Acessibilidade / Reportar erro

Ignácio Rangel, 100 anos

Ignácio Rangel, 100 anos

Neste ano de 2014 comemoramos o 100º aniversário do nascimento de Ignácio Rangel - um dos dois grandes economistas brasileiros do século XX, o outro tendo sido Celso Furtado. Em um momento em que as atenções se voltavam para os problemas microeconômicos associados ao planejamento econômico e à política industrial, e no qual a macroeconomia do desenvolvimento estava ainda por ser criada, Rangel foi um pioneiro de uma macroeconomia desenvolvimentista. Seu centenário vem sendo comemorado com a publicação de livros e a realização de seminários. A Revista de Economia Política não poderia se ausentar desta comemoração, porque Rangel é um dos três patronos da revista, e porque, nos últimos anos de sua vida, ele publicou artigos importantes aqui.

Já no primeiro número da revista, em janeiro de 1981, na nota "A paralisação do Estado", ele faz a crítica dialética a uma frase minha sobre essa crise: "no estágio alcançado pelo nosso presente pacto de poder, a paralisação progressiva do Estado surge como precondição para a superação da crise". No mesmo número, no artigo "A crise financeira", ele analisa a grande crise da dívida externa dos anos 1980, e afirma que esta "é o último e dominante momento da crise [econômica], aquele no qual o corpo social toma todas as cartas do jogo e pressiona por uma solução". Nesse mesmo artigo, discutindo a relação Estado e setor privado, ele prevê o que aconteceria mais tarde - que a solução da crise "implicará, em uma primeira etapa, progressiva participação do setor privado nos projetos rompedores de pontos de estrangulamento - precipuamente dos grandes serviços de utilidade pública -, sem interromper a integração dos ditos projetos no setor público da economia, onde se encontram atualmente; numa segunda etapa, quando a participação privada nos serviços públicos houver assumido considerável peso, não é possível excluir a possibilidade, ou de privatização pura e simples da atividade, ou, dependendo das circunstâncias, de conversão de serviços públicos de administração direta ou das empresas públicas em serviços públicos concedidos a empresas privadas"

Em 1983, com "A crise não se administra", Rangel volta a discutir a grande crise financeira de então. Dada a similaridade da crise com a da Grande Depressão dos anos 1930, sua primeira pergunta é se o Brasil poderia novamente aproveitar-se dela para dar um salto no seu desenvolvimento com base no modelo de substituição de importações, enquanto o mundo estagnava. Sua resposta é negativa, mas deixa aberta uma saída. Nos anos 1930, como nos anos 1980, o Brasil estava na fase B de um ciclo de Kondratieff, e nessa década realizou grandes reformas institucionais para que o setor privado pudesse comandar a industrialização. Nos anos 1980 "as oportunidades potenciais de investimento encontram-se com o setor público, basicamente como serviços de utilidade pública organizados como empresas públicas A capacidade de formar capital, ao contrário, encontra-se no setor privado, em grande parte como capacidade ociosa da novel indústria supridora de bens de capital". A crise, portanto, encontraria solução quando fosse possível montar um sistema de financiamento para os grandes investimentos na infraestrutura (nos serviços de utilidade pública) com a participação do setor privado. Mas, para isso, era necessária a montagem de "um capitalismo financeiro periférico" no Brasil a partir da oferta pelo Estado de garantias de financiamento às empresas privadas concessionárias dos serviços públicos de infraestrutura. Dessa maneira o setor financeiro se ampliaria com o financiamento a essas empresas para que investissem, tendo o Estado como garantia dos recebíveis futuros gerados por esses serviços. Por outro lado, dado que o Brasil estava endividado em moeda estrangeira da qual não dispunha, as empresas multinacionais, seus "lucros vultuosíssimos mas em moeda nacional, em cruzeiros, são prisioneiros da economia nacional".

Ainda em 1981, Rangel, em "A história da dualidade brasileira", resume e busca tornar mais claro seu livro de 1953 sobre o tema. Afirmando sua dívida para com Marx, declara que elementos de sua teoria "não são outros senão os modos fundamentais de produção de que cogita o materialismo histórico marxista". Para Rangel, no momento em que escrevia, estava começando a quarta dualidade caracterizada pela crise da dívida externa e no qual o capitalismo financeiro passava a ser o "centro dinâmico mundial".

Como podemos ver por essas citações, Rangel pensava sempre dialeticamente e tendo em vista a dinâmica do ciclo econômico. E sempre nos surpreendia pela criatividade de seu pensamento. Em 1985, quando a grande crise financeira se aproximava de seu auge, Rangel publicou na Revista de Economia Política "Recessão, inflação e dívida interna", no qual apresenta sua famosa curva da inflação em forma de U invertido, que foi clara entre 1965 e 1982.Para ele,"há pelo menos um quarto de século a inflação integra o síndrome da recessão, isto é, surge ou se exacerba quando a economia se desaquece e, inversamente, desaparece ou, pelo menos, tem sua intensidade reduzida quando a economia se reaquece. Não há, portanto, nenhum trade off a fazer, porque o combate à inflação é inseparável do combate à recessão". Não se pense, porém, que Rangel ignorasse que a inflação de demanda pudesse aumentar um pouco no curto prazo devido ao excesso de demanda. Sua teoria da inflação é uma teoria de médio prazo, própria de uma macroeconomia desenvolvimentista, segundo a qual o aumento da inflação é uma resposta e um mecanismo de defesa do sistema econômico à crise econômica que, primeiro, se expressa em capacidade ociosa e, afinal, em crise financeira que envolve depreciação cambial e desencadeamento da inflação.

