os déficits orçamentários e a inflação disparou. A carta de intenções junto ao FMI expirou em agosto de 1993 e não foi renovada. Quando a inflação já superava a marca dos 2.000%, foi lança­ do o Plano Real em dezembro de 1993.4 4 Ao mesmo tempo, a queda das taxas de juros internacionais deu folga à carga da dívida externa e conduziu ao acordo de abril de 1994 com os bancos credores, que cobriram mais de US$ 50 bilhões em dívidas e atrasados. O vice-presidente, Itamar Franco, populista de coração, sucedeu a Collor de Mello. Houve quatro ministros da Fazenda, mas o problema não foi sanado; finalmente, Fernando Henrique Cardoso foi indicado para o cargo. Rapidamente, ele montou uma equipe de talentosos jovens economistas e planejou uma nova abordagem de controle da inflação. O plano mudou o nome da moeda para Real, batizando assim a nova política econômica.

Sob o Plano Real, a estabilização passou por três fases: rápido ajuste fiscal, reforma monetária e uso da taxa de câmbio como âncora nominal. Em janeiro de 1994, o Congresso brasileiro aprovou um plano de ajuste fiscal que previa cortes nos gastos e a criação de um Fundo Social de Emergência. Este foi financiado pelo redirecionamento das verbas federais - ou seja, estados e municípios passariam a contar com novos limites de crédito e a recuperação de contribuições obrigatórias da Previdência Social -, permitindo ao governo cortar alguns de seus vínculos entre receitas e despesas. Vinte por cento das verbas que haviam sido destinadas para outras finalidades foram liberadas. Em termos de flexibilidade, esse incremento gerou um superávit operacional em 1994.

O segundo componente do Plano Real, uma medida de reforma monetária temporária, atrelou contratos, preços, salários e taxa de câmbio a um único índice diário, a unidade real de valor (URV), ao mesmo tempo que o Cruzeiro Real permanecia em circulação. Esse ajuste, iniciado em 1º de março de 1994, durou quatro meses.

Como o Cruzeiro Real e a URV sofriam uma desvalorização quase igual em relação ao dólar, a maioria dos preços e dos contratos eram implicitamente estabelecidos em dólar. Finalmente, no dia 1º de julho de 1994 foi lançada uma nova moeda, o Real, utilizada para a conversão de todos os contratos expressos em URVs à razão de um por um. O cruzeiro real deixou de existir e foi convertido de CR$ 2.750 para R$ 1. Fernando Henrique usou o êxito do Plano Real para lançar sua bem­ sucedida campanha à Presidência da República no final de 1994.

ATOLEIROS POLÍTICOS DURANTE O PLANO REAL

O Plano Real controlou a inflação com notável rapidez: de quatro dígitos em 1994, caiu para dois dígitos em 1995 e para menos de 2% em 1998. De fato, o sucesso de Fernando Henrique Cardoso, assegurando-lhe o direito de concorrer à reeleição em 1998, foi conseguido pela ampla popularidade que obteve em razão da sustentada estabilidade dos preços. Também o crescimento econômico era acentuado: o PIB cresceu em média 4% ao ano entre 1994 e 1997, comparado com uma produção estabilizada ou em declínio nos cinco anos anteriores. O boom econômico que se iniciou em 1994 não teve origem numa queda das taxas de juros reais, como havia ocorrido nas primeiras fases dos demais programas de combate à inflação baseados na taxa cambial. As taxas de juros reais permaneceram deveras elevadas durante esse período. Entre junho de 1995 e dezembro de 1998, a taxa de juros real passiva atingiu uma média anual de 22%.

Ao contrário, o boom brasileiro parece ter em sua origem o aumento dos salários reais. Entre 1993 e 1995, ocorreram vários ajustes salariais (inclusive aumentos do salário mínimo e dos salários e vencimentos governamentais). Esses ganhos de renda se refletiram no boom das importações e no consumo de bens duráveis.5 5 Ver José De Gregorio, Pablo Guidotti, e Carlos Vegh, Inflation Stabilization and the Consumption of Durable Goods (Washington: International Monetary Fund, 1994). As altas taxas de juros reais atraíram capitais para o financiamento dos crescentes desequilíbrios. No entanto, como a âncora cambial se valorizava com base em altas taxas de juros e grandes entradas de capitais, as autoridades brasileiras enfrentaram complexas e, em geral, contraditórias escolhas de políticas, conforme tentavam sustentar o crescimento mesmo diante de um cenário que apresentava crescentes déficits fiscais e comerciais, bem como fluxos voláteis de capital.

DÉFICITS FISCAIS: DÉFICITS PRIMÁRIOS, OPERACIONAIS, QUASE­ DÉFICITS E DÉFICITS INVISÍVEIS

Quando foi lançado, o Plano Real tinha o compromisso declarado de controlar os déficits fiscais, mas todos os ajustes fiscais empreendidos em 1994 foram rapidamente perdendo o embalo inicial. O déficit operacional, que inclui os pagamentos de juros reais sobre as dívidas, passou de um superávit, em 1994, para um déficit de 5% do PIB, em 1995; manteve-se por volta de 4% do PIB em 1996 e 1997, caindo para níveis ainda mais baixos em 1998. O superávit primário, que exclui o pagamento de juros, caiu em 1995, refletindo um incremento expressivo nas despesas de pessoal, e se transformou em déficit em 1996. Dentre os fatores que contribuíram para esse desequilíbrio primário, estão o aumento de 43% nas aposentadorias resultante do aumento do salário mínimo em maio de 1995, bem como o substancial crescimento de “outras despesas”, em particular com a aproximação das eleições de 1998.6 6 Outras despesas” é um item dentro do orçamento do governo federal que inclui investimentos e diversas despesas (outras despesas de custeio e capital, conhecido como OCC), e no qual o Tesouro aloca recursos de acordo com as destinações do Congresso. É exatamente esse tipo de item que cria um cenário para barganhas financeiras entre a administração pública e os políticos. Em 1998, o déficit orçamentário atingiu 8%, do PIB.

Os problemas fiscais foram agravados pelo aparecimento de expressivos quase-déficits fiscais nos bancos federais e estaduais. Um exemplo disso é o do Banco do Brasil (fonte tradicional de crédito subsidiado do setor agrícola), na esfera federal, e o Banco Nacional de Desenvolvimento, que lançaram programas de créditos subsidiados a exportadores em 1996. Em parte, com o intuito de financiar esses programas, o Tesouro Nacional capitalizou o Banco do Brasil com um aporte de R$ 7,9 bilhões (1% do PIB). Essas transferências intergovernamentais contribuíram para o aumento do valor total líquido da dívida pública, que de 30% do PIB, em 1995, foi para 35% em 1996.7 7 O reconhecimento do passivo, como os R$25 bilhões do Fundo de Compensação e Variação Salarial (um fundo para hipotecas imobiliárias) e os R$21 bilhões do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (fundo de desemprego e invalidez para os trabalhadores), assim como a baixa de maus empréstimos nos bancos públicos vai aumentar mais ainda a dívida total líquida a médio prazo.

