Acessibilidade / Reportar erro

Crédito bancário corporativo no Brasil: evolução recente e perspectivas

Corporate banking credit in Brazil

Resumo

This article aims to analyse the evolution of the corporate banking credit market in Brazil during the recent cycle (january 2003 to june 2009) from a Keynesian theoretical reference point. The article focuses on the dynamics of the six major segments of this market (industry, commerce, services, infrastructure, real estate and rural sector), highlighting their main similarities and differences concerning the cyclical dynamics, the participation in the total corporate banking credit, the origin of resources, the composition of capital ownership and the performance of public and private banks.

banking credit; Brazilian economy; Keynesian theory


banking credit; Brazilian economy; Keynesian theory

Crédito bancário corporativo no Brasil: evolução recente e perspectivas

Corporate banking credit in Brazil

Daniela Magalhães PratesI; Maria Cristina Penido de FreitasII

IProfessora do Instituto de Economia da Unicamp. Pesquisadora do CNPq, e-mail: daniprates@eco.unicamp.br

IIDoutora em Economia pela Universidade Paris XIII. Pesquisadora associada do Cecon/IE/Unicamp, e-mail: cristinapenido@gmail.com

ABSTRACT

This article aims to analyse the evolution of the corporate banking credit market in Brazil during the recent cycle (january 2003 to june 2009) from a Keynesian theoretical reference point. The article focuses on the dynamics of the six major segments of this market (industry, commerce, services, infrastructure, real estate and rural sector), highlighting their main similarities and differences concerning the cyclical dynamics, the participation in the total corporate banking credit, the origin of resources, the composition of capital ownership and the performance of public and private banks.

Keywords: banking credit; Brazilian economy, Keynesian theory.

JEL Classification: E44; E51.

INTRODUÇÃO

O papel fundamental da moeda de crédito criada pelo sistema bancário para a dinâmica de acumulação de capital nas economias capitalistas foi destacado tanto por Schumpeter (1911) como por Keynes (1930). Para esses autores (e seus seguidores, dentre os quais se destaca Minsky, 1986), ao contrário da abordagem convencional, a existência de bancos1 1 Vale mencionar o conceito de banco aqui utilizado: intermediários financeiros que têm a capacidade de criar moeda de crédito, sob a forma de depósito à vista, o principal meio de pagamento e liquidação dos contratos nas economias capitalistas. emissores de moeda escritural libera os investidores não apenas de qualquer necessidade prévia de poupança, mas também da riqueza acumulada no passado e de sua distribuição.

Os bancos administram ativamente os dois lados do balanço e utilizam, igualmente, outros expedientes, como as transações fora do balanço. Como a preferência pela liquidez dessas instituições depende de suas considerações otimistas ou pessimistas sobre o estado dos negócios ao longo do ciclo econômico, a evolução do crédito tende a ser procíclica, sobretudo se o sistema bancário for essencialmente constituído por instituições privadas com fins lucrativos. Assim, ao longo dos períodos de expectativas otimistas, os bancos, pressionados pela concorrência, concedem crédito sem exigir garantias seguras. A expansão do endividamento se faz, então, com riscos subestimados. Isto porque, na busca incessante de valorização, um banco que adote um comportamento mais prudente vis-à-vis aos seus rivais arrisca-se seriamente a perder fatias do mercado. Em contraste, quando as expectativas se deterioram, os bancos tendem a contrair a concessão de crédito, reduzindo linhas e prazos, elevando os juros e as exigências de garantia.

Como a assunção excessiva de risco pelos bancos na fase de auge, o excesso de prudência na fase de reversão é característica intrínseca das atividades bancárias com fins lucrativos. Contudo, ao contrair o crédito, reduzindo ou não renovando as linhas, os bancos contribuem para a fragilidade financeira dos seus clientes, gerando um ciclo vicioso de aumento de inadimplência. Em certas circunstâncias, os bancos decidem racionar fortemente o crédito, refreando o crescimento econômico ou mesmo conduzindo à regressão da produção e dos investimentos.

Para limitar a instabilidade inerente ao sistema bancário, as autoridades procuram impor regras de prudência para o funcionamento dos bancos, que se aplicam sobre a composição e qualidade do crédito e sobre os níveis de endividamento, entre outros. No entanto, com as inovações financeiras, os bancos tentam burlar todo e qualquer controle. Os novos instrumentos e procedimentos contribuem para ampliar a complexidade das estruturas financeiras e das relações entre os devedores e os credores. O resultado, como bem apontou Minsky, é o aumento da instabilidade da economia.

Por estarem submetidas à lógica de valorização da riqueza, as instituições bancárias privadas não se envolvem espontaneamente com o financiamento de alguns setores e/ou atividades consideradas estratégicos para o desenvolvimento, em virtude do risco elevado e/ou baixa lucratividade que lhes caracteriza. O financiamento dessas atividades exige, portanto, uma fonte de recursos especial, em geral mobilizada pelo setor público, e/ou esquemas institucionais de garantia. Por essa razão, a existência de subsistemas especiais de crédito para o financiamento desses setores e atividades prioritárias é uma característica compartilhada pelos sistemas financeiros de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em alguns desses subsistemas, as instituições privadas intermedeiam os recursos públicos e administram os contratos de financiamento. Em outros casos, cumprindo exigibilidades legais, essas instituições destinam, de forma compulsória, parte dos recursos que captam para o financiamento de atividades, setores e regiões, consideradas prioritárias do ponto de vista econômico e social.

A partir deste referencial teórico, esse artigo tem como objetivo analisar a evolução do mercado de crédito bancário corporativo brasileiro no ciclo de crédito recente (janeiro de 2003 a junho de 2009). Para tanto, a segunda seção apresenta um panorama geral desse ciclo, com ênfase nos seus determinantes e características gerais. A terceira seção dedica-se à análise dos seis principais segmentos do mercado de crédito corporativo (indústria, comércio, serviços, infraestrutura, imobiliário e rural), procurando destacar suas principais semelhanças e diferenças no que diz respeito à dinâmica cíclica, à participação no total do crédito corporativo, à origem de recursos, à composição da propriedade de capital e ao padrão de atuação dos bancos públicos e privados. Seguem-se algumas considerações finais sobre as perspectivas para o mercado de crédito corporativo nos próximos anos, destacando o papel dos três principais bancos públicos federais (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social — BNDES, Caixa Econômica Federal — CEF e Banco do Brasil — BB).

