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A evolução conceitual da desigualdade e da pobreza no pensamento econômico

The conceptual evolution of inequality and poverty in economic thought

RESUMO

O artigo faz uma leitura histórica das ideias econômicas sobre o problema da desigualdade e da pobreza. Partindo das reflexões de David Ricardo, percorre-se a trajetória das preocupações dos economistas com o tema, na tentativa de demarcar as fases em que a atenção da profissão se concentrou em um aspecto do problema da justiça social, bem como suas causas e seus efeitos sobre o comportamento dos indivíduos e da economia. Atenta-se, em particular, para a sensibilidade da agenda de pesquisa aos vários contextos históricos, bem como às inovações metodológicas e tecnológicas. A agenda de pesquisa é predominantemente marcada pelo foco na distribuição funcional da renda até os anos 1980, quando a pobreza se torna o centro das atenções, motivando a elaboração de métodos de distribuição pessoal da renda (size distribution). Oferece uma releitura panorâmica e não-linear das ideias econômicas sobre desigualdade e pobreza, um tema que vem ganhando crescente importância nos desenvolvimentos analíticos da economia nos últimos 15 anos, em que a problemática da concentração de riqueza ganhou contornos mais elaborados, abrindo uma nova frente de investigações sobre justiça social e o papel da política pública.

PALAVRAS-CHAVE:
Desigualdade de renda e de riqueza; pobreza; justiça social; história do pensamento econômico

ABSTRACT

This is a historical reading of economic ideas about the problem of inequality and poverty. Based on the reflections of David Ricardo, the trajectory of economists’ concerns with the topic is explored, in an attempt to demarcate the phases in which the profession’s attention focused on one aspect of the problem of social justice, as well as its causes. and its effects on the behavior of individuals and the economy. In particular, attention is paid to the sensitivity of the research agenda to the various historical contexts, as well as to methodological and technological innovations. The research agenda is predominantly marked by a focus on functional income distribution until the 1980s, when poverty became the center of attention, motivating the development of methods of personal income distribution (size distribution). It offers a panoramic and non-linear reinterpretation of economic ideas about inequality and poverty, a theme that has been gaining increasing importance in the analytical developments of the economy in the last 15 years, in which the problem of concentration of wealth has gained more elaborate outlines, opening a new front of investigations on social justice and the role of public policy.

Keywords:
Income and wealth inequality; poverty; social justice; history of economic thought

“... pode-se dizer que os economistas deram

pouca atenção à história do pensamento

sobre a pobreza e a desigualdade.”

Martin Ravallion (2014RAVALLION, M. (2014) “The idea of antipoverty policy” In: Atkinson, A.B., Bourguignon, F. (Eds.), Handbook of Income Distribution. In: vol. 2B. Elsevier, (Chapter 22), December, pp. 1967-2061., p. 1970)

INTRODUÇÃO

O estudo da desigualdade constitui um subcampo das teorias de distribuição do produto social que pode ser dividido, conforme Goldfarb e Leonard (2005), em quatro grandes questões que demarcam o escopo analítico da agenda de pesquisa. Primeiro, busca-se saber “quem” ganha “o quê”, definindo-se o recorte da análise entre distribuição funcional e pessoal da renda, a partir do qual se pode mensurar, respectivamente, como o produto é repartido dentre as fontes de renda e dentre os indivíduos (dispersão). A segunda pergunta é “por que” este “quem” ganha este montante, por meio da qual se busca avaliar as causas econômicas e institucionais da dispersão dos rendimentos dentre pessoas ou tipos de renda. Terceiro, pergunta-se: quais são os efeitos desta distribuição? Aqui, a distribuição é avaliada em termos dos diversos efeitos macro e microeconômicos que ela impõe sobre a dinâmica econômica. Por fim, a pergunta normativa - quem deveria ganhar o quê? - a qual, abre espaço para considerações de ordem moral e ética referentes ao problema da justiça social expressa no perfil distributivo de uma sociedade.

A teoria da desigualdade, em voga no debate econômico contemporâneo, teve seu início marcado pelo conflito entre a questão moral-filosófica e a perspectiva real e concreta do cotidiano econômico. Assim, os primeiros textos sobre desigualdade focaram na distribuição do produto social entre as diferentes classes. Ricardo (1817)RICARDO, David ([1817] 1996), Princípios de economia política e tributação. Tradução de Paulo Henrique Ribeiro Sandroni, Série Os Economistas, São Paulo: Editora Nova Cultural. colocou a distribuição da renda como objeto central de pesquisa para a economia política. Surgiu assim a Distribuição Funcional da Renda (Functional Distribution of Income - FDI), centrada na repartição do produto social. Três foram as classes sociais que compartilhavam o produto social: proprietários de terra, trabalhadores e capitalistas.

A distribuição funcional será o centro do debate econômico sobre desigualdade até o início do século XX, quando uma maior base de microdados (dados de renda pessoal) possibilitou o surgimento da Distribuição Pessoal da Renda (Size Distribution of Income - SDI). Desde então, perspectivas (re)distribucionistas da renda emergiram no debate econômico englobando a intervenção na realidade. Atkinson, Piketty, Saes vão discutir possibilidades de redistribuição do produto social. Rawls e Sen focaram na questão da justiça distributiva, enquanto Ravaillon, Townsend e Sen pensaram no papel do Estado como regulador e garantidor de um ‘ambiente’ favorável às ações redistributivas. Com isso, chegou-se ao momento atual, quando debater a desigualdade (local ou global) tornou-se central na teoria econômica.

Este artigo oferece uma visão panorâmica desta evolução no pensamento econômico sobre o desenvolvimento e o bem-estar social desde a economia política clássica até os dias de hoje. Objetiva-se apreender a evolução do debate a respeito da desigualdade de renda na história do pensamento econômico, entendendo as limitações que altos níveis de desigualdade podem impor ao crescimento do produto e à piora dos indicadores sociais, econômicos e culturais. O artigo está dividido em seis seções, além dessa introdução. A segunda seção apresenta os fundamentos analíticos do problema da distribuição funcional da renda e um esquema analítico simplificado para compreender a evolução das preocupações dos economistas ao longo do tempo. A terceira seção cobre as primeiras teorias da distribuição pessoal da renda. A quarta debruça-se sobre o problema teórico e metodológico da justiça social. A quinta dedica-se a reconstruir a agenda de pesquisa em desigualdade de renda e de riqueza que reemergiu na primeira década do milênio. A sexta seção conclui o artigo, ilustrando o amplo escopo da agenda de pesquisa da nova economia da desigualdade de renda e de riqueza, buscando conexões com a conjuntura política e social vigente na segunda década do século XXI.

A EVOLUÇÃO DA AGENDA DA PESQUISA ECONÔMICA EM DESIGUALDADE

Qualquer sistema social enfrenta o problema econômico elementar, qual seja, garantir a cooperação produtiva entre seus integrantes, com base no binômio esforço-recompensa que compatibilize as necessidades da sociedade e os anseios materiais dos indivíduos. Neste sentido, o benefício auferido pelos indivíduos por sua participação no sistema produtivo é fundamental para garantir a oferta e a demanda por bens e serviços. Produção e distribuição estão, portanto, intimamente entrelaçadas numa circularidade causal de difícil desenlace, o que torna decisiva a escolha dos determinantes teóricos das explicações.

Cada período da humanidade carrega em si grandes questões que ocupam as melhores mentes em busca de explicações e de soluções para os desafios que re­caem sobre os agrupamentos sociais. Neste sentido, cultura e pensamento interagem de forma dinâmica e permitem a demarcação, ainda que imprecisa, de padrões referentes ao objeto de interesse de investigação, ao domínio das análises e às preferências por instrumentos de medida e critérios de verificação de hipóteses. A título de organização tentativa e anedótica, podemos demarcar as seguintes fases da agenda de pesquisa sobre o tema da desigualdade econômica e da pobreza, a saber:

  • Fase I (1800s-1940): era do progresso técnico: foco na distribuição funcional da renda, salientando a estabilidade e a extensão da desigualdade.

  • Fase II (1940-1950): era do crescimento: em que a análise era centrada na distribuição funcional, mas as limitações desta abordagem já apontavam para a importância do avanço na distribuição pessoal da renda. Além disso, havia preocupação com os efeitos da desigualdade sobre o crescimento econômico.

  • Fase III (1953-1960): a era do desenvolvimento: concentra suas atenções nas causas da desigualdade. O nível de análise se dá tanto nos agregados e suas dinâmicas composicionais (Lewis, Kuznets, Solow e CEPAL) quanto no nível microeconômico (Milton Friedman e Jacob Mincer). Ademais, algumas iniciativas, como as de James Meade, Anthony Atkinson e Joseph Stiglitz, retomam as preocupações de Smith e Pareto quanto à distribuição da riqueza.