Ademais, com o fim da inflação, os maus empréstimos feitos pelos bancos estaduais aos governos estaduais passaram a ser um problema sério. A título de exemplo, o governo federal concordou em trocar as suas próprias obrigações pelas do estado de São Paulo - aproximadamente R$ 33 bilhões - assumindo o Banespa, o Banco do Estado de São Paulo. Embora esse fato não tenha aumentado diretamente a dívida líquida federal, já que as obrigações federais foram compensadas pelas obrigações estaduais, esse tipo de medida visando dar estabilidade a bancos estaduais debilitados acabou aumentando a vulnerabilidade do governo federal a choques de capital. Embora a economia estivesse crescendo, em média, à razão de mais de 3% ao ano entre 1994 e 1998, o índice da dívida pública líquida em relação ao PIB cresceu de 28%, em 1995, para 44% em 1999, e deu um salto para mais de 50% após a desvalorização de janeiro de 1999. Deve-se observar que, há décadas, os bancos estaduais vêm sendo palco de nepotismo e de clientelismo para os políticos brasileiros. Com muita frequência essas instituições financeiras foram usadas como meio para financiar campanhas políticas em nível estadual e municipal. Para o novo governo, tratava-se de um desafio delicado: ao mesmo tempo que era preciso conseguir o apoio dos governadores dos estados para o programa de estabilização, era necessário reduzir a fonte tradicional de influência política.

O fim da inflação também deu mais transparência aos problemas fiscais. As elevadas taxas de juros acabaram por minar os esforços financeiros, porém as causas da fragilidade financeira da segunda metade dos anos 908 8 ‘No que tange ao efeito das altas taxas de juros real, ver Eliana Cardoso, “Virtual Deficits and the Patinkin Effect”, IMF Staff Papers, vol. 45 (dez. l998), pp. 619-46. foram as seguintes: as inúmeras brechas contidas na Constituição de 1988 que permitiam gastos, a falta de rédeas curtas no controle das despesas excessivas com aposentadorias e os crescentes gastos durante o ano eleitoral de 1998. Antes do lançamento do Plano Real, os problemas não resolvidos de distribuição de receita eram mascarados pela de liberação de políticas em que se aprovavam orçamentos inviáveis, deixando a inflação agir como mecanismo de equilíbrio. Com o fim da inflação, as autoridades não tiveram outra escolha a não ser empreender reformas estruturais para conter o déficit fiscal. Contudo, muita coisa ficou por fazer. As iniciativas de reformas precisam vencer a resistência às mudanças estruturais. Um exemplo claro é o sistema de Seguridade Social brasileiro, que contribui muitíssimo para o déficit fiscal do governo e cujo impacto é enorme. Suas principais características seguem aqui descritas:9 9 Wall Street Journal, 9 de setembro de 1999, p. Al.

  • Muitos brasileiros gozam de uma aposentadoria mais longa do que a própria carreira;

  • O brasileiro aposenta-se, em média, aos 49 anos de idade;

  • No setor público, aproximadamente dois terços dos funcionários públicos tinham, em 1998, menos de 55 anos de idade e 14% menos de 45;

  • No setor privado, quase 4% dos mais de 400 mil trabalhadores que se aposentaram em 1997 tinham entre 30 e 39 anos;

  • Em 1999, os benefícios pagos aos aposentados do setor público e privado chegaram quase aos R$ 30 bilhões negativos, o equivalente a 5% da produção econômica e mais do que o dobro dos gastos do governo com saúde;

  • Setenta e cinco por cento do déficit do Orçamento têm como origem os pagamentos de benefícios feitos a apenas 3 milhões dos 20 milhões de aposentados brasileiros: são os burocratas do governo;

  • O rombo da Seguridade Social é o item que mais contribui para o déficit orçamentário e continua a crescer, apesar das pequenas reformas recentemente empreendidas;

Vários esforços mal-sucedidos foram feitos no sentido de controlar a sangria do Orçamento federal, atuando sobre a redução das aposentadorias. Os políticos se sentem pouco inclinados a reduzir os direitos daqueles que acreditam que os mesmos foram concedidos a eles e a suas famílias.

A TENTAÇÃO DO USO DA POLÍTICA MONETÁRIA COMO SUBSTITUTO À REFORMA FISCAL

Esperava-se que um a política monetária apertada, com maiores necessidades de reservas e rigorosas restrições a empréstimos, seria capaz de dar embasamento à estabilização. O aumento das reservas necessárias, associado à baixa da inflação, acabaram levando a uma redução expressiva das reservas inflacionárias nos bancos. Da mesma maneira, as restrições mais rigorosas impostas aos empréstimos provocaram um aumento no total de senhoriagem no Banco Central de uma média de 60% no primeiro semestre de 1994 para 84 % um ano depois. (A parcela no PIB de senhoriagem obtida pelos bancos de depósito consequentemente caiu de 2% para quase zero).10 10 Ver Cardoso, “Virtual Deficits”.

O aumento das reservas necessárias e a redução da senhoriagem do setor bancário explicam, em parte, as crescentes taxas de spreads (diferença entre o custo de fabricação e o preço de venda) e as elevadas taxas de juros reais ativas. As reservas necessárias foram pouco a pouco reduzidas, porém outros fatores -imposto sobre operações financeiras e o aumento na inadimplência de empréstimos vencidos, causado pelas taxas de juros reais mais altas após a estabilização, por exemplo - ajudaram a manter os spreads elevados.

Como a estabilização não foi conseguida através do aperto da política financeira, que por sua vez poderia ter sido reduzida pelo financiamento do déficit através da senhoriagem cobrada pelo Banco Central, a carga do ajuste acabou recaindo de maneira desproporcional sobre a política monetária. A senhoriagem cobrada pelo Banco Central cresceu de 1, 8% do PIB em 1993, ano de pico da inflação, para 3% em 1994, ano do Plano Real; manteve-se em 2% em 1995 - o que representa o nível médio de senhoriagem durante os anos de alta inflação.11 11 Uma redução na cobrança do total de senhoriagem foi casada com uma redução na cobrança de senhoriagem pelos bancos comerciais, ao passo que não houve alteração na senhoriagem cobrada pelo Banco Central. Não ocorreu, pois, efeito de riqueza com a queda da inflação, mas apenas uma transferência entre o setor bancário e o não bancário. Em 1996, portanto, a senhoriagem do Banco Central sofreu uma queda efetiva para 1% do PIB.

Essa apropriação de senhoriagem do setor bancário para o Banco Central ajudou a financiar os gastos do governo quando a inflação caiu, porém também colocou o setor bancário em risco. Uma política mais equilibrada não teria transferido a renda da emissão de moeda de maneira tão drástica dos bancos para o Banco Central e, portanto, teria evitado o aumento na taxa de juros dos spreads e dos empréstimos vencidos. Da maneira como estava, entretanto, a debilidade dos bancos estava sendo exposta, particularmente a dos bancos públicos, e a necessidade de reestruturação veio pressionar ainda mais os recursos financeiros. Desde julho de 1994 o Banco Central interveio em 51 bancos e em 140 outras instituições financeiras.

