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A teoria dos déficits gêmeos em um modelo stock-flow consistent dinâmico para uma economia aberta

The twin deficit theory in a dynamic consistent stock-flow model for an open economy

RESUMO

O presente trabalho desenvolve um modelo stock-flow consistent que incorpora explicitamente a teoria dos déficits gêmeos para, a seguir, analisar o impacto da política fiscal e da dinâmica da dívida pública em um modelo pós-keynesiano, verificando seus efeitos e limitações. Mesmo rejeitando vários pressupostos neoclássicos, a política fiscal possui limitação para estimular permanentemente o crescimento, pois, se ela não for compatível com o equilíbrio do balanço de pagamentos, o passivo externo líquido aumentará e se tornará insustentável. Por fim, essa hipótese é testada empiricamente e verifica-se que a dinâmica da política fiscal e da posição externa estão associadas quando especificadas de acordo com o exposto por Godley e Cripps (1983GODLEY, W.; CRIPPS, F. (1983) Macroeconomics. New York: Oxford University Press.) e modificado por Pérez Caldentey (2007PÉREZ CALDENTEY, E. (2007) Balance of payments constrained growth within a stock-flow framework. In United Nations ECLAC, Caribbean Development Report, Volume 1, p. 196-221.).

PALAVRAS-CHAVE:
Stock-flow consistent; política fiscal; restrição externa; déficits gêmeos; pós-keynesianismo

ABSTRACT

This paper aims to incorporate explicitly the twin deficits theory in a stock-flow consistent model to analyze the impact of fiscal policy and public debt dynamics in a post-Keynesian model, investigating the effects and limitations. Even rejecting many neoclassical hypotheses, fiscal policy has limitation to stimulate permanently economic growth because if it’s incompatible with balance of payment equilibrium, net external debt would rise and become unsustainable. Finally, this hypothesis is tested empirically and it is verified that the dynamics of the fiscal policy and external position are associated when specified according to Godley and Cripps (1983GODLEY, W.; CRIPPS, F. (1983) Macroeconomics. New York: Oxford University Press.) and modified by Pérez Caldentey (2007PÉREZ CALDENTEY, E. (2007) Balance of payments constrained growth within a stock-flow framework. In United Nations ECLAC, Caribbean Development Report, Volume 1, p. 196-221.).

KEYWORDS:
Stock-flow consistent; fiscal policy; external constraint; twin deficits; post-Keynesianism

INTRODUÇÃO

O objetivo do trabalho é desenvolver um modelo stock-flow consistent (SFC), incluindo, de forma explícita, a ligação entre o déficit público e externo (teoria dos déficits gêmeos), enfatizando os limites da política fiscal, de modo a verificar as inter-relações entre as variáveis e os feedbacks de mudança nas políticas.

Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.) desenvolveram o modelo SFC base, com vários desdobramentos e em linha com a teoria pós-keynesiana, que é a referência para este trabalho. As principais alterações em relação ao modelo dos autores são:

  1. No modelo de Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.), são duas economias com o mesmo tamanho. Aqui, uma economia será bem menor do que a outra, representando uma pequena economia aberta (inicialmente 2,5% da economia mundial).

  2. De estático, o modelo passará a ser dinâmico. Em um modelo estático, o estado estacionário é atingido quando as variáveis param de crescer. Já no modelo dinâmico, o estado estacionário ocorre quando todas as variáveis crescem à mesma taxa, mantendo a razão entre elas constante.

  3. Há revisitação da teoria dos déficits gêmeos e incorporação desse fator explicitamente no modelo.

  4. Incorporação explícita dos modelos de crescimento conduzidos pela demanda e restrito pelo balanço de pagamentos. Esse passo foi dado por alguns autores, como Mazzi (2013MAZZI, C. T. (2013) Um Modelo Stock-Flow Consistent (SFC) com Crescimento Restrito pelo Balanço de Pagamentos. 2013. 128 f. Dissertação (Mestrado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.), que utilizou câmbio fixo e ignorou os feedbacks com o resto do mundo (assumindo uma pequena economia aberta permanentemente, que não altera sua posição no cenário internacional nem no longo prazo). Aqui, busca-se tratar também o câmbio flutuante e os feedbacks que até mesmo uma pequena economia possui, com tamanho relativo que pode se alterar no tempo.

Do exposto, o problema deste trabalho é incorporar as diferenças listadas acima em relação ao modelo de Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.) e verificar se a teoria dos déficits gêmeos e restrição externa à política fiscal se mantêm.

A hipótese de que a política fiscal é fundamental para estabilizar o produto no curto prazo, mas não pode ser utilizada como fonte autônoma de demanda agregada para sustentar o crescimento econômico de longo prazo devido à restrição ao crescimento imposta pelo balanço de pagamentos (BP) e a capacidade de geração de divisas parece ter suporte empírico. Assim, países com maior taxa de crescimento das exportações e menor propensão a importar tendem a ter menor razão dívida/PIB, mesmo adotando política fiscal mais expansionista.

A teoria pós-keynesiana vai muito além dos modelos de crescimento restritos pelo BP, como os inspirados em Thirlwall (1979THIRLWALL, A. P. (1979) “The balance of payments constraint as an explanation of international growth rates differences”. Banca Nazionale del Lavoro Quarterly, p. 44-55. ). Lavoie (2014LAVOIE, M. (2014) Post-Keynesian Economics: New Foundations. Cheltenham e Northampton: Edward Elgar.) divide os pós-keynesianos em cinco grupos, cada um focando em diferentes aspectos: os fundamentalistas keynesianos, os kaleckianos, os sraffianos, os institucionalistas e os kaldorianos. O autor inclui Godley, precursor dos modelos SFC, além de Thirlwall, no último grupo. O presente trabalho utiliza como base o referencial teórico de parte dos economistas classificados como kaldorianos por Lavoie (2014LAVOIE, M. (2014) Post-Keynesian Economics: New Foundations. Cheltenham e Northampton: Edward Elgar.).

O presente artigo está organizado em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. A segunda seção trata da ligação entre déficit fiscal e externo. A terceira, que foi dividida em duas subseções, apresentará o desenvolvimento do modelo, expondo sua estrutura e as equações comportamentais básicas, além de mostrar como se dá a ligação entre ambas as partes (na 3.2), sendo elas a estrutura contábil (balanço patrimonial e matriz e transações) e as equações comportamentais. Na quarta seção são feitas as simulações computacionais com câmbio fixo e com câmbio flutuante. Por fim, a quintqq seção traz a parte empírica do trabalho, testando a proposição alcançada no desenvolvimento do modelo.

A TEORIA DOS DÉFICITS GÊMEOS

A relação entre saldo do governo e externo surge de uma identidade contábil das contas nacionais. Abaixo a exposição feita está em linha com a apresentada em Islam (1998ISLAM, M. F. (1998) “Brazil’s twin deficits: An empirical examination”. Atlantic Economic Journal, v. 26, n. 2, p. 121-128.).

A decomposição-padrão feita da renda, pela ótica da demanda agregada, é:

Y = C + I + G + X - M (1)

Onde: Y é o produto ou renda, C o consumo das famílias, I o investimento, G o gasto do governo, X as exportações e M as importações.

A renda agregada pode ser decomposta também pela forma que é utilizada, tal que:

Y = C + S + T (2)

Onde: S é a poupança e T a tributação.

Isso significa que a renda pode ser utilizada para consumo, poupança ou pagamento de impostos. Igualando as duas equações e passando os termos para o lado do Y em ambas:

Y - C - I - G - X + M = Y - C - S - T (3)

Colocando tudo no mesmo lado, cortando os termos equivalentes e igualando a zero, chega-se a:

S - I + T - G - X - M = 0 (4)

Com as contas externas do lado direito e supondo que o setor privado não acumula riqueza financeira (ou seja, S-I=0), conclui-se que:

T - G = X - M (5)

A teoria dos déficits gêmeos busca avaliar a causalidade na identidade acima, segundo a qual o saldo do governo é igual ao saldo das contas externas. Essa é, deste modo, uma identidade contábil e como tal não possui, a priori, relação de causalidade. Através do exposto não é possível inferir se é o déficit público causa o externo ou o contrário. Há ainda um pressuposto simplificador bastante forte, que é a ideia de que o setor privado não adquire ativos financeiros líquidos.