  • Fase IV (1970-1990): era da redistribuição: ressalta a restrição teórica presente nas preocupações com aspectos mais técnicos de mensuração e questões analíticas, um processo que ficou conhecido na literatura como “virada empírica” da ciência econômica. Em termos da substância das controvérsias, a economia da desigualdade reabilita sua vocação moral com os debates entre John Rawls, Robert Nozick e Amartya Sen, dentre outros, e avança sobre a metodologia das políticas públicas.

  • Fase V (2000 -...): a era da desigualdade de renda e de riqueza: amplia o escopo das preocupações da fase anterior, trazendo para o centro da agenda de pesquisa a mensuração e os efeitos econômicos e políticos da crescente concentração de renda e de riqueza no mundo desenvolvido, salientando-se as causas de ordem econômica e institucional.

De forma ilustrativa, demarcam-se as principais contribuições em dois diagramas. A Figura 1 expõe a agenda de pesquisa em termos das grandes questões do problema da distribuição que separam análises mais focadas em crescimento e distribuição vs. suas causas (eixo vertical) e aquelas que salientam os efeitos da desigualdade vs. justiça social (eixo horizontal). Desde as preocupações dos economistas clássicos, a agenda de pesquisa migrou de uma combinação de “qual renda distribuir” com efeitos desta desigualdade funcional da renda sobre o crescimento econômico, para um foco maior nos critérios de bem-estar no sentido de Pareto. Ao longo do século XX, as atenções voltaram-se para as causas e os efeitos da desigualdade com os trabalhos de Kuznets e Friedman (1945), Friedman (1953) e Kuznets (1955), avançando no binômio causas da desigualdade e justiça social com o livro de Rawls (1971) e as reações de Atkinson (1971) e Sen (1972) e, finalmente, tendo o marco de Piketty (2014PIKETTY, T. (2014) O capital no século XXI. 1. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca.) como uma síntese de todas estas dimensões analisadas dentro um de mesmo esquema analítico.

Figura 1:
Questões centrais da agenda de pesquisa em desigualdade

Alternativamente, a Figura 2 expressa, por sua vez, os marcos metodológicos da agenda de pesquisa, anotando a evolução em termos da abordagem (teórica vs. empírica) no eixo vertical e do recorte distributivo da análise (funcional vs. pessoal) no eixo horizontal. O teor das análises começa com um recorte funcional e eminentemente teórico e, na medida em que a agenda se guia por esforços empíricos, a abordagem da distribuição pessoal da renda passa a dominar as preocupações dos economistas (ao longo da década de 1970), mesmo que com alguma oscilação no eixo teoria-empiria entre as décadas de 1960 e 2000.

Figura 2:
Marcos Metodológicos na agenda de pesquisa em desigualdade

Em resumo, o deslocamento teórico mais relevante se deu entre abordagens da distribuição funcional para abordagens empíricas da distribuição pessoal da renda, conforme a Figura 3.

Figura 3:
Deslocamento da Agenda de Pesquisa em Desigualdade

Assim, esta segunda seção do texto versou sobre a dinâmica que pode ser observada na agenda de pesquisa da teoria econômica em desigualdade. Na sequência, apresentam-se as discussões no âmbito da economia política.

O PROBLEMA PRINCIPAL DA ECONOMIA POLÍTICA: DO PROGRESSO TÉCNICO AO CRESCIMENTO COMO DESENVOLVIMENTO

A partir da crítica dos economistas fisiocratas e mercantilistas, a economia política clássica anglo-saxônica situava no plano da produção as forças motrizes da riqueza das nações. Dentre os clássicos, David Ricardo foi o pensador que mais destacou a importância da distribuição do produto para a vitalidade da produção, rotulando este como “o problema principal da economia política”. Ricardo demonstrou como uma distorção na dinâmica distributiva poderia inibir a atividade produtiva e o progresso tecnológico latente na indústria manufatureira. Preocupado com os efeitos nocivos do protecionismo comercial sobre a viabilidade de acumulação de capital por parte dos industriais britânicos, o autor defendia que o avanço sobre faixas de terra menos produtivas implicaria elevação da remuneração dos terratenentes e encarecimento da cesta de bens básicos que indexava o valor dos salários. Com efeito, um profit squeeze industrial levaria a uma estagnação da atividade manufatureira, uma situação que Ricardo chamou de “estado estacionário”.

A economia política clássica voltou-se à discussão da distribuição do produto gerado na economia entre o capital (lucros, juros e aluguéis) e o trabalho (salários) (Smith, [1776] 1983SMITH, Adam. ([1776] 1983) A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural. ; Ricardo, [1817] 1996RICARDO, David ([1817] 1996), Princípios de economia política e tributação. Tradução de Paulo Henrique Ribeiro Sandroni, Série Os Economistas, São Paulo: Editora Nova Cultural.; Pigou, 1912PIGOU, Arthur Cecil (1912) Wealth and Welfare. London: Macmillan. e 1932PIGOU, Arthur Cecil (1932) The Economics of Welfare. 4th ed. London: Macmillan .). Anteriormente, o foco da discussão teórica estava no percentual da renda gerada que era apropriada pelo capital vis-à-vis aquela apropriada pelo trabalho. Neste momento da teoria econômica indicava-se que o crescimento econômico estaria diretamente relacionado com a ‘concentração’ de capital posto, que o mesmo seria provedor do aumento da produtividade, que tenderia a ampliar os lucros e salários reais, gerando bem-estar para a maioria dos agentes do sistema (Lewis, 1954; Kuznets, 1955). Assim, a agenda da distribuição funcional da renda estava imersa em um debate dicotômico entre concentrar a renda do capital (e gerar crescimento econômico) versus ampliar a participação do trabalho (e dissipar poupança). Neste cenário a argumentação da ‘teoria do bolo’1 1 Frequentemente atribuída ao ex-ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto, a “teoria do bolo” defendia “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”, mas os benefícios econômicos, no caso brasileiro, não atingiram pessoas de baixa renda, que tiveram seus salários reduzidos e sua participação na renda nacional decrescida de mais de 1/6 em 1960 para menos de 1/7 em 1970. era reforçada pela teoria econômica, que mostrava uma tendência de crescimento em cenário de concentração de renda (Kuznets, 1955).

O esquema básico de distribuição pode ser resumido numa equação que distribui o produto total (Y) em fatores de produção multiplicados pelos seus respectivos preços:

Y = ω N + r K + α L + τ T

em que N equivale à força de trabalho ocupada e w o salário real médio; K o estoque de capital e r denota a taxa natural de juros ou de lucro; L a área de terra utilizada para a produção e a, o aluguel médio pago pelo uso da terra. Por fim, uma adaptação com propósitos didáticos: T representa o estoque de conhecimento tecnológico codificado em patentes e outros mecanismos de proteção intelectual que geram direitos a royalties (τ).

O esquema analítico clássico buscava explicar o comportamento dos preços dos fatores a partir de teorias segmentadas e com ajustes de natureza assimétrica. Os salários respondiam à dinâmica populacional e ao poder de barganha dos trabalhadores, sendo definido “exogenamente” ao sistema. A renda da terra dependia da escassez relativa deste fator, incrementando a renda dos proprietários, conforme a demanda por bens agrícolas exigia a expansão da fronteira na direção das faixas menos férteis de terra agricultável. Já a taxa de juro (ou de lucro) era resultado do montante de fundos disponíveis para investimento, uma vez remunerados todos os outros fatores de produção. Este aspecto residual do lucro era essencial para que fossem compreendidos os efeitos da distribuição do produto sobre a dinâmica do crescimento. O caso mais conhecido deste tipo de análise é efeito negativo das Leis de Cereais sobre os lucros das manufaturas britânicas, que David Ricardo apresentou em seus Princípios de Economia Política e Tributação.

