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Três histórias acerca da história

Three stories about the history

RESUMO

Este artigo discute os conceitos de história coletiva e individual presentes na mente ocidental moderna: os judeus-cristãos, os materialistas e os psicanalíticos. Pensamos que, embora se relacionem dialogicamente e se pressupõem, têm algumas particularidades que os fortalecem, dando um significado maior à busca da liberdade humana e de uma ordem social mundial mais justa e democrática.

PALAVRAS-CHAVE:
Tempo histórico; tempo interno; liberdade; transcendência

ABSTRACT

This paper discusses the concepts of collective and individual history present in the modern Western mind: the Jewish-Christian, the materialist and the psychoanalytic ones. We think that, although they relate dialogically and presuppose each other, they have some particularities that strengthen them, giving a greater meaning to the search of human freedom and of a world social order more democratic and fair.

KEYWORDS:
Historical time; internal time; freedom; transcendence

INTRODUÇÃO

Este artigo procura recuperar o sentido originário de termos como transcendência e imanência, liberdade e opressão, tempo histórico e tempo interno em três grandes tradições ainda atuantes na nossa velha e sempre renovada civilização, especialmente num momento de aguda crise econômica, geopolítica, axiológica... bem, completar a lista de adjetivos requereria a ajuda da Mafalda, de Quino, tão novamente atual. Seu objetivo é justamente deixar no mínimo implícita a possibilidade que cada uma dessas tradições propõe aos homens de que a sobriedade necessária à construção de uma vida societária e pessoal rica e cheia de significado pressupõe suportes materiais, intelectuais e emocionais que podem ser buscados naquelas tradições, a saber: o judaísmo/cristianismo, o marxismo e a psicanálise.

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As origens do cristianismo remetem a homens sem renome e sem crédito, que, por um milagre e uma maravilha aos olhos humanos, foram transformados em homens novos formando o novo “Israel de Deus” a partir de um juízo de Deus sobre a história humana, predito pelos antigos profetas, e que consiste na encarnação, morte e ressurreição do Filho do Deus, Jesus Cristo. Aqueles homens “fracos, vis e desprezados” (1 Cor. 1,27) vieram pois a formar a verdadeira eclesia só e única, ainda que espalhada por toda a Terra. Este é o ponto de partida para pensar a concepção da história presente nos escritores neotestamentários.

A interpretação das origens do cristianismo deve acompanhar portanto a dos primeiros cristãos, com base nos profetas. Como ensina C. H. Dodd, a conseqüência lógica dessa interpretação é que a comunidade hebraica não podia mais representar a verdadeira “Israel de Deus” e portanto ser a encarnação dos desígnios da salvação de Deus para a humanidade: “A nova comunidade não ocupou aquele lugar na história porque seus membros fossem mais sábios, mais virtuosos ou mais hábeis que seus contemporâneos hebreus, mas porque Deus interveio em seu favor. O momento crucial dessa intervenção, aquele que determina sua eficácia, foi a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Em Jesus realizou-se a essência das profecias sobre o verdadeiro Israel: ele era o Servo do Senhor e o Filho do Homem. Nele se incorporou todo o Israel de Deus: o destino do povo culminou na sua experiência. Nele o Povo de Deus foi julgado, morreu e ressuscitou para uma vida nova. Por isso, tudo o que se pode dizer da Igreja lhe vem do fato de seus membros serem incorporados ao Cristo como seu “representante inclusivo”.1 1 Dodd, 1979: 111.

Essas concepções da Igreja primitiva sobre si mesma, ou seja, o que a Igreja primitiva é por definição, aparecem nos escritores neotestamentários de forma lapidar: em Paulo, por exemplo, nas idéias de ser “crucificado com Cristo” e ser “ressuscitado com ele”, que enfatizam que cada um dos membros da Igreja é membro graças a sua comunhão com Cristo; em João, na sua concepção da videira e dos ramos, que deriva diretamente do salmo 80, falando de um “Filho do Homem” que provavelmente possa ser representado com a Videira que Deus trouxe do Egito e plantou. A imagem da Videira, pensa Dodd, havia com bastante probabilidade penetrado na liturgia, em preces muito antigas, formando parte da Didaché ou ensinamento apostólico originário, e através da liturgia penetrou na teologia de João; o autor da epístola aos hebreus deve também ser lembrado aqui.

