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Nova estratégia de desenvolvimento para o Brasil: um enfoque de longo prazo

New development strategy for Brazil: a long-term vision

Resumo

The foremost aim of the article is to propose a new development strategy for Brazil, replacing the neoliberal model presently used. In short, the point is to recover a long term vision of the economic policies. And for that it is indispensable to take into consideration the recent evolution of the Development Economics which considers the existence of market, instead of the availability of savings, as the main condition in economic development policies. The acceptance of the market as the basic condition for successful development policies has as one of its consequences the unacceptability of the process of globalization with its present characteristics.

development strategy; economic policies; market


development strategy; economic policies; market

ARTIGOS

Nova estratégia de desenvolvimento para o Brasil: um enfoque de longo prazo

New development strategy for Brazil: a long-term vision

João Paulo de Almeida Magalhães* * O presente artigo sintetiza a tese central desenvolvida em livro publicado pela editora Paz sob o mesmo título.

Departamento de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Sociais. E-mail: spqrjp@prolink.com.br

ABSTRACT

The foremost aim of the article is to propose a new development strategy for Brazil, replacing the neoliberal model presently used. In short, the point is to recover a long term vision of the economic policies. And for that it is indispensable to take into consideration the recent evolution of the Development Economics which considers the existence of market, instead of the availability of savings, as the main condition in economic development policies. The acceptance of the market as the basic condition for successful development policies has as one of its consequences the unacceptability of the process of globalization with its present characteristics.

Key-words: development strategy, economic policies, market.

JEL Classification: E6; O10

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

A primeira indagação a ser colocada é sobre a disposição do economista brasileiro para se dedicar à análises e aos estudos de longo horizonte, indispensáveis à definição de estratégias econômicas.

A capacidade do economista brasileiro para assumir a tarefa pode ser inferida com base em estudo recente (Bielschowsky e Mussi). A CEPAL e o IPEA realizaram pesquisa cujo objetivo era determinar o que pensam os economistas brasileiros sobre meios e modos de o Brasil retomar o crescimento. Foram realizadas 38 entrevistas com especialistas do melhor nível nacional e solicitados seis artigos. A conclusão dos organizadores foi a que segue: "Desde as primeiras entrevistas ficou claro que o crescimento não tem ocupado parte central das preocupações e reflexões da maioria dos economistas brasileiros". De fato, o campo temático mostrou-se pouco propício a grandes aprofundamentos por parte dos entrevistados e tornou-se evidente durante a pesquisa, que se tratava de um regresso ao tema. E continuam: "Há como se mencionar uma extrema preocupação com o curto prazo. Em especial com as políticas de estabilização, a qual vem afogando e desfocando a visão de longo prazo" (pg. 34).

Ora, esse é fato extremamente grave, porque a falta de visão de longo prazo sinaliza a incapacidade de definir estratégias econômicas e é justamente de nova estratégia que o Brasil precisa para escapar de 25 anos de semi-estagnação. Explicitemos esse aspecto.

A INDISPENSABILIDADE DA ESTRATÉGIA ECONÔMICA

1. A política econômica em curso no país vem sendo duramente atacada. Na verdade, porém, as divergências apresentadas se referem, quase sempre, ao papel do Estado na economia ou a pontos específicos de sua ação. O que está claramente faltando é a proposição de estratégia alternativa. Esta, que se coloca na perspectiva de longo prazo, indica os objetivos básicos a serem perseguidos e o caminho para atingi-los. Apenas em função de estratégia (ou modelo de crescimento) previamente formulada é possível denunciar, de forma consistente e irrecusável, os erros que estão sendo cometidos e os novos rumos a serem seguidos.

Assim, no Brasil, escolhida a estratégia primário-exportadora (1850 - 1930) as medidas a serem adotadas tornaram-se claramente identificáveis: sistema ferroviário ligando o litoral ao interior, para escoar a produção agrícola exportável (sem, inclusive, conexão entre os diversos sistemas), estrutura portuária adequada e construção de infra-estrutura urbana de apoio. A atração do capital estrangeiro com garantia de lucros mínimos constituía parte natural do modelo. Dentro dessa opção estratégica, a tarifa Alves Branco, a primeira com alíquotas relativamente elevadas, teve impacto apenas tributário porque a adoção de medidas complementares de apoio à indústria não fazia parte do modelo.

Quando se percebeu a limitação do mercado internacional para o café, a retenção seguida da queima de estoques do produto era passo natural e necessário da estratégia adotada. Com a Grande Depressão dos anos 30, os preços do café desabam e a desvalorização do milreis foi feita para proteger o setor agrícola, a quem cabia a responsabilidade de dinamizar a economia brasileira. Todas essas foram opções, corretas dentro do modelo primário exportador, mas não teriam qualquer sentido em estratégias diferentes.

No modelo de substituição de importações (1930-1980), baseado no mercado interno, a criação de sistema rodoviário ligando as diversas regiões do país (inclusive com o semi-abandono dos investimentos ferroviários ajustados ao modelo anterior) constituía parte importante da ação do governo. A revisão da tarifa aduaneira, em 1956, e medidas como a lei do similar nacional, que proibia a importação de bens já produzidos no país, eram medidas naturais da nova estratégia adotada. O mesmo valia para a atração e apoio dos investimentos diretos estrangeiros em bens de consumo durável e bens de capital. Assim como a exigência de gradual aumento na percentagem dos insumos nacionais utilizados nas novas atividades industriais.

Finalmente, a ampla ação do governo na economia, seja criando empresas como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Petrobrás e a Vale do Rio Doce representava parte integrante da estratégia adotada. E nada disso teria sentido dentro da visão de política econômica neoliberal, a seguir examinada, que tomou o lugar do modelo de substituição de importações.

A estratégia de integração competitiva no mercado mundial (de 1980 em diante) inspirada na visão neoliberal vai ter como suas ações normais o programa de desestatização, a redução das tarifas aduaneiras, a renúncia a qualquer política industrial e o abandono dos planos globais. Em suma, a quase total abstenção do Estado na economia.