Sandmo (2015SANDMO, Agnar (2015) “The Principal Problem in Political Economy” In: Atkinson, A.B., Bourguignon, F. (Eds.), Handbook of Income Distribution , Vol. 2A. Elsevier, (Chapter 1), December, pp. 3-48.) fez uma releitura cuidadosa da abordagem clássica da distribuição. Cumpre apenas salientar aqui o foco da análise na distribuição funcional da renda que também será herdada por todas as escolas de pensamento tradicionais até a segunda metade do século XX. Este tipo de análise manteve uma aderência à realidade econômica enquanto houve correspondência entre as classes sociais e fontes específicas de renda associadas a determinados fatores de produção. Conforme as fronteiras entre as classes sociais foram perdendo seus critérios demarcatórios de renda, as limitações da distribuição funcional da renda se tornaram mais evidentes.2 2 Os trabalhos de Lindert (1986, p. 1155; 2000) mostram a diversificação das fontes funcionais de renda ao longo de toda a distribuição pessoal da renda para a Inglaterra e EUA, evidenciando como tais demarcações sociais associadas à fonte de renda tornam-se gradativamente vaporosas ao longo do século XX. Ver também Jones (2015) para uma análise da evolução do perfil funcional da renda nos EUA entre 1920 e 2010. Afinal, se é possível, por um lado, analisar a distribuição do fator trabalho dentro da população de trabalhadores - cada um destes últimos é dono de seus fatores de produção, isto é, seus corpos - por outro, nada se pode dizer sobre a distribuição do estoque de capital, do estoque de terras e do capital intelectual embutido nas invenções e inovações. Esta lacuna exigia o desenvolvimento de uma teoria da distribuição da riqueza, algo que os clássicos entendiam transcender o escopo analítico da Economia Política. Nas palavras de John Stuart Mill:

A distribuição da riqueza, portanto, depende das leis e costumes da sociedade. As regras pelas quais ela é determinada são feitas pelas opiniões e sentimentos que as partes dirigentes estabelecem e são muito diferentes em épocas e países diversos; e poderia ser ainda mais diferente se a humanidade assim escolhesse... Mas as leis que regem a criação das opiniões humanas [...] constituem a teoria geral do progresso humano, uma matéria muito maior e mais difícil do que o objeto da economia política. (Mill, [1848] 1965MILL, J.S., ([1848] 1965). Principles of Political Economy, Collected Works of John Stuart Mill, vols. 2-3. University of Toronto Press, Toronto., p. 200)

Portanto, ainda que os economistas políticos clássicos se preocupassem com a distribuição da renda, a ponto de defini-la como o “problema principal da economia política”, seu foco incidia sobre os efeitos recursivos do perfil distributivo sobre o crescimento econômico, isto é, a acumulação de riqueza ou de capital. A única exceção foi Karl Marx, que tentou demonstrar a tendência de concentração do capital nas mãos de poucos capitalistas, muito embora também tenha ficado preso a uma análise estritamente funcional da distribuição da renda.3 3 Um dos motivos para esta aparente desconsideração tem a ver com a separação entre a contabilidade de renda e de capital, que viria a se desenvolver apenas ao final do século XIX, tendo contado com contribuições do próprio Marx e de Werner Sombart (ver Gleeson-White, 2011).

A revolução marginalista alterou o esquema clássico, eliminou as assimetrias analíticas, mas manteve o mesmo recorte, qual seja, distribuição funcional da renda. Ao aplicar indiscriminadamente a “lei dos rendimentos marginais decrescentes” a todas as decisões econômicas, a abordagem marginalista relegou a determinação dos preços dos fatores de produção à lei da oferta e da demanda, deixando aos indivíduos e firmas a decisão sobre quanto dos fatores ofertar no nível de preços oferecidos pelos mercados. O resultado não foi apenas a eliminação do pós-fixo “político” da demarcação do campo de investigações econômicas; implicitamente, aceitava-se que a dotação inicial de riquezas era um tema sobre o qual o economista não deveria se pronunciar teoricamente. Afinal, qualquer distribuição inicial de recursos pode gerar equilíbrios eficientes de mercado, logo, discutir como a distribuição deveria ser normativamente era uma questão para a filosofia moral.

A partir desta contribuição de Ricardo, a economia política clássica, passando por Marx e pelos marginalistas, eventualmente convenceu a nova cepa de economistas neoclássicos, keynesianos e estruturalistas sobre a importância da distribuição para a dinâmica econômica. Independentemente do modelo adotado, todas estas escolas defendiam a importância teórica e real da distribuição do produto dentre os fatores de produção. A chamada distribuição funcional da renda oferece uma análise da remuneração dos fatores de produção com base em alguma teoria de determinação dos preços dos mesmos. Seja a assimétrica abordagem clássica de determinação das rendas dos fatores, seja a uniforme abordagem marginalista de produtividade dos mesmos, o problema da distribuição esteve fortemente influenciado pela preocupação com o conflito distributivo entre salários-lucros-renda da terra, grandes classes de remuneração de fatores que, entre o século XIX e meados do século XX, estavam intimamente ligadas às bem demarcadas classes sociais. A partir desta suposição, a macroeconomia e as teorias do crescimento neoclássica e keynesiana, bem como a teoria dos clássicos do desenvolvimento focavam exclusivamente na distribuição funcional da renda. A preocupação central girava em torno da desigualdade entre as taxas de crescimento das nações desenvolvidas vis-à-vis subdesenvolvidas, e, como o conflito entre salários e lucros poderia ser gerido com vistas a acelerar a taxa de acumulação de capital. Tratava-se da era do crescimento econômico, na fase de capitalismo monopolista.

Mesmo quando preocupações com a desigualdade dentro de cada país surgiram no radar dos teóricos clássicos do desenvolvimento - como Arthur Lewis, Raúl Prebisch, Michal Kalecki e Celso Furtado - reproduzia-se o recorte funcional. O otimismo distributivo implícito na conclusão do modelo de Lewis (1954) quanto aos benefícios da urbanização industrial encontrou uma representação explícita na curva em U invertido de Kuznets (1955). Este autor alegou que haveria, para cada país, um ponto máximo de desigualdade que resultaria, na fase inicial do desenvolvimento, em avanço mais lento da fatia dos salários vis-à-vis lucros. Uma vez exaurido o excesso de mão de obra, o crescente poder de barganha dos trabalhadores ocasionaria uma elevação dos salários reais pari passu a acumulação de capital. Este incremento na participação dos salários levaria à queda dos níveis de desigualdade.

Uma ilustração gráfica ajuda a entender a narrativa básica quanto aos mecanismos automáticos de correção das desigualdades de renda que o desenvolvimento (leia-se, crescimento) econômico trazia em seu bojo. A Figura 4 traz um diagrama em que Ros (2003ROS, Jaime (2003). Development Theory and the Economics of Growth, New York: Routledge., Cap. 3) ilustra o ponto de inflexão de Lewis, qual seja, o nível do estoque de capital per capita (eixo horizontal) em que os salários reais no setor de subsistência (fw s ) passam a subir e se aproximam do nível de salários reais médios pagos no setor moderno da economia. Este ponto equivaleria ao ponto de máxima desigualdade da curva em U invertido sugerida por Kuznets (1955), com base mais em intuição do que em dados empíricos, como reconheceu o próprio autor.

Figura 4:
Ponto de Inflexão de Lewis (1954) e Curva de Kuznets (1955)

Todavia, como visto na segunda seção, o recorte funcional foi cedendo espaço à análise da distribuição pessoal da renda conforme as relações sociais no âmbito do mercado de trabalho, o progresso técnico e as instituições de regulação da atividade e do conhecimento econômicos foram sofrendo transformações. A era da distribuição iniciou-se na década de 1970, na esteira da Guerra contra a Pobreza do presidente norte-americano Lyndon Johnson. Naquela década, a distribuição pessoal da renda ganhou crescente atenção teórica e empírica por parte dos economistas. As demandas da realidade concreta se associaram aos puzzles internos à teoria econômica para direcionar a atenção dos economistas aos problemas da pobreza e da desigualdade de renda entre pessoas dentro do mesmo país. Testemunhou-se uma “erupção de trabalhos” empíricos e teóricos sobre distribuição pessoal da renda, abrindo várias frentes de pesquisa que alterariam, permanentemente, a agenda de pesquisa no campo do desenvolvimento econômico. Todavia, como é usual na história das ideias, por décadas alguns autores pregaram no deserto das atenções sobre a importância da distribuição pessoal da renda e da riqueza para construir uma teoria do bem-estar e da justiça social. Algumas destas iniciativas serão discutidas a seguir.

LOTERIA DA VIDA E ESCOLHA SOB RISCO: A AGENDA MICROECONÔMICA

A revolução industrial britânica demoliu os entraves políticos à circulação de mercadorias e removeu as barreiras corporativas das guildas e dos artesãos e, combinada aos cercamentos, criou um mercado de trabalho homogêneo em sua limitada capacitação para lidar com as novas tecnologias do século XIX. Neste contexto, a escassez de trabalho especializado abria oportunidades para ascender na escala salarial a partir do esforço pessoal em adquirir conhecimento e destreza nos postos de direção das companhias emergentes. A remuneração era vista como resultado direto do trabalho, enquanto o lucro era entendido como índice de espírito de indústria (hoje, empreendedorismo) e capacidade para enfrentar riscos, enquanto os juros eram vistos como resultado de riqueza familiar (ou dinástica) acumulada devido aos “sentimentos familiares” de austeridade e abstinência do prazer trazido pelo consumo.