Sabemos que o Novo Testamento tem subjacente uma tradição oral primitiva que possui princípios e métodos de interpretação do Antigo Testamento e que se constitui num método para a compreensão teológica dos acontecimentos evangélicos. Todavia, os escritores neotestamentários não tomaram as profecias do Antigo Testamento como predições de fatos futuros de forma piedosa e simples, nem procuram evidenciar uma exata correspondência entre as previsões e os fatos. Na verdade, eles possuem uma compreensão da história bastante próxima da dos profetas e está implícita ou pressuposta em todo o Novo Testamento. A história, ou pelo menos a história do povo de Deus, corresponde ao plano que Deus fixou para sua criatura, o homem. Mas não se trata de uma “seqüência preestabelecida de acontecimentos inevitáveis”, na expressão de Dodd, mas de um “esquema geral segundo o qual deveria desenrolar-se a vida humana neste mundo”.2 2 Dodd, 1979: 128. O plano divino não pode ser modificado pelo homem, mas este pode mover-se livremente em seu interior. Os escritores neotestamentários convenceram-se de que este plano, manifestado diversas vezes e de diversas formas ao longo da história de Israel, ganhou plena luz nos acontecimentos evangélicos, e é a partir dessa convicção que explicam esses acontecimentos.

Nesse sentido, para os profetas a história é o terreno onde o Deus vivo não cessa de interpelar o homem, que deve a Ele responder. A resposta do homem é livre dentro de certos limites, e através dela o homem concorre para orientar a marcha dos acontecimentos rumo a metas que ultrapassam suas conjecturas inteiramente. Chegamos neste ponto a uma definição rigorosa da concepção da história que é partilhada pela visão de mundo ou mentalidade hebraica e cristã no que toca à concepção sobre a natureza do homem, as relações entre o homem e o universo e a relação entre ambos e o Criador. Essa visão deriva da concepção profética que nega que a história se mova por sua força intrínseca, que o homem tenha em si mesmo o poder de dirigi-la e que o devir histórico possa ser compreendido dentro de limites rigorosamente imanentistas. No dizer de Dodd: “Existe um fator misterioso, preterhumano e preternatural, que é real e determinante, a tal ponto que, se se prescinde dele, a história se torna incompreensível. Esse fator super-histórico na história é o Deus vivo em pessoa. Seu impacto sobre a sociedade humana revela-se de modo negativo como juízo sobre a ação do homem, de modo positivo como poder de renovação, ou de redenção. Este duplo ritmo do esquema da história encontra sua expressão característica nos termos de morte e ressurreição. Esta é a verdadeira natureza da ação da história, e não o retorno cíclico ou o progresso linear”.3 3 Dodd, 1979: 128.

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O substrato de toda a obra multifacetada de Marx e Engels, ainda os autores mais fecundos para a compreensão da modernidade, isto é, de sua gênese, articulações internas, desenvolvimento e caminhos previsíveis para a sua crise (entendida em sentido amplo, como a crise que se inicia quando as suas potencialidades fazem sua aparição em momentos lógicos e históricos desse desenvolvimento), é precisamente uma concepção laica e imanente da história, embora não lhe recusem um sentido humano: a busca das virtualidades emancipatórias humanas ao mesmo tempo no indivíduo e na sociedade livres e emancipados do capital.

Marx e Engels compartilham portanto a situação existencial do homem moderno. A título de aproximação ao sentido desta situação vejamos a seguinte passagem de Mircea Eliade: “O homem moderno a-religioso assume uma nova situação existencial: reconhece-se unicamente sujeito agente da História, e recusa todo o apelo à transcendência. Dito por outras palavras, não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal qual ela se deixa decifrar nas diversas situações históricas. O homem faz-se a si próprio, e não consegue fazer-se completamente senão na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência diante de sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio no momento em que estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre no momento em que tiver matado o último Deus”.4 4 Eliade, s.d. O último Deus em Marx e Engels é o capital: para além deste começa o homem em seu sentido mais forte, isto é, aquele cujo livre desenvolvimento é condição para o livre desenvolvimento de todos, como nos é dito no Manifesto Comunista.5 5 Marx e Engels (1998).