Devido às limitações das estatísticas das operações de crédito do sistema financeiro por setor de atividades do Banco Central do Brasil — BCB (associadas ao cruzamento insuficiente das diversas séries disponíveis sobre o estoque de crédito), utilizaram as seguintes fontes de informações: (i) tabulação especial dos desembolsos do BNDES, fornecida pela Assessoria de Planejamento do banco; (ii) relatórios de administração dos dez maiores bancos — Banco do Brasil, Itaú, Unibanco, Bradesco, Santander, ABN Amro Real, Caixa Econômica Federal, HSBC, Safra e Nossa Caixa — que, em dezembro de 2008, respondiam por 84% do total das operações de crédito do sistema bancário; (iii) entrevistas realizadas com os diretores e outros executivos da área de crédito corporativo desses bancos; (iv) nas informações extraídas das notas explicativas das demonstrações contábeis sobre a carteira de crédito por setor de atividade.

CARACTERÍSTICAS E DETERMINANTES DO CICLO DE CRÉDITO RECENTE

O Plano Real marcou o início de importantes transformações no sistema bancário brasileiro, associadas a um conjunto de fatores, quais sejam: (I) em âmbito macroeconômico, a estabilização dos preços (e a consequente redução da fonte de rentabilidade por excelência dos bancos no período precedente, as receitas de floating e inflacionárias) e a gestão das políticas monetária e cambial, com destaque para a manutenção da taxa de juros básica num patamar elevado, mesmo após a adoção do regime de câmbio flutuante, em janeiro de 1999; (II) em âmbito estrutural, a ampliação da abertura financeira, o aumento da internacionalização do sistema bancário e a privatização dos bancos estaduais; (III) em âmbito regulatório, a convergência da regulamentação prudencial interna aos padrões fixados pelo Bank of International Settlements (BIS), com a adoção das regras do Acordo da Basiléia.

Essas mudanças no ambiente concorrencial dos bancos privados desencadearam ações reativas por parte dessas instituições, que alteraram suas próprias estratégias, adotando novas tecnologias, criando novos produtos, explorando novos mercados, reduzindo seus custos, aperfeiçoando seus sistemas de controle e avaliação de riscos e diversificando suas receitas, sobretudo mediante a cobrança por serviços, antes oferecidos gratuitamente. Simultaneamente, a entrada de grandes bancos estrangeiros — que estimulou a busca de escala e de market share por parte dos bancos privados nacionais varejistas, por meio de fusões e aquisições — ao lado da privatização dos bancos estaduais, resultou numa mudança do perfil institucional do sistema bancário brasileiro (com o aumento da participação dos bancos estrangeiros e redução dos bancos públicos) e num aumento do seu grau de concentração. A interação entre as mudanças sintetizadas acima e a dinâmica concorrencial das instituições bancárias também teve como desdobramento o aumento da solidez e do grau de sofisticação do sistema.

De 1994 a 2002, contudo, não houve alteração significativa na preferência pela liquidez dos bancos privados em relação ao padrão dos anos de alta inflação. Com exceção de um curto período de expansão do crédito após o Plano Real — que teve duração de somente oito meses (conduzindo a relação crédito/PIB de 31,7% em junho de 1994 para 36,8% em janeiro de 1995)2 2 Sobre o ciclo de crédito do Plano Real, ver Freitas (2000) e Cintra (2006). — essas instituições continuaram priorizando as aplicações em títulos públicos vis-à-vis às operações de crédito, a despeito do diferencial ainda maior de rentabilidade dessas últimas no Brasil, em função do altíssimo spread bancário, relativamente ao observado nos demais países em desenvolvimento.3 3 Sobre os determinantes do elevado spread bancário no Brasil, ver Silva; Oreiro e Paula (2007).

Somente a partir de maio de 2003, essas instituições iniciaram um movimento de alteração de seus portfólios de ativos. Num contexto de robustez patrimonial e operacional — propiciado pelo processo de ajuste e reestruturação do período precedente — a confirmação da garantia de que não haveria alteração na política econômica do novo governo e, principalmente, a melhora progressiva do ambiente macroeconômico, induziram os bancos a expandir de forma ativa os empréstimos aos agentes privados.

Essa melhora, por sua vez, esteve associada, em última instância, a determinantes de ordem externa, especialmente à emergência de uma nova fase de abundância de fluxos de capitais para os países emergentes e de baixa aversão aos riscos, que resultou num movimento ininterrupto de apreciação do real do início de 2003 até agosto de 2008. Para uma economia periférica como a brasileira, emissora de uma divisa não conversível e sujeita historicamente a uma situação de vulnerabilidade externa, a trajetória de taxa de câmbio revela-se fundamental na configuração de um ambiente favorável à expansão das operações financeiras. Não apenas como custo em si, mas também, sobretudo no período analisado, por conta de sua influência em outras variáveis, notadamente juros e inflação. Neste sentido, aquele movimento, acompanhado de perto pelas expectativas sobre o valor deste preço-chave doze meses adiante, constituiu um condicionante fundamental da fase mais longa de expansão do crédito na história recente do país.

Nesse contexto, os bancos redefiniram suas estratégias operacionais e identificaram na ampliação dos empréstimos às famílias um enorme potencial de ganho, diante das expectativas otimistas quanto à recuperação do emprego e da renda sob o governo Lula. A preferência em relação aos empréstimos às pessoas físicas, que persistiu até o início de 2008, decorreu, igualmente, de algumas especificidades dessa modalidade de crédito: a avaliação da capacidade de pagamento do tomador é mais fácil do que no caso do crédito empresarial e as taxas de juros praticadas são superiores, tornando-o mais rentável.