Em 1986, na sua última contribuição para esta revista, "A questão da terra", Rangel volta a outro de seus temas mais caros. No momento em que a agricultura familiar deixou de ser autossustentável e precisou vender sua produção excedente no mercado para garantir a subsistência da família, surge o clássico "exército industrial de reserva" referido por Marx. Entretanto, o número de desempregados ou subempregados é maior do que o que seria necessário para conter os salários, surgindo daí o problema da terra, que se agravou. Com o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, "as atividades agrícolas fundamentais passaram a ser campo de interesse imediato para o latifundiário", o que traz como consequência a trágica desagregação da família camponesa. O que leva Rangel a afirmar que "muitas pessoas de boa-fé confirmam a família camponesa nessas ilusões douradas [de um paraíso perdido], não percebendo que a exploração agrícola familiar é ainda menos viável agora do que antes". Mas, na medida em que o desenvolvimento econômico continua a ocorrer, "a oferta de mão de obra semiproletária tenderá a declinar", o que levará os salários a aumentar, e, assim, "o problema capital de toda a economia brasileira, o esquema de distribuição de renda, tenderia a amenizar-se". Por outro lado, enquanto uma reforma institucional não resolver o problema financeiro e a taxa de juros permanecer alta, o preço da terra continuará alto. O que leva Rangel a concluir: "compreende-se que, enquanto essa reforma financeira não tiver lugar, qualquer tentativa de reforma agrária, baseada na aquisição pelo Estado de vastas glebas, somente virá complicar o problema, elevando a prumo o preço da terra".

Eu poderia tentar sistematizar todas as contribuições de Ignácio Rangel à teoria econômica e à compreensão da economia brasileira realizadas na Revista de Economia Política, mas deixo esta tarefa para um economista mais jovem. Neste número temos três artigos em homenagem ao notável economista. Em "Notas sobre o pensamento de Ignácio Rangel no centenário de seu nascimento", Márcio Henrique Monteiro de Castro, Ricardo Bielschowsky e César Benjamin nos dizem que Rangel "afastou-se de todas as correntes de pensamento consolidadas, inclusive em seu próprio campo ideológico, o socialista, e tornou-se o mais original pensador econômico brasileiro do século XX". E concentram sua análise na teoria da dualidade e na questão do planejamento. Em "O centenário de Ignácio Rangel", José Maria Dias Pereira faz uma análise ampla da obra do homenageado. Finalmente, Osmani Pontes Moreno e André de Melo Modenesi, em "A curva de Rangel: origem, desenvolvimento e a formalização de Bresser-Pereira e Nakano" mostram como, Yoshiaki Nakano e eu fomos influenciados por Rangel (de quem fui amigo e discípulo desde os 20 anos), porque em nossa teoria da inflação inercial salientamos o caráter endógeno da moeda, dependente do processo cíclico da economia, dessa forma rejeitando a teoria monetarista da inflação, e concordando com Rangel que a curva de inflação poderia, no médio prazo, assumir a forma de U invertido quando a crise econômica chega ao auge sob a forma de crise financeira. Segundo, porque fizemos a crítica à curva de Phillips sob influência do amigo mais velho. É preciso, porém, assinalar que Rangel não aceitou a teoria da inflação inercial que, no início dos anos 1980, Nakano e eu desenvolvíamos. Embora sua teoria não fosse suficiente para explicar a persistência da inflação combinada com recessão que ocorria nos anos 1980, e embora ele tenha mais de uma vez me dito que, em 1964, foi dele a sugestão a Otávio Gouvea de Bulhões para que indexasse as operações financeiras (o que resultaria vinte anos mais tarde a alta inflação inercial), ele preferiu ficar fiel à sua teoria original que explicava antes a inflação dos anos 1960 do que a dos anos 1980.

A obra fundamental de Ignácio Rangel foi A inflação brasileira, de 1983. Nesse livro vemos um pensador brilhante misturar Keynes e Marx para entender a inflação acompanhada de recessão que já naquela época se manifestava, mas não adquirira ainda caráter inercial. Rangel não lera Michael Kalecki quando escreveu esse livro, mas a mistura do marxismo com Keynes levou-o a conclusões semelhantes às do grande economista polonês. A obra que Rangel mais prezava, porque nela continha sua teoria da história, foi A dualidade básica da economia brasileira Aos jovens economistas brasileiros aconselho ler esses dois livros e seus artigos na Revista de Economia Política. Se seguirem meu conselho não terão todas as respostas às suas perguntas, mas saberão melhor, mais dialeticamente, pensá-las.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Editor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br