2. A comprovação da importância de prévia definição de estratégia para criticar políticas econômicas pode ser feita com base em alguns exemplos. Assim, no Brasil, tivemos em matéria de transportes dois modelos básicos: construção de estradas de ferro ligando o litoral ao interior e montagem de rede rodoviária cobrindo todo o país. Qual dessas alternativas é a melhor? Resposta correta só pode ser dada em função da estratégia escolhida. No modelo primário-exportador, a opção ferroviária era a correta e no modelo de substituição de importações a solução rodoviária revelava-se a única aceitável.

As críticas à estratégia em curso no país têm se concentrado nas altíssimas taxas de juros, na proposta de independência do Banco Central e na parceira público-privada destinada a viabilizar os investimentos de infra-estrutura. Medidas desse tipo são, todavia, perfeitamente justificáveis em estratégia como a atual que incorpora a visão neoliberal da economia Os altíssimos juros se justificam por representar parte integrante e natural de estratégia baseada na convicção de que, uma vez garantidos os equilíbrios fundamentais (cambial, monetário e fiscal), o desenvolvimento se seguirá automaticamente pela simples ação das forças do mercado. E a independência do Banco Central torna-se aceitável pela mesma razão. E, se o modelo neoliberal em curso no país destruiu a capacidade do Estado para atender aos investimentos de infra-estrutura, a parceria público-privada passa a ser aceitável por constituir a única forma de contornar o problema.

Contrariamente dentro de estratégia econômica do tipo abaixo proposto, em que o desenvolvimento depende da ação do governo e não das forças do mercado, os altos juros decorrentes do endeusamento dos equilíbrios fundamentais deixarão de ter sentido, a independência do Banco Central será rejeitada por constituir este importante instrumento da política de desenvolvimento e a parceria público-privada se tornará desnecessária porque o modelo proporcionará ao governo as poupanças requeridas para os investimentos de infra-estrutura. Para que, no entanto, essas mudanças na política oficial sejam aceitáveis, a estratégia que as justifica deverá ser explicitada.

Um segundo ponto que justifica a necessidade da proposição de nova estratégia é de caráter metodológico. Ele se inspira nas conclusões da filosofia das ciências. Segundo esta, uma teoria não pode ser derrubada por simples críticas, ainda que pertinentes e bem fundamentadas. Uma teoria só é derrubada por outra de qualidade superior. Isso porque a teoria é essencial para dizer o que pesquisar, como pesquisar e de que forma avaliar os resultados obtidos. Da mesma maneira, estratégias só são substituídas se alternativas mais eficazes forem oferecidas. Isso porque, do mesmo modo que a teoria científica, é a estratégia que permite definir a políticas econômicas a serem implementadas e as ações a serem levadas adiante.

Para que uma estratégia de desenvolvimento seja derrubada deve-se comprovar ou que ela não elimina o atraso econômico e existe estratégia alternativa capaz de proporcionar esse resultado ou que, embora ela seja capaz de eliminar o atraso econômico, existe outra mais eficaz em termos de custos e prazos. Ou seja, da mesma forma que as teorias científicas, uma estratégia só será abandonada se outra melhor for apresentada. E nunca por simples críticas e objeções, embora corretas e bem fundamentadas.

A estratégia de integração competitiva no mercado mundial, que atualmente comanda a economia brasileira, registrou estrondoso fracasso, passando a ser duramente criticada, seja em manifestos oriundos de grupos profissionais, seja por associações representativas de diversos segmentos da sociedade. O que falta em tais críticas e propostas de novos rumos é a apresentação de estratégia alternativa capaz de justificar essas tomadas de posição e oferecer possibilidade de melhores resultados. Como se verá, estratégias alternativas têm sido eventualmente esboçadas, não sendo, todavia, colocadas no fulcro dos ataques à política vigente. Com isso, o governo se sente à vontade para alegar que não existem alternativas ao que vem fazendo.

MERCADO COMO CONDICIONANTE PRINCIPAL DAS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO

1. Aceita a tese de que a derrubada da atual política econômica depende da proposição de estratégia alternativa, cumpre agora definir as condicionantes básicas de nova e eficaz estratégia de desenvolvimento. Esse é um aspecto importante dado que a nova economia do desenvolvimento introduziu radical mudança no que se refere à melhor forma de se conduzir políticas de desenvolvimento.

As propostas quanto às políticas de desenvolvimento econômico se colocam usualmente da perspectiva da oferta, ou seja, giram em torno de medidas destinadas a elevar a margem de poupanças do país. Alcançando estas um nível satisfatório, o desenvolvimento econômico estará garantido. Essa é, por exemplo, a posição defendida por Arthur Lewis, que recebeu o Prêmio Nobel de Economia por suas contribuições à teoria do desenvolvimento. Experiências concretas mostraram, todavia, que não foi o aumento das poupanças que acelerou o crescimento, mas crescimento mais rápido que elevou as poupanças. O que, por si só, põe em cheque o enfoque da oferta. Recapitulemos.

Nas teorizações iniciais sobre o desenvolvimento econômico já haviam ocorrido referências ao problema. Assim, Hirschman assinalou ser a existência de oportunidades de investimento capaz, por si só, de gerar poupanças. As poupanças que não se concretizam pela falta de oportunidade de investimentos são chamadas por ele de poupanças frustradas. Ou, em suas palavras:" Poupanças frustradas existem sempre que a oferta total de poupanças é altamente influenciada pelo aparecimento de novas oportunidades de investimento (...) condição característica de muitos países subdesenvolvidos"(p. 37). Ou ainda: "As poupanças não são de maneira alguma o único fator limitante e podem ser baixas porque os investimentos são baixos, e não vice-versa" (p. 34). Esse aspecto, de extrema importância em termos de política econômica, não foi, todavia, aprofundado em estudos teóricos posteriores. A questão vai ser retomada nas análises de experiências bem sucedidas de desenvolvimento.