Assim, a fase ascendente do ciclo de crédito emerge em maio de 2003, tendo como referência o indicador crédito/PIB. Esse movimento antecede tanto a introdução do crédito consignado — inovação financeira introduzida pelo governo, que terá um papel fundamental na evolução dos empréstimos às pessoas físicas a partir de 2004 — como o início da trajetória de crescimento da massa de rendimentos (no final de 2004), e se prolonga até agosto de 2008.4 4 Esse indicador passou de 22,5% em maio de 2003 para 36,4% em agosto de 2008 e manteve sua trajetória de alta na fase denominada aqui de descendente (atingindo 42,2% em junho de 2009) pelos motivos destacados a seguir. Em termos da origem dos recursos, o segmento de recursos livres (crédito que pode ser alocado a critério do agente financeiro a partir de recursos de tesouraria com taxas livremente pactuadas) liderou a expansão dos empréstimos, a partir, sobretudo, de fontes internas, crescendo a taxas muito superiores ao segmento de recursos direcionados5 5 Inclui as operações com base em recursos compulsórios, ou seja, nas exigibilidades sobre os depósitos bancários, à vista e de poupança, e nos fundos parafiscais e regionais. (cujas taxas ativas são fixadas pelo Conselho Monetário Nacional).

É possível identificar dois períodos na fase de alta. O primeiro, que se estendeu de maio de 2003 a fevereiro de 2008, caracterizou-se pelas taxas de crescimento mais elevadas (frente ao mesmo mês do ano anterior) das operações de crédito às famílias e pela melhora progressiva das condições dos empréstimos nos dois segmentos (Pessoas Físicas — PF, e Jurídicas — PJ).6 6 De acordo com os dados do BCB, o prazo médio ampliou-se em 127 e 148 dias úteis nos segmentos PJ e PF, respectivamente; e a inadimplência recuou 0,7 pontos percentuais (p.p) e 0,4 p.p nesses dois segmentos. Já as taxas de juros recuaram até dezembro de 2007; em comparação com maio de 2003, a queda foi de 16,2 p.p e 39,8 p.p nos segmentos PJ e PF, respectivamente. A partir desse mês, o custo do crédito inicia uma trajetória de alta devido a vários fatores, dentre os quais: o aumento das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido dos Bancos (CSLL); alta da meta de Taxa Selic; imposição de recolhimento compulsório sobre os depósitos bancários das empresas de leasing. No segundo, que foi bem mais curto (março a agosto de 2008), os empréstimos aos setores empresariais assumiram a liderança em termos de ritmo de expansão num contexto de dinamização dos investimentos e do mercado interno (ver Tabela 1).

Esse último período, todavia, já ocorre em um ambiente marcado por uma deterioração do ambiente macroeconômico interno e externo. A única variável que manteve e mesmo aprofundou sua trajetória precedente (de queda) de março a agosto de 2008 foi a taxa nominal de câmbio e suas respectivas expectativas.7 7 A taxa de câmbio R$/US$ recuou de 1,68 em 29/02/2008 para 1,63 em 29/08/2008, o que significou uma apreciação de 3% do real. No caso das expectativas apuradas pelo boletim Focos, a apreciação no mesmo período foi ainda maior, de 5% (informações disponíveis no site do BCB: www.bcb.gov.br). Neste momento, começou a se disseminar uma inovação financeira — introduzida no país pelos bancos estrangeiros em 2007 e rapidamente mimetizada pelos bancos privados nacionais: os contratos de crédito vinculados a operações com derivativos cambiais, que garantiam uma redução do custo enquanto a trajetória do real era de apreciação. Esse mecanismo de altíssimo risco parece ter contribuído para fomentar a aceleração do crédito bancário às empresas nos oito primeiros meses de 2008 ao reduzir o seu custo num contexto de elevação da taxa de juros básica (de 11,25% em março para 13,75% em setembro) e de retração de fontes alternativas de financiamento devido ao aumento da aversão aos riscos dos investidores globais após a eclosão da crise subprime, exercendo uma função típica das inovações financeiras segundo Minsky. Simultaneamente, a maior concorrência pela captação de recursos no mercado doméstico pressionou os custos de emissão dos Certificados de Depósito Bancário (CDBs) e estimulou a proliferação dos CDBs com liquidez diária, como forma de aumentar a atratividade desses instrumentos junto aos investidores.

Esse ambiente também levou várias empresas brasileiras, sobretudo exportadoras, a firmarem complexos contratos de derivativos de balcão pelos quais assumiam uma posição vendida em dólar, que realiza lucros com a apreciação do real. Esses contratos, introduzidos no Brasil pelas filiais dos bancos estrangeiros, proporcionavam às empresas exportadoras não somente hedge de suas receitas em moedas estrangeira, mas também elevados ganhos especulativos enquanto a trajetória do real era de apreciação (já que na maioria dos casos, o valor do contrato superava em várias vezes o volume das receitas esperadas). Os ganhos com esses contratos, por sua vez, atuavam como amortecedores da perda de competitividade das exportações associada à trajetória de valorização cambial (Farhi, 2010).

Em suma, movidos pela dinâmica da concorrência bancária, na fase de expansão os bancos introduziram inovações financeiras, associadas tanto à administração dos passivos, como à gestão dos ativos. O potencial desestabilizador dessas estratégias de alto risco no mercado de crédito bancário brasileiro explicitou-se com o aprofundamento da crise financeira global a partir de setembro de 2008, com a falência do banco Lehman Brothers.

Em contrapartida, na fase de reversão, ocorreu o excesso de prudência característico da atividade bancária. No caso da economia brasileira, o aumento da preferência pela liquidez dos bancos privados é um fenômeno recorrente em momentos de instabilidade cambial e seu conservadorismo nas fases de baixa do ciclo é exacerbado pelo prazo relativamente curto do crédito e pela existência de títulos públicos líquidos, rentáveis e de baixo risco, que permitem uma rápida recomposição de suas carteiras. Mas esses fatores, por si só, não são suficientes para explicar a forte contração do crédito no último trimestre de 2008, cuja intensidade inédita decorreu da crise de confiança gerada pelos prejuízos das empresas nos contratos de derivativos cambiais e dos problemas de liquidez de algumas instituições, associada ao descasamento de prazo das operações ativas e passivas (decorrente da mencionada proliferação dos CDBs com liquidez diária). Setembro de 2008 pode ser considerado um mês de transição, quando eclodiu essa crise.

A contração do crédito, contudo, não transpareceu na evolução dos estoques de crédito total e no setor privado, que mantiveram sua trajetória de crescimento nos meses seguintes, devido à inércia que caracteriza este tipo de dado, mas também por três fatores adicionais: em primeiro lugar, o efeito da depreciação do real sobre o estoque das modalidades de crédito com funding externo; em segundo lugar, vários bancos concederam novos empréstimos para que seus clientes pagassem os prejuízos incorridos nos contratos de derivativos cambiais, associados ou não a empréstimos. Em terceiro lugar, alguns poucos privados estrangeiros (ver seção III) e, sobretudo, os bancos públicos, expandiram os empréstimos.