POLÍTICA COMERCIAL: EQUILÍBRIO ENTRE LIBERALIZAÇÃO E ESTABILIDADE

No início dos anos 90, o Brasil, seguindo a trilha deixada por outros países da América Latina, abriu-se comercialmente através da redução de tarifas, da eliminação de barreiras não-tarifárias e da extinção dos subsídios às exportações. Essas medidas unilaterais foram escoradas pela participação do Brasil no Mercado Comum do Cone Sul, ou Mercosul. Em janeiro de 1995, a tarifa externa comum do Mercosul tornou-se efetiva. As tarifas externas comuns, que hoje vão de 0 a 20% e são aplicadas em aproximadamente 85% do comércio do Mercosul com o resto do mundo, impõem disciplina, fazendo com que seja mais difícil reverter medidas de liberalização. O impacto direto do Mercosul sobre a economia brasileira, no entanto, será pequeno: apenas 16 % das exportações brasileiras são comercializadas com o bloco e o comércio total do país (importações mais exportações) totaliza apenas 7% do PIB. Mas o engajamento no processo do Mercosul aponta para um maior comprometimento do Brasil com a reforma de mercado, e com uma estratégia de desenvolvimento voltada para as exportações que se baseia em maior competitividade comercial.

O Mercosul também desempenhou um papel na transição democrática em meados dos anos 80, permitindo que dois novos e enfraquecidos presidentes - Raúl Alfonsín na Argentina e José Sarney no Brasil - reduzissem as tensões militares e o Orçamento. Isso também pôs um ponto final à histórica inimizade entre os dois países, cujas raízes remontam a antigos objetivos geopolíticos que no final do século já não são mais importantes.

Em parte como resultado da liberalização unilateral do comércio, a tarifa média caiu de mais de 30% em·1991 para 14 % no final de 1994. A proteção nominal assim como a efetiva caíram e se tornaram mais homogêneas entre 1991 e 1994. A combinação entre a liberalização unilateral e a valorização da taxa cambial passou a ser um elemento perigoso. A balança comercial, que durante dez anos havia registrado superávits, passou a exibir um déficit nos últimos dois meses de 1994, que persistiu durante o ano de 1995 e que contribuiu para um déficit crescente em conta corrente. Como as ligações comerciais entre Brasil e Argentina se haviam fortalecido no Mercosul, a valorização do real em relação ao peso alimentou ainda mais esses déficits. Para desespero de seus parceiros no Mercosul, o Brasil aumentou suas tarifas sobre importações de veículos em 1995. Em ·1996, novos cortes nas tarifas foram realizados sobre algumas mercadorias, enquanto outras sofriam aumento, como no caso dos têxteis e dos brinquedos.

Quando estourou a crise do México em dezembro de 1994, o elevado nível de reservas externas brasileiras deu às autoridades econômicas uma certa folga na sua decisão sobre como enfrentar a situação. Contudo, essa crise no México atingiu o Brasil num momento delicado, forçando as autoridades brasileiras a monitorar o crescente déficit comercial do país. Isso ocorreu exatamente no momento em que o governo de Fernando Henrique Cardoso tomava posse em Brasília. O déficit comercial aumentou ainda mais durante o ano de 1995, ao mesmo tempo que o Plano Real se concentrava na expansão da demanda nacional. A instabilidade financeira do início de 1995 forçou as autoridades a rever prioridades. A desvalorização - que teria forçado a fazer ajustes necessários nos preços relativos - foi descartada por tratar-se de um convite arriscado a um contágio total da crise do peso. Ao contrário, as autoridades econômicas adotaram medidas financeiras e monetárias em março de 1995 para controlar a demanda agregada e melhorar a balança de pagamentos: medidas fiscais como cortes de gastos nas empresas federais e estaduais, restrições nas despesas de pessoal em nível federal, e mudanças na legislação facultando o incremento da receita tributária (por exemplo, imposto de renda sobre dividendos de investimentos financeiros).

O governo tomou medidas para controlar a expansão do crédito, que incluíam: a instituição de um depósito compulsório de 60% junto ao Banco Central sobre os ativos bancários a título de caução de garantia, e empréstimos selecionados, um aumento que elevou de 6% para 18% o imposto sobre operações financeiras nos empréstimos bancários (inclusive sobre os saldos negativos nas dívidas com cartões de crédito e notas promissórias); proibiu os bancos de procederem à intermediação financeira envolvendo papéis comerciais e fez crescer a necessidade de reservas para depósitos a prazo.

Na frente externa, o Ministério da Fazenda extinguiu os impostos criados em outubro de 1994 sobre as operações de compra de ações brasileiras por estrangeiros e sobre as transações de créditos no exterior. O imposto sobre investimentos estrangeiros nos fundos brasileiros de renda fixa sofreu redução de 5,2%. O Banco Central adotou uma nova exchange rate band (banda cambial) e desvalorizou a moeda em 5% em relação ao dólar. Como essa desvalorização era pequena demais para afetar de maneira significativa a balança comercial, outras ferramentas - que se acreditava tinham menos chance de reavivar a inflação - foram utilizadas. Os exportadores da área industrial receberam incentivos adicionais através de reduções de impostos sobre insumos nacionais, e as tarifas sobre determinados bens de consumo duráveis e veículos sofreram um incremento temporário, de 20% para 70%. As medidas políticas conseguiram atingir o resultado desejado. Houve uma desaceleração do crescimento econômico e, em agosto de 1995, a balança comercial fechou com um saldo positivo, o que contribuiu para a redução do déficit comercial acumulado em 12 meses. Mas a melhoria da balança comercial foi resultado da recessão e acabaria perdendo-se na recuperação que se seguiu no segundo semestre de 1996 - ela mesma sustentada pela contínua valorização do real frente ao peso argentino.

A ADMINISTRAÇÃO DA TAXA CAMBIAL: A FALTA DE UMA ESTRATÉGIA DE SAÍDA

O êxito brasileiro na redução da inflação foi associado à real valorização da taxa cambial. Entre 1994 e 1998, a taxa de câmbio média real ficou em 31% acima da média dos últimos 14 anos; picos comparáveis ocorreram apenas antes da crise da dívida de 1982 e na esteira dos fracassados planos heterodoxos.

Apesar de pequenas desvalorizações entre 1995 e 1998, a taxa de câmbio real, no fim de 1998, continuava tão elevada como no início de 1996. Nenhuma mudança estrutural ou crescimento antecipado justificava uma valorização tão significativa. Ao contrário, o crescimento sustentado a longo prazo teria sido inconsistente com os altos déficits em conta corrente que acabariam ocorrendo com esse tipo de taxa de câmbio real. O comportamento da balança comercial reforça essa observação. Durante o ano de 1995, o déficit comercial brasileiro cresceu ao longo do primeiro semestre e começou a cair no segundo, com o encolhimento da economia. Porém, uma pequena recuperação após o mês de junho de 1996 foi suficiente para provocar deteriorações posteriores. A balança comercial continuou a piorar, gerando um déficit de US$ 8,4 bilhões em 1997 e de US$ 6,5 bilhões em 1998. A supervalorização também ficou evidente com o lento crescimento das exportações. Entre 1995 e 1998, a taxa de crescimento das exportações em dólar registrou 4,2% ao ano comparado a uma média anual de 11,3% entre 1991 e 1994.

A moeda forte prejudicou o setor industrial e provocou aumento no desemprego. O governo reagiu canalizando crédito subsidiado para os exportadores através do Banco Nacional de Desenvolvimento e aprovando uma legislação para isentar as exportações de bens primários e industrializados de impostos indiretos (os bens industrializados sempre se beneficiaram da isenção de impostos indiretos). Nenhuma dessas medidas foi suficiente para compensar os efeitos da supervalorização.