Se a teoria dos déficits gêmeos surge de uma identidade contábil, qual seria a relação teórica entre as variáveis? Uma explicação do mainstream é discutida (e criticada) por Resende (2009RESENDE, M. F. C. (2009) “Déficits gêmeos e poupança nacional: abordagem teórica”. Revista de Economia Política, v. 29, n. 1, p. 24-42.). Nessa abordagem, a renda agregada é dada e o aumento do déficit público aumenta o consumo agregado para o mesmo nível de produto. Isso levará à queda da poupança agregada interna (a renda não consumida). Mantendo o investimento constante, as exportações líquidas precisarão cair para manter a identidade (4), levando ao déficit externo. A crítica a esta visão do mainstream feita por Krugman (1992KRUGMAN, P. R. (1992) Currencies and Crises. Cambridge: MIT Press.) e Resende (2009RESENDE, M. F. C. (2009) “Déficits gêmeos e poupança nacional: abordagem teórica”. Revista de Economia Política, v. 29, n. 1, p. 24-42.) é a de que a queda da poupança só pode ocorrer pela apreciação cambial. Conforme Resende (2009RESENDE, M. F. C. (2009) “Déficits gêmeos e poupança nacional: abordagem teórica”. Revista de Economia Política, v. 29, n. 1, p. 24-42.), para que o aumento do déficit público produzisse a redução da poupança nacional em relação ao investimento sem que houvesse apreciação da taxa de câmbio real seria necessário que bens de capital que produzem máquinas e equipamentos se transformassem em bens de capital que produzem bens de consumo. Dado o irrealismo desta hipótese, o déficit público só poderá causar um déficit em transações correntes se provocar a apreciação da taxa de câmbio real, fazendo as exportações líquidas caírem. Assim, a poupança líquida cai pela valorização da moeda doméstica, esta causada pelo aumento do déficit público, supondo o investimento constante.

Para Krugman (1992KRUGMAN, P. R. (1992) Currencies and Crises. Cambridge: MIT Press., apud Araújo et al., 2009ARAÚJO, T. F.; OLIVEIRA, de A. C.; RESENDE, M. F. C.; MORO, S. (2009) “Déficits gêmeos e taxa de câmbio real”. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 5-30.), desequilíbrios fiscais não necessariamente são refletidos em déficits externos pela possibilidade de o gasto público deslocar o gasto privado (crowding-out), ou ainda pelo estímulo à poupança privada (Equivalência Ricardiana). Contudo, este autor argumenta que, na ausência de Equivalência Ricardiana e de crowding-out, apenas por meio da apreciação cambial um déficit público causa um déficit externo.

Esta explicação teórica para o déficit público causar o externo está também em Araújo et al. (2009ARAÚJO, T. F.; OLIVEIRA, de A. C.; RESENDE, M. F. C.; MORO, S. (2009) “Déficits gêmeos e taxa de câmbio real”. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 5-30., p. 22), segundo os quais “uma apreciação da taxa de câmbio real pode ser consequência do déficit público, redundando em queda da poupança nacional e em déficit em conta-corrente”, pois com câmbio flutuante e mobilidade de capitais, partindo do Modelo Mundell-Fleming, o déficit público aumenta a taxa de juros, atraindo capital e apreciando a moeda nacional. A valorização cambial altera a relação de preço entre bens comercializáveis e não comercializáveis (em detrimento do primeiro), levando à piora na balança comercial e, para manter o mesmo nível de investimento, torna-se necessário absorver poupança externa.

A relação entre déficit público, aumento da taxa de juros e apreciação cambial não é algo inequívoco. Resende (2009RESENDE, M. F. C. (2009) “Déficits gêmeos e poupança nacional: abordagem teórica”. Revista de Economia Política, v. 29, n. 1, p. 24-42.) aponta situações em que o déficit público não causa apreciação da taxa de câmbio real. Não obstante, o autor também mostra que a apreciação cambial pode ser causada pelo déficit público e, de fato, pode levar à deterioração do saldo comercial, mas a taxa de câmbio pode ser determinada por outros fatores além da política fiscal. Mellini (2017MELLINI, A. (2017) “O Real é uma Moeda Commodity e Financeira? Determinantes da Dinâmica da Taxa de Câmbio Brasileira pós-RMI e Breves Comentários sobre a Doença Holandesa no Brasil”. In: X Encontro da Associação Keynesiana Brasileira, 2017, Brasília. Anais do X Encontro da Associação Keynesiana Brasileira.) verificou empiricamente, por meio de MQO e GMM, que a dinâmica da moeda brasileira entre setembro de 2000 e abril de 2017 se deu basicamente pelas variações dos termos de troca e risco país, enquanto o saldo público e variação tanto dos juros no Brasil quanto nos Estados Unidos não se mostraram significativos.

A evidência empírica encontra resultados diversos sobre a validade dos ­déficits gêmeos. O trabalho de Araújo et al. (2009ARAÚJO, T. F.; OLIVEIRA, de A. C.; RESENDE, M. F. C.; MORO, S. (2009) “Déficits gêmeos e taxa de câmbio real”. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 5-30.) analisou 35 países e obteve diferentes resultados a depender do estimador utilizado.

Bluedorn e Liegh (2011BLUEDORN, J.; LEIGH, D. (2011) “Revisiting the twin deficits hypothesis: the effect of fiscal consolidation on the current account”. IMF Economic Review, v. 59, n. 4, p. 582-602.) analisaram a relação entre políticas que intencionalmente visaram reduzir o déficit público com a variação do saldo externo e concluíram que consolidações fiscais de 1% do PIB melhoram o saldo externo em 0,6%. A base de dados é composta por 17 países da OCDE e 173 casos de mudanças na política fiscal visando reduzir o déficit, entre 1978 e 2009.

Aristovnik e Djuric (2010ARISTOVNIK, A; DJURIC, S. (2010) “Twin deficits and the Feldstein-Horioka puzzle: a comparison of the EU member states and candidate countries”. MPRA Paper 24149, University Library of Munich, Germany.) separaram os países da União Europeia em dois grupos, sendo o primeiro composto pelos quinze mais antigos membros e o segundo grupo pelos doze países do Leste Europeu que vieram a entrar no bloco e mais três candidatos (Macedônia, Croácia e Turquia), entre 1995 e 2008, concluindo que há baixa correlação entre saldo público e externo, rejeitando a hipótese de déficits gêmeos.

Sakyi e Opoku (2016SAKYI, D; OPOKU, E. E O. (2016) “The twin deficits hypothesis in developing countries: Empirical evidence for Ghana”. Working paper International Growth Centre.) testaram a associação entre déficit público e externo para Gana entre 1960 e 2012 utilizando técnicas de cointegração e chegaram ao resultado paradoxal que o déficit público estava associado à melhora das contas externas.

Já para a economia brasileira, Islam (1998ISLAM, M. F. (1998) “Brazil’s twin deficits: An empirical examination”. Atlantic Economic Journal, v. 26, n. 2, p. 121-128.) utilizou dados trimestrais entre 1973 e 1991 e verificou ocorrência de déficits gêmeos, mas o teste de causalidade de Granger indicou causalidade bidirecional entre as variáveis. Silva, Lopes e Alves (2012SILVA, C. G.; LOPES, D. T.; ALVES, V. S. V. (2012) “Déficit em conta-corrente, investimentos e gasto público no Brasil: uma análise empírica”. Revista Economia Ensaios, v. 26, n. 2.) também analisaram a economia brasileira com dados trimestrais, mas o período foi do primeiro trimestre de 1995 ao primeiro trimestre de 2010, chegando também à conclusão de que as contas públicas e externas estão associadas. Entretanto, diferentemente do trabalho de Islam (1998ISLAM, M. F. (1998) “Brazil’s twin deficits: An empirical examination”. Atlantic Economic Journal, v. 26, n. 2, p. 121-128.), concluíram por meio do teste de causalidade de Granger que aumento no gasto público e investimento precedem a deterioração da conta-corrente.

A explicação teórica entre a causalidade dos déficits públicos e externos na literatura pós-keynesiana utilizando SFC teve início com o primeiro trabalho na área, publicado por Godley e Cripps (1983GODLEY, W.; CRIPPS, F. (1983) Macroeconomics. New York: Oxford University Press.).