2. O relatório do Banco Mundial intitulado "The East Asian Miracle", examina os casos de sucesso dos países do Leste da Ásia. Mostra ele não ter sido o aumento da poupança naquela região — com níveis frequentemente superiores a 30% do PIB — que acelerou o crescimento, mas sim o crescimento acelerado que gerou maiores poupança. Ou seja, as estatísticas revelam que a aceleração do crescimento precedeu e não sucedeu a elevação das poupanças. Confirma igualmente essa linha de causalidade o fato de não ter sido possível identificar, na região, programa comum (suscetível de ser imitado) capaz de explicar os altíssimos níveis de poupança locais.

A literatura recente sobre casos concretos de desenvolvimento incorpora essa conclusão em suas análises. Srinivasan, ao recapitular as contribuições recentes para a análise do desenvolvimento, comenta da seguinte forma a relação entre poupança, investimento e crescimento: "Claramente a relação de causalidade entre crescimento, poupança e investimentos vai em ambas direções. Lewis e seus contemporâneos enfatizavam a cadeia causal indo de investimentos exógenos para o crescimento. A outra linha de causalidade é entre as oportunidades de crescimento e os investimentos" (p. 28). Barro, no seu estudo sobre as determinantes do crescimento, é ainda mais contundente ao afirmar "Um coeficiente positivo entre a taxa (...) de investimento, (...) e de crescimento, pode refletir a relação positiva entre oportunidades de crescimento e investimentos antes do que o efeito positivo de uma taxa mais elevada de investimento, exogenamente determinada, sobre o crescimento". E mais adiante afirma: "Esse achado sugere que muito do efeito positivo estimado da taxa de investimento no crescimento (...) reflete a relação inversa entre oportunidades de crescimento e investimento" (p. 32 e 33).

O campo reconhece a existência dessa nova interpretação ao afirmar que usualmente se considera a cadeia causal poupança-investimento-elevação do produto. Mais recentemente, contudo, volta-se a aceitar a interpretação keynesiana de que o incremento do produto determina aumento proporcional da poupança.

Essa concepção já se acha inclusive incorporada em livros de texto conforme se verifica em Hossain e Chowdhury. Segundo eles: "O crescimento econômico pode também elevar a taxa de poupança. Por exemplo, as altamente poupadoras e de rápido crescimento economias do Leste da Ásia experimentaram elevado crescimento antes de suas taxas de poupança se elevarem. A implicação é que a aceleração das taxas de crescimento nos países em desenvolvimento é possível na ausência de um salto inicial na poupança (...)" (p. 116). Esse fato é reconhecido no relatório de 2005 da UNCTAD, segundo o qual, no período de crescimento acelerado das nações asiáticas, "elevadas poupanças ex post eram resultado do processo de investimento antes do que sua fonte"(p. 30).

No Brasil, vamos encontrar depoimentos como o de Leite para quem: "São fortes as evidências empíricas sugerindo que a causalidade flui no sentido do crescimento do PIB para a formação de poupanças" (p. 29). Segundo Netto, "a história e a econometria sugerem, cada vez mais, que a poupança sucede ao crescimento"(p. 117). Contador (2002) é ainda mais enfático: "Os resultados empíricos encontrados por Reis, Held e Uthoff, Carro e Weil, Hausman e Outros, e Muhlesein mostram que as variações do PIB real antecipam as variações da poupança, ou seja, a causalidade flui no sentido do crescimento do PIB para a formação de poupança" (p. 740).

3. Em síntese, esses autores falam das "oportunidades de crescimento" determinando a elevação da poupança e não a maior disponibilidade de poupança acelerando o crescimento. Ora, essas "oportunidades de crescimento" (ou de investimento) nada mais fazem que sinalizar a existência de mercado ganhando, este portanto, o status de determinante principal do processo dinâmico de longo prazo.

Assinalamos anteriormente que não foi identificada nos países asiáticos qualquer política econômica uniforme capaz de explicar os elevados níveis de poupança que registram. O que existia de comum entre eles foi o reconhecimento — e imediata exploração — da sua competitividade, nos grandes mercados mundiais, de produtos manufaturados incorporando tecnologia avançada.

Os fatos que apontam para a disponibilidade de mercado como condicionante principal do desenvolvimento são confirmados por contra — exemplo tirado do Brasil e restante da América Latina. É sabido que, no período recente, as poupanças estrangeiras registraram grandes entradas na região, sem que se observasse elevação correspondente nos investimentos como percentagem do PIB. O que levou a CEPAL a afirmar que elas estavam sendo utilizadas para consumo. A explicação correta é a seguinte: bem que houvesse conseguido, através de estratégia adequada de desenvolvimento, garantir mercado capaz de viabilizar o aumento de investimentos, a América Latina apresentava, em determinados setores, condições favoráveis ao ingresso de capitais estrangeiros. Diante, porém, da limitação do mercado, a poupança estrangeira que entrou na região, simplesmente substituiu (crowded out) poupanças e investimentos locais. No caso específico do Brasil, entre 1998 e 2002, os ingressos de poupança externa ficaram em torno da média anual de 20 bilhões de dólares e, apesar disso, a percentagem dos investimentos sobre o PIB se manteve, firmemente, em 19%. Ou seja, na ausência de mercado de dimensões e dinamismo adequados, o ingresso de poupanças externas não proporciona incremento de investimentos e nem, por via de conseqüência, do PIB. O que confirma a tese de constituir a garantia de mercado fulcro obrigatório de qualquer política de desenvolvimento.