Esses bancos (BNDES, CEF e BB) desempenharam uma ação anticíclica fundamental para atenuar os efeitos adversos do credit crunch no mercado doméstico a partir do último trimestre de 2008. O caráter anticíclico desse crédito no Brasil tem duas dimensões complementares, correspondentes aos dois principais tipos de instrumentos deste segmento. De um lado, as exigibilidades sobre os depósitos — que se traduzem em recursos obrigatoriamente destinados ao crédito rural, habitacional e microcrédito —, que produzem certa "inércia" em parte deste segmento, funcionando como uma espécie de estabilizador automático. Em relação a essa parcela dos passivos, os bancos exercem de maneira muito menos intensa a sua preferência pela liquidez. De outro lado, a política anticíclica propriamente dita, exercida pelos grandes bancos públicos, a partir de recursos direcionados (caso do BNDES) e de recursos livres e direcionados (caso da CEF e BB) (ver Tabela 1 no AnexoAnexo).

Assim, a fase descendente do ciclo no Brasil não se caracterizou pela retração dos estoques de crédito, mas sim pela forte desaceleração das operações dos bancos privados com base em recursos de tesouraria, que foi em grande medida contrabalançada pelo maior dinamismo dos empréstimos das instituições públicas, ancorados, sobretudo, em recursos direcionados.

MERCADO DE CRÉDITO BANCÁRIO CORPORATIVO

A análise da evolução do mercado de crédito corporativo de janeiro de 2003 a meados de 2009 permite elucidar semelhanças e diferenças nos seus principais segmentos — indústria, comércio, serviços, infraestrutura, imobiliário e rural — no que diz respeito ao padrão de atuação dos grandes bancos públicos e privados, à dinâmica cíclica (início das fases de alta e de baixa intensidade da desaceleração), à participação no total do crédito corporativo, à origem de recursos e à composição da propriedade de capital. Todavia, antes de examinar cada segmento, é importante mencionar alguns aspectos mais gerais da dinâmica desse mercado.

Um primeiro aspecto refere-se à existência de uma clara, e histórica no caso brasileiro, "divisão de trabalho" entre as instituições públicas — especializadas na concessão de empréstimos de longo prazo, a partir de recursos direcionados — e privadas — que priorizam o crédito de curto prazo, a partir de recursos de tesouraria, destinado basicamente para capital de giro, atuando nas modalidades de maior prazo e risco mais elevado a partir de repasses de recursos externos e, principalmente, de recursos direcionados (repasses do BNDES no caso do crédito à indústria, serviços, infraestrutura e exigibilidades sobre os depósitos, no caso dos créditos rural e imobiliário). Cabe ressaltar que a predominância dos empréstimos do BNDES no financiamento de mais longo prazo também reflete a preferência das empresas por esses recursos vis-à-vis a outras fontes devido às condições de prazo, custo e garantias mais favoráveis.

Esse padrão de atuação das instituições privadas — que incorrem em risco de crédito nas operações de repasse, mas não em risco de descasamento, o que ocorreria se concedessem crédito de longo prazo a partir de recursos próprios — é observado, de forma geral, nas fases de otimismo e baixa preferência pela liquidez. Em momentos de crise e alta aversão ao risco, essas instituições contraem, de forma geral, o crédito, inclusive aquele vinculado ao repasse das modalidades indiretas do BNDES. No âmbito das instituições privadas, somente os bancos estrangeiros, que são braços financeiros das empresas transnacionais produtoras de máquinas e equipamentos (serviços, agronegócio, infraestrutura), não retraíram os repasses na fase descendente do ciclo, pois atuaram no sentido de sustentar a demanda por esses bens e, assim, a receitas de seus controladores.

No âmbito das instituições públicas, também foram observadas algumas diferenças nos padrões de atuação, reflexos seja da natureza jurídica, seja da propriedade do capital. Por um lado, o BNDES, como banco de fomento, não capta recursos do público e, consequentemente, não concorre com os bancos privados por conquista de parte de mercado — tendo uma atuação, sobretudo, complementar —, enquanto os demais bancos públicos (CEF e BB) captam depósitos e, assim, concorrem com os bancos privados no mercado de crédito bancário estrito senso (ou seja, exclusive BNDES). Por outro lado, CEF e BNDES são bancos 100% públicos, que atuam, sobretudo, a partir de recursos direcionados, enquanto o BB é uma instituição de capital aberto, com ações negociadas em bolsa, detidas por investidores privados, tendo uma participação mais relevante dos recursos livres como funding de suas operações.

Esta especificidade do BB, ao lado do processo de saneamento realizado nos anos 1990 e no início da presente década no âmbito do Programa de Fortalecimento das Instituições Financeiras Federais (PROEF), certamente condicionou o aprofundamento, no período em foco, de sua estratégia operacional de diversificação da carteira de crédito corporativo guiada, cada vez mais, pela lógica privada de valorização, o que resultou na perda de espaço do setor rural na carteira do banco. A partir de 2007, a indústria passou a absorver maior parcela do crédito corporativo do BB do que aquele setor, fato inédito na história da instituição. Na realidade, o BB tornou-se um importante concorrente das instituições privadas em praticamente todos os segmentos do mercado de crédito corporativo (exceto o imobiliário, onde a liderança da CEF é inconteste) (ver Tabela 2 do AnexoAnexo).

Como reflexo dessa estratégia operacional, o BB, beneficiado pela capilaridade fornecida pela sua rede de agências, também ampliou sua atuação como agente repassador dos recursos do BNDES para os diversos segmentos do crédito corporativo (e, em especial, para a indústria e as exportações). Isto porque, ao diversificar sua atuação nos diferentes segmentos desse mercado e entrar em concorrência direta com os bancos privados, o BB teve de ampliar sua atuação como agente financeiro do BNDES para atender integralmente às necessidades dos seus clientes e, assim, garantir sua fidelização. Este novo papel do BB ganhou especial relevância no último trimestre de 2008 e no primeiro semestre de 2009, quando o efeito-contágio da crise internacional resultou em forte aversão ao risco e contração das operações dos bancos privados, inclusive daquelas vinculadas aos repasses.