Esse fenômeno de valorização real acumulada ficou evidente em outros programas de estabilização na América Latina em que a taxa de câmbio foi utilizada como âncora nominal: no Chile, entre 1975 e 1981, no México entre 1987 e 1993 e na Argentina entre 1990 e 1995. Dentre os países que tentaram a receita neoconservadora, o Chile foi aquele que fixou sua taxa cambial para reduzir a inflação. O resultado foi uma valorização real, substantivas entradas de capital, grandes déficits externos e, em 1982, uma forte desvalorização seguida de recessão. Mais recentemente, o México e a Argentina seguiram um caminho de estabilização parecido, reduzindo a inflação através do uso da âncora cambial, conseguindo superávits fiscais, buscando a liberalização comercial e apoiando a privatização. Ambos os países melhoraram a produtividade através da reforma do mercado de bens de consumo e do trabalho, porém, é muito raro que o crescimento na produtividade seja por si só suficiente para contrabalançar uma taxa cambial supervalorizada.

O problema da supervalorização da taxa cambial é que não raro está associada a um consumo que envolve grande crescimento das importações e diminuição da poupança privada. Uma taxa cambial supervalorizada estimula os importadores a aumentar as importações, já que temem que estas possam ficar mais caras no futuro. Quando isso ocorre ao mesmo tempo que a liberação comercial, seus efeitos são multiplicados, levando a um salto das importações, tendo em vista a desativação dos controles. Se, por um lado, as reformas enfrentam um problema de credibilidade, por outro, as empresas e as pessoas, em dúvida quanto à manutenção da liberalização comercial, lançam-se, a título de precaução, numa busca frenética por produtos importados. Por essas razões, um boom nas importações é em geral característico nesses períodos de reforma econômica. Mesmo nos países onde as exportações cresceram rapidamente, como foi o caso do México no início dos anos 90, as âncoras cambiais tendem a gerar déficits comerciais.

Um segundo problema, menos aparente, que costuma acontecer com a supervalorização é que ela estimula a redução da poupança privada na medida em que a população passa a antecipar o consumo futuro. Em 1994, as exportações do México estavam em grande crescimento, porém a poupança nacional havia declinado para níveis muito baixos (13,7% do PIB).12 12 Para uma visão geral sobre a crise do México, ver Moisés Naím, “Mexico’s Larger Story “, Foreign Policy, vol. 99 (Summer 1995), pp.112-30. Entre 1978 e 1981, um nível de poupança baixo, em média de apenas 10% do PIB, também caracterizou a supervalorização no Chile.13 13 Gian Maria Milesi-Ferretti e Assaf Razin, “Current Account Sustainability”, International Journal of Finance and Economics, vol. 1 (jul.1996) pp.161-81. Ao desgastar os níveis de poupança, a supervalorização levanta obstáculos à atividade econômica em função das altas taxas de juros necessárias para manter o fluxo de entrada de capitais, que dá sustentação à taxa cambial. Quando o crescimento desacelera, arrasta consigo a poupança, levando a um círculo vicioso caracterizado por poupança baixa e crescimento baixo.

Estes dois problemas ocorreram no Brasil: déficits comerciais crescentes e redução dos níveis de poupança. As importações praticamente dobraram entre 1994 e 1997, em parte impulsionadas pela valorização do real frente ao peso argentino. Isto, combinado a um menor grau de exportações, fez com que a balança comer­cial passasse de um saudável superávit de R$ 10 bilhões para um déficit de R$ 8,4 bilhões.14 14 Todos os valores expressos em dólar correspondem ao dólar norte-americano, salvo quando consignado em contrário. Ao mesmo tempo, a poupança nacional caiu do patamar de 19,7% do PIB em 1994 para 16,8% em 1997.

A experiência mexicana, confirmada pelo Brasil em 1999, mostrou que os custos da valorização real apresentam a característica de ir agravando-se lentamente, mas de explodir de repente.15 15 Ver Ilan Coldfajn e Rodrigo Valdés, “The Aftermath of Appreciations”, Working Paper 5650 (Cambridge, Mass.: National Bureau of Economic Research, jul. 1996) A corrida ao peso mexicano destacou os riscos que ocorrem quando o capital estrangeiro dá sustentação à valorização da taxa cambial e aos déficits em conta corrente. No Brasil, como no México, a crise levou anos para se desenvolver pois as políticas cambiais permitiram a manutenção da supervalorização. Enquanto há disponibilidade de reservas e de fluxos de capital, a tentação de continuar usando a taxa cambial para manter a inflação sob controle parece irresistível.

FLUXOS DE CAPITAL: MANTENDO A CREDIBILIDADE ENQUANTO OS PRINCÍPIOS BÁSICOS SE VÃO DETERIORANDO

Não obstante o fato de que as políticas cambial e monetária acabaram por reduzir a poupança nacional e por criar insustentáveis déficits em conta corrente, sob a égide do Plano Real, elas conduziram a um boom de fluxos de capital que, no início, foi benéfico para a estabilização. Os fluxos de capital, que totalizavam em média US$ 39 milhões por mês entre 1988 e 1991, explodiram para um valor líquido de US$ 970 milhões entre 1992 e 1995. Em 1996 e 1997, o total líquido anual de fluxos de capital, atingiu as cifras de US$ 33 bilhões e de US$ 26 bilhões, respectivamente. O acúmulo de reservas alimentado pelos fluxos de capitais acabou mascarando a gravidade do déficit em conta corrente e dos níveis decrescentes de poupança privada. Enquanto os capitais continuavam ingressando no Brasil, foram responsáveis pela sustentação da supervalorização da moeda e não deixaram as autoridades perceberem claramente que a crise estava em processo de amadurecimento. No final, em função da sustentação da supervalorização da taxa cambial, tais fluxos de capital contribuíram para provocar a derrocada da economia.

Nos dois anos que antecederam o início do Plano Real, a diferença entre a taxa de juros brasileira e a norte- americana ultrapassava de longe a depreciação esperada da moeda a curto prazo e atraía capital estrangeiro. O anseio para neutralizar a pressão da valorização da taxa cambial frente à entrada de capitais potencialmente voláteis levou à intervenção do Banco Central. O controle de capital foi utilizado para discriminar entre os investimentos que se acreditava faziam a economia ficar mais produtiva e competitiva (como os investimentos estrangeiros diretos) e aqueles investimentos potencialmente voláteis eminentemente voltados para os ganhos de curto prazo. As autoridades usaram um dispositivo de ativação e desativação das restrições durante os anos 90 através da aplicação de impostos seletivos a fim de limitar tais entradas de capital.16 16 Ver Eliana Cardoso e Ilan Goldfajn, “Capital Flows to Brazil: The Endogeneity of Capital Controls’”, IMF Staff Papers, vol. 45 (mar. 1998), pp. 161-202.

A evidência brasileira é consistente com a de outros países, indicando que os controles podem gerar diferenças nas taxas de juros por longos períodos de tempo.17 17 Ver Maurice Obstfeld, “International Capital Mobility in the 1990s”, in Peter Kenen, org., Understanding Interdependence: The Macroeconomics of the Open Economy (Princeton University Press, 1995), pp. 201-61. O controle de capital também mudou a composição dos fluxos no Brasil, pelo menos temporariamente. Foi menos efetivo no monitoramento da quantidade de fluxos ou na prevenção contra a derrocada final do real. Com o intuito de evitar uma expansão monetária induzida pelos fluxos de capital, as entradas foram parcialmente esterilizadas. A esterilização criou custos fiscais significativos no financiamento de altos níveis de retenção de reservas, por dois motivos: primeiro, em função da escala das operações e da diferença de juros em relação ao dólar (e outras reservas). O aumento nos ativos externos brutos das autoridades monetárias em relação ao aumento da base monetária sugere que as operações de esterilização eram de vulto e onerosas no Brasil da década de 90.