Examinando a questão, Akiuz e Gore mostram que o aumento de poupanças nos países do Leste Asiático ocorreu a nível das empresas. Isso permite visualizar os mecanismos provavelmente envolvidos. Exemplifiquemos com o Chile que, diferentemente dos demais países da América Latina, registra alto nível de poupanças. Empresários do setor rural percebem o promissor mercado americano para o setor de frutas e conexos. A fim de aproveitá-lo, as empresas rurais passaram a operar em horas extras, terras de qualidade inferior foram utilizadas e assim por diante. Algo parecido vai ocorrer nos fornecedores de insumos, gerando cadeia de retroalimentação. Os lucros aumentam e são retidos para aproveitar as oportunidades de investimento. Ou seja, as poupanças aumentaram rapidamente nos setores envolvidos no processo, sem que fossem adotadas quaisquer medidas específicas destinadas a obter esse resultado. Trata-se, em última análise, do que a UNCTAD no seu relatório de 2005, ao apontar as causas do sucesso econômico da China e Índia, chamou de nexo lucro-investimento pelo qual em modelo bem correto de desenvolvimento as empresas se auto-financiam.

O atraso no reconhecimento do papel central do mercado nas políticas de desenvolvimento não deixa, aliás, de ser surpreendente porque na própria designação das estratégias de crescimento lhe era atribuído papel central. Tivemos no Brasil o modelo primário exportador, baseado no mercado internacional de produtos agrícolas; o modelo de substituição de importações, voltado para o mercado interno de manufaturas e o recente modelo de integração competitiva no mercado mundial, que se propunha penetrar em força no mercado externo de produtos industrializados. E o fracasso ou abandono de cada um deles se deveu, reconhecidamente, a problemas de mercado. O modelo primário-exportador foi abandonado sob a alegação de que o lento crescimento da demanda de produtos agrícolas era incompatível com o objetivo de eliminação do atraso econômico; o modelo de substituição de importações entrou em colapso ao se esgotar o mercado representado pelas importações substituíveis, e o insucesso do modelo de integração competitiva no mercado mundial é geralmente atribuído à especialização de nossas exportações no setor pouco dinâmico de commodities.

UMA NOVA ESTRATÉGIA ECONÔMICA PARA O BRASIL

1. Se as objeções hoje colocadas ao modelo neoliberal têm se concentrado em aspectos específicos de política econômica isto não significa que inexistam, a nível acadêmico, propostas de estratégias alternativas corretamente baseadas na aceitação do papel do mercado como condicionante principal do processo.

Pode-se hoje identificar duas propostas básicas de estratégias alternativas para a economia brasileira. A de crescimento para fora — ou de integração ativa no mercado mundial —, e a de crescimento para dentro, através da criação no país de sociedade de consumo de massas.

A primeira, preferida por economistas mais ligados às lições da mainstream economics, inspira-se na experiência dos países do Leste da Ásia, que se lançaram, com sucesso, em políticas de integração ativa no mercado mundial. Suas linhas principais são esforço do governo no sentido de criar, para o país, vantagens comparativas em setores dinâmicos do comércio mundial e patrocínio de empresas de capital nacional capazes de, aproveitando os resultados obtidos por esse programa, penetrarem no mercado de países desenvolvidos.

A proposta de criação no país de sociedade de consumo de massas se justifica pelo fato de o Brasil registrar um dos mais elevados coeficiente mundiais de concentração de renda (fica apenas atrás de Sierra Leoa e República Centro-Africana). Como o conteúdo importado no consumo das categorias de maior renda é elevado, isso implica na redução do mercado interno para empresas locais. Política redistributiva de amplo escopo significaria, assim, substancial aumento do mercado interno viabilizando a retomada do crescimento para dentro.

2. A avaliação da proposta de criação de sociedade de consumo de massas foi facilitada pela vitória de partido de esquerda nas últimas eleições presidenciais. O novo governo anunciou, e deu imediatamente início, a medidas distributivas do tipo Fome Zero, Renda Mínima, Primeiro Emprego etc. Os resultados, em termos de retomada do desenvolvimento, foram insignificantes. A explicação está em que políticas de distribuição de renda de grande amplitude — como requerida para transformação de estrutura econômica altamente concentradora de rendas em sociedade de consumo de massas — só podem ser levadas adiante no contexto de crescimento econômico acelerado.

Em economias estagnadas, a redistribuição deve ser feita tomando de uns para dar a outros, o que provoca toda sorte de resistências, tanto maiores quanto mais amplo o programa redistributivo. A par disso, como a riqueza das categorias de maior renda toma, em boa parte, a forma de imóveis e bens de consumo durável, a redistribuição se revela difícil. No contexto de crescimento acelerado, contrariamente, esses dois problemas são evitados. Isso porque a redistribuição pode ser feita com base no adicional resultante do crescimento do PIB, desaparecendo a necessidade de tirar de uns para dar a outros. A par disso, o PIB adicional ainda não foi imobilizado em aplicações de difícil transferência.

Em suma, a criação de sociedade de consumo de massas, para ser levada adiante de forma eficiente, depende da preexistência de crescimento acelerado do PIB. A tentativa de lançar isoladamente essa estratégia em economia semi-estagnada, como a atual brasileira, se defronta com impasse dificilmente contornável. De fato, para o sucesso de medidas redistributivas, a economia deve estar crescendo. E, dentro do modelo proposto, para que ela esteja crescendo, medidas redistributivas já deveriam ter sido tomadas. É relevante observar que esse tipo de problema inexiste no crescimento para fora que se baseia em mercados externos preexistentes e não em mercados a serem criados. Fato esse de grande importância na formulação da estratégia adiante proposta.

A estratégia de integração ativa no mercado mundial não teve até agora a oportunidade de ser testada no Brasil. O sucesso obtido por países do Leste Asiático (Coréia do Sul e Taiwan) não constitui garantia de sua eficácia em nosso caso. Sendo o Brasil país de dimensões continentais, o mercado para suas exportações dificilmente poderá representar mais do que 10% do PIB, montante claramente incompatível com política bem sucedida de desenvolvimento, na qual a existência de mercado de dimensão adequada constitui requisito fundamental. A eficácia da estratégia de crescimento para fora, em país de dimensões continental, depende, em última análise, do efeito multiplicador das exportações sobre o mercado interno. Sucede que, dado o nível de concentração de renda existente no Brasil, a elevação do PIB proporcionada pelas exportações, ao beneficiar as categorias de maior poder aquisitivo, determina rápido aumento nas importações dos artigos de consumo desse grupo social. Com isso, fica substancialmente reduzido o efeito multiplicador das exportações sobre o mercado interno.