Neste contexto, tanto o BB, como a CEF, aliando as diretrizes governamentais com suas próprias estratégias operacionais, ampliaram os empréstimos à indústria, aos setores terciários e à infraestrutura, inclusive a partir de recursos livres, exercendo um importante papel anticíclico, ao lado do BNDES. Ademais, as duas primeiras instituições também seguiram a orientação do governo de baixar as taxas de juros do crédito de forma a pressionar os bancos privados a reduzirem seus elevados spreads. Vale destacar que, no caso do BB, o governo utilizou a prerrogativa de acionista majoritário e determinou a troca do seu presidente, o que garantiu o desempenho das funções de banco público no momento de crise. No caso da CEF — que também ingressou no ciclo recente numa situação patrimonial favorável, após o processo de saneamento e capitalização no âmbito do PROEF —, a crise revelou-se uma janela de oportunidade no sentido de ampliar suas fatias nos demais segmentos do mercado de crédito corporativo, além do imobiliário.

Um segundo aspecto geral refere-se às estratégias adotadas pelos grandes bancos privados e públicos com carteira comercial na gestão da carteira de pessoa jurídica. A maioria das instituições privadas, que adotavam no segmento de crédito corporativo uma divisão por porte de empresa (em geral, micro e pequenas, médias e grandes), tem modificado sua forma de atuação no período recente, passando a adotar um enfoque setorial que considera, cada vez mais, as especificidades de cada atividade econômica nessa gestão. Esse enfoque permite ao banco avaliar não só as perspectivas da empresa individualmente, mas também do setor e/ou ramo de atividade no qual ela está inserida, bem como dos seus fornecedores, o que melhor possibilita a identificação de oportunidades de negócios e diminuição dos riscos. No caso dos bancos públicos, o BB já adota uma segmentação dos clientes corporativos que considera tanto o faturamento anual do setor e/ou ramo de atividade, mas na CEF ainda predomina o recorte pelo tamanho da empresa.

O terceiro traço geral refere-se ao grau elevado de concentração das operações em um número reduzido de instituições em todos os segmentos do crédito corporativo (ver Quadro 1 do AnexoAnexo), característica também observada no mercado de crédito bancário como um todo (incluindo pessoas físicas e jurídicas). No âmbito das instituições privadas, Itaú Unibanco e Bradesco (onde a importância relativa do crédito corporativo no total do crédito ao setor privado é maior), no grupo nacional, e Santander, no grupo estrangeiro, são os principais players em todos os segmentos (mas com posições diferenciadas no ranking de cada setor — ver Tabela 2 do AnexoAnexo). O HSBC, apesar de ser o único banco global presente no país, não tem uma participação relevante em nenhum segmento do crédito corporativo (nessa instituição, a carteira de pessoa física supera àquela de pessoa jurídica, ao contrário das três instituições acima mencionadas).

Vale destacar, ainda, um denominador comum à atuação dos players privados: a busca de uma maior diversificação da sua carteira de crédito corporativo, subordinada, muito mais, a uma estratégia de alocação de portfólio (que busca reduzir o risco da carteira mediante sua pulverização entre um maior número de setores, que, em geral, têm desempenhos diferenciados), do que à evolução conjuntural da demanda. Já no grupo dos bancos públicos, há uma maior heterogeneidade setorial, como destacado a seguir.

Apesar desses traços gerais, os seis segmentos do crédito corporativo diferenciaram-se em relação à importância de cada modalidade de recurso, ao padrão de atuação e à participação relativa das instituições públicas e privadas (ver Quadro 1 do AnexoAnexo).

Em relação ao primeiro aspecto, os recursos direcionados predominam nos setores rural, imobiliário e de infraestrutura, enquanto os recursos livres têm uma participação mais elevada, em ordem crescente, na indústria e, sobretudo, nos setores de serviços e comércio. No segmento de recursos livres, nas operações com recursos domésticos, destaca-se a linha de capital de giro e a conta garantida em todos os setores. Ademais, no caso da indústria há uma elevada dependência de recursos direcionados nas operações de longo prazo.

No que diz respeito aos padrões de atuação e às participações relativas nos diferentes segmentos do crédito corporativo (ver gráfico 1 e Tabela 2 do AnexoAnexo), observou-se que, no início do ciclo os bancos públicos ocupavam a posição de liderança nos setores de infraestrutura, imobiliário, rural e industrial. Esta posição foi sustentada, ao longo de todo o ciclo, nos três primeiros setores.


No setor de infraestrutura, o principal (e quase exclusivo) agente é o BNDES. Ao longo do período estudado, no segmento de crédito bancário estrito senso, os grandes bancos privados nacionais, principalmente Bradesco e Itaú, reduziram gradual e progressivamente sua exposição a esse setor em suas carteiras de crédito corporativo. Simultaneamente, os bancos públicos ganharam espaço por meio de uma forte expansão do BB em energia e telecomunicações e de uma importante mudança estratégica da CEF que, além de aprofundar suas operações tradicionais em saneamento e infraestrutura urbana, ampliou sua atuação em energia. Desenha-se, assim, um cenário de acirramento da competição nesse setor, no qual os dois bancos públicos com carteira comercial aparecem como atores cada vez mais importantes, a disputar espaço com o Bradesco e, principalmente, com o Itaú Unibanco.

Já no setor imobiliário, o predomínio das instituições públicas ancora-se na atuação da CEF, grande operadora do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE) e com acesso, até recentemente quase exclusivo, aos recursos do FGTS. Em relação aos dois principais players privados nacionais a fusão entre Itaú e Unibanco também projeta um futuro de maior competição. O sinal mais claro nessa direção é o fato de a nova instituição ter ultrapassado o Bradesco como o maior emprestador de recursos privados para a construção entre os bancos privados. No grupo dos bancos estrangeiros, o crédito imobiliário destinado a pessoas jurídicas ainda é incipiente no Santander. Nesse setor, outra instituição estrangeira, a Caterpillar Financial S/A, também despontou como um agente relevante de recursos, enquanto a principal instituição repassadora do BNDES para o financiamento de máquinas e equipamentos para construção.