A falta de sustentação de uma situação desse tipo é inquestionável, no entanto poucos governos conseguem resistir à tentação de deixar a taxa cambial valorizar-se enquanto afluem recursos para financiar o déficit em conta corrente. O argumento comumente usado é que o crescimento da produtividade do setor de bens de consumo é suficiente para justificar uma valorização real, e que o déficit em conta corrente reflete as importações de bens de capital que gerarão exportações futuras, possibilitando o pagamento dos passivos acumulados. A dura realidade é que o crescimento da produtividade no setor de bens de consumo teria que estar bem acima do que se poderia imaginar a fim de justificar a valorização real que ocorre no início dos programas de estabilização que se apoiam na taxa cambial. Ademais, as políticas internas teriam que ser dirigidas muito mais para os tipos de políticas de concorrência que ajudariam a acelerar os ganhos de produtividade no Brasil. Sob o regime cambial de livre flutuação, o risco desse otimismo se reflete nas carteiras privadas. Num programa de estabilização que prioriza o câmbio, o fato de o governo estar enganando a si próprio acarreta um comprometimento cada vez mais oneroso para garantir um resultado insustentável.

Quando estourou a crise do México no final de 1994, a reação inicial dos investidores sugeria que a crise financeira mexicana afetaria todos os mercados emergentes, principalmente quando o preço das ações despencou, em particular na Argentina e no Brasil. Durante o quarto trimestre de 1994 e o primeiro de 1995, o fluxo de capital líquido que entrou no Brasil foi insuficiente para financiar o déficit em conta corrente e o Banco Central perdeu reservas da ordem de US$ 9,8 bilhões. A operação de resgate liderada conjuntamente pelos Estados Unidos e o FMI para apoiar a reforma no México isolou com sucesso os mercados financeiros da crise e o capital regressou ao Brasil. No final de 1995, o fluxo de capital líquido já atingia US$ 29 bilhões e, em 1996, US$ 33 bilhões.

Apesar de o Plano Real ter sobrevivido ao choque mexicano, por volta de meados de 1995 as autoridades estavam enfrentando os mesmos desafios básicos de antes da crise. De maneira geral, o ajuste fiscal insuficiente continuou a pesar sobre a política monetária, cambial e de crédito. Mais especificamente, as diferenças de juros aumentaram numa escala considerável e permaneceram elevadas. Essas elevadas taxas de juros reais, em geral não tão altas, refletiram em parte a dificuldade em dar-se credibilidade à política macroeconômica no Brasil, país que já tem um histórico hiper-inflacionário e onde o equilíbrio fiscal tem sido refém dos políticos do Congresso.

As altas taxas de juros foram acompanhadas de um forte aumento na dívida do setor público. Em 1995, o estoque de títulos do Banco Central e de títulos do Tesouro fora do Banco Central cresceram 53% em termos reais.18 18 Associação Nacional das Instituições do Mercado Aberto, Retrospectiva 199S (Rio de Janeiro), tabela 3.6. Entre 1994 e 1996, o índice da dívida líquida do setor público em relação ao PIB aumentou de 28,5% para 35%, já que as altas taxas de juros reais contribuíram para o enfraquecimento da posição fiscal por dois anos consecutivos. A dívida líquida continuou a crescer nos anos seguintes, atingindo 44% do PIB em 1998.

A falta de confiança na capacidade do governo em sustentar a âncora cambial e em cumprir suas obrigações refletiu-se no uso cada vez mais corrente de expressar dívidas em dólar e taxa flutuante. Antes dos problemas de 1998, em sua maioria, as dívidas expressas em moeda nacional eram reajustadas com base em taxa fixa e cerca de 15% atreladas ao dólar. No início de 1999, 21% eram expressas em dólar e 70% indexadas à taxa do overnight. Os juros que incidiram sobre a dívida interna apenas no mês de janeiro de 1999 ultrapassavam 6% do PIB.

QUEDA CONTROLADA: ADMINISTRANDO A DERROCADA DE 1999

Conforme observado anteriormente, a crise mexicana levou a uma expressiva perda de confiança dos investidores, restabelecida, porém, através de bem-sucedidas medidas tomadas pelas autoridades mexicanas para estabilizar a economia. A crise asiática de 1997 provocou um rápido pânico, mas o verdadeiro solavanco veio da desvalorização russa e da inadimplência de agosto de 1998. As reservas externas brasileiras sofreram um abalo de US$ 30 bilhões enquanto o governo lutava para defender a moeda frente a outro choque externo de vulto.

O FMI agiu rapidamente na montagem de um pacote de empréstimo, mas os políticos nacionais, considerando a época das eleições presidenciais e de governadores aliada ao relacionamento tenso existente na época entre o Planalto e os governos estaduais, adiaram essas negociações. Finalmente, em dezembro de 1998, o Brasil firmou um contrato de assistência financeira de US$ 41,5 bilhões. As contribuições vinham do FMI (US$ 18 bilhões), do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (US$ 4,5 bilhões cada), e de credores bilaterais (US$ 5 bilhões fornecidos pelos Estados Unidos e US$ 9,5 bilhões pelos governos europeus). O FMI, à luz do papel de interventor de crises desempenhado em outras si­tuações de perturbação monetária e frente aos variados resultados obtidos, decidiu dar um enfoque de natureza preventiva. Aproximadamente US$ 9,2 bilhões foram desembolsados em meados de dezembro de 1998 como resultado desse pacote multilateral. A liberação de outras parcelas estava condicionada ao cumprimento de um programa de apoio do FMI, de três anos, objetivando o ajuste fiscal. O programa inicial tinha como meta reduzir a necessidade de empréstimo do setor público de 8°/4, do PIB em 1998 para 4,7% em 1999.

O programa do FMI deu tempo ao setor financeiro brasileiro para reduzir sua exposição externa. Todavia, essa situação foi logo ultrapassada pelos acontecimentos, com o fracasso da política monetária em evitar a queda do câmbio. Saídas de capital, falta de evolução fiscal, forte resistência da comunidade empresarial brasileira às taxas de juros recordes, aliadas à crescente demanda para corrigir o câmbio supervalorizado, forçaram o governo a adotar o novo regime cambial. No dia 15 de janeiro, o real passou a flutuar livremente e até o final de fevereiro já havia sofrido uma desvalorização de mais de 35%. Num período de três semanas, entre o dia 13 de janeiro e 2 de fevereiro, a combinação entre a moeda fraca e a alta taxa de juros fez com que 24 bancos obtivessem um lucro de US$ 10 bilhões com as operações de compra e venda no câmbio futuro. O Citibank e o Morgan Guaranty Trust detinham as maiores parcelas nas operações de câmbio futuro. O grande perdedor foi o Banco do Brasil, que operou em nome do Banco Central.19 19 Conforme declaração do deputado Aloízio Mercadante no depoimento que fez à CPI sobre irregularidades no sistema financeiro brasileiro.