Com efeito, a escola marginalista que se desenvolveu neste ‘caldeirão’ de transformações sociais e tecnológicas incorporou a máxima de Bastiat (1874BASTIAT, M. Frédéric (1874), Essays on Political Economy. New York: G. P. Putnams & Sons.) de que, independentemente do tipo de fator de produção, cada indivíduo oferece um “serviço” à sociedade e é remunerado de acordo com a desejabilidade e/ou escassez do serviço oferecido. John Bates Clark (1899CLARK, J.B. (1899) The Distribution of Wealth. A Theory of Wages, Interest and Profits. Macmillan, New York.) representou a crença marginalista de que cada fator recebe de acordo com sua produtividade marginal. Aceitava-se com facilidade que a produtividade do capital e da terra eram associadas a aspectos técnicos ou naturais dos mesmos, inibindo-se qualquer ímpeto real, por parte da corrente teórica central, de se desenvolverem teorias da propriedade da terra e do capital, ou mesmo uma teoria do capital que lograsse explicar a endogeneidade entre taxa de juros e estoque de capital, problema central da Controvérsia de Cambridge.4 4 Para uma discussão sobre esta controvérsia acerca da teoria do capital, ver Oreiro (2005). Não surpreende, portanto, que o mercado de trabalho tenha recebido tanta atenção dos teóricos marginalistas e, posteriormente, neoclássicos. Afinal, era no mercado de trabalho que a percepção da relação esforço-recompensa se tornava mais patente, devido ao fato de que a propriedade do fator trabalho era perfeitamente discernível (um fator de produção por pessoa) e seu serviço (força de trabalho) era diretamente associado ao “proprietário”. Este será, portanto, o lócus analítico onde se desenvolverão as primeiras preocupações em torno da desigualdade da distribuição pessoal da renda.

Adam Smith foi um dos primeiros a formular a teoria dos diferenciais salariais, que estabelece relações entre os tipos de trabalho e a volatilidade das suas remunerações. Foi seguido por J. S. Mill na relação entre desutilidade do trabalho e recompensa salarial. No entanto, John Cairnes (1874CAIRNES, J.E. (1874). Some Leading Principles of political economy newly expounded, London: McMillan.) foi quem melhor expôs o círculo vicioso da desigualdade de oportunidades. O autor mostrou como a endogeneidade entre a baixa qualificação e o “histórico de classe” de um trabalhador implicava baixa competitividade no mercado de trabalho. Esta desvantagem se traduzia em acesso a postos com baixa remuneração, em que não era “necessária uma educação mais elaborada e um treinamento maior” (p. 66). A posição e circunstâncias sociais dos trabalhadores explicavam as desigualdades de salários e do que ele chamava de “vantagens líquidas” (medida de bem-estar social similar ao que Amartya Sen viria a chamar mais tarde de funcionamentos -functionings). Nas palavras do autor:

Considere um trabalhador individual cuja ocupação ainda é indeterminada, ele irá, de acordo com as circunstâncias, ter um campo de escolha mais restrito ou mais amplo; mas em nenhum caso será coextensivo com toda a gama de indústrias domésticas [...] A barreira reside em sua posição e circunstâncias sociais, as quais tornam sua educação defeituosa, enquanto seus recursos são demasiado limitados para permitir que ele a conserte [sua educação deficiente]. (Cairnes 1874CAIRNES, J.E. (1874). Some Leading Principles of political economy newly expounded, London: McMillan., p. 65 - tradução nossa)

Duas décadas mais tarde, Vilfredo Pareto (1897 [1971]PARETO, V. (1896-97 [1971]). Corso di Economia Politica [Cours d’Économie Politique, vols 1 and 2], Turin, Unione Tipographico-Editrice Torinese., p. 1097) declarava seu otimismo distributivo, asseverando que “o problema de melhorar as condições das classes pobres é acima de tudo um problema de produção de riqueza”. Pareto utilizou sua curva de distribuição de renda para ilustrar a noção de “circulação das elites”, isto é, a dinâmica de ganhos e perdas de renda que os indivíduos enfrentam na sociedade, dizendo: “A forma externa [da curva de distribuição de renda] varia pouco; a parte interna, ao contrário, está em constante movimento: há indivíduos que se elevam para as regiões superiores e outros que caem” (Pareto, 1906 [2006]PARETO, V. (1906 [2006]). Manuale di Economia Politica, edited by Montesano, A., Zanni, A. and Bruni, L., Milan, EGEA-Università Bocconi Editore., p. 275). Ou seja, a dinâmica da distribuição de renda revela ganhos e perdas para os indivíduos, mesmo quando o produto econômico coletivo está aumentando. Apesar de ser possível que o aumento da renda média seja acompanhado por uma queda da desigualdade, Pareto enfatizou que podem ocorrer substanciosos deslocamentos de indivíduos ao longo dos níveis pessoais de renda.

Mesmo que seu interesse intelectual fosse demonstrar a existência de distribuições com leis de potência (ou caudas longas), Pareto foi um dos primeiros a chamar a atenção para a distribuição pessoal da renda e para a dinâmica da mobilidade social. No entanto, foi Edwin Cannan (1914CANNAN, Edwin (1914). Wealth. A Brief Explanation of the Causes of Economic Welfare, third ed., 1928. Reprint: Routledge/Thoemmes Press, London, 1997,, p. 217) quem destacou a existência de mecanismos de reprodução das desigualdades, ainda que na presença de mobilidade social entre os “membros capazes da classe mais pobre”, os quais estariam constantemente subindo ao topo, e os “membros particularmente incompetentes da classe mais rica” que cairiam para a base; “mas mesmo assim, entre a maior parte da humanidade existe uma contínua transmissão hereditária da desigualdade de renda, cuja importância é tolice ignorar”. Além disso, Cannan (1905CANNAN, Edwin (1905). “The division of income.” The Quarterly Journal of Economics, 19(3), 341-369., p. 352) criticou a omissão da teoria econômica quanto a “qualquer consideração das causas que determinam a divisão de toda a renda entre trabalho e propriedade e a divisão da parte da propriedade entre proprietários individuais” (itálicos nossos). Com isso, diferentemente de J. S. Mill, Cannan colocou o problema da distribuição da propriedade dentro da alçada dos economistas e, como esperado, foi ignorado por seus pares.

Poucos anos mais tarde, Alfred Marshall (1890) identificou a causa desta armadilha da baixa renda nos “sentimentos familiares” dos pais pobres para com seus filhos. Marshall é visto como o formulador seminal da Teoria do Capital Humano (Sandmo, 2015SANDMO, Agnar (2015) “The Principal Problem in Political Economy” In: Atkinson, A.B., Bourguignon, F. (Eds.), Handbook of Income Distribution , Vol. 2A. Elsevier, (Chapter 1), December, pp. 3-48., p. 18-20), salientando que, como o investimento em qualificação é de responsabilidade dos trabalhadores, há pouco incentivo às firmas para investir neles, de forma que a família assume esta tarefa, a depender do “desejo de se sacrificar pelos filhos” (“sentimentos familiares”). As “classes profissionais” eram, na visão do autor, ciosas de poupar algum capital para aproveitar “oportunidades de investir tais poupanças” em suas crianças (leia-se “investir” em educação); afinal, “o conhecimento é a nossa mais potente máquina de produção” (Livro Quarto, Cap. I, § 1). No entanto, dado que as oportunidades e percepções das classes profissionais não são compartilhadas pelas “classes mais baixas”, o investimento destas em seus filhos é inadequado, de forma que o “mal” torna-se cumulativo.5 5 Ernst Engel (1883) calculou o custo da transferência intergeracional de competências profissionais segmentado por classes sociais, mas não se preocupou com a baixa mobilidade social que esta herança implicava.

Contudo, haveria benefícios evidentes em remediar estas desigualdades, pois “do ponto de vista nacional, o investimento de riqueza no filho do trabalhador é tão produtivo quanto o seu investimento em cavalos ou maquinaria” (Livro Quarto, Cap. VII, § 10). Por isso, Marshall defendia que o Estado arcasse com parte das despesas de educação das crianças (Livro Quarto, Cap. VI, § 7), uma vez que o “mais valioso de todos os capitais é o que se investe em seres humanos, e desse capital a parte mais preciosa resulta do cuidado e da influência da mãe, tanto quanto esta conserve os seus instintos de ternura e abnegação” (Livro Sexto, Cap. IV, § 3). Para o autor, o que “dá aos estudos econômicos seu principal e mais alto interesse” é a possibilidade de um ponto de partida em iguais condições para que todas as pessoas “possam começar no mundo com uma justa oportunidade de levar uma vida culta, livre das penas da pobreza e das influências estagnantes das labutas excessivamente mecânicas” (Livro Primeiro, Cap. I, § 2).