Não pretendemos de modo algum expor com o rigor que ela exige a concepção materialista de história de Marx e Engels ou de gerações de autores marxistas que a seu modo a interpretaram e utilizaram como ferramenta heurística.6 6 Para uma exposição detalhada da concepção materialista da história, ver Carvalho, 2001. Mas não podemos deixar de lado algumas observações centrais em textos seminais dos dois companheiros.

A primeira é que a concepção da história de ambos é original face à concepção “linear”, isto é, não “dialética” (usemos essa palavra ao menos no seu sentido mais empírico de “dialética da experiência” social)7 7 A crítica da noção althusseriana de dialética, bem como de toda a sua visão teórica sobre o materialismo histórico, foi substituída por uma postura mais empirista e flexível no notável texto metodológico de Thompson, 1981. , o que lhe confere sabor e vitalidade ainda disponíveis para o historiador ou cientista social contemporâneo. Isso permite, por exemplo, no dizer de Coggiola, “... a precisa e viva análise do Manifesto acerca da ruptura qualitativa imposta pela era do capital na História universal, suas raízes diferenciadas dos modos de produção precedentes, abrindo o período da História mundial propriamente dita...”.8 8 Coggiola, 1998. É essa vitalidade a um tempo antagônica, contraditória e progressiva que expande até os confins da Terra o capital que lhe imporá seu termo. No dizer de Engels, “a revolução proletária não será feita num só país, já que a grande indústria, criando o mercado mundial, aproximou já tão estreitamente uns dos outros os povos da Terra, que cada povo depende estreitamente do que acontece com os outros... a revolução social não será uma revolução puramente nacional. Produzir-se-á ao mesmo tempo em todos os países civilizados”.9 9 Engels, 1990. Citado por Osvaldo Coggiola em Introdução ao Manifesto Comunista, op. cit. p. 26.

Esse processo, todavia, tem um agente ativo: o desenvolvimento internacional do proletariado: “A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação de riqueza nas mãos de particulares, a formação e o crescimento de capital; a condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este se baseia exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da competição por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos pés da burguesia a própria base sobre a qual ela assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”.10 10 Marx e Engels, 1998. A partir daí, é natural que o Manifesto Comunista termine com a consigna em maiúsculas: PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!

É nessa prática revolucionária que o novo materialismo se funda, liberando o futuro do peso morto que a sociedade civil burguesa coloca sobre a humanidade. Conforme as “Teses sobre Feuerbach”,11 11 Engels, 1990. especialmente: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que orientam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática (...)12 12 Marx e Engels, 1998. O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade civil-burguesa; o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade social. Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente, o que importa é mudá-lo”.13 13 Labica, 1990. Ora, mudá-lo é ou deve ser a tarefa consciente e revolucionária do proletariado unido mundialmente. Coveiro da ordem antiga, é o Prometeu desacorrentado que abre aos homens socializados as suas virtualidades contidas pelo peso do passado ou, o que é o mesmo, do capital.

Isto porque o capital e a propriedade privada nada mais são que resultados do trabalho desapossado, alienado, eles que apareciam falsamente na origem e como fundamento desse trabalho e dessa vida desapossada. Assim, o trabalho alienado, diz Marx, é a causa imediata da propriedade privada, e ambos terão de cair juntos: “Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada segue-se ainda que a emancipação da sociedade da propriedade privada, etc., da servidão, se exprime na forma política da emancipação dos operários, não como se se tratasse apenas da emancipação deles, mas antes porque na sua emancipação está contida a emancipação universalmente humana, mas esta está aí contida porque toda a servidão humana está envolvida na relação do operário com a produção e todas as relações de servidão são apenas modificações e conseqüências dessa relação”.14 14 Marx, 1993.