Mantendo a hipótese que S - I = 0, ou seja, que a poupança financeira do setor privado é nula (ou a NAFA, net accumulation of financial assets, na terminologia dos autores), o déficit público e externo será igual. A equação (4) precisa ser válida em todos os períodos, já que é uma tautologia. O modelo SFC é fechado, de modo a não permitir inconsistências contábeis, o que reduz grandemente os graus de liberdade de quem os desenvolve. Após o fechamento da matriz de transações (fluxos) e o balanço patrimonial (estoques), as equações comportamentais são estabelecidas. Partindo da formalização de Lavoie (2014LAVOIE, M. (2014) Post-Keynesian Economics: New Foundations. Cheltenham e Northampton: Edward Elgar.) para a teoria de Godley e Cripps (1983GODLEY, W.; CRIPPS, F. (1983) Macroeconomics. New York: Oxford University Press.), esse modelo possui cinco equações comportamentais:

M = μ Y (6)

C = 1 - s y Y (7)

I = v 0 Δ Y = v 0 g Y (8)

Y = C + I + G + X - M (9)

T = τ y (10)

Onde: sy = propensão a poupar, v0 = relação capital/produto, T = tributação e τ = relação tributação/renda. As demais variáveis foram definidas anteriormente.

Resolvendo o sistema chega-se a:

Y = G + X s y + τ - v 0 g + μ (11)

Como o setor privado não acumula ativos financeiros:

Y = G + X τ + μ (12)

No modelo as variáveis exógenas são o gasto público e as exportações, além da propensão a importar e a tributar, enquanto o investimento e consumo doméstico são endógenos e se ajustarão à demanda exógena. Como a poupança líquida privada é considerada nula, para que haja equilíbrio fiscal e externo é preciso que:

G τ = X μ (13)

Com isso, se G/τ > X/μ, o país estará em uma situação de déficits gêmeos, com dívida pública e passivo externo líquido crescentes. Se G/τ < X/μ, o contrário ocorrerá. Pérez Caldentey (2007PÉREZ CALDENTEY, E. (2007) Balance of payments constrained growth within a stock-flow framework. In United Nations ECLAC, Caribbean Development Report, Volume 1, p. 196-221.) remodela a equação acima para utilizá-la de forma dinâmica, substituindo G e X pela taxa de crescimento do gasto público e das exportações, respectivamente, e τ e μ pela propensão marginal a tributar e a importar. Após essas modificações, para que haja equilíbrio externo no longo prazo é necessário que a taxa de crescimento do gasto público dividido pela elasticidade-renda da tributação seja igual à taxa de crescimento das exportações dividida pela propensão marginal a importar. Desse modo, o que determina a expansão fiscal é o desempenho externo do país (visto que a absorção interna não poderá exceder a capacidade de geração de divisas indeterminadamente) e não o contrário, como no modelo ortodoxo. Buscar-se-á testar se o desempenho externo e a política fiscal estão associados na especificação de Godley e Cripps (1983GODLEY, W.; CRIPPS, F. (1983) Macroeconomics. New York: Oxford University Press.) modificada por Pérez Caldentey (2007PÉREZ CALDENTEY, E. (2007) Balance of payments constrained growth within a stock-flow framework. In United Nations ECLAC, Caribbean Development Report, Volume 1, p. 196-221.). Diferentemente dos outros autores revisados e em linha com Thirlwall (1979THIRLWALL, A. P. (1979) “The balance of payments constraint as an explanation of international growth rates differences”. Banca Nazionale del Lavoro Quarterly, p. 44-55. ), aqui a taxa de câmbio não tem papel relevante e está ausente no modelo, sobrando basicamente a absorção interna em relação ao desempenho do setor exportador.

Na teoria pós-keynesiana kaldoriana os déficits gêmeos surgem não pela falta de poupança interna para financiar o investimento, mas pelo crescimento da absorção interna acima do desempenho do setor exportador. Com isso, a mesma dinâmica de gasto público pode ou não gerar déficit externo, a depender da razão das elasticidades das exportações e importações. Ajustes fiscais colaboram para melhorar o saldo externo não porque o consumo se reduziria e aumentaria a poupança interna, mas devido à queda nas importações, que reduz a absorção de poupança externa.

A CONSTRUÇÃO DO MODELO STOCK-FLOW CONSISTENT

Na seção anterior foram apresentadas e discutidas as bases que serão incorporadas ao modelo. Nesta seção, composta por duas subseções, o modelo teórico SFC é construído.

Hipóteses Estruturais do Modelo SFC

O modelo abaixo foi desenvolvido se valendo principalmente do trabalho de Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.), considerado por Caverzasi e Godin (2013CAVERZASI, E.; GODIN, A. (2013) “Stock-flow Consistent Modeling through the Ages”. Levy Economics Institute: Working Paper no. 745.) a principal referência na metodologia. Conforme Richardson (2015RICHARDSON, D. R. (2015) “What does “too much government debt” mean in a stock-flow consistent model?” Real-World Economic Review, n. 73, p. 2-15.), um modelo SFC não precisa envolver matrizes complicadas e detalhadas buscando descrever toda a economia. Basta focar no que é relevante para realçar o que se busca demonstrar.

Há dois países (Br e Rw) com tamanhos diferentes, mas demais características similares, que transacionam bens e há mobilidade de capital. Os ativos são depósitos feitos no próprio país e no exterior (Dep e DepExt), dívida pública (Bill), capital físico (K, que não possui contrapartida negativa por se tratar de um ativo real), moeda (R, emitida pelo setor bancário) e empréstimos bancários (L, a contrapartida de R). V é o inverso da riqueza das famílias, utilizado para zerar a matriz tanto na vertical quanto na horizontal (no que diz respeito a ativos financeiros), conforme utilizado por Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.). A soma da riqueza financeira precisa ser igual a zero, pois o que é ativo para um é passivo para outro. Aqui, por exemplo, Dep (depósito bancário) é ativo para as famílias (por isso possui sinal positivo) e passivo para o setor bancário (sinal negativo). A riqueza das famílias pode advir de depósitos nos bancos nacionais ou estrangeiros, enquanto o ativo bancário de mesmo valor vem da dívida pública (Bill). Assim, o estoque de riqueza e de dívidas é traçado e o balanço patrimonial dos setores será dado, conforme Tabela 1:

Tabela 1:
Balanço patrimonial dos setores1 1 As tabelas foram elaboradas utilizando como referência os trabalhos de Godley e Lavoie (2007) e Mazzi (2013). .

Para montar a tabela do fluxo contábil das transações, por simplificação, a renda nacional (Y) foi assumida como sendo igual ao salário agregado (W)2 2 Aqui, equivale dizer que a totalidade dos lucros são distribuídos para as famílias, pois os investimentos são feitos com empréstimos bancários. . O gasto do governo deve ser financiado com impostos (T) ou com emissão de títulos (ΔBill) e este será somado ao estoque de passivo do governo, alimentando os estoques demonstrados na Tabela 1. O fluxo das transações se dá conforme a tabela abaixo.

Tabela 2:
Matriz contábil de transações

O sinal negativo representa o uso dos recursos e o positivo sua fonte. O consumo das famílias e o gasto público entram com sinal negativo (utilização de recursos) e a conta de produção com sinal positivo (fonte dos recursos).

Lendo horizontalmente, cada componente da matriz deve ter uma soma de contrapartes equivalentes, como, por exemplo, a arrecadação de impostos do governo (+T) deve ser igual ao pagamento de impostos de outros setores (-T). Verticalmente, o saldo financeiro de cada setor deve ser igual à soma de suas transações com ativos financeiros.

Neste modelo simplificado de dois países, a exportação de um equivale à importação de outro. Assim, evita-se o “buraco negro” presente no modelo IS-LM-BP ou IS-PC-MR, que não explicam para onde vai e de onde vem as exportações ou como é financiado o déficit público e externo.

O modelo foi construído de modo a manter as identidades básicas presentes nas contas nacionais. No estado estacionário, todas as variáveis crescem à mesma taxa do PIB, mantendo sua razão constante, em relação à renda.

Hipóteses Comportamentais do Modelo

As hipóteses comportamentais buscam formalizar o modo pelo qual os setores agem, interagem e são mutuamente determinados. A partir delas é possível estimar um modelo consistente e integrado. De forma simplificada, as equações comportamentais que serão expostas respeitam o fluxograma apresentado na Figura 1.