O sucessor de Marshall em Cambridge foi Arthur Cecil Pigou, o qual fez variadas contribuições ao pensamento econômico neoclássico, bem como uma crítica contundente a este último, revelando sua insuficiência para explicar os problemas centrais da atividade econômica, em especial o problema das externalidades e a questão da desigualdade entre salários e renda (ver McLure, 2012MCLURE, Michael (2012) “A.C. Pigou’s Wealth and Welfare”, History of Economics Review, 56:1, 101-116). Neste último ponto, Pigou (1920) questionou a suposição de uma única distribuição estatística para todas as fontes de renda. Para ele, a renda do trabalho se ajustaria bem a uma distribuição (gaussiana) normal. Todavia, a Lei de Pareto mostrara a tendência à concentração dos rendimentos no topo da distribuição, configurando-se, portanto, o Paradoxo de Pareto. A distribuição normal das “capacidades” implicaria, via teoria da produtividade marginal dos fatores, uma distribuição normal dos salários. Contudo, salários sofrem influência da distribuição dos preços dos bens e da distribuição dos trabalhadores dentre diferentes indústrias e setores. Além disso, capacidades combinadas e riqueza herdada afetam a distribuição dos rendimentos (Pigou, 1920, p. 696-697; 1932PIGOU, Arthur Cecil (1932) The Economics of Welfare. 4th ed. London: Macmillan ., p. 648). Nas palavras do autor:

A razão é que a renda depende não apenas da capacidade, mas de uma combinação de capacidade e propriedade herdada, e a propriedade herdada não é distribuída em proporção à capacidade, mas se concentra em um pequeno número de pessoas não selecionadas de acordo com as suas próprias capacidades ou mesmo, em muitas famílias, com a capacidade de seus pais, mas devido à sua boa sorte, talvez por serem filhos ou filhas únicos, talvez a algum outro “acidente”. (Pigou, 1920, p. 696-697 - grifos nossos)

Pigou vai além e faz um primeiro (e notável) esforço de compatibilizar a distribuição funcional da renda com um perfil pessoal de dispersão dos rendimentos, evidenciando empiricamente uma relação positiva entre o nível pessoal de renda e a parcela da renda representada por rendimentos de capital. Mais do que isso, Pigou estabelece uma causalidade cumulativa entre ganhos de capital e rendimentos do trabalho, via maiores possibilidades de gastos com educação.

A distribuição do rendimento do trabalho em si é provavelmente mais desigual, quanto maior for a importância dos rendimentos dos investimentos em capital distribuídos de forma desigual. Esse resultado ocorre porque as diferenças na renda dos investimentos possibilitam diferentes graus de treinamento educacional e proporcionam diferentes oportunidades para ingressar em profissões lucrativas. (Pigou, 1920, p. 698)

Pigou sintetizou em um único quadro analítico a teoria do capital humano de Marshall com o círculo vicioso das desvantagens líquidas de Cannan. A desigualdade nos “históricos sociais” dos indivíduos pode ser resumida ao seu estoque de ativos geradores de renda, o que lhes permite investir mais na sua própria educação e na educação de seus filhos, reforçando as desigualdades de oportunidades de incremento da renda e da riqueza.

Nota-se em Pigou a antecipação mais restrita do conceito seniano de capacitações, isto é, educação como um complexo multidimensional envolvendo habilidades manuais e mentais inatas ou aprendidas. Diferenças no estoque destas habilidades estariam por trás das distribuições assimétricas nos rendimentos do trabalho.6 6 Esta constatação levaria Mincer (1958) a defender, mais tarde, que as “habilidades relevantes” para o mercado são assimetricamente distribuídas, tópico que será tratado adiante. Pigou deu pouca importância à concentração do capital ou da propriedade determinada amplamente pelo instituto da herança; como salientou J. S. Mill, é determinada pela natureza das instituições legais e políticas.

Se a forma da distribuição de renda é parcialmente determinada pelos fatos dos legados e da herança, a forma particular que é considerada dominante nas condições atuais não pode ser tomada como necessária, exceto se supusermos que o esquema geral de herança, atualmente em voga, seja mantido. A chamada Lei [de Pareto], então, que deveria garantir qualquer forma como necessária em um sentido absoluto, contraria o raciocínio aparentemente irrefutável. (Pigou, 1920, p. 696-697 - grifos nossos)

Pigou não entendia, assim como Marshall (1890, Livro Quarto, Cap. VII, § 7),7 7 Cumpre salientar que Marshall não é um autor plano e homogêneo, de maneira que encontramos passagens ricas e que seriam hoje consideradas fortemente progressistas, como no trecho a seguir: “[...]podemos concluir, em oposição [...] aos antigos economistas [...] que qualquer mudança na distribuição da riqueza que dê mais aos que percebem salários e menos aos capitalistas é capaz, em igualdade de outras circunstâncias, de acelerar o crescimento da riqueza material e não retardará perceptivelmente a sua acumulação. Naturalmente, as outras circunstâncias não permaneceriam iguais se a transformação viesse por meios violentos que pusessem em xeque a segurança pública” (Livro Quarto, Cap. VII, § 7). Sua postura reformista se manifesta na seguinte passagem: “A mudança pode realizar-se mais rapidamente sem ser notada como mudança” (Livro Sexto, Cap. X, § 4). a desigualdade de riqueza como um problema, uma vez que sua aplicação nas melhores oportunidades de investimento acarretaria benefícios a todas as pessoas por meio do crescimento da economia. Esta é mais uma instância da antiga hipótese de que os gastos dos ricos desceriam em cascata para os pobres (trickle-down economics). Uma tese jamais testada empiricamente, mas fortemente defendida de Smith a Marshall e deste a Kuznets e Friedman, com forte ressonância no meio político em suas alas conservadoras. É justamente com estes dois últimos autores que se darão importantes marcos na agenda de desigualdade pessoal de renda, cabendo a Kuznets salientar a análise das rendas no topo da distribuição.

Friedman e Kuznets (1945) analisam a escolha profissional a partir da propensão ao risco dos indivíduos. Os autores mostram que profissões arriscadas (maior variância de retornos) envolvem um prêmio de risco e remuneram melhor. Com efeito, diferenças de expectativas e de propensões ao risco ex ante se traduziriam em desigualdade de renda ex post. Friedman (1953) refinou o argumento anterior por meio de um modelo de distribuição de renda que resulta da escolha individual racional sob incerteza. A motivação do artigo é claramente exposta e vale a pena ser lida na íntegra:

A tradicional “teoria da distribuição de renda” preocupa-se exclusivamente com o preço dos fatores de produção. [...] Tem pouco a dizer sobre a distribuição de renda entre os membros individuais da sociedade, e não há um corpo teórico correspondente que o faça. A ausência de uma teoria satisfatória da distribuição pessoal da renda e de uma ponte teórica conectando a distribuição funcional da renda com a distribuição pessoal é uma lacuna importante na teoria econômica moderna. (Friedman, 1953, p. 277)

Neste modelo, indivíduos se deparam com oportunidades iguais ex ante, as quais se manifestam pela escolha, ao nascer, dentre várias “séries de renda” a partir de quaisquer combinações de fontes de renda. No entanto, estas profissões têm variâncias diferenciadas de ganho, isto é, carregam algum risco na frequência e volume dos rendimentos. Esta loteria dos rendimentos implicaria rendas altas ex post para uns e baixas para outros. O resultado em termos das rendas obtidas por cada indivíduo depende do formato da função de utilidade mediante risco, estimadas por Kuznets (1943). A desigualdade emergiria, portanto, como resultado da escolha individual numa situação de ‘igualdade de oportunidades’ e refletiria a atitude dos indivíduos perante o risco. Como o nível médio dos rendimentos está positivamente relacionado com o grau de risco, as atividades sujeitas a maior risco tendem a remunerar apenas uma parte daqueles que nelas tentam prosperar (não necessariamente “winner takes all”, mas com maior grau de concentração do que atividades com rendimentos mais previsíveis). Os que não lograrem sucesso nos ofícios mais bem remunerados acabam retornando ao mercado de trabalho, em posições com menores rendimentos.

Friedman deduz então que, quanto mais propensos ao risco forem os indivíduos, mais desigual será a sociedade, pois os melhores resultados estariam disponíveis apenas aos mais bem-sucedidos na arriscada disputa pela preferência dos consumidores ou em se submeter à rigorosa disciplina dos mercados. Dado que o crescimento se relaciona com a tomada de risco pelos agentes, uma vez que a geração de valor é intrinsecamente uma tarefa arriscada, Friedman conclui que haveria um trade-off entre crescimento e equidade. No entanto, as forças hierarquizantes da concorrência tendem a ser contra-arrestadas por pressões redistributivistas oriundas do campo político, em particular nas democracias ocidentais. Neste sentido, Friedman admite haver espaço para mecanismos compensatórios de redistribuição na forma de seguros contra as consequências dos resultados mais adversos da loteria do mercado de trabalho, como o seguro-desemprego, a renda básica universal, os vouchers da educação, dentre outros.

É possível notar o otimismo que Friedman toma emprestado da narrativa de Kuznets. Como mostrou Souza (2018SOUZA, Pedro H. G. Ferreira (2018). Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil - 1926-2013. 1a. Ed. São Paulo: Hucitec, Anpocs., p. 77-78), esta “narrativa benigna” da desigualdade como resultado da eficiência alocativa do mercado premiava a iniciativa econômica do indivíduo e rejeitava a funcionalidade de “ideais coletivistas” que se imiscuíam na defesa de tributação progressiva sobre a renda e taxação de riqueza e de grandes fortunas. Se o crescimento econômico é função do investimento e este é essencialmente uma tarefa arriscada assumida pelos empresários (schumpeterianos ou não), algum grau de desigualdade é o preço a se pagar pelo aumento da riqueza das nações. É curioso como Friedman apenas esquematiza o mecanismo que produz desigualdade, mas ao se defrontar com a extensão que esta última pode atingir, ele apenas afirmava que o capitalismo produzia menor desigualdade do que o comunismo. Friedman se esquivou de avaliar com mais detalhe como uma persistente e elevada desigualdade poderia afetar as posturas dos indivíduos perante o risco no longo prazo, como viria a fazer Stiglitz (1969), ao mostrar como a restrição de crédito impõe severas limitações à ação e tende a agravar a desigualdade no longo prazo.