POLÍTICA DE TAXA DE JUROS: EVITANDO A QUEDA LIVRE DO REAL

Apesar de a maioria dos economistas concordar que o real estava supervalorizado desde o lançamento do Plano Real, não se chegou a um consenso em relação à intensidade dessa supervalorização. Após a queda, a taxa cambial real média, durante o primeiro semestre de 1999, ficou muito próxima daquela que vigorou antes da implantação do Plano Real. Mas a taxa não ficou estável: entre meados de janeiro e o final de março, o real flutuou até 2,2 % em relação ao dólar antes de estabilizar-se em R$ 1,68 no início de maio.

O novo regime cambial estava possibilitando ao governo adotar um mix de política mais equilibrada, mas impôs a necessidade de uma nova estrutura monetária e de uma nova âncora nominal. O problema mais difícil foi estabelecer uma política monetária durante as primeiras semanas após a queda da taxa cambial, quando as condições e as expectativas do mercado financeiro ainda estavam incertas.

A inflação pode sofrer forte alta após um ataque especulativo à moeda, pois uma desvalorização expressiva causa um único ajuste em muitos preços. Essa alta inflacionária transitória viria a reduzir as taxas de juros reais sobre as dívidas expressas em moeda nacional, alimentando, pois, a fuga de capitais. Para contra balançar, pelo menos em parte, esse efeito de curto prazo, é geralmente adequado que o governo aumente as taxas de juros nominais a fim de evitar mais desvalorização e o perigo do desencadeamento de uma espiral inflacionária e de desvalorização da moeda. Ademais, as autoridades devem também prestar atenção à dívida expressa em moeda estrangeira. Quanto maior for essa dívida, maior será o impacto da desvalorização sobre o índice da dívida em relação ao PIB. No caso do Brasil, esse índice atingiu 53%, em janeiro de 1999.

O acordo entre o Brasil e o FMI anunciado em 8 de março de 1999 fixava dois objetivos claros: limitar o impacto inflacionário da desvalorização através do aumento da taxa de juros e prevenir que o índice da dívida sobre o PIB pudesse explodir, produzindo superávits primários expressivos nas contas fiscais. O acordo reconheceu que o custo provável dessas políticas seria uma recessão e calculou uma redução do PIB de 3,5 a 4 %. A discussão ficou centrada na estratégia que os críticos chamaram de contraditória: a confiança em taxas altas de juros para controlar a inflação, e que ao mesmo tempo agravavam o déficit fiscal através do aumento da carga da dívida e da redução das receitas de tributos. E, obviamente, maiores taxas de juros reais podem levar os investidores ao temor de que o governo não tenha condições de pagar o serviço da dívida, tendo assim que recorrer à emissão de moeda; e, ainda, outro fator igualmente negativo, de que o governo não esteja querendo encarar o risco das repercussões políticas de uma recessão grave.

No entanto, uma vez que se abando na uma âncora cambial, as expectativas inflacionárias geralmente recrudescem. Após a queda da moeda, o Banco Central deve impor um aperto à política monetária para evitar uma espiral fatal de desvalorização, que poderia trazer consigo mais inflação e ainda mais desvalorização. Se a política monetária for demasiadamente frouxa, as pessoas poderão preferir usar seus recursos para comprar dólar, o que provocaria mais desvalorização e mais inflação. O que se teria que fazer seria aumentar a taxa de juros.

Após a desvalorização de janeiro de 1999, o governo brasileiro enfrentou a questão de quanto deveria ser o aumento na taxa de juros. Se o Banco Central resolver aumentar os juros muito pouco e muito tarde, pode haver um recrudescimento da inflação e a economia pode voltar a reviver os níveis inflacionários históricos. É possível que a inflação novamente esconda desequilíbrios estruturais, mas isso com certeza destruiria a confiança externa. Se o Banco Central aumentar em demasia a taxa de juros, a recessão decorrente poderá ser muito grave e a inflação poderá cair antes do que a taxa de juros, levando a juros reais mais altos. A recessão combinada com uma alta taxa de juros real pode aumentar o déficit orçamentário e reduzir a confiança na capacidade do governo de pagar o serviço da dívida sem ter que novamente recorrer à monetarização. Além disso, a perspectiva de recessão grave pode minar a confiança das pessoas quanto à decisão do governo de sustentar uma política monetária apertada, podendo, portanto, deflagrar nova onda de expectativas inflacionárias.

Considerando que os princípios fundamentais nunca são tão sombrios nem tão reluzentes como os pintam, a recuperação da credibilidade é tudo. À medida que o governo vai aumentando as taxas de juros, a tendência é que as expectativas inflacionárias refluam e que o mercado possa assim reduzir de novo as taxas de juros nominais. Contudo, se houver uma grande dívida pública que ao mesmo tempo seja de curto prazo e com taxas de juros flutuantes, como é o caso do Brasil, os investidores podem ficar preocupados que diante de taxas de juros mais elevadas o governo se veja forçado a monetarizar a dívida.

A tarefa de curto prazo será, pois, negociar uma fórmula de inflação e de taxa de juros declinante a fim de evitar uma queda da taxa cambial que possa ultrapassar seu novo nível de equilíbrio. O fato de não conseguir manter-se nessa fórmula trará implicações para o Orçamento e vice-versa: quanto menor for o déficit primário, maior será o espaço que as autoridades terão para o estabelecimento da política monetária. No entanto, é difícil promover mudanças drásticas no Orçamento primário, especialmente com os políticos entrincheirados em suas posições, com emendas constitucionais por fazer e déficits operacionais - que refletem pagamentos de juros sobre dívidas pendentes - fora do controle do governo. Por essa razão o apoio das instituições multilaterais pode ser um fator essencial para a restauração da credibilidade e da estabilidade.

BRASIL: SAINDO DA BEIRA DO ABISMO

Qualquer que seja o critério utilizado, o Brasil conseguiu mover-se a contento em relação à crise do real e com extraordinária facilidade e velocidade. Em maio de 1999, o real tinha subido para 1,67 por dólar, comparado com um valor de 2,21 no mês de março.20 20 Mas no dia 24 de maio de 1999, já havia caído novamente para 1,72, indicando que a estabilidade ainda encontra-se em construção. A taxa de juros de curto prazo havia caído de 45% em março para 23% em maio e a inflação, medida pelo índice nacional de preços ao consumidor, havia caído de uma taxa anual de 16% em março para 6% em abril. Longe, portanto, de resvalar numa profunda recessão, na verdade a economia brasileira cresceu 1% no primeiro trimestre de 1999, e as previsões que davam conta de expressiva redução na produção estão sendo revistas.