No setor rural, o predomínio das instituições públicas decorre da atuação do BB (com as instituições privadas nacionais e estrangeiras ocupando o segundo e terceiro lugares, respectivamente), com participação superior a 60% no Sistema Nacional de Crédito Rural. Os elevados riscos da atividade rural fazem com que as instituições privadas fiquem mais cautelosas na concessão de financiamentos, seja com recursos livres, seja com recursos direcionados. Nos períodos de crescimento da economia e dos agronegócios, em particular, cresce a participação dessas instituições nesse segmento. Nos momentos de crise, contudo, o aumento da aversão ao risco conduz à retração dessas instituições (nacionais e estrangeiras), não obstante a existência de obrigatoriedade da destinação de parte do depósito à vista funcionar como um estabilizador automático desse segmento de crédito. Nessas situações, o espaço deixado pelos bancos privados (e também pelas tradings) no financiamento a essa atividade essencial é ocupado pelos bancos públicos. No grupo dos bancos privados, além do Bradesco, Itaú Unibanco e Santander Real, o Rabobank também apareceu como um player relevante.

Em contrapartida, no setor industrial, a liderança dos bancos públicos no início do ciclo (em função, principalmente, da atuação do BNDES — que nesse setor beneficia, sobretudo, as grandes empresas — já que o avanço do BB nesse segmento ocorreu a partir de 2005) foi perdida para os bancos privados nacionais em dezembro de 2005 que, com a aceleração do crescimento e a maior demanda de recursos pelas empresas passaram a concorrer, de forma mais intensa, na concessão de crédito a este setor, vinculada seja a repasses do BNDES (principalmente, para aquisição de máquinas e equipamentos), seja a recursos de tesouraria (já que as empresas industriais são muito dependentes de capital de giro). Essa posição foi sustentada até dezembro de 2008, em função, principalmente, do avanço das operações do Itaú e Unibanco (e após a fusão do Itaú Unibanco) e do Bradesco. A ação anticíclica dos bancos públicos, especialmente do BNDES e do BB, no primeiro semestre de 2009 resultou, contudo, na ampliação da sua fatia de mercado nesse segmento, que voltou a superar aquela dos bancos privados nacionais em junho de 2009. Já os bancos estrangeiros permaneceram em terceiro lugar ao longo de todo o período.

Assim, no final do ciclo, o grupo de bancos públicos retomou o primeiro lugar no segmento de crédito industrial, em função da sua ação anticíclica num contexto de recuo das instituições privadas nacionais. Com a retomada do crescimento da economia, esta posição pode ser novamente perdida para essas instituições, que devem novamente responder mediante ampliação das operações de crédito para esse setor, que se revelam rentáveis e menos arriscadas do que nos setores mencionados acima (especialmente, infraestrutura e rural).

Já no setor terciário, menos intensivo em capital e com investimentos de menor prazo de amortização (e, assim, menor risco), as instituições privadas mantiveram a liderança ao longo de todo o ciclo, encabeçadas pelo Bradesco, nos seus dois segmentos (comércio e serviços), mas ocorreram mudanças na segunda posição no primeiro caso. No comércio, os bancos estrangeiros mantiveram-se no segundo lugar até dezembro de 2008. Seu maior envolvimento nesse setor decorre, em grande medida, da forte presença de empresas multinacionais em alguns segmentos do comércio, as quais mantêm estreito relacionamento com os bancos de suas matrizes. Esta posição, todavia, foi perdida no primeiro semestre de 2009 para as instituições públicas, cujo avanço nesse segmento (BB e da CEF, já que as operações do BNDES, diretas e indiretas, não são relevantes nesse setor) a partir do último trimestre de 2008 respondeu à política anticíclica e às suas estratégias operacionais. Neste contexto, já em dezembro de 2008, o BB desbancou o Bradesco da primeira posição neste segmento de crédito corporativo e abriu vários pontos percentuais de vantagem em relação ao Itaú Unibanco (terceiro lugar) e ao Santander (quarto lugar). Assim, no final do ciclo, a despeito da liderança do grupo de instituições privadas, o BB era o banco-líder nesse segmento.

Já no segmento de crédito às empresas de serviços, a disputa por mercado entre os bancos privados foi bem mais acirrada do que no comércio. Embora o Bradesco tenha se mantido na liderança ao longo de todo o período, a distância mantida dos seus concorrentes em 2008 (Santander em segundo lugar e Itaú Unibanco em terceiro) não foi tão ampla como a verificada no outro setor do terciário. Em 2008, o grupo dos bancos públicos aumentou ligeiramente sua participação nesse segmento do mercado de crédito corporativo, em função, principalmente, da atuação do BB e do BNDES. No caso deste banco de fomento, as operações indiretas são mais relevantes e se destinam, principalmente, às pequenas empresas (ao contrário dos demais setores, nos quais as grandes empresas predominam como principais beneficiárias dos desembolsos desta instituição).

Em relação à qualidade do crédito, nos quatro setores corporativos para os quais há dados disponíveis (indústria, comércio, outros serviços e rural), o aumento do grau de endividamento não foi acompanhado por uma deterioração da capacidade de pagamento das empresas. Ou seja, em todos os casos, os créditos de maior qualidade (Níveis AAA e A) predominaram, mesma na fase descendente do ciclo (após outubro de 2008). Nessa fase, contudo, se observa uma evolução assimétrica dos créditos de pior qualidade (nível AAA), cujo peso no total aumenta de forma bem mais expressiva na indústria (na comparação com os demais setores), em função da maior participação das operações de crédito vinculadas a derivativos cambiais nas empresas desse setor.

Já a dinâmica cíclica e a participação dos setores no total do crédito corporativo foram bastante heterogêneas (ver Gráfico 2). O setor rural foi o único que apresentou taxas positivas de crescimento real (quando comparado com o mesmo mês do ano anterior) desde janeiro de 2003, que vigoraram durante todo o período em tela. Essa especificidade é reflexo de características próprias dessa atividade produtiva. Como o seu financiamento provém, na sua maior parte, de recursos direcionados, o volume de crédito destinado a esse setor varia com menor intensidade frente às mudanças do ambiente macroeconômico, que afetam a disposição do sistema bancário privado em ofertar crédito. Contudo, na média do período, o crédito rural (incluindo os financiamentos às famílias) como percentual do PIB e do crédito corporativo foi o menor entre todos os setores de atividade.