As décadas de 1950 e 1960 foram as do crescimento econômico e o auge da Guerra Fria, de forma que não surpreende a busca por racionalizações da tendência concentradora de renda e de riqueza que caracterizava o capitalismo ocidental. Ao final dos anos 1960, o arranjo institucional de Bretton Woods já enfrentava tensões internas e, sob pressão do poder de barganha dos sindicatos e da concorrência entre as potências emergentes do pós-Guerra, as atenções dos economistas se voltaram para os problemas da estagflação dos anos 1970 e, mais tarde, da retomada do crescimento econômico, na década de 1980.

De forma geral, Ravallion (2011RAVALLION, M. (2011) “The two poverty enlightenments, historical insights from digitized books spanning three centuries,” Poverty Public Policy 3 (2), p. 1-45. e 2014RAVALLION, M. (2014) “The idea of antipoverty policy” In: Atkinson, A.B., Bourguignon, F. (Eds.), Handbook of Income Distribution. In: vol. 2B. Elsevier, (Chapter 22), December, pp. 1967-2061.) mostra que a agenda de pesquisa passa a ser predominantemente microeconômica, buscando compreender os determinantes da eficiência das instituições e dos governos para facilitar o acesso à informação e escolhas mais amplas de contratos. Ganha força a economia da informação que apontava canais importantes pelos quais as desigualdades na distribuição inicial da riqueza poderiam persistir e impedir o progresso econômico geral. Apontou-se também para o escopo das políticas promocionais antipobreza, bem como os novos esforços para colocar a medição da pobreza e da desigualdade em bases teóricas mais firmes. Além disso, ganham força as políticas de desenvolvimento que visavam compensar as falhas do mercado de crédito e de seguros, por meio de leis de escolaridade compulsória e financiamento público à educação, especialmente para crianças de famílias pobres. Observa-se um questionamento mais profundo da eficiência dos mercados e as imperfeições dos mercados de trabalho e crédito, em particular, passaram a ser vistas como essenciais para entender a pobreza.8 8 Frisamos a preocupação com a dualidade do mercado de trabalho, contrastando o segmento do mesmo com altos salários e bons benefícios com os segmentos com baixos salários e pouco em termos de benefícios (ver Shapiro e Stiglitz, 1984). Além disso, Akerlof (1970) mostrou como as falhas de mercado (informação assimétrica) podem restringir assim o fluxo de crédito. Tal restrição gera persistente desigualdade intergeracional e leva pais a subinvestirem na educação dos filhos. Com esta ênfase na microeconomia do desenvolvimento e na teoria da organização, a análise tornou-se parcial e reducionista no sentido de ir para setores específicos e para firmas e domicílios.

Outras duas mudanças expressivas segundo Meier (2005, p. 98) foram: i) a atenção às observações empíricas, de forma que bases de dados e estudos de caso tornaram-se muito mais abundantes, apoiados por técnicas estatísticas e econométricas de análise cada vez mais refinadas; e ii) a interpretação dos respectivos papéis do Estado e do mercado. Com respeito a este último aspecto, as décadas de 1950 e 1960 foram dominadas pelas preocupações com o planejamento econômico baseadas na crença em amplas falhas dos mercados. Já nos anos 1970 e 1980, a reação de natureza ortodoxa e (neo)liberal se colocou contra as falhas do governo e passou a defender a redução das intervenções governamentais na economia.

Estas mudanças no plano acadêmico da profissão estão intimamente relacionadas à evolução da agenda de políticas públicas, em particular dos organismos multilaterais, como o Banco Mundial e a ONU (ver Machado e Pamplona, 2008MACHADO, João Guilherme Rocha; PAMPLONA, João Batista (2008). A ONU e o desenvolvimento econômico: uma interpretação das bases teóricas da atuação do PNUD. Economia e Sociedade, v. 17, n. 1, p. 53-84., p. 57-58). A partir da década de 1970, o foco das atenções passou gradualmente das preocupações com a concentração da renda e da riqueza, e com a qualidade das condições de trabalho, para as metas de aliviar a pobreza e elevar a produtividade do trabalho para facilitar o aproveitamento das capacidades individuais no mercado de trabalho (ver Arndt, 1989ARNDT, H.W. (1989) Economic development: the history of an idea. Chicago: University of Chicago Press., p. 89-113, e Alacevich 2007ALACEVICH, Michele (2007). “The Changing Meaning of Development: SID’s first decades”, Development, Special Section, 50 (1), p. 59-65.). Atingiu-se neste período um consenso acerca das três diretrizes centrais das políticas de desenvolvimento, a saber: (1) a distribuição deve ser um elemento consciente e explícito da política de desenvolvimento e não deve ser deixada como um subproduto fortuito do crescimento econômico; (2) a redistribuição deve ter natureza incremental, de forma a reduzir a pobreza por meio da criação de oportunidades de emprego produtivo que resultam do crescimento (qual seja, melhor colocação no mercado de trabalho para usufruir dos benefícios do progresso); e (3) em vez de redistribuição do estoque corrente de riqueza (via reforma agrária, por exemplo), políticas de desenvolvimento devem assegurar que a maior parte do crescimento seja absorvida pelos 40% mais pobres, pois inibe o crescimento da desigualdade e encontra menos resistência política do que a redistribuição. Com efeito, ganha força a defesa de garantias quanto a uma renda mínima acima de uma linha de pobreza qualquer, o que faz emergir a Abordagem das Necessidades Básicas (ver Streeten, 1981STREETEN, Paul (1981) “The Distinctive Features of a Basic-Needs Approach to Development” In: Development Perspectives, London: MacMillan , p. 334-365.).

Inicia-se, assim, um longo período de relativo ostracismo da agenda de pesquisa em desigualdade, muito embora observe-se uma “erupção” de trabalhos com variados recortes e proposições teóricas e empíricas sobre as causas determinantes do fenômeno. Goldfarb e Leonard (2005, p. 98) apresentam a distribuição das citações dos surveys feitos por Sahota (1978) por período de tempo: 189 das 326 citações são de 1970 ou mais, e apenas 37 são de antes de 1955. O levantamento deste autor ilustra com clareza a expansão deste campo de pesquisa, com uma bibliografia de 326 trabalhos focados na abordagem da distribuição pessoal da renda (size distribution), divididas em cerca de dez categorias analíticas.9 9 São elas: a teorias de capacidades; as teorias estocásticas; a teoria da escolha individual; a teoria do capital humano; as teorias de desigualdades educacionais; as teorias de herança; as teorias do ciclo de vida; as teorias de redistribuição do gasto público; as teorias “mais completas”; e as teorias de justiça distributiva. Dentre estas, ganham relevo as preocupações de ordem ética e, portanto, normativa com relação ao bem-estar e, particularmente, à pobreza. O problema da justiça social é o objeto da próxima seção.

“CONTANDO OS POBRES”: JUSTIÇA SOCIAL E A VIRADA EMPÍRICA DOS ECONOMISTAS

Uma das áreas de maior projeção neste período foi a economia normativa do bem-estar social. Os trabalhos inovadores de Atkinson (1971), Rawls (1972) e Sen (1973, 1983) recolocaram a desigualdade no centro da agenda de pesquisa. Com efeito, nos anos 1980 observou-se a ampliação do conceito de desigualdade para abarcar dimensões da vida social até então relegadas a outros campos de estudo das ciências sociais. O foco na distribuição da renda foi substituído por uma preocupação com as “capacitações” do indivíduo (Sen, 1990SEN, A. K. (1990a), “Development as Capability Expansion”. In: Griffin K., Knight, J. (Eds.). Human Development and the International Development Strategy for the 1990s, London: MacMillan, pp. 41-58.), salientando como a dimensão material influenciava a liberdade de escolha individual. Este renascimento do problema do bem-estar foi facilitado pelo desenvolvimento de ferramentas analíticas como a curva de Lorenz (1905) e o índice de Gini (1912) que haviam permanecido longe das atenções da profissão até o último quarto do século XX.