Há outras dimensões em que o tempo e a temporalidade aparecem na obra de Marx e Engels, como na análise do progresso das forças produtivas, em relação à acumulação de capital, enquanto reprodução das relações capitalistas e, logo, nas conexões entre produtividade do trabalho e lei capitalista do valor.15 15 Ver, a respeito, Luiz Belluzzo, 1987. Todavia, interessa-nos ressaltar que a imanência da história aparece em ambos no final das contas como a discussão da violenta e opressiva pré-história humana, pois a verdadeira história nem começou. Nesse sentido, há uma vontade clara de transcendência humana e da sua história em pleno coração do materialismo histórico. Ela consiste na opção pelo socialismo em lugar da barbárie. Não se trata, pois, de uma escolha por um povo de um projeto do Deus que, recusado, conduz à tragédia e à morte, mas de uma escolha por um projeto histórico e socialmente construído a seu tempo, cuja dilação no tempo leva igualmente à tragédia e à morte, do proletariado tanto quanto do conjunto da humanidade.

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Nessa secção do texto não iremos senão aflorar a questão do tempo na psicanálise, pois não temos competência para ir mais longe. Freud, um burguês atarefado com seu trabalho, seus discípulos, pacientes e desafetos; médico neurologista que abandonou uma tradição no tratamento do sofrimento mental para criar uma nova arte/ciência/disciplina a partir da sistematização dos seus resultados clínicos; além disso, capaz de rever continuamente seus conceitos e visões, reelaborando o elaborado na tradição dos comentaristas rabínicos, ele, um laico crítico da cultura e da “ilusão” religiosa. Vamos deixar de lado sua contribuição como pensador da cultura e nos deter no problema da história pessoal e sua relação com a psicanálise.

A questão será abordada a partir de uma pesquisa de Bernardo Tanis16 16 Tanis, 1995: 45-53. sobre a posição do infantil na psicanálise: “Desde Freud, ela não o compreende como puerilidade ou infantilismo comportamental, nem como internalização sem mediações da infância concretamente vivida. Sua esfera começa a se configurar, em Freud, a partir de uma interrogação etiológica sobre as neuroses. É neste sentido que ele se relaciona com as experiências traumático-pulsionais da criança. As transformações do pensamento freudiano conduzem a mudanças significativas na compreensão do infantil: a descoberta da transferência, por exemplo, desloca o lugar da rememoração do passado, ganhando a repetição um significado central no processo analítico. Embora a sexualidade infantil e a trama edípica sejam os pilares do conceito analítico de infantil na psicanálise, penso que uma investigação apropriada da memória e da temporalidade revela aspectos centrais daquele, assim como do funcionamento inconsciente e sua colocação em ato na transferência”.

Nessa visão que Freud amadurece ao longo de sua vida, o primeiro passo a observar é que se a resistência à significação das representações recalcadas ocupa o primeiro plano do processo analítico, a repetição começa a ser percebida como uma das armas mais importantes da transferência. Esta passa a ser entendida como atualização de experiências passadas em relação à pessoa do analista. Há aí um processo de deslocamento e condensação, e o fato de o inconsciente lidar com o atual como se fosse inatual. O ato aparece como novo integrante da cena psicanalítica. Isto implica que muitas frases do paciente contêm implicitamente a expressão de um ato, com o paciente repetindo em lugar de recordar e tornando presente na repetição aspectos do seu passado infantil.

O processo de análise aí se altera, não há apenas evocação de paixões ou demandas primitivas expondo analista e analisando, pois agora o analista se depara com respostas outrora formuladas para muitas dessas demandas. A figura do analista permitindo a transferência, faz com que sua intervenção não seja simples explicação. Define-se um lugar diferencial para a repetição na sessão, incluindo o analista no circuito pulsional do paciente. A neurose, assim, pode ser ressignificada. Se, nela, Eros e Tânatos podem travar uma violenta batalha, resta agora a esperança de que uma possível saída a serviço da vida se concretize.