O segundo setor a ingressar na fase ascendente do ciclo foi o comércio, cujo estoque das operações de crédito começou a registrar taxas positivas de crescimento real frente a igual mês do ano anterior a partir de janeiro de 2004. Contudo, a despeito do dinamismo deste setor ao longo de todo o período em foco (impulsionado, a partir de 2005, pela evolução favorável da massa de rendimentos), o comércio foi, após o setor rural, o setor corporativo que menos absorveu crédito. Além do ciclo do negócio na atividade comercial ser relativamente mais curto (do que na indústria e na infraestrutura), com rápido giro dos estoques, é usual nesse setor, sobretudo no comércio varejista, a negociação com os fornecedores de maiores prazos para pagamento, o que diminui a necessidade de financiamento bancário.

Já o setor de serviços passou a registrar taxas reais positivas a partir de março de 2004, ou seja, dois meses após o setor de comércio, com forte aceleração nos três primeiros trimestre de 2008 (movimento associado às obras do Programa de Aceleração do Crescimento — PAC, já que uma parte da infraestrutura está incluída nesse setor nas estatísticas do BCB). Esse setor, à semelhança do comércio, não tem participação no crédito ao setor privado corporativo proporcional ao seu peso econômico devido à sua menor necessidade de financiamento, uma vez que várias das atividades que o integram se caracterizam pela maior intensidade de capital variável e circulante do que de capital fixo.

No caso do crédito à indústria — setor que responde pela maior parcela do crédito corporativo, devido, exatamente, à sua maior intensidade de capital físico, além das especificidades do crédito à infraestrutura (maiores prazo de duração e risco) — as taxas de crescimento reais (contra o mesmo mês do ano anterior) tornaram-se positivas somente em maio de 2004 e se mantiveram praticamente estagnadas até novembro de 2005, somente ganhando impulso (taxas reais de expansão positivas e crescentes) a partir de janeiro de 2006, ou seja, com um atraso em relação ao crédito corporativo total e às operações com os setores de comércio e serviços, que tiveram um primeiro período de dinamismo em 2004. No caso desse setor, as companhias, favorecidas por condições internas muito positivas de geração de lucro e por um quadro econômico e financeiro interno e externo benigno, adotaram a estratégia de redução do endividamento bancário, bem como de aumento de seu prazo médio.

No crédito imobiliário, o movimento ascendente é mais intenso depois de 2006, sendo possível constatar dois momentos mais eufóricos da trajetória: entre o último trimestre de 2006 e o primeiro de 2007 e novamente entre o último trimestre de 2007 e o terceiro de 2008, quando tais cifras se repetem. Já no setor de infraestrutura, o atraso em relação ao movimento geral é ainda maior do que na indústria e no setor imobiliário: a expansão forte e sustentada só ocorre em 2007.

Em contrapartida, nesses dois últimos setores, em função da maior dependência do crédito direcionado, concedido pelos bancos públicos (CEF no primeiro caso e BNDES no segundo, como destacado a seguir), não se verifica a reversão observada nos demais segmentos no último trimestre de 2008, que, em função do efeito-contágio da crise financeira global sobre o mercado de crédito doméstico, enfrentam uma forte desaceleração sincronizada, mas com intensidades relativas díspares. Chama atenção a perda de ritmo um pouco mais suave do crédito industrial relativamente à registrada para o crédito corporativo total e dos setores de comércio e serviços, a despeito de a indústria ter sido a atividade produtiva mais afetada por esse efeito. É possível levantar duas hipóteses explicativas para esse resultado: a maior dependência do crédito bancário nesse setor, que dificulta a contração súbita dos empréstimos, e a maior participação das operações de crédito vinculadas a derivativos cambiais na indústria, que resultaram em elevados prejuízos financeiros e num processo de reestruturação das dívidas que se estendeu pelo primeiro semestre de 2009.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um contexto de retomada do crescimento em âmbito internacional e, no caso da economia brasileira, de redução da instabilidade macroeconômica, preservação do crescimento e mudança do perfil do investimento (com maior peso daqueles de maior prazo de maturação), o mercado de crédito bancário corporativo deve ganhar dinamismo, ancorado na atuação dos principais bancos públicos e privados. Caso a estratégia operacional dos bancos públicos comerciais (BB e CEF) — de ampliar suas fatias de mercado e diversificar sua carteira de pessoa jurídica — se mantenha, os bancos privados responderão mediante a expansão do crédito, a partir de recursos de tesouraria, bem como de repasses. Em particular no caso dos repasses, as operações poderão abranger um leque mais amplo de empresas (sobretudo aquelas de menor porte) se o Fundo Garantidor de Investimento do BNDES (criado em junho de 2009) for bem—sucedido.

Ademais, nesse ambiente, o mercado de capitais também deve ganhar impulso, atuando de forma complementar ao mercado de crédito bancário na oferta de recursos para as empresas, característica observada no ciclo recente. Os bancos privados e públicos com carteira comercial continuarão oferecendo aos seus clientes um amplo leque de produtos para atender suas necessidades de recursos, dentre os quais a estruturação e subscrição de emissões de títulos de renda fixa e ações — que, em muitos casos, são considerados uma modalidade de financiamento mais favorável pela empresa em questão.

Do ponto de vista setorial, o crescimento econômico com estabilidade estimulará os investimentos nos diversos setores da atividade econômica (indústria, comércio, serviços, imobiliários e infraestrutura). Dois setores em particular, infraestrutura e imobiliário, serão especialmente beneficiados. No caso do primeiro setor, a ampliação dos investimentos, vinculadas ao PAC, à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016 demandarão uma maior participação dos bancos privados na oferta de crédito — mediante modalidades de empréstimos associadas às operações de project finance —, de forma complementar aos três principais bancos públicos. No que se refere ao setor imobiliário, além dos estímulos derivados do programa governamental Minha Casa e Minha Vida, o déficit habitacional e a expansão da renda no cenário considerado contribuirão para o dinamismo do crédito.

Assim, é de se esperar que o acirramento da concorrência resultará na continuidade do movimento de fusão e aquisição, envolvendo, especialmente, a incorporação de bancos de menor porte pelas instituições líderes. Também é bastante provável que desse movimento participem bancos internacionais, que ainda não estão presentes no mercado brasileiro.

Essa evolução não deve, contudo, resultar na superação da divisão de trabalho entre bancos privados e públicos, os quais devem continuar desempenhando funções essenciais, enquanto instituições de caráter público, que contribuem, de forma fundamental, para a implementação das políticas econômica, financeira e social do Estado. Dentre essas funções, três se destacam.