Figura 1:
Fluxograma simplificado do modelo

Os losangos representam os instrumentos convencionais de política econômica e são exógenos. O gasto público primário é exógeno e afeta diretamente o produto, mas o gasto público total depende da taxa de juros (devido ao pagamento de juros sobre o estoque de dívida) e esta afeta o consumo das famílias por gerar fluxo de renda, fazendo com que os juros impactem o gasto público total. A taxa de juros afeta ainda o consumo das famílias e o investimento produtivo. O governo determina a carga tributária, que influencia a renda disponível das famílias e, assim, altera o consumo.

A taxa de câmbio afeta as exportações e, por isso, o PIB. O consumo e o investimento afetam o PIB (por serem componentes da demanda agregada) e são afetados por ele, pois a renda das famílias depende da produção, bem como o investimento (por meio do efeito acelerador). Como foi assumido, por simplificação, que apenas os investimentos são feitos com financiamento bancário, o investimento determina os empréstimos. O PIB irá determinar a massa salarial, as importações (estas também impactam o PIB, por ser um componente que possui sinal negativo) e a arrecadação de impostos.

Como o que é importação para um país é exportação para outro e a exportação impacta diretamente o produto, a importação aumentará o PIB estrangeiro, que terá efeito sobre as exportações do primeiro país.

Partindo de uma economia demand-led, as equações abaixo (metade para cada “país”) implicam que o que é demandado é ofertado, conforme desenvolvido inicialmente no modelo de Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.). São elas: o consumo das famílias, o gasto público, a tributação, o número de trabalhadores empregados e o investimento.

C s B r = C d B r (14)

C s R w = C d R w (15)

G s B r = G d B r (16)

G s R w = G d R w (17)

T s B r = T d B r (18)

T s R w = T d R w (19)

N s B r = N d B r (20)

N s R w = N d R w (21)

I s B r = I d B r (22)

I s R w = I d R w (23)

O PIB (Y) é a soma do consumo das famílias (C), investimento (I), gasto do governo (G) e exportações (Ex), menos as importações (Im). A renda disponível (Yd) é a renda (Y, esta igual à multiplicação do salário W pelo número de trabalhadores N) menos os impostos (T). A tributação efetivamente arrecadada depende da razão tributação/PIB (θ), determinada pelo governo de forma exógena, e de Y, determinada endogenamente. A função consumo das famílias (C) segue a função consumo keynesiana com uma pequena modificação, dependendo da renda disponível (Yd), da propensão a consumir da renda (α1) e, ao invés de um componente autônomo, da riqueza financeira acumulada através de depósitos bancários internos (Dept-1) e externos (DepExtt-1) e da propensão a consumir da riqueza (α2), respeitando a condição de que as propensões a consumir são maiores do que zero e menores do que um e a propensão a consumir da renda é maior do que a propensão a consumir da riqueza (0 < α2 < α1 < 1).

Por simplicidade, foi assumida que a taxa de juros paga nos depósitos pelos bancos é a mesma que recebem por remuneração dos títulos públicos que retém.

As importações (Im) dependem da razão importação/PIB (m) e de Y e, como o modelo possui dois países apenas, a importação de um determina a exportação do outro (Ex). A razão importação/PIB (m) de Br é 0,121, que foi a razão importações/PIB para o Brasil em 2016, enquanto para Rw a constante é 0,002983981, razão aproximada das exportações brasileiras em relação ao PIB mundial, que será multiplicada pela taxa de câmbio real (er) (quanto mais desvalorizada a moeda de Br, mais suas exportações penetram em Rw). Com isso, aumento na taxa de câmbio (er) aumenta a propensão de Rw a importar de Br.

O nível de emprego é dado pela renda (Y) dividida pelo salário (W).

Y B r = C B r + I B r + G B r + E x B r - I m B r (24)

Y R w = C R w + I R w + G R w + E x R w - I m R w (25)

Y d B r = W B r · N s B r - T s B r o u Y s B r = Y B r - T s B r (26)

Y d R w = W R w · N s R w - T s R w o u Y d R w = Y R w - T s R w (27)

T d B r = θ B r · Y B r θ < 1 (28)

T d R w = θ R w · Y R w θ < 1 (29)

I m B r = m B r · Y R w (30)

I m R w = m R w · Y R w (31)

E x B r = I m R w (32)

E x R w = I m B r (33)

C d B r = α 1 B r · Y D B r + α 2 B r · D e p B r t - 1 + α 2 B r · D e p E x t B r t - 1 (34)

C d R w = α 1 R w · Y D R w + α 2 R w · D e p R w t - 1 + α 2 R w · D e p E x t R w t - 1 (35)

N d B r = Y B r / W B r (36)

N d R w = Y R w / W R w (37)

m R w = 0 . 002983981 * e r (38)

A poupança financeira privada (Spriv) é a renda disponível (Yd) acrescida dos juros pagos pelo governo sobre a dívida acumulada (ib*Billt-1) menos consumo (C) e investimento (I), que formará o estoque de depósitos (Dep) das famílias (riqueza financeira). A poupança pública é o saldo das contas públicas (Spub), ou tributos (T) menos o gasto público total, que será correspondente à dívida pública, gerada por déficits fiscais acumulados (Bill). O gasto total aqui é a soma do gasto primário (Gp) com o pagamento de juros (Billt-1*ib). E a poupança externa é o saldo em conta corrente (CAB), dado por exportações (Ex) menos importações (Im), que comporá a riqueza e dívida externa (DepExt) quando acrescida dos juros que as capitalizam. A determinação dos fluxos de capitais não foi modelada, relegando-os por simplicidade um papel passivo. Os fatores determinantes desses fluxos são alvo de controvérsia e de difícil modelagem, apesar de seu papel essencial na determinação do equilíbrio do BP e da taxa de câmbio (Harvey, 2009HARVEY, J.T. (2009). “Currency Market Participants’ Mental Model and the Collapse of the Dollar: 2001-2008”, Journal of Economic Issues, v.43(4), 931-949.). Essa é uma fraqueza do modelo, embora no longo prazo assumimos que o saldo em conta-corrente deve ser estável em relação PIB, sem trajetória explosiva.

S p r i v B r = Y d B r + i b B r * B i l l B r t - 1 - C d B r - I d B r (39)

S p r i v R w = Y d R w + i b R w * B i l l R w t - 1 - C d R w - I d R w (40)

D e p B r = D e p B r t - 1 * 1 + i b B r + Y d B r - C d B r - I d B r (41)

D e p R w = D e p R w t - 1 * 1 + i b R w + Y d R w - C d R w - I d R w (42)

S p u b B r = T B r - G p r i m B r - i b B r * B i l l B r (43)

S p u b R w = T R w - G p r i m R w - i b R w * B i l l R w (44)

B i l l B r = B i l l B r t - 1 - S p u b B r (45)

B i l l R w = B i l l R w t - 1 - S p u b R w (46)

C A B B r = E x B r - I m B r (47)

C A B R w = E x R w - I m R w (48)

D e p E x t B r = D e p E x t B r t - 1 * 1 + i b R w + E x B r - I m B r (49)

D e p E x t R w = D e p E x t R w t - 1 * 1 + i b B r + E x B r - I m B r (50)

Já as firmas buscam manter o estoque de capital (K) estável em relação ao PIB (com certa capacidade ociosa planejada), dada por κ. Se a demanda sobe e eleva a utilização da capacidade instalada, as empresas investem (I) para aumentar o estoque de capital e voltar à taxa de utilização planejada. A razão investimento/PIB e κ serão função da constante 0.23 menos a taxa de juros (i)3 3 Parâmetro calibrado para replicar 20% de investimento/PIB, como em Godley e Lavoie (2007). , que reduz a atratividade de investimentos produtivos. Para financiar o aumento do capital, as empresas recorrem inteiramente a empréstimos bancários (Ld) e o sistema bancário oferta a quantidade de recursos demandada à taxa de juros vigente, em linha com a visão horizontalista da oferta de moeda, defendida por Moore (1988MOORE, B. J. Horizontalists and Verticalists. The Macroeconomics of Credit Money. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.). Os empréstimos acumulados formarão o estoque de dívida bancária (Ls). Formalmente, temos:

K B r = κ B r * Y B r 0 < κ B r < 1 (51)

K R w = κ R w * Y R w 0 < κ R w < 1 (52)