O que explica essa rápida reviravolta? Certamente há de se reconhecer uma boa dose de sorte. Os juros nos Estados Unidos permaneceram baixos e a produção agrícola cresceu 18% no primeiro trimestre de 1999, graças a uma colheita recorde, fruto das boas condições climáticas. Mas o que foi básico para que os investidores voltassem a ter confiança foi a atuação fiscal e a astuta política monetária. A conscientização do risco de uma grave derrocada mesmo entre os legisladores e governadores mais intransigentes foi fator determinante: em fevereiro, a queda do real motivou o Congresso a aprovar uma lei de reforma do sistema previdenciário que havia sido rejeitada em 1998. O Congresso também aprovou uma elevação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e introduziu medidas para conter gastos estaduais e municipais.21 21 Para lidar com a dívida dos governos estaduais, o governo federal fez novos tipos de acordos de reestruturação. Tais acordos impõem condições aos governos estaduais, exigindo aumento nos superávits primários através da redução das folhas de pagamento e da privatização de empresas locais. A nova legislação prevê a liquidação e a privatização de bancos estaduais, mas também permite a recapitalização destes. Impõe também um teto às dívidas dos governos estaduais, proibindo aos bancos estaduais a compra de novo títulos de emissão dos governos locais. O acordo de reescalonamento de dívidas com os estados objetiva redução do índice de estoque da dívida líquida nacional em relação à receita dos estados (transferências líquidas para os municípios) de uma média de 200%, para 100% até 2006. No final do primeiro trimestre de 1999, o governo federal conseguiu um superávit fiscal primário de US$ 5,6 bilhões. A política monetária desempenhou um papel crucial. Após o choque inflacionário da desvalorização de meados de janeiro, os preços aumentaram imediatamente, levando para baixo os juros reais. O Banco Central reagiu elevando os juros, que ficaram extremamente altos em março. Com o arrefecimento das expectativas inflacionárias, os juros nominais puderam cair. No entanto, os juros reais em abril e maio continuavam entre os mais elevados do mundo. Essa estratégia conduziu a economia, com êxito, de uma situação potencialmente explosiva para um horizonte onde se vislumbrava uma estável redução da inflação, possibilitando aos juros reais uma queda gradual.

O Banco Central demonstrou seu compromisso em controlar a inflação através de uma política monetária apertada, mesmo com as previsões oficiais apontan­do para o encolhimento de 4%, no PIB e desemprego em alta.22 22 O índice de desemprego oficial registrou forte crescimento, deslocando-se de 5% em média durante o período de 1990-1997, para 8% em média no período de 1998 a junho de 2000 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esse número exclui muitas pessoas que se considerariam desempregadas, como aquelas que não estavam procurando emprego ativamente durante aquela semana específica do mês em que o levantamento foi realizado. Um estudo elaborado pelo DIEESE (grupo de pesquisa com apoio sindical) usa uma medida mais ampla e considera que a taxa de desemprego corresponde a 20% da força de trabalho na Grande São Paulo. Essa decisão trouxe de volta a confiança e em abril o capital de curto prazo já retornava, atraído pelos altos rendimentos oferecidos pelo mercado financeiro brasileiro.

O apoio externo dado a essas medidas por instituições multilaterais conferiu mais credibilidade ainda. Em março, o governo brasileiro e o FMI anunciaram um acordo sobre a revisão do programa econômico. O FMI deu forte apoio ao compromisso do governo em manter baixas as expectativas inflacionárias, em proteger os gastos com programas sociais e, finalmente, em manter os programas da reforma fiscal estrutural para dar suporte à credibilidade e à recuperação do cresci mento. Uma vez ratificadas as medidas fiscais rejeitadas no outono, o Banco Central poderá com muita confiança contar com a liberação do restante do crédito de US$ 41,5 bilhões do FMI. A contribuição do Banco Mundial de US$ 4, 5 bilhões já foi utilizada no atendimento de compromissos sociais e de reformas em nível estadual.

O setor bancário brasileiro também representava um fator importante nessa recuperação: muitos bancos haviam previsto a desvalorização e se haviam posicionado para duas situações: obter lucros com seus contratos futuros e fazer hedge mantendo títulos públicos atrelados ao dólar. Como resultado, o risco de uma derrocada no setor bancário não ameaçou a balança fiscal, como ocorreu no caso da Ásia e do México. A agilidade do setor financeiro na avaliação da situação, aliada à atuação em relação às mudanças inflacionárias, também facilitaram a redução das taxas de juros. A renovação das ·entradas de capital permitiram ao Banco Central reduzir a taxa de juros nominal seis vezes no prazo de sete semanas, sem criar a impressão de que estava abandonando as políticas monetárias de aperto.

A TRANSIÇÃO: DA GESTÃO DA CRISE PARA O CRESCIMENTO SUSTENTADO

No final de maio de 1999, o mercado brasileiro foi novamente abalado pelo contágio, dessa vez, porém, vindo de um país limítrofe. Apesar dos esforços do governo argentino em desmentir boatos de que seria forçado a abandonar a paridade monetária, que havia, desde 1990, fixado a taxa cambial à razão de um por um em relação à moeda norte-americana, o mercado, assim mesmo, ficou agitado.

O êxito obtido pelo Brasil em sustar uma espiral inflacionária e de desvalorização crescente da taxa cambial deve propiciar mais do que a recuperação de um mercado acionário lucrativo. Desde que não ocorram surtos de expressiva turbulência no mercado financeiro ou de excessivos atrasos na frente fiscal, a economia continuará a se desenvolver ao longo de 2000. Evitar a recessão será, sem sombra de dúvida, a maior preocupação dos 70 milhões de brasileiros que vivem na pobreza; será que, pelo menos, esses brasileiros não ficarão mais pobres ainda com o resultado desse jogo feito pelo Banco Central em que a aposta são os meios de subsistência dessa gente contra a inconstante opinião dos mercados financeiros mundiais?

O Brasil ainda deve enfrentar o desafio de fixar uma estratégia econômica para o futuro, digna de crédito. Através da gestão hábil da relação entre taxas de juros, inflação e taxas cambiais, os policy makers lograram conter, temporariamente, os ataques especulativos feitos ao real. No entanto, uma volta à trilha do vigoroso crescimento sustentado é algo menos certo. O que complica a questão do crescimento sustentado nada mais é do que a falta de progresso na solução de problemas de distribuição de receita que estão na origem do déficit fiscal brasileiro. A ilusão de que o crescimento macroeconômico no Plano Real pode atender a todas as exigências vindas de todos os lados já não existe. Ao mesmo tempo, a comunidade de investimentos internacional está cada vez mais ágil em relação a riscos monetários e a potenciais riscos de inadimplência. Os próximos passos do Brasil devem privilegiar menos o rápido reparo e muito mais o progresso firme e constante em direção à solução dos problemas fundamentais.

E, no entanto, há mais de dez anos que não há reformas no Brasil. O déficit operacional ainda é elevado em função de obrigações de juros acumulados, e as finanças externas continuam sendo vitais para o pagamento do serviço do passivo externo que se vem acumulando nos últimos cinco anos. Se não houver um forte reaquecimento das exportações no ano que vem, a confiança tenderá a arrefecer.

Fato ainda mais potencialmente prejudicial é a série de escândalos de corrupção que ameaça a credibilidade do governo em todos os níveis. Abalam também a confiança na habilidade do Congresso de encontrar soluções para o déficit orçamentário, que depende de medidas distorcidas, como é o caso da contribuição sobre movimentação financeira. A carga fiscal total não é nada pequena, se considerarmos os padrões latino-americanos, mas as receitas não são cobradas e gastas de maneira progressiva. O desafortunado resultado de uma política tributária regressiva e de inadequados investimentos em capital humano se reflete no nível médio de educação no Brasil - que é tão baixo quanto o dos países mais pobres, e que restringe o crescimento da produtividade.

A realização de rápido crescimento sustentado vai demandar um investimento em capital humano, que deve ser definido como meta mais específica, uma profun­da reforma institucional do Estado e o controle dos interesses específicos que corroem o progresso econômico. Quando é que o Brasil voltará a enfrentar o desafio dessas reformas mais renitentes? Sem refrear com sucesso a crise, nem pensar, contudo, não é provável que novas crises possam ser evitadas, a não ser que reformas fundamentais sejam empreendidas e levadas adiante.