Além disso, é importante destacar as contribuições de Arthur Pigou (1920) à teoria do bem-estar, em particular à noção de externalidades e o seu “teorema do bem-estar”, segundo o qual qualquer “causa” que eleve o “dividendo nacional” sem reduzir a fatia absoluta dos pobres, ou que eleve esta última sem reduzir o dividendo nacional, será considerada como capaz de elevar o bem-estar. À sua época, a fatia da renda detida pelos pobres era relativamente constante, de maneira que a única forma de aumentar a fatia dos mesmos era via crescimento econômico. Chama a atenção também a proposta de um “mínimo nacional”, que previa a redistribuição em dinheiro e em serviços como garantia de padrões mínimos em termos de habitação, educação, provisões sanitárias e segurança no ambiente de trabalho. O critério de provisão destes “bens públicos” seria o ponto em que o benefício marginal do último dólar de redistribuição recebido pelos mais pobres é igual ao custo marginal do último dólar da renda nacional entregue para financiar a renda mínima ou renda básica (McLure, 2012MCLURE, Michael (2012) “A.C. Pigou’s Wealth and Welfare”, History of Economics Review, 56:1, 101-116, p. 105).

A necessidade de implementar políticas que afetassem a realidade das pessoas na sociedade fez com que a teoria econômica mudasse seu foco de estudo, saindo da perspectiva da distribuição da renda e riqueza, caminhando para o estudo da pobreza e suas especificidades. Neste cenário Townsend (1971, em seu trabalho seminal sobre as características da pobreza na Grã-Bretanha, cunhou o conceito de pobreza relativa, superando, portanto, a perspectiva de ‘contagem dos pobres’ (pobreza absoluta) prevalecente até então.

A partir do estudo de Townsend (1981), a temática da pobreza avançou no sentido de inclusão de outras variáveis definidoras de diferentes matizes ou aspectos da pobreza. Neste sentido, Sen (1981) incluiu outros aspectos da pobreza, partindo da discussão de John Rawls (1971) sobre a justiça como equidade. Rawls (1971) indicou a possibilidade de as ‘desigualdades’ iniciais serem minimizadas pelo princípio da diferença, segundo o qual ‘os desiguais devem ser tratados desigualmente’. Neste momento da teoria econômica, focou-se na questão da ‘igualdade de oportunidades’, tema crucial para promover ações focalizadas em reduzir as ‘desigualdades’ iniciais ou ‘posição original’.10 10 A ideia da ‘igualdade de oportunidades’ é muito anterior a Rawls e remonta a Warner (1953), o qual igualou a igualdade de oportunidades ao sonho americano. Portanto, o contexto histórico e geopolítico dos anos 1970 nos permite inferir que, ao definir seu princípio da diferença pela igualdade de oportunidades, Rawls buscava legitimar a democracia norte-americana como um modelo para o “mundo livre”. Agradecemos ao Professor Luiz Carlos Bresser-Pereira por nos chamar a atenção para este ponto. A leitura crítica de Sen (2009)SEN, A. K (2009). The Idea of Justice. Cambridge: Belknap Harvard. a respeito da perspectiva de Rawls (1971) colocou o princípio da diferença como um requerimento institucional capaz de fazer com que as oportunidades públicas fossem abertas a todos. Mesmo assim, o conceito de ‘igualdade de oportunidades’ tornou-se essencial para as ações antipobreza desenhadas ao longo dos anos 2000.

Na primeira década do segundo milênio, o foco do desenvolvimento econômico centrou-se no desenho de ações focalizadas para minimizar os impactos da pobreza e da privação sobre as variáveis macroeconômicas. Logo, medir a pobreza (Sen, 1979SEN, A.K. (1979). “Issues in the Measurement of Poverty”. Scandinavian Journal of Economics. 1979;81) e identificar quem é pobre, agregando-os em categorias de renda, passou a ser o centro do debate. Para definir quem é pobre criou-se uma linha de pobreza baseada na renda (Ravaillon, 2005; Sen, 1976SEN, A.K. (1976). “Poverty: An Ordinal Approach to Measurement”. Econometrica. n. 44; v.2; 219.; Foster, 2006FOSTER,J.E. (2006). Poverty Indices. In: De Janvry, A. and Kanbur, R. Poverty, Inequality and Development: Essays in Honor of Erik Thorbecke. Springer, New York. pp.51-75). Após a influência da teoria das capacitações (Sen, 2010) chegou-se finalmente à discussão da multidimensionalidade da pobreza (Silber, 2008), a pobreza subjetiva (Kapteyn; Kooreman e Willense, 1988) e dinâmica da pobreza (Bane e Elwood, 1986; Ravaillon, 1988; Murduch, 1994; Hulme e Shepherd, 2003).

Assim, inseriu-se a probabilidade de entrada e saída da pobreza (a partir de estudos estocásticos ou Matriz de Markov), de maneira a que as ações antipobreza englobaram variáveis como posse de ativos, segurança alimentar, probabilidade de saída da pobreza. À medida que a teoria econômica avançava na ‘contagem dos pobres’, a prática das políticas públicas evidenciava que a pobreza tem muitas faces, salientando as dificuldades das políticas públicas em superá-la ou minorá-la ao longo do tempo, o que trouxe novas abordagens à questão. Com o avanço da economia comportamental, a perspectiva de experimentos aleatórios (Randomised Controlled Trials - RCTs) apresentada por Banerjee e Duflo (2011BANERJEE, A.V.; DUFLO, E. (2011) Poor Economics. London: Penguin Books.) e Duflo, Glennerster e Kremer (2008DUFLO, E., Rachel GLENNERSTER, and Michael KREMER. (2008). “Using Randomization in Development Economics Research: A Toolkit.” T. Schultz and John Strauss, eds., Handbook of Development Economics. Vol. 4. Amsterdam and New York: North Holland.) tornaram esta área de pesquisa bastante influente e com embasamentos empíricos capazes de impactar as tomadas de decisão para as políticas públicas antipobreza. Em paralelo à discussão da desigualdade via distribuição pessoal da renda, avançou-se muito nos estudos sobre a pobreza, ou seja, a economia da pobreza cresceu no cenário de ampliação das desigualdades de renda. Assim, a maior oferta de dados de impostos de renda de pessoa física foi essencial para que o foco saísse de ‘contagem dos pobres’ para ‘contagem dos ricos’.

“É A DESIGUALDADE, ESTÚPIDO!”: A CONSOLIDAÇÃO DA AGENDA DE PESQUISA

Nos anos 1950, a teoria econômica passou a discutir meios para que as nações pobres pudessem alcançar o desenvolvimento. Foi o surgimento da teoria do desenvolvimento econômico. Obviamente que a teoria do desenvolvimento econômico não poderia se furtar à discussão sobre distribuição da renda e desigualdade. Logo, foi neste contexto que Kuznets (1955) apresentou sua perspectiva analítica na qual a relação entre desigualdade e renda apresentaria um comportamento em “U invertido” (terceira seção). A hipótese de Kuznets assevera que a desigualdade de renda é alta no início do processo de desenvolvimento econômico, chegando a um pico, a partir do qual ela tende a cair.

Ao longo dos atribulados anos 1980 até meados da década de 1990, as preocupações da profissão centraram-se novamente nos motores do crescimento econômico de longo prazo (progresso técnico e instituições fiscais e monetárias), além da agenda de redução da pobreza (por meio de alguma combinação entre políticas públicas universais e focalizadas).

A consolidação da agenda de pesquisa em desigualdade ocorreu na medida em que os problemas oriundos de uma maior desigualdade passaram a se acumular nas esferas política e econômica. Neste sentido, a globalização dos anos 1990, que aparecia como a ‘panaceia’ para o ‘catching up’ aos países pobres, terminou por ampliar a desigualdade entre países e dentro destes. Assim, na medida que os anos passavam, teóricos como Atkinson (2015) e Milanovic (2016) evidenciaram como a ‘globalização’ ampliou a desigualdade de renda e riqueza nos países centrais, permitindo a ascensão social e econômica de pobres dos países periféricos, especificamente da Ásia.

No limiar dos anos 2000, o ritmo, o volume e a diversidade de iniciativas de pesquisa sobre desigualdade e suas complexas interações com a pobreza começam a sofrer forte aceleração. A desigualdade já despontava como uma área de investigação que carecia de mais atenção por parte dos economistas, dado que o comportamento das variáveis macroeconômicas poderia ser alterado, na medida em que a desigualdade aumentasse. Ao mesmo tempo, a agenda de pesquisa econômica centrava-se também na economia da pobreza, ou no estudo e desenvolvimento de meios para que as sociedades pudessem lutar contra a pobreza. Neste cenário, as duas agendas de pesquisa foram se desenvolvendo paralelamente.

Em meados da década, as preocupações com a desigualdade de renda gradativamente reapareceram, turbinadas pela maior atenção dada à persistência das grandes fortunas (top incomes) e aos mecanismos de transferência intergeracional de riqueza (heranças e doações) no contexto pós-crise financeira de 2008. A acolhedora recepção que a imprensa mundial e o mundo acadêmico ofereceram ao livro de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, é um sintoma da mudança das opiniões sobre o tema da desigualdade.