I B r = 0 . 23 - i B r * Y B r (53)

I R w = 0 . 23 - i R w * Y R w (54)

κ B r = 0 . 23 - i b B r (55)

κ R w = 0 . 23 - i b R w (56)

L d B r = L d B r t - 1 + I B r (57)

L d R w = L d R w t - 1 + I R w (58)

L s B r = L s B r t - 1 + L d B r - L d B r t - 1 (59)

L s R w = L s R w t - 1 + L d R w - L d R w t - 1 (60)

A política monetária afetará a economia real através do consumo e investimento privado. Do lado do investimento, a taxa de juros reduz a acumulação de capital (equações 53 a 56). Cabe ressaltar que o modelo não inclui um aspecto central à literatura pós-keynesiana na determinação do investimento: o efeito das expectativas. A modelagem de expectativas de forma realista é um aspecto frágil neste e em outros modelos. Já pelo lado do consumo, a taxa de juros atua alterando a propensão a consumir da renda, pois quanto maior a taxa de juros, maior o incentivo à poupança imediata, e também diminui a propensão a consumir da riqueza, apesar desses impactos não serem tão grandes. Sendo assim, a propensão a consumir da renda (α1) é função de uma constante positiva (0.63)4 4 O parâmetro de propensão a consumir da renda de 0,63, descontada a taxa de juros de 3% é o valor utilizado por Godley e Lavoie (2007), mas que aqui foi parcialmente endogeneizado para levar em conta o efeito da taxa de juros no consumo. O mesmo foi feito com a propensão a consumir da riqueza, buscando-se utilizar os mesmos parâmetros desses autores. menos a taxa de juros (i). Já a propensão a consumir da riqueza é composta pelo parâmetro 0.43, da qual será subtraída a taxa de juros. Assim, temos:

α 1 B r = 0 . 63 - i B r (61)

α 1 R w = 0 . 63 - i R w (62)

α 2 B r = 0 . 43 - i B r (63)

α 2 R w = 0 . 43 - i R w (64)

A existência de pagamentos de juros sobre os empréstimos bancários feitos pelas firmas foi negligenciada. Isso se deu pela utilização da hipótese simplificadora que toda a renda vai para as famílias (ou seja, não há lucro retido). De qualquer forma, o pagamento de juros por empresas não financeiras reduziria seu lucro, mas geraria lucro para o setor bancário, cujo saldo seria zero. Como aqui toda a renda vai para as famílias, não importa se ela vem de lucro de empresa financeira ou não financeira5 5 Os juros possuem efeito distributivo importante. Porém, nesse modelo o objetivo é analisar a política fiscal e a dinâmica da dívida pública em conjunto com a dinâmica e dívida líquida do setor externo. Por isso distribuição funcional da renda e intragrupos não serão abordados. .

Assim, torna-se importante ressaltar que, apesar de o modelo ser bastante parametrizado, valores como a propensão a consumir da renda e da riqueza, razão investimento/PIB, tributação/PIB ou a taxa de juros não influenciam a tendência à estabilidade do modelo ou a taxa de crescimento do produto no longo prazo (desde que haja equilíbrio no BP). Os parâmetros alteram a velocidade de convergência das variáveis para seu valor de equilíbrio (em relação ao PIB) e o estoque de algumas variáveis.

SIMULAÇÕES COMPUTACIONAIS DO MODELO

Com o desenvolvimento do modelo feito acima, nesta seção serão apresentados os resultados das simulações computacionais com diferentes dinâmicas da política fiscal para verificar seu efeito em um sistema econômico totalmente integrado, com foco no setor externo.

Os parâmetros utilizados para resolver o sistema composto pelas equações de (14) a (64) foram:

Tabela 3:
Parâmetros utilizados

O valor inicial do gasto estabelecido tem a intenção de ser algo próximo do peso brasileiro na economia internacional. As propensões a consumir da renda (α1) e da riqueza (α2) foram calibradas para serem as utilizadas no trabalho de Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.). O salário (W) de ambos os países é, inicialmente, igual à unidade, já que o PIB per capita do Brasil é próximo à média mundial. A razão importação/PIB de Br (mBr) foi fixada neste valor por ser o apresentado pelo Brasil em 2016, e pelo país não ter tendência aparente de alteração nesta razão. Já a razão entre as importações/PIB de Rw (mRw) foi selecionada também para refletir o peso aproximado das exportações brasileiras no PIB internacional, além de garantir que o ponto inicial seja de equilíbrio externo. A taxa de juros (ib) foi fixada em 3% para as duas economias.

Simulações do Modelo com Câmbio Fixo

Assumindo que a taxa de câmbio é fixa e igual a um (er = 1) e utilizando os parâmetros da Tabela 3, se o Brasil aumenta o gasto público em 5% ao ano (ΔGpBr + 5% a.a), acima do crescimento mundial e de suas exportações, teria déficits público e externo crescentes. A parte das importações financiada pelas exportações cai sucessivamente, aumentando a necessidade de capitais para fechar o BP, o que leva o passivo externo líquido a aumentar de forma ininterrupta. Essa situação não pode perdurar, indicando que essa política fiscal é inconsistente com um saldo em transações correntes estável.

Gráfico 1:
Trajetória da razão entre exportações e importações e da razão dívida externa líquida/PIB de Br após adoção de política fiscal mais expansionista a partir do período 12, com câmbio fixo

Olhando o balanço setorial, esta alteração na política fiscal levará ao aparecimento dos déficits gêmeos, não pela impossibilidade de a poupança interna financiar os investimentos adicionais, mas devido ao baixo dinamismo do setor externo (em relação à política fiscal), dado pelo crescimento das exportações e propensão a importar.

Gráfico 2:
Trajetória do balanço setorial em relação ao PIB do Brasil após adoção de política fiscal mais expansionista a partir do período 12, com câmbio fixo

Entretanto, a política fiscal mais expansionista em Br do que em Rw faz o PIB de Br acelerar a taxa de crescimento e crescer, inclusive, acima de Rw.

Gráfico 3:
Taxa de Crescimento do PIB de Br e razão entre o PIB de Br e mundial após adoção de política fiscal mais expansionista a partir do período 12, com câmbio fixo

Porém, se a política fiscal é mais expansionista do que a permitida pelo BP, com câmbio fixo, o modelo não atinge um valor estável, pois o passivo externo líquido/PIB subiria permanentemente.

Se Br mudar a política fiscal e o gasto primário aumentar em 1% (ΔGpBr + 1% a.a), a taxa de crescimento será reduzida e o país representará uma fatia cada vez menor da economia mundial.

Por outro lado, o país apresentará saldo positivo nas contas públicas e externas, ou seja, terá superávits gêmeos, já que as exportações crescerão acima das importações. A riqueza externa crescerá, sem tendência à correção, e essa riqueza acumulada através de superávits externos fomentará o consumo doméstico, pois o patrimônio acumulado estará acima do desejado pelas famílias, fazendo com que elas tenham déficit financeiro para tentar despoupar, resultado que não alcançam. Por esse motivo a taxa de crescimento passa a acelerar, embora bastante lentamente (levaria mais de cem períodos para voltar aos 3% de crescimento).

Embora o resultado de uma política fiscal mais restritiva do que a permitida pelo BP possa garantir acúmulo de reservas, o modelo não caminha para uma posição de equilíbrio no longo prazo, pois a riqueza externa líquida/PIB aumentaria continuamente. Além disso, mesmo na ausência de mecanismos automáticos de correção do BP, os superávits e acumulação de ativos estrangeiros geraria reclamação dos parceiros comerciais.

Simulações do Modelo com Câmbio Flutuante

Anteriormente a taxa de câmbio foi fixada em 1. Agora, ela será flutuante e equilibrará a conta-corrente automaticamente, em todos os períodos (ou seja, supõe-se ausência total de intervenção governamental na determinação da taxa de câmbio). Como as importações brasileiras representaram 12,1% do PIB em 2016 e oscilou em torno desta média nos últimos anos, esse parâmetro será mantido. Além disso, a parcela do Brasil nas exportações mundiais também se mantém há décadas em 1%, o que atualmente representa cerca de 0,3% do PIB mundial. Com esses parâmetros, a equação para a determinação da taxa de câmbio real será:

e r = 0 . 121 * Y B r 0 . 002983981 * Y R w (65)

Outro ponto até então negligenciado é a inflação. Nas simulações da seção anterior, foi assumida estabilidade de preços, pois a taxa de câmbio fixa servia como uma forte âncora nominal do nível geral de preços. Agora, com a taxa de câmbio flutuante, é preciso diferenciar a taxa de câmbio nominal (Per) da taxa de câmbio real (er). A segunda já havia sido definida, enquanto a primeira é o nível de preços (P) multiplicado pelo câmbio real (er).