A análise acima leva à conclusão de que qualquer das duas estratégias aplicada isoladamente tem poucas chances de sucesso e que elas são naturalmente complementares. O sucesso de política exportadora determinará, de imediato, rápido incremento do PIB, o que viabiliza política distributiva a qual, por sua vez, consolidará os ganhos inicialmente obtidos através do maior efeito multiplicador das exportações no mercado interno. Recapitulemos rapidamente o que seria essa estratégia mista de mercado interno e externo.

3. Comecemos pela estratégia de integração ativa no mercado mundial, em que o Estado terá papel fundamental na condução da economia. Estratégia que deverá substituir o atual modelo de integração passiva de inspiração neoliberal. A melhor forma de introduzir o tema será recapitular os erros cometidos pelo modelo econômico em curso no país.

Em termos de mercado (principal condicionante do sucesso das políticas de desenvolvimento), a presente estratégia de integração competitiva na economia mundial cometeu três erros graves. A moderna teoria da divisão internacional do trabalho mostra que as vantagens comparativas, determinantes da especialização internacional do país, podem ser criadas através de investimentos em pesquisa tecnológica, formação de mão-de-obra de alto nível, criação de infra-estrutura especializada etc. Nas economias atrasadas essa política é de responsabilidade do Poder Público. Dentro de sua visão neoliberal, o governo brasileiro se absteve de políticas destinadas à conferir competitividade a economia, nos setores dinâmicos do comércio internacional. Como conseqüência, nossas exportações se especializaram em commodities agrícolas (como soja e café) e industriais (como aço, alumínio, papel e celulose), setores em que a abundância de insumos primários (trabalho, matéria-prima e solo agricultável) nos conferia vantagem comparativa natural. Sucede que tais setores são de baixo valor adicionado por trabalhador, altamente competitivos e de lento crescimento no mercado mundial, não constituindo base adequada para políticas de crescimento para fora. Foi esse o primeiro erro em termos de mercado. Vejamos o segundo.

Sob inspiração da ideologia neoliberal o mercado nacional foi rápida e irrestritamente aberto à concorrência externa, sem levar, em conta inclusive, as condições desvantajosas, em termos de altíssimos juros e sobrevalorização cambial — a que se achavam submetidas as empresas instaladas no país. O resultado foi a substituição, em importantes setores da economia, do produto nacional pelo importado. Ou seja, não só deixamos de conquistar parcela significativa do mercado externo, como perdemos para o fornecedor estrangeiro fatia significativa do interno.

Finalmente, em terceiro erro, o governo ignorou o problema de, no Brasil, estarem os setores mais dinâmicos do mercado internacional controlados por empresas multinacionais, que entraram no país para atender ao mercado interno. O importante, do ponto de vista de nossa análise, é o fato de se defrontarem elas com sérias restrições ao ingresso nos grandes mercados mundiais, já atendidos por suas matrizes. Dentro de sua opção doutrinária neoliberal, o governo nada fez no sentido de modificar tal situação, seja estimulando mais exportações das multinacionais, seja criando empresas nacionais cuja tarefa principal seria penetrar nos maiores e mais dinâmicos mercados do mundo. O resultado dessa omissão foi se concentrarem as vendas externas desses setores dinâmicos nos países vizinhos e alguns subdesenvolvidos, cujos mercados são pequenos e pouco dinâmicos. Ou seja, por mais esse motivo não conseguimos equacionar o problema do mercado no modelo escolhido de crescimento para fora.

4. As linhas básicas de estratégia de integração ativa no mercado mundial podem ser definidas com base nos erros cometidos no modelo de integração passiva. Ou seja, ela deve lançar o Brasil nos mercados internacionais dinâmicos de alta tecnologia e elevado valor adicionado por trabalhador, evitar abertura imediata e incondicional da economia e conferir à empresa nacional o papel de ponta de lança do modelo.

A primeira lição a ser tirada dos erros do passado é que para o país conseguir acesso ao mercado de não-commodities (setores de tecnologia refinada, alto valor adicionado por trabalhador e mercado em rápido crescimento), a ação do governo se faz necessária. Entre os instrumentos a serem utilizados estão o estímulo à pesquisa tecnológica, a formação de mão-de-obra especializada, o apoio financeiro e reserva temporária de mercado para empresas situadas em setores dinâmicos do comércio internacional.

A segunda lição a ser tirada é a seguinte: embora a estratégia de crescimento para fora tenha na abertura às importações aspecto fundamental, país subdesenvolvido não pode correr o risco de perder segmentos do mercado interno, sem compensação prévia ou imediata, de ganhos equivalentes no mercado externo. Diante disso, é recomendável, a exemplo do que fizeram países do Leste da Ásia, condicionar a abertura da economia ao sucesso da política exportadora.

A terceira lição é sobre o papel central da empresa brasileira no novo modelo de desenvolvimento. O ponto fundamental da nova estratégia deverá ser a transferência do comando do processo das empresas multinacionais, que estiveram à frente do modelo de substituição de importações, para empresas nacionais. Isso porque estas, diferentemente das primeiras, não se defrontam com qualquer restrição à entrada nos grandes mercados mundiais. A importância da empresa nacional em novo modelo de desenvolvimento é bem descrita por Coutinho que nos permitimos citar longamente. Segundo ele:

"Existem razões sólidas e racionais para que a política econômica robusteça os grupos empresariais de capital nacional, habilitando-os a operar globalmente. Tais razões são alinhadas da seguinte maneira: 1) a existência de empresas nacionais com atuação mundial, aqui sediadas, aglutina centros de decisões que, embora privados, fortalecem economicamente o país; 2) sem dúvida, a formulação e a tomada de decisões estratégicas a partir do Brasil concentram em nosso território as atividades de alto valor agregado em gestão, finanças, inovação organizacional, desenvolvimento tecnológico e de marcas; 3) como resultado do item anterior localizam-se no país os melhores empregos e a melhores oportunidades de desenvolvimento profissional; 4) uma parcela importante dos investimentos diretos estrangeiros se faz através de associações joint ventures e parcerias, o que requer a presença de empresas nacionais capacitadas, com porte adequado e higidez financeira. Em resumo, a superação das deficiências competitiva, do Brasil não pode prescindir de um conjunto de grupos nacionais de porte mundial. Sem isso não se desenvolverão núcleos endógenos de progresso tecnológico capazes de afirmar marcas brasileiras e criar novos mercados, e gerar aqui atividades e empregos de elevada qualificação. O capital estrangeiro pode cumprir apenas em parte essas funções, pois tende a concentrar centros de inovação e atividade nobres nas respectivas matrizes" (p. 204).

Como o papel de ponta de lança na nova fase da política de desenvolvimento deverá caber à empresa nacional, é importante que os recursos do BNDES sejam dirigidos preferencialmente para estas, deixando às multinacionais a responsabilidade de atender suas próprias necessidades, através da captação de poupança externa. No que, aliás, não deverão encontrar dificuldade, sobretudo diante de mercado interno brasileiro crescendo aceleradamente, em função de bem estruturado modelo de desenvolvimento.

Sublinhe-se ainda que as empresas multinacionais continuarão a ter importante papel, tanto no atendimento do mercado interno, como no alargamento dos nichos que hoje nos proporcionam os grandes mercado mundiais. O desempenho dessas tarefas deverão também contar com estímulo e apoio do Poder Público.

5. A definição das linhas básicas de uma estratégia destinada a criar no país uma sociedade de consumo de massas ainda estão por ser definidas. Essa estratégia foi formalmente proposta pelo Instituto da Cidadania, órgão ligado ao PT e que tinha à época como presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A opção por estratégia de crescimento com base em mercado interno substancialmente alargado por política redistributiva de amplo espectro já havia sido sugerida por Celso Furtado, recebendo amplo apoio, sobretudo de intelectuais de esquerda. Esperava-se que seu detalhamento ocorresse em função da vitória eleitoral do PT o que, surpreendentemente, não ocorreu. É possível, todavia, definir algumas de suas características.

Aproveitando as condições favoráveis resultantes da retomada do desenvolvimento, determinada pela estratégia de crescimento para fora, seria lançado grande programa destinado a transformar o país em sociedade de consumo de massas. E este não poderia se limitar às medidas tópicas do tipo adotado pela atual administração do país. Aumento do salário mínimo e das aposentadorias, recuperação do poder aquisitivo do funcionalismo público, progressividade da estrutura tributária, maior gravação fiscal das heranças e da riqueza, programas especiais de saúde e educação para as categorias de menor renda, garantia à totalidade da população condições adequadas de moradia, seriam algumas das providências a serem consideradas. O objetivo básico perseguido seria fazer com que a totalidade dos ganhos, resultantes do incremento mais rápido do PIB, seja utilizada em benefício das categorias de menor renda. Dessa forma, se estaria caminhando a largos passos para a sociedade de consumo de massas. E a criação desta não atenderia apenas à necessidade de justiça social, mas também ao objetivo fundamental de viabilizar novo modelo econômico.

6. Estratégia desse tipo, por incorporar o conteúdo básico das duas alternativas econômicas propostas, deveria receber geral aprovação. Surpreendentemente, todavia, ela se defronta com sérias resistências. Essas são de dois tipos.

No primeiro, as objeções se concentram no papel privilegiado proposto para a empresa privada nacional. A resistência vem, antes de mais nada, dos círculos conservadores que, de um lado, contestam a conveniência da ação do Estado indispensável para alcançar esse resultado e, de outro, consideram o controle da economia brasileira por multinacionais estrangeiras não só inevitável, dentro do atual modelo de globalização, como desejável do ponto de vista do interesse nacional.

A resistência vem igualmente da esquerda que reluta em aceitar o substancial fortalecimento dos grupos privados nacionais, resultado normal e necessário do modelo proposto. A situação não deixa de ser curiosa. Em primeiro lugar porque o insucesso da experiência soviética levou a que essa corrente doutrinária abandonasse substancialmente a tese da possibilidade, ou conveniência, da imediata substituição do sistema capitalista pelo socialista. Em segundo lugar porque, mesmo que persistissem na proposta de socialismo a prazo tão curto quanto possível, seus partidários não poderiam deixar de ter em conta a interpretação marxista dominante de que o florescimento da burguesia nacional tem importante papel na maturação do capitalismo, constituindo preliminar necessária à mudança do sistema. Ou seja, na fase presente do desenvolvimento brasileiro, socialistas e burguesia nacional deveriam se considerar naturais aliados.

O segundo tipo de obstáculo resulta da dificuldade de se reconhecer que 25 anos de semi-estagnação levaram a economia brasileira a distorções (grande peso das dívidas públicas interna e externa, juros altíssimos, carga fiscal elevada, monopolização pelo governo de parte substancial da poupança nacional em detrimento das empresas privadas, infra-estrutura em elevado grau de deterioração etc.). Essas distorções, para serem corrigidas, viabilizando a retomada do desenvolvimento, exigirão eventualmente do país fase preliminar que poderíamos chamar de "economia de guerra". Nesta, seriam temporariamente acionadas medidas de exceção como controle de câmbio, regulamentação da entrada e saída de capital no país, modificação compulsórias das condições de juros e prazos da dívida pública, aceitação de ritmo inflacionário mais elevado e assim por diante. Não se afirma obviamente que tais medidas devam, desde logo, ser adotadas, mas simplesmente que o país deve estar preparado para aceitá-las se, como parece provável, elas se revelarem necessárias à retomada do desenvolvimento.