Guardemos daí o seguinte: “A transferência é o modo particular pelo qual a subjetividade humana expressa sua constituição. Ela permite o acesso às vicissitudes do recalque e ao conteúdo das fantasias inconscientes. (...) Essa constatação de Freud contraria todas as regras de uma temporalidade linear. O paciente não diferencia, segundo esta concepção, o objeto do passado do objeto do presente: a onipotência da realidade psíquica impede o sujeito de lidar com o novo. Ou melhor, o novo é assimilado a uma concepção que o precede. A memória deixa de ser evocação para tornar-se ato”. O analisando repete, sem saber, o esquecido e o reprimido, atuando-o sem recordá-lo: “O atual e o inatual se presentificam num movimento que chamamos de transferencial, no qual e pelo qual o paciente procura se defender como outrora fazia de seus próprios impulsos libidinais ou opressivos. A transferência é, ao mesmo tempo, expressão do desejo e da defesa. Sua ambigüidade reside nos aspectos conflitivos que a tornam expressão da resistência, e na abolição do tempo que pretende instaurar”. A resposta do analista só pode ser uma “não resposta”, acolher o que o paciente diz como verdadeiro mas também como inatual que não pode receber resposta do atual.

Podemos agora fechar a nossa secção: “o que chamamos realidade psíquica não é, nessa perspectiva, uma vida interna sui generis e sem relação com a exterioridade. É o resultado de uma extração e de uma interiorização do modo de composição da realidade (...)”. Todavia, este modo não é construído apenas pelas experiências reais feitas pela criança, de diversos outros cenários corroborados ou invalidados de forma desigual. Noutros termos, o inconsciente é atemporal, o que torna urgente a colocação em ato do campo de forças que o infantil organizado nessa trama psíquica densa constrói. Isto é o que permite recuperar aquilo que não pôde ser metabolizado, as vias impedidas do prazer ou da sublimação.

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Como conclusão, voltemos ao texto utilizado anteriormente de Mircea Eliade. “O homem moderno a-religioso assume uma nova situação existencial: reconhecese unicamente sujeito agente da História, e recusa todo apelo à transcendência. Dito por outras palavras, não aceita nenhum modelo da humanidade fora da condição humana, tal qual ela se deixa decifrar nas diversas situações históricas. O homem fez-se a si próprio, e não consegue fazer-se completamente senão na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência diante de sua liberdade.”17 17 Eliade, s.d. Nesse sentido, o homem profano assume uma posição existencial não desprovida de grandeza, mas vivida como existência trágica, na medida em que o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Esta é uma visão que não abole conteúdos míticos e rituais em diversos traços da vida moderna; mais ainda, recentemente, tantos anos após a morte de Eliade, religiões sem conta invadem o imaginário de uma sociedade aflita e crítica.

A opção pela dessacralização do mundo foi uma tentativa racionalista e iluminista de propor o futuro, de fugir a uma história que, marcada pelo sagrado, também o foi de modo a magnificar a ignorância, a escassez e o sofrimento. Se Marx claramente tinha isso em vista, não há por que chamar trágica sua opção intelectual e prática: como afirmou certa vez Adorno, o trágico é o que se destina previamente ao fracasso. Não há nada na obra de Marx e Engels que permite chamá-la fracassada. Derrotada, talvez e no máximo.

Por outro lado, também a visão religiosa portadora de uma transcendência, pelo menos no judaísmo e no cristianismo, é um diálogo permanente entre um “sim” e um “ainda não”, como diria Karl Barth,18 18 Barth, 1981. em que o homem assume e procura sua liberdade. Abraão deixa o deus de seus pais para procurar seu próprio Deus, interroga-se sobre como não sacrificar Isaque; Cristo é, no mínimo, um reformador criativo e irreverente (mas sem abolir a Lei até sua morte) que se coloca como o Filho que tenta fazer a obra dos profetas que o povo de Deus havia desprezado, espancado ou morto. O judaísmo na sua matriz liberal e o cristianismo no mínimo na sua versão protestante aceitam e crêem no “preconceito da liberdade” (Thompson).

Finalmente, no homem de Freud, a história pessoal e a temporalidade psíquica tampouco guardam traços trágicos. Pelo contrário: “O infantil é um território a explorar em cada um de nós, oferece sua face, mas nunca a revela inteiramente. Campo dos possíveis e dos limites, permanece como os tesouros dos antigos piratas para os novos aventureiros, fonte de inspiração e desilusão. Mas nunca deixa de ser referência”.

E, acrescentemos, tudo é tão humano...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2003
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