Como não há mais âncora cambial, a determinação do nível de preços passa a depender da taxa de câmbio nominal (Per) e do custo do trabalho, ou o salário (W), ambos inicialmente assumindo valor 1 e representando metade do índice de preço. O câmbio impacta os preços pelos canais usuais, que são a alteração do preço dos insumos (importados e/ou exportáveis) e pela concorrência com produtos estrangeiros.

Já o salário deixa de ser fixo e responde às alterações nos preços através da indexação. Os trabalhadores buscam manter seu salário real, resistindo às reduções advindas da inflação. Para tal, o salário atual nominal (W) será definido como o nível de preços do período anterior (Pt-1).

Deste modo, a dinâmica da inflação em Br fica:

P e r = P B r * e r (66)

P B r = W B r + P e r 2 (67)

W B r = P B r t - 1 (68)

Resolvendo o sistema com as equações de (14) a (64) e (65) a (68), com os parâmetros da Tabela 3 e aumentando o gasto primário de Br em 5% a cada período (ΔGpBr + 5% a.a), enquanto o gasto de Rw sobe a 3% (ΔGpRw + 3% a.a), o modelo colapsa.

Isso ocorre porque, sem a âncora cambial para o nível de preços e com a necessidade de equilibrar automaticamente o BP, o aumento sistemático do gasto público amplia a absorção interna e a demanda por importações acima da capacidade de geração de divisas para a taxa de câmbio dada. Isso faz com que ocorram sucessivas desvalorizações cambiais (nominais e reais), que aumentam o nível de preços e, no período seguinte, os salários sobem, pois são indexados. Assim, a espiral câmbio-preço-salário é desencadeada, fazendo com que a taxa de inflação se acelere e adquira trajetória explosiva.

O governo poderia alterar a taxa de juros para reduzir a absorção privada e continuar aumentando seus gastos, mas isso obviamente não é sustentável no longo prazo (os gastos privados não podem cair indefinidamente). Portanto, embora a taxa de crescimento acelere inicialmente, o modelo colapsaria após alguns períodos devido à aceleração crescente da taxa de inflação.

Gráfico 4:
Taxa de Crescimento do PIB de Br e razão do PIB de Br em relação ao mundial após adoção de política fiscal mais expansionista a partir do período 12, com câmbio flutuante

Gráfico 5:
Taxa de inflação do Brasil após adoção de política fiscal mais expansionista a partir do período 12, com câmbio flutuante

Por outro lado, se o governo de Br aumenta o gasto primário a 1% ao ano, enquanto no resto do mundo (Rw) o aumento se mantém em 3%, o resultado é o inverso. A taxa de crescimento do produto desacelera e o Brasil perde espaço no PIB global e, ao invés de pressões inflacionárias iniciadas por desvalorizações cambiais, o crescimento das exportações acima do que cresceria as importações (para dada taxa de câmbio) gera pressão para apreciação cambial e isso reduz a inflação.

O tamanho da redução da inflação depende das especificações da dinâmica da inflação no modelo. Aqui, câmbio e salário determinam o nível de preços. Se preços e salários são totalmente flexíveis, a deflação é mais forte. Porém, se os salários são totalmente rígidos à queda, a deflação é menor. Já se os preços e salários não caem em valor nominal, a economia apresentaria estabilidade no nível de preços.

Essas situações não durariam para sempre. O governo não limitaria seus gastos em um período de crescimento tão baixo e com a economia em deflação, além de não deixar sua moeda se apreciar indefinidamente (outro obstáculo à aceleração do crescimento e da inflação).

De qualquer modo, independentemente de qual das três hipóteses em relação à dinâmica inflacionária for utilizada, o PIB de Br desacelera e o país cresce abaixo de Rw.

Tanto no modelo de política fiscal mais restritiva com câmbio fixo quanto no de câmbio flutuante o modelo não colapsa, embora a economia desacelere e o país reduz sua fração no PIB mundial. Com isso, a forma de maximizar o crescimento com equilíbrio interno e externo seria a adoção de política fiscal tão expansionista quanto a permitida pelo BP. O gasto público não pode ser o fator autônomo que, isoladamente, sustenta o crescimento econômico de longo prazo.

TESTE EMPÍRICO DO MODELO

Após as simulações das subseções anteriores, uma proposição testável é que a dinâmica da política fiscal depende da dinâmica do setor externo, de modo que o equilíbrio externo atua como limitador da política fiscal. Isso ocorre porque, no longo prazo, o gasto público não pode pressionar a absorção interna acima da capacidade de geração de divisas sem desestabilizar a economia, enquanto se a política fiscal é restritiva demais, a economia cresce abaixo do “potencial”.

Deste modo, a taxa de crescimento econômico de longo prazo é dada pela taxa de crescimento do gasto público (G) e das exportações (X) e pelas propensões marginais a tributar (τ) e a importar (μ), conforme já apresentado na equação (12) e modificada na (13), que expôs a condição para o equilíbrio do BP.

Porém, o modelo se valeu da simplificação que os termos de troca são constantes, pressuposto que precisa ser flexibilizada para análises empíricas. Sendo assim, a proposição básica para teste empírico deve incluir esta variável, pois a melhora nos termos de troca afrouxa a restrição externa. Além disso, se o governo adota política fiscal mais expansionista do que a permitida por seu BP, há deterioração do saldo em conta-corrente. A conta-corrente em nível também pode estimular a adoção de políticas fiscais mais ou menos frouxas. Com isso, a equação a ser testada é:

G τ = X μ + T o T + Δ C A B + C A B (69)

Onde: ToT = taxa média anual de variação dos termos de troca, ΔCAB = variação do saldo em conta-corrente em pontos percentuais e CAB o saldo em conta-corrente em relação ao PIB.

A equação acima especificada é uma forma dinâmica da teoria dos déficits gêmeos. Ao invés da associação em nível entre déficit público e externo, nela a dinâmica da política fiscal fica condicionada à dinâmica do setor externo.

A variável dependente é a política fiscal, medida pela taxa de crescimento do gasto primário real deflacionado pelo deflator implícito do PIB. Como a propensão marginal a tributar é altamente volátil (sobretudo no curto prazo e durante recessões) parte-se da hipótese de que ela é igual à unidade6 6 A mesma hipótese é utilizada em relação à elasticidade-renda das importações. . Já em relação ao setor externo, o governo não determina o quanto irá exportar ou o quanto as importações aumentarão quando o produto crescer. O governo também não atua sobre os termos de troca, que são determinados externamente, e nem sobre o saldo externo. Deste modo, a variável passível de controle pelos policy-makers é o dinamismo da política fiscal, não do setor externo. Assim, as autoridades reagem à restrição externa, moderando a política fiscal, mesmo que não intencionalmente.

Para testar a hipótese presente na equação (69), o objetivo era utilizar os 70 maiores países, que representam mais de 95% do PIB mundial em dólar ajustado pela paridade do poder de compra, mas para alguns não foram encontrados dados completos. O período utilizado foi entre 2004 a 2018, em três recortes: cross-section com a média das variáveis no período (MQO e Mínimos Quadrados Robustos), painel com médias trienais e painel com médias quinquenais. O conjunto de regressores utilizados nos modelos são:

VarGp é a variação do gasto primário real deflacionado pelo deflator implícito do PIB. Esta é a variável Y do modelo.

VarX, a taxa de crescimento das exportações de bens e serviços.

ToT, os termos de troca (razão entre os preços dos produtos exportados e importados), aqui representados pela taxa de variação percentual anual.

VARCABPIBpp, a variação do saldo em conta-corrente em relação ao PIB, medido em pontos percentuais em relação ao PIB.

CABPIB, o saldo em conta-corrente, também em relação ao PIB.

PIBpc, o PIB per capita dos países, medido em dólares PPC de 2011.

VarPop, a taxa anual de crescimento populacional.