O pensamento conservador considera iniciativas desse tipo não só perigosas como desnecessárias, dada sua convicção de que mantidos os equilíbrios fundamentais o desenvolvimento econômico, mais cedo ou mais tarde, se seguirá. A resistência da esquerda à "economia de guerra" é mais difícil de explicar. Talvez se preocupe com o fato dela ter como um dos seus possíveis corolários a aceleração do surto inflacionário que poderia escapar de controle com explosão de preços do tipo que registramos em passado não muito distante. Explosão que prejudicou de forma especial as categorias de menor renda.

UM NOVO MODELO DE GLOBALIZAÇÃO

1. O reconhecimento de ser o mercado, e não a poupança, a condicionante principal das políticas de desenvolvimento, além de exigir estratégia com características bem diferentes das tradicionalmente propostas, coloca o problema da globalização em termos completamente novos. Os países desenvolvidos têm todo interesse em transferir poupanças para as economias retardatárias dado que, por esse meio, elevam seus lucros. A cessão de mercado, pelo contrário, acarreta o risco de perdas sob a forma de desinvestimentos.

Enquanto a disponibilidade de nível adequado de poupanças foi considerada o cerne das políticas de desenvolvimento, podia-se falar, inclusive, na existência de mecanismo automático de eliminação do atraso econômico. Países desenvolvidos, com abundante capital, registram baixas taxas de lucros e juros. Em sentido contrário, economias retardatárias, com escasso capital, têm elevadas taxas de juros e lucros. O simples funcionamento dos mecanismos de mercado determinaria fluxo de capitais dos primeiros para os segundos. Fluxo que se manteria até a igualização dessas taxas. Ora, taxas iguais de juros e lucros significam igual disponibilidade de capital e, portanto, mesmo nível de desenvolvimento. Pode se supor que, em mundo globalizado como o atual, onde o capital circula ampla e livremente, o problema do desenvolvimento é de solução automática.

A Nova Economia do Desenvolvimento, todavia, ao transferir da poupança para o mercado o papel de condicionante principal das políticas de eliminação do atraso econômico, desautoriza qualquer otimismo com respeito ao atual processo de globalização. Do seu ponto de vista a globalização nos termos em que se acha hoje colocada, não atende ao interesse dos subdesenvolvidos ao impor crescimento para fora dentro das regras do jogo vigentes. Modelos de crescimento para dentro que dependem de medidas protecionistas são absolutamente condenados.

As características atuais da globalização implicam em políticas autônomas de desenvolvimento, pelas quais cada país tenta isoladamente se integrar na estrutura de mercado gerada nas atuais economias maduras, pelo modelo capitalista. Ou seja, a eliminação do atraso econômico depende do sucesso de estratégia de crescimento para fora. A questão que se coloca é, assim, sobre se as exportações dos subdesenvolvidos poderão atingir o nível necessário para eliminação do seu atraso econômico.

Exercício aritmético simples, com base nos dados fornecidos pelo Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2003, do Banco Mundial, permitirá esclarecer a questão. Vamos supor um mundo hipotético formado por quatro países subdesenvolvidos de dimensão continental (exemplificados pela China, Índia, Brasil e Rússia) e quatro desenvolvidos (representados por Estados Unidos, Japão e Alemanha). Suponhamos que os quatro primeiros se lancem em programas de desenvolvimento dentro das regras atuais da globalização, ou seja, do tipo crescimento para fora apoiado nos grandes mercados mundiais existentes, representados pelos três países desenvolvidos. Em função disso alcançam, após vinte anos, produto per capita de 30 mil dólares. Valor razoável porque, supondo-se incremento anual de 2% do produto per capita, os países representados pelos Estados Unidos e Japão terão chegado a 45 mil dólares de produto por habitante. Para simplificar, supusemos crescimento demográfico zero em todos os casos.

Como conseqüência do seu programa de desenvolvimento, as economias retardatárias teriam alcançado, após vinte anos, PIB conjunto de 78 720 bilhões de dólares. Por essa época, os países desenvolvidos, supondo incremento anual de 3%, terão PIB conjunto de 29 658 bilhões de dólares. Os países em desenvolvimento, diante do modelo adotado de crescimento para fora, deverão estar exportando 10% do seu PIB (ou seja, 7 812 bilhões de dólares) para o mercado mundial, representado pelos três desenvolvidos. O que corresponde a 26,5% do mercado interno (ou PIB) desses países. Ora, viabilização de importações desse montante implicaria, para eles, em ampla substituição de fornecedores internos por externos, com pesados desinvestimentos. Isso fica mais claro considerando-se que as importações sobre o PIB dos três países desenvolvidos não vai hoje além de 12% do PIB.1 1 Este é, sem dúvida, exemplo extremamente simplificado. Se houvéssemos, todavia, considerado a totalidade dos subdesenvolvidos (com mercado potencial medido com base em produto per capita de 30 mil dólares) e a totalidade dos desenvolvidos, seria ainda maior a dificuldade da absorção por estes últimos das exportações requeridas pelo crescimento para fora das economias atrasadas.

A pergunta que ocorre é então a seguinte: tendo multiplicado algumas vezes seus mercados internos, não seria normal que os quatro países subdesenvolvidos absorvessem mutuamente parte de suas exportações, deixando os desenvolvidos manterem a importação na percentagem normal de 12% do PIB? A resposta é, sem dúvida, positiva. E o importante do ponto de vista de nossa análise é que, nesse caso, dos 26,5% supra referidos, a troca recíproca entre os subdesenvolvidos corresponderia a 14,5 pontos percentuais. Ou seja, contrariamente da suposição implícita no modelo atual de globalização, os mercados mais importantes para as exportações dos subdesenvolvidos são os das próprias economias retardatárias. Esse tipo de situação justifica a opção por estratégia conjunta de desenvolvimento do tipo abaixo proposto.