Piketty (2014PIKETTY, T. (2014) O capital no século XXI. 1. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca.), ao trazer a discussão sobre o ‘capital’ e sua posse no século XXI, mostrou empiricamente que aqueles que detém ‘capital’ (na linguagem seniana - ativos geradores de renda) possuem um aumento em sua riqueza ao longo do tempo superior àqueles que não o detém (portanto, possuem só capacitações). Assim, Piketty (2014)PIKETTY, T. (2014) O capital no século XXI. 1. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca. com sua teoria da ‘força fundamental de divergência’ mostrou que r > g,11 11 Em termos objetivos, r denota o retorno dos investimentos em capital e g, a taxa de crescimento econômico. fato que permitiu uma releitura do papel do capital no século XXI. A conclusão de Piketty (2014)PIKETTY, T. (2014) O capital no século XXI. 1. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca. foi robustecida pelos dados sobre a distribuição da riqueza nos países centrais.

A consolidação da agenda de pesquisa em desigualdade ocorreu na medida em que os problemas oriundos de uma maior desigualdade passaram a se acumular nas esferas política e econômica. Neste sentido, a globalização dos anos 1990, que aparecia como a ‘panaceia’ para o ‘catching up’ aos países pobres, terminou por ampliar a desigualdade entre e intrapaíses.

A consolidação da agenda de pesquisa em desigualdade foi potencializada pela crescente divulgação de dados das declarações de impostos de renda dos países centrais. Gradativamente, os países periféricos passaram a efetivar esforços mais expressivos para produzir dados de distribuição pessoal da renda, ainda que com níveis variados de sucesso em termos do grau de transparência obtido. Assim, a primeira década do milênio foi marcada pela divulgação destes dados, os quais iriam construir as bases empíricas para que a “nova economia da desigualdade” (Bowles 2012) pudesse avançar.

Esta “nova” economia da desigualdade tem uma longa história no pensamento, mas por motivos que se pretendem explorar em um artigo futuro acabou sendo desenvolvida às margens do palco central da ciência econômica. Compreender os motivos para tanto é perfeitamente intuitivo: estudar as causas e a magnitude das desigualdades gera agitação social e, portanto, ameaça as estruturas de poder; ainda assim, faz-se necessária uma metódica reconstrução do pensamento econômico sobre os determinantes da distribuição (ou não) de riqueza.

A despeito de ficar marginalizada por décadas, a economia da desigualdade tem um forte componente de política pública. Em geral, os desenvolvimentos teóricos balizam as propostas de intervenção via tributação de heranças, como meio de reduzir a desigualdade entre gerações, bem como defenderão a oferta de serviços públicos nas áreas de saúde e educação, como meios de minorar as desigualdades atuais e futuras. Assim, autores como Atkinson (1971, 2016ATKINSON, Anthony. (2016) Desigualdade: o que pode ser feito? 1a. Ed. São Paulo, Editora Leya.), Mirrlees (1971MIRRLEES, James Alexander. (1971) “An Exploration in the Theory of Optimal Income Taxation”. Review of Economic Studies, 38, 175-208., 2011); Stiglitz (1969, 2015, 2017); Stiglitz (1976) e Atkinson (2015) revisaram suas propostas de tributação neutra para ganhos de capital. Atualmente, todos os grandes expoentes teóricos das escolas neoclássicas de tributação (especialmente, Mirrlees e Stiglitz) revisaram suas proposições em face do aumento substancial da desigualdade de renda e riqueza que se pôde observar no sistema capitalista à medida que dados sobre a renda pessoal foram sendo divulgados por país.

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  • 1
    Frequentemente atribuída ao ex-ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto, a “teoria do bolo” defendia “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”, mas os benefícios econômicos, no caso brasileiro, não atingiram pessoas de baixa renda, que tiveram seus salários reduzidos e sua participação na renda nacional decrescida de mais de 1/6 em 1960 para menos de 1/7 em 1970.
  • 2
    Os trabalhos de Lindert (1986LINDERT, P. H. (1986). Unequal English wealth since 1670. Journal of Political Economy, 94(6), p. 1127-1162. , p. 1155; 2000LINDERT, P. H.. (2000). «Three centuries of inequality in Britain and America». In: A. Atkinson & F. Bourguignon (Eds), Handbook of Income Distribution (Vol. 1, pp. 167-216). Amsterdam: Elsevier.) mostram a diversificação das fontes funcionais de renda ao longo de toda a distribuição pessoal da renda para a Inglaterra e EUA, evidenciando como tais demarcações sociais associadas à fonte de renda tornam-se gradativamente vaporosas ao longo do século XX. Ver também Jones (2015)JONES, C. (2015) “Pareto and Piketty: The Macroeconomics of Top Income and Wealth Inequality”, Journal of Economic Perspectives, 29(1), Winter, pp. 29-46 - p. 32). para uma análise da evolução do perfil funcional da renda nos EUA entre 1920 e 2010.
  • 3
    Um dos motivos para esta aparente desconsideração tem a ver com a separação entre a contabilidade de renda e de capital, que viria a se desenvolver apenas ao final do século XIX, tendo contado com contribuições do próprio Marx e de Werner Sombart (ver Gleeson-White, 2011GLEESON-WHITE, Jane (2011) Double Entry: How the Merchants of Venice Created Modern Finance. New York: W.W. Norton & Company.).
  • 4
    Para uma discussão sobre esta controvérsia acerca da teoria do capital, ver Oreiro (2005)OREIRO, José Luís (2005). “Uma revisão das controvérsias sobre a Equação de Cambridge”, Nova Economia, Belo Horizonte, 15 (2), maio-agosto, pp. 119-149..
  • 5
    Ernst Engel (1883)ENGEL, E. (1883) Der Wert des Menschen. 1. Theil: Der Kostenwerth des Menschen. Verlag von Leonhard Simion, Berlin. calculou o custo da transferência intergeracional de competências profissionais segmentado por classes sociais, mas não se preocupou com a baixa mobilidade social que esta herança implicava.
  • 6
    Esta constatação levaria Mincer (1958)MINCER, J. (1958). “Investment in human capital and personal income distribution.” Journal of Political Economy , 66, 281-302. a defender, mais tarde, que as “habilidades relevantes” para o mercado são assimetricamente distribuídas, tópico que será tratado adiante.
  • 7
    Cumpre salientar que Marshall não é um autor plano e homogêneo, de maneira que encontramos passagens ricas e que seriam hoje consideradas fortemente progressistas, como no trecho a seguir: “[...]podemos concluir, em oposição [...] aos antigos economistas [...] que qualquer mudança na distribuição da riqueza que dê mais aos que percebem salários e menos aos capitalistas é capaz, em igualdade de outras circunstâncias, de acelerar o crescimento da riqueza material e não retardará perceptivelmente a sua acumulação. Naturalmente, as outras circunstâncias não permaneceriam iguais se a transformação viesse por meios violentos que pusessem em xeque a segurança pública” (Livro Quarto, Cap. VII, § 7). Sua postura reformista se manifesta na seguinte passagem: “A mudança pode realizar-se mais rapidamente sem ser notada como mudança” (Livro Sexto, Cap. X, § 4).
  • 8
    Frisamos a preocupação com a dualidade do mercado de trabalho, contrastando o segmento do mesmo com altos salários e bons benefícios com os segmentos com baixos salários e pouco em termos de benefícios (ver Shapiro e Stiglitz, 1984). Além disso, Akerlof (1970) mostrou como as falhas de mercado (informação assimétrica) podem restringir assim o fluxo de crédito. Tal restrição gera persistente desigualdade intergeracional e leva pais a subinvestirem na educação dos filhos.
  • 9
    São elas: a teorias de capacidades; as teorias estocásticas; a teoria da escolha individual; a teoria do capital humano; as teorias de desigualdades educacionais; as teorias de herança; as teorias do ciclo de vida; as teorias de redistribuição do gasto público; as teorias “mais completas”; e as teorias de justiça distributiva.
  • 10
    A ideia da ‘igualdade de oportunidades’ é muito anterior a Rawls e remonta a Warner (1953), o qual igualou a igualdade de oportunidades ao sonho americano. Portanto, o contexto histórico e geopolítico dos anos 1970 nos permite inferir que, ao definir seu princípio da diferença pela igualdade de oportunidades, Rawls buscava legitimar a democracia norte-americana como um modelo para o “mundo livre”. Agradecemos ao Professor Luiz Carlos Bresser-Pereira por nos chamar a atenção para este ponto.
  • 11
    Em termos objetivos, r denota o retorno dos investimentos em capital e g, a taxa de crescimento econômico.
  • ***
    Agradecemos, sem responsabilizá-los por erros remanescentes, ao Prof. Luiz Carlos Bresser-Pereira, ao Prof. Jorge E. C. Soromenho e a Gustavo Serra e ao parecerista anônimo pelas sugestões feitas a versões preliminares deste artigo.
  • 13
    JEL Classification: B11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2020
  • Aceito
    27 Jul 2020
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