SaldoprimPIB, o saldo fiscal primário em relação ao PIB.

DivPIB, a razão dívida pública bruta/PIB.

VarDivPIBpp, a variação, em pontos percentuais, da razão dívida pública bruta/PIB.

Os dados em número índice da variável ToT foram retirados do Banco Mundial (BM) e transformadas em taxa de variação. As demais variáveis foram obtidas no World Economic Outlook Database, October 2019, do FMI7 7 O FMI disponibiliza a tributação e o saldo primário, mas não o gasto primário. Este foi calculado partindo da identidade: saldo primário = tributação - gasto primário e, portanto, gasto primário = tributação - saldo primário. .

A variável Y (VarGp) e as variáveis explicativa Varx, ToT e VARCABPIBpp foram definidas como resultado do modelo SFC desenvolvido (cuja base está no trabalho de Godley e Lavoie, 2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.), acrescido da flexibilização da hipótese de termos de troca e saldo em conta-corrente constantes. As demais variáveis independentes foram adicionadas ao modelo para controlar por outros fatores que podem impactar a dinâmica da política fiscal.

Em relação ao CABPIB, países com saldo externo negativo podem ser incentivados a reduzir o expansionismo fiscal para equilibrar as contas externas, ou este desequilíbrio pode advir justamente de uma política fiscal expansionista. A associação entre política fiscal e saldo externo é o ponto central da teoria dos déficits gêmeos e trabalhos que relacionam essas variáveis são abundantes. Alguns deles foram citados na terceira seção, como Bluedorn e Liegh (2011BLUEDORN, J.; LEIGH, D. (2011) “Revisiting the twin deficits hypothesis: the effect of fiscal consolidation on the current account”. IMF Economic Review, v. 59, n. 4, p. 582-602.) e Silva, Lopes e Alves (2012SILVA, C. G.; LOPES, D. T.; ALVES, V. S. V. (2012) “Déficit em conta-corrente, investimentos e gasto público no Brasil: uma análise empírica”. Revista Economia Ensaios, v. 26, n. 2.).

Já em relação ao PIBpc, os países de renda baixa podem ser incentivados a aumentar o gasto, seja pelo fato de esses países terem redes sociais de proteção com abrangência restrita ou por deficiências em relação à infraestrutura. Há ainda a possibilidade de a Lei de Wagner se concretizar, segundo a qual o crescimento econômico eleva a demanda por bens públicos à taxa mais alta do que o crescimento do produto, elevando a participação relativa do consumo do governo no produto. Se isto valer, os países de renda mais baixa tendem a adotar políticas fiscais mais expansionistas.

O crescimento populacional (VarPop) pode também estar associado a gasto público mais alto, pois mais pessoas irão requerer mais bens públicos. Saunders e Klau (1985SAUNDERS, P.; KLAU, F. (1985) “The Role of the Public Sector: Causes and Consequences of the Growth of Government. OECD Economic Studies 4 (Spring): 5-239.) associaram o crescimento do gasto público a fatores demográficos devido ao aumento no número de pessoas que recebem bens públicos e também ao aumento da cobertura de programas públicos de saúde, educação e seguridade social. Dois trabalhos citados por Lindauer e Velenchik (1992LINDAUER, D. L.; VELENCHIK, A. D. (1992) “Government spending in developing countries: Trends, causes, and consequences”. The World Bank Research Observer, v. 7, n. 1, p. 59-78.) encontraram associação entre mudança demográfica e crescimento populacional e o crescimento do gasto público, notadamente nas rubricas citadas anteriormente (Tait e Heller, 1982TAIT, A. A.; HELLER, P. S. (1982) “International Comparisons of Government Expenditures”. IMF Occasional Paper 10. Washington, D.C.: International Monetary Fund ., e Heller e Diamond, 1990HELLER, P. S.; DIAMOND, J. (1990) “International Comparisons of Government Expenditure Revisited: The Developing Countries, 1975-86”. IMF Occasional Paper 69. Washington, D.C.: International Monetary Fund., apud Lindauer e Velenchik, 1992LINDAUER, D. L.; VELENCHIK, A. D. (1992) “Government spending in developing countries: Trends, causes, and consequences”. The World Bank Research Observer, v. 7, n. 1, p. 59-78.). Além dos pontos levantados, o corte de gasto público pode prejudicar a vida da população, levando-as à imigração para países que adotam políticas mais expansionistas, sobretudo na União Europeia (UE), onde a mobilidade de trabalhadores é maior.

O saldo primário em relação ao PIB também pode influenciar a política fiscal ou por estar associado a esforço em fazer austeridade para corrigir o déficit, ou pelo expansionismo fiscal gerar saldos negativos mais expressivos. A mesma lógica vale para a razão dívida/PIB e a variação desta razão em relação ao PIB. A abordagem de Carlin e Soskice (2006CARLIN, W., SOSKICE, D. (2006) Macroeconomics: Imperfections, Institutions and Policies. Oxford: Oxford University Press.) a respeito da dinâmica da dívida pública leva em consideração as variáveis aqui citadas. Nela, o estoque inicial de dívida, o saldo primário e o pagamento de juros sobre a dívida impactam a dinâmica da dívida pública, aqui capturada pela variação do endividamento em relação ao PIB. A diferença está em que, na exposição desses autores, a variação da dívida se encontra do lado esquerdo da equação.

Um problema que poderia surgir é a existência de multicolinearidade de algumas variáveis explicativas, já que o saldo em conta-corrente/PIB (cabpib) e a variação deste são obtidos através da mesma série de dados, bem como as variáveis dívida/PIB (divpib) e sua variação (vardivpibpp). Entretanto, as correlações entre essas variáveis foram baixas.

Ao estimar a regressão, o teste de White e o de Breusch-Pagan indicaram ausência de heterocedasticidade. Foram realizadas 16 regressões, que se encontram ao lado.

Tabela 4:
Resultado das regressões. Variável dependente e Variação do gasto primário
Cross-Section - média 2004-18 Painel - média trienal 2004-18 Painel - média quinquenal 2004-18 9 - MQO 10 - MQ Robusto 11 - Pooled MQO 12 - Efeito Fixo 13 - Efeito aleatório 14 - Pooled MQO 15 - Efeito Fixo 16 - Efeito aleatório Variável Coeficiente Coeficiente Coeficiente Coeficiente Coeficiente Coeficiente Coeficiente Coeficiente (Erro Padrão) (Erro Padrão) (Erro Padrão) (Erro Padrão) (Erro Padrão) (Erro Padrão) (Erro Padrão) (Erro Padrão) varX 0,508575*** 0,358592*** 0,234899*** 0,122161** 0,234899*** 0,428232*** 0,377748*** 0,428232*** (0.093011) (0.067727) (0.048649) (0.055040) (0.046155) (0.065433) (0.088416) (0.065784) TOT -0,049329 -0,085199 0,029861 0,040683 0,029861 0,13021* 0,177814* 0,13021* (0.135393) (0.098588) (0.055327) (0.058225) (0.052490) (0.077461) (0.098119) (0.077877) VARCABPIBpp -2,545448*** -1,99151*** -0,985076*** -0,930391*** -0,985076*** -0,669356** -0,421699 -0,669356** (0.686836) (0.500126) (0.134579) (0.135230) (0.127679) (0.265595) (0.322391) (0.267020) CABPIB 0,030373 -0,037711 0,078392 0,420721*** 0,078392 0,106669* 0,248716* 0,106669* (0.059295) (0.043177) (0.052247) (0.093067) (0.049568) (0.057648) (0.130079) (0.057957) PIBPC -4,14E-05** -2,84E-05** -7,08E-05*** -2,05E-04** -7,08E-05*** -3,83E-05** -4,88E-05 -3,83E-05** (1.61E-05) (1.17E-05) (1.49E-05) (8.24E-05) (1.42E-05) (1.64E-05) (0.000118) (1.65E-05) VARPOP 0,640568 *** 0,748074*** 0,94938*** 1,285953*** 0,94938*** 0,37936** -0,087964 0,37936** (0.226609) (0.165008) (0.154771) (0.224801) (0.146836) (0.168309) (0.269301) (0.169213) SALDOPRIMPIB -0,014808 0,064301 0,012359 -0,170474 0,012359 -0,16616 - 0,327337** -0,16616 (0.138240) (0.100661) (0.091809) (0.118840) (0.087102) (0.100919) (0.136302) (0.101461) DIVPIB -0,009833 -0,009292 -0,017625** -0,107747*** -0,017625** -0,020288** -0,102286*** -0,020288** (0.008882) (0.006467) (0.007746) (0.020486) (0.007349) (0.008357) (0.025399) (0.008402) VARDIVPIBpp -0,223113 -0,236629** -0,090435 -0,044541 -0,090435* -0,235193*** -0,240332** -0,235193*** (0.142131) (0.103494) (0.057302) (0.061633) (0.054364) (0.083889) (0.111925) (0.084339) C 2,469796*** 2,554242*** 4,563735*** 12,48227*** 4,563735*** 3,548409*** 8,716788** 3,548409*** (0.856546) (0.623702) (0.630329) (2.530921) (0.598012) (0.704282) (3.416183) (0.708062) Observações 64 64 330 330 330 197 197 197 R² 0,72503 0,630371 0,425176 0,58932 0,425176 0,46613 0,650837 0,46613 R² ajustado 0,679202 0,845149 0,409009 0,468056 0,409009 0,440436 0,434414 0,440436 Nota: os símbolos *, ** e *** representam coeficientes significativos a 10%, 5% e 1%, respectivamente. Fonte: Elaboração dos autores.