2. Para se propor alternativa ao atual modelo de globalização, é preciso recapitular no que ele está errado da perspectiva dos subdesenvolvidos. O atual processo de globalização, que pressupõe a integração das economias retardatárias nos grandes mercados dos países desenvolvidos, incide em dois erros básicos. Em primeiro lugar, não leva em conta que a abertura de mercado na amplitude necessária à eliminação do atraso econômico dos países subdesenvolvidos implica, para as economias maduras, não só em substanciais desinvestimentos como em renúncia a parcela importante de novos investimentos. Em segundo lugar, para os subdesenvolvidos eliminarem o atraso econômico, seu PIB deve crescer mais rapidamente que o dos desenvolvidos. O que exige exportações aumentando mais rapidamente que o PIB desses países e, portanto, em ritmo superior ao dos mercados a que se destinam.

Ora, exportações de um país subdesenvolvido para outro não enfrentam essas duas dificuldades. Para comprovar esse fato, começaremos por recapitular a distinção entre mercado existente e mercado potencial. O primeiro é dado pelo PIB atual do país. O segundo, pelo PIB que terá ao alcançar o pleno desenvolvimento. No caso específico dos subdesenvolvidos, o mercado potencial é medido multiplicando-se população pela renda per capita obtida com a eliminação do atraso econômico. Ou seja, nesses países, o mercado potencial supera muitas vezes o existente. Nos desenvolvidos, que não têm atraso econômico a eliminar, mercado existente e potencial são praticamente iguais.

A cessão ou abertura de mercado potencial a outros países não implica, ao contrário do que freqüentemente sucede com o mercado atual, em desinvestimentos. Isso porque, mercado potencial é mercado futuro ainda não atendido por qualquer investimento. Ou seja, a abertura recíproca de mercados potenciais entre subdesenvolvidos pode ser feita sem maiores perdas.

Na abertura entre subdesenvolvidos inexiste igualmente o problema da necessidade de aumentar exportações em ritmo superior ao incremento do mercado externo. Isso porque, em todos eles, o PIB (e, portanto, o mercado) cresce de forma igualmente acelerada. Ou seja, na troca ou abertura de mercado entre os subdesenvolvidos não ocorrem os dois problemas inevitáveis na abertura entre desenvolvidos e subdesenvolvidos.

Em suma, conforme já sinalizava o exercício estatístico anterior, em programas abrangentes de eliminação do atraso econômico, os mercados significativos não são os das economias maduras mas os de outros países subdesenvolvidos. A melhor forma de eliminar o atraso econômico consistirá, assim, na abertura recíproca de mercado entre economias engajadas em programas eficazes de desenvolvimento. Esse será o novo modelo de globalização que poderá substituir o atual, baseado nas exportações dos subdesenvolvidos para os países de economia madura

Essa conclusão nada tem de surpreendente. Trata-se, em última análise, de repetir entre esses países, através de estratégia conjunta de desenvolvimento, esquema bem sucedido no modelo adotado pelos atuais, desenvolvidos a partir do século XIX. Como neste, abertos reciprocamente os mercados, cada país subdesenvolvido se especializará nos setores em que usufrui de vantagens comparativas, evitando investimentos em atividades em que tal vantagem acha-se em outros participantes. As parcelas de mercado interno cedidas serão compensadas pela obtenção de mercado externo equivalente. Exatamente como no modelo que, a partir da Revolução Industrial do século XIX, proporcionou aos países desenvolvidos seus atuais padrões de vida. Da mesma forma que aconteceu neste, o incremento do PIB dos participantes ocorrerá em ritmo aproximadamente igual, evitando-se descompasso entre o crescimento necessário de exportações e a expansão do mercados para que se dirigem.

3. O novo modelo de globalização poderia ser comandado por países subdesenvolvidos de dimensão continental. Esta deve ser considerada não em termos de território, mas de população, cujo tamanho depende as dimensões do mercado potencial. Outra exigência importante é que seu PIB, ou mercado existente dos países de grande população, já tenha dimensões razoáveis, dada sua importância no desencadeamento do processo. Acham-se nesse caso quatro países Índia, China, Brasil e Rússia. No momento presente já se observa entre eles os primeiros sintomas do reconhecimento dos seus interesses comuns sem que, todavia, tenham sido lançadas as bases para estratégia de crescimento conjunto.

Três observações devem ser feitas quanto a esta. A primeira delas é que a estratégia de desenvolvimento conjunto não se restringira aos quatro países mencionados. A eles caberia apenas a liderança do processo, ao qual poderão se associar países menores, isoladamente ou dentro de projetos de integração econômica regional. A segunda observação é de que o processo poderá ser mais complexo que o observado, a partir do século XIX, no crescimento conjunto dos atuais países de economia madura. Nestes, bastou a abertura recíproca do mercado deixando o mecanismo de preços comandar o processo. Acontece que nos países em desenvolvimento, o Poder Público tem ação importante na economia. Seria assim necessário que tal ação fosse coordenada para se chegar a um programa eficaz de desenvolvimento conjunto. A última observação se refere à dificuldade da montagem desse novo modelo de globalização. A tese aqui defendida não é que sua implementação seja viável, mas simplesmente que, sem ela, o alcance do pleno desenvolvimento, pelo menos dos países de dimensão continental, será extremamente difícil. E na medida em que tal fato for aceito, aumentarão as chances de implementação de processo de desenvolvimento conjunto das economias retardatárias.

Submetido: Outubro 2005; aceito: Novembro 2005.

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  • *
    O presente artigo sintetiza a tese central desenvolvida em livro publicado pela editora Paz sob o mesmo título.
  • 1
    Este é, sem dúvida, exemplo extremamente simplificado. Se houvéssemos, todavia, considerado a totalidade dos subdesenvolvidos (com mercado potencial medido com base em produto
    per capita de 30 mil dólares) e a totalidade dos desenvolvidos, seria ainda maior a dificuldade da absorção por estes últimos das exportações requeridas pelo crescimento para fora das economias atrasadas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2005
    • Recebido
      Out 2005
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