CONCLUSÃO

Este capítulo ofereceu três perspectivas principais relacionadas à política cambial no Brasil. A primeira trata do papel essencial da reforma fiscal no uso da taxa de câmbio como âncora nominal. Durante a longa época de pré-estabilização no Brasil, a inflação ajudou a gestão do déficit orçamentário, mesmo que, olhando para trás, assim não o fosse. A segunda perspectiva, na falta de uma profunda reforma fiscal após o lançamento do Plano Real, consiste no fato de que as autoridades confiaram e acreditaram que os empréstimos públicos e as altas taxas de juros reais dariam sustentação à taxa cambial. Ainda que o Brasil mantivesse uma política monetária ativa e tivesse uma das mais elevadas reservas do mundo desenvolvido no período 1994-1998, ainda assim os crescentes déficits fiscais em conta corrente trabalhariam para desequilibrar a âncora cambial. A perspectiva derradeira, aliás parecida com a experiência mexicana, é que os mercados financeiros no Brasil se recuperaram e o fizeram mais rapidamente do que se esperava. Se, por um lado, a recuperação foi um grande alívio, por outro, é importante não ser otimista em demasia. Grande parte do capital que retornou é de curto prazo, e contrastando com a situação mexicana, as oportunidades externas do Brasil para o crescimento das exportações ainda são limitadas. O mais importante - apesar de a recuperação da desvalorização de janeiro de 1999 haver sido mais rápida do que se esperava - é que várias tarefas de vulto ainda estão pela frente. Estas contêm no seu bojo profundas reformas estruturais e de racionalização fiscal, assim como a formação de uma coalizão política pró-reforma viável, para contrapor-se aos inúmeros conflitos de interesse que atuaram para engendrar o crash financeiro de janeiro de 1999.

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    O coeficiente Gini brasileiro (uma medida de desigualdade de renda relacionada a uma população, na qual quanto maior o coeficiente, maior a desigualdade) figura entre os mais altos do mundo.
  • 2
    As exceções ocorreram em 1986, quando a taxa cambial foi fixada, e cm 1989 e início de 1990, quando houve uma aceleração da inflação e as mini desvalorizações demoraram para se tornar uma política aberta de redução inflacionária.
  • 3
    As exceções ocorreram em 1986, quando a taxa cambial foi fixada, e cm 1989 e início de 1990, quando houve uma aceleração da inflação e as mini desvalorizações demoraram para se tornar uma política aberta de redução inflacionária.
  • 4
    Ao mesmo tempo, a queda das taxas de juros internacionais deu folga à carga da dívida externa e conduziu ao acordo de abril de 1994 com os bancos credores, que cobriram mais de US$ 50 bilhões em dívidas e atrasados.
  • 5
    Ver José De Gregorio, Pablo Guidotti, e Carlos Vegh, Inflation Stabilization and the Consumption of Durable Goods (Washington: International Monetary Fund, 1994).
  • 6
    Outras despesas” é um item dentro do orçamento do governo federal que inclui investimentos e diversas despesas (outras despesas de custeio e capital, conhecido como OCC), e no qual o Tesouro aloca recursos de acordo com as destinações do Congresso. É exatamente esse tipo de item que cria um cenário para barganhas financeiras entre a administração pública e os políticos.
  • 7
    O reconhecimento do passivo, como os R$25 bilhões do Fundo de Compensação e Variação Salarial (um fundo para hipotecas imobiliárias) e os R$21 bilhões do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (fundo de desemprego e invalidez para os trabalhadores), assim como a baixa de maus empréstimos nos bancos públicos vai aumentar mais ainda a dívida total líquida a médio prazo.
  • 8
    ‘No que tange ao efeito das altas taxas de juros real, ver Eliana Cardoso, “Virtual Deficits and the Patinkin Effect”, IMF Staff Papers, vol. 45 (dez. l998), pp. 619-46.
  • 9
    Wall Street Journal, 9 de setembro de 1999, p. Al.
  • 10
    Ver Cardoso, “Virtual Deficits”.
  • 11
    Uma redução na cobrança do total de senhoriagem foi casada com uma redução na cobrança de senhoriagem pelos bancos comerciais, ao passo que não houve alteração na senhoriagem cobrada pelo Banco Central. Não ocorreu, pois, efeito de riqueza com a queda da inflação, mas apenas uma transferência entre o setor bancário e o não bancário. Em 1996, portanto, a senhoriagem do Banco Central sofreu uma queda efetiva para 1% do PIB.
  • 12
    Para uma visão geral sobre a crise do México, ver Moisés Naím, “Mexico’s Larger Story “, Foreign Policy, vol. 99 (Summer 1995), pp.112-30.
  • 13
    Gian Maria Milesi-Ferretti e Assaf Razin, “Current Account Sustainability”, International Journal of Finance and Economics, vol. 1 (jul.1996) pp.161-81.
  • 14
    Todos os valores expressos em dólar correspondem ao dólar norte-americano, salvo quando consignado em contrário.
  • 15
    Ver Ilan Coldfajn e Rodrigo Valdés, “The Aftermath of Appreciations”, Working Paper 5650 (Cambridge, Mass.: National Bureau of Economic Research, jul. 1996)
  • 16
    Ver Eliana Cardoso e Ilan Goldfajn, “Capital Flows to Brazil: The Endogeneity of Capital Controls’”, IMF Staff Papers, vol. 45 (mar. 1998), pp. 161-202.
  • 17
    Ver Maurice Obstfeld, “International Capital Mobility in the 1990s”, in Peter Kenen, org., Understanding Interdependence: The Macroeconomics of the Open Economy (Princeton University Press, 1995), pp. 201-61.
  • 18
    Associação Nacional das Instituições do Mercado Aberto, Retrospectiva 199S (Rio de Janeiro), tabela 3.6.
  • 19
    Conforme declaração do deputado Aloízio Mercadante no depoimento que fez à CPI sobre irregularidades no sistema financeiro brasileiro.
  • 20
    Mas no dia 24 de maio de 1999, já havia caído novamente para 1,72, indicando que a estabilidade ainda encontra-se em construção.
  • 21
    Para lidar com a dívida dos governos estaduais, o governo federal fez novos tipos de acordos de reestruturação. Tais acordos impõem condições aos governos estaduais, exigindo aumento nos superávits primários através da redução das folhas de pagamento e da privatização de empresas locais. A nova legislação prevê a liquidação e a privatização de bancos estaduais, mas também permite a recapitalização destes. Impõe também um teto às dívidas dos governos estaduais, proibindo aos bancos estaduais a compra de novo títulos de emissão dos governos locais. O acordo de reescalonamento de dívidas com os estados objetiva redução do índice de estoque da dívida líquida nacional em relação à receita dos estados (transferências líquidas para os municípios) de uma média de 200%, para 100% até 2006.
  • 22
    O índice de desemprego oficial registrou forte crescimento, deslocando-se de 5% em média durante o período de 1990-1997, para 8% em média no período de 1998 a junho de 2000 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esse número exclui muitas pessoas que se considerariam desempregadas, como aquelas que não estavam procurando emprego ativamente durante aquela semana específica do mês em que o levantamento foi realizado. Um estudo elaborado pelo DIEESE (grupo de pesquisa com apoio sindical) usa uma medida mais ampla e considera que a taxa de desemprego corresponde a 20% da força de trabalho na Grande São Paulo.
  • JEL Classification: F31; F32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2001
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