Em primeiro lugar, a crise mostrou a importância da existência de um sistema bancário de natureza mista, com participação relevante de bancos públicos sólidos e bem posicionados para atuar de forma anticíclica quando a economia entra em fase de desaceleração, sustentando a demanda de crédito das empresas num contexto de retração do crédito privado e desempenhando integralmente o papel de instrumento de política financeira governamental.

Em segundo lugar, os bancos públicos têm uma função essencial no fornecimento de crédito para determinados setores e/ou atividades consideradas estratégicos para o desenvolvimento, em virtude do risco elevado e/ou baixa lucratividade (caso dos investimentos de longo prazo de maturação, da atividade rural e do crédito habitacional para baixa renda). O financiamento dessas atividades exige, portanto, uma fonte de recursos especial, em geral mobilizada pelo setor público. Assim, é igualmente fundamental a manutenção do sistema de direcionamento de crédito, que contribui para o exercício dessa função. Essa função poderia ser aperfeiçoada nos próximos anos mediante o desenvolvimento de esquemas institucionais de garantia, que poderiam ser operados pelos três principais bancos públicos.

Em terceiro lugar, como no setor bancário, que é oligopolizado, o acirramento da concorrência não se traduz, necessariamente, em concorrência via preço (ou seja, na queda das taxas de juros do crédito e, assim, dos spreads), os bancos públicos devem manter e mesmo aprofundar a política financeira de redução dos spreads, conquistando fatias de mercado e provocando a reação dos bancos privados. Num contexto de redução da taxa básica de juros, com consequente perda de receita nas aplicações de títulos públicos, esses bancos serão forçados a expandir suas operações de crédito em condições mais favoráveis (alongar os prazos e reduzir custos) para defender suas respectivas posições de mercado e assegurar sua lucratividade. Para que essa função das instituições públicas — que se pode chamar de reguladora, na medida em que afeta a dinâmica concorrencial mediante a influência na formação de preços ou mesmo a criação de novos produtos — continue sendo praticada, é necessário evitar tanto a ampliação da participação de acionistas privados no capital do BB, como a abertura do capital da CEF.

Submetido: 13/maio/2010

Aprovado: 7/agosto/2012

Clique aqui para ampliar

  • CINTRA, M. A. M. "A reestruturação patrimonial do sistema bancário brasileiro e os ciclos de crédito entre 1995 e 2005". In: CARNEIRO, R. (org.) A supremacia dos mercados e a política econômica do governo Lula São Paulo: Editora Unesp, p. 321-346, 2006.
  • FARHI, M. "Os impactos dos derivativos no Brasil". In: Marcolino, L. C; Carneiro, R. Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil São Paulo: Publisher Brasil e Editora Gráfica Atitude LTDA, 2010, p. 209-232.
  • FREITAS, Maria Cristina P. "Transformações institucionais do sistema bancário brasileiro". Relatório 1 do Subprojeto VIII Crédito Bancário no Brasil: evolução e transformações institucionais. Pesquisa BNDES, CECON Instituto de Economia/Unicamp, mar. 2007.
  • ______ FREITAS, M. Cristina P. de. "Política financeira, fragilidade e reestruturação bancária", in: CARNEIRO, Ricardo et al.. Gestão estatal no Brasil: armadilhas da estabilização, 1995-1998. São Paulo: Edições Fundap, p. 237-295, 2000.
  • KEYNES, John M. (1930) Treatise on Money, London: Macmillan, Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. V), 1971.
  • MINSKY, Hyman P. Stabilizing an unstable economy Yale University Press. New Haven, 1986.
  • SCHUMPETER, Joseph (1911). Teoria do desenvolvimento econômico São Paulo, Editora Abril, Coleção Os Economistas, 1983.
  • SILVA, Guilherme J.C; Oreiro, José L.; Paula, Luiz Fernando. "Spread bancário no Brasil: uma avaliação empírica recente". In: Paula, Luiz Fernando & OREIRO, José Luís (Orgs). Sistema financeiro: uma análise do setor bancário brasileiro Rio de Janeiro: Editora Campus, 2007, p. 191-220.

Anexo

  • 1
    Vale mencionar o conceito de banco aqui utilizado: intermediários financeiros que têm a capacidade de criar moeda de crédito, sob a forma de depósito à vista, o principal meio de pagamento e liquidação dos contratos nas economias capitalistas.
  • 2
    Sobre o ciclo de crédito do Plano Real, ver Freitas (2000) e Cintra (2006).
  • 3
    Sobre os determinantes do elevado
    spread bancário no Brasil, ver Silva; Oreiro e Paula (2007).
  • 4
    Esse indicador passou de 22,5% em maio de 2003 para 36,4% em agosto de 2008 e manteve sua trajetória de alta na fase denominada aqui de descendente (atingindo 42,2% em junho de 2009) pelos motivos destacados a seguir.
  • 5
    Inclui as operações com base em recursos compulsórios, ou seja, nas exigibilidades sobre os depósitos bancários, à vista e de poupança, e nos fundos parafiscais e regionais.
  • 6
    De acordo com os dados do BCB, o prazo médio ampliou-se em 127 e 148 dias úteis nos segmentos PJ e PF, respectivamente; e a inadimplência recuou 0,7 pontos percentuais (p.p) e 0,4 p.p nesses dois segmentos. Já as taxas de juros recuaram até dezembro de 2007; em comparação com maio de 2003, a queda foi de 16,2 p.p e 39,8 p.p nos segmentos PJ e PF, respectivamente. A partir desse mês, o custo do crédito inicia uma trajetória de alta devido a vários fatores, dentre os quais: o aumento das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido dos Bancos (CSLL); alta da meta de Taxa Selic; imposição de recolhimento compulsório sobre os depósitos bancários das empresas de
    leasing.
  • 7
    A taxa de câmbio R$/US$ recuou de 1,68 em 29/02/2008 para 1,63 em 29/08/2008, o que significou uma apreciação de 3% do real. No caso das expectativas apuradas pelo boletim Focos, a apreciação no mesmo período foi ainda maior, de 5% (informações disponíveis no site do BCB:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      13 Maio 2010
    • Aceito
      07 Ago 2012
    Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br