De modo geral, a dinâmica do setor exportador (VarX) e a variação do saldo em conta-corrente foram significativos nos modelos. O crescimento das exportações possibilita a adoção de política fiscal expansionista, mas isso pode deteriorar o saldo externo. Isso indica que a dinâmica do setor externo é relevante para explicar a dinâmica da política fiscal, da forma especificada. Um resultado interessante é que o crescimento das exportações vai aumentando sua influência no crescimento do gasto público no longo prazo. No modelo de média trienal, o coeficiente é menor do que no de média quinquenal, e este é menor do que no modelo que utilizou a média de quinze anos. Esse resultado vem em linha com o esperado, já que a política fiscal pode descolar do desempenho externo no curto prazo e ser utilizada para estabilizar a renda doméstica quando ocorre queda abrupta e temporária nas exportações, mas no longo prazo essas dinâmicas precisam convergir, de acordo com o modelo desenvolvido. O R² também aumenta nas estimações de prazo maior, fortalecendo as previsões do modelo desenvolvido.

Os termos de troca (ToT) apresentaram resultados mistos, sendo significativos em alguns modelos, mas desaparecendo ou reduzindo a significância quando controlado por mais variáveis.

As variáveis PIB per capita e crescimento populacional também se mostraram significativas para explicar a trajetória da política fiscal no período. Os países mais pobres e os países com crescimento populacional mais elevado tenderam a ampliar mais os gastos públicos.

Já o saldo em conta-corrente em nível não foi relevante para explicar a política fiscal adotada.

Embora não significativo na maior parte dos modelos, o coeficiente negativo do saldo primário em relação ao PIB indica que países com déficit menor tenderam a adotar políticas fiscais mais expansionistas. A dívida/PIB em nível e em variação mantiveram o sinal negativo em todas as estimações, embora em alguns casos fossem estatisticamente significativos e em outros não. Isso ressalta a relação complexa entre crescimento das despesas e endividamento, colocando dúvidas sobre a capacidade de reduzir o endividamento simplesmente por meio de cortes de gastos.

O teste de Hausman indicou que os modelos de efeito fixo são mais adequados, conforme esperado, por levar em conta a heterogeneidade dos países.

Pelo exposto, a análise empírica parece vindicar a hipótese de que a política fiscal é restrita pelo BP no longo prazo, em uma versão moderna e dinâmica da teoria dos déficits gêmeos, amparada em um modelo SFC.

Esse resultado ainda contrasta com teorias tradicionais dos déficits gêmeos, que assumem o pleno emprego e crescimento restrito por fatores de oferta. Se esse fosse o caso, o crescimento das exportações e do gasto público deveriam ter correlação negativa, já que o produto é fixo no nível de pleno emprego e o consumo do governo desloca o consumo dos estrangeiros e residentes por bens nacionais, direcionando-os para as importações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da política fiscal feita pelo mainstream e pelos pós-keynesianos possuem diferenças significativas devido ao arcabouço teórico envolvido. Para os ortodoxos, o equilíbrio fiscal é importante para não pressionar demasiadamente a demanda agregada (já que a oferta é rígida no longo prazo) e garantir a solvência intertemporal do Estado, evitando que seja levado ao calote ou à hiperinflação, caso a dívida pública atinja patamar insustentável. Por outro lado, para os pós-keynesianos, a oferta de moeda é sempre endógena e a taxa de juros determinada pelo banco central.

Apesar disso, a política fiscal é restrita pelo nível de produto compatível com o equilíbrio do BP. Sendo assim, a política fiscal é importante para amenizar as flutuações econômicas de curto prazo, mas possui forte limitação quanto à sua utilização permanente como indutora do crescimento de longo prazo.

Com isso, para que o governo possa adotar permanentemente política fiscal mais expansionista, é necessário ampliar a taxa de crescimento das exportações e/ou reduzir a propensão a importar. Se o governo decide unilateralmente ampliar o gasto público sem que as restrições impostas pelo BP permitam, levará o país ao acúmulo de passivo externo líquido crescente (no caso do câmbio fixo), situação insustentável. Já com câmbio flutuante, o crescimento do gasto pressionaria a absorção interna acima da capacidade de geração de receita em moeda estrangeira, desvalorizando o câmbio e acelerando a inflação.

Para os pós-keynesianos, os déficits gêmeos não ocorrem por falta de poupança doméstica para financiar investimentos, mas por políticas fiscais incompatíveis com o equilíbrio externo, que induzem o aumento das importações à taxa superior ao aumento das exportações.

Outro ponto importante é que, como a macroeconomia busca entender os fenômenos agregados da economia, é necessário ligar todo o sistema econômico. Os modelos stock-flow consistent buscam fazer isso, pois como os setores são interligados, mudanças na política fiscal gerarão alterações nas importações, consumo (e poupança) das famílias, taxa de câmbio, acumulação de capital e riqueza financeira etc. Esse tipo de modelo ainda traça “de onde vieram” e “para onde vão” as transações e recursos, evitando que parte da explicação se perca, dando consistência interna e não deixando partes incompletas e não explicadas dentro de um modelo.

A proposição de que o setor externo atua como limitador no longo prazo à capacidade de o governo expandir seus gastos foi testada empiricamente para um amplo grupo de países no período recente. Esta hipótese, que é uma modificação da teoria dos déficits gêmeos, parece ter suporte empírico.

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  • 1
    As tabelas foram elaboradas utilizando como referência os trabalhos de Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.) e Mazzi (2013MAZZI, C. T. (2013) Um Modelo Stock-Flow Consistent (SFC) com Crescimento Restrito pelo Balanço de Pagamentos. 2013. 128 f. Dissertação (Mestrado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).
  • 2
    Aqui, equivale dizer que a totalidade dos lucros são distribuídos para as famílias, pois os investimentos são feitos com empréstimos bancários.
  • 3
    Parâmetro calibrado para replicar 20% de investimento/PIB, como em Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.).
  • 4
    O parâmetro de propensão a consumir da renda de 0,63, descontada a taxa de juros de 3% é o valor utilizado por Godley e Lavoie (2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. (2007) Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. New York: Palgrave MacMillan.), mas que aqui foi parcialmente endogeneizado para levar em conta o efeito da taxa de juros no consumo. O mesmo foi feito com a propensão a consumir da riqueza, buscando-se utilizar os mesmos parâmetros desses autores.
  • 5
    Os juros possuem efeito distributivo importante. Porém, nesse modelo o objetivo é analisar a política fiscal e a dinâmica da dívida pública em conjunto com a dinâmica e dívida líquida do setor externo. Por isso distribuição funcional da renda e intragrupos não serão abordados.
  • 6
    A mesma hipótese é utilizada em relação à elasticidade-renda das importações.
  • 7
    O FMI disponibiliza a tributação e o saldo primário, mas não o gasto primário. Este foi calculado partindo da identidade: saldo primário = tributação - gasto primário e, portanto, gasto primário = tributação - saldo primário.
  • 8
    JEL Classification JEL: E12; E62; F41; F43.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2020
  • Aceito
    07 Jul 2021
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