TRADUÇÕES
O tratado sobre a luz de Roberto Grosseteste
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento
Roberto Grosseteste (1168 - 1253)(1 (1 ) Para uma informação de conjunto sobre Grosseteste pode-se consultar P. BOEHNER E. GILSON, História da filosofia cristã. Petrópolis, Vozes, 1970, pp. 363-376. ) é tido em geral como uma das principais figuras da Universidade de Oxford no século XII. Sua importância é tanto mais significativa para o movimento cultural que se desenvolveu em torno desta universidade quanto se pode incontestavelmente atribuir a ele um certo número de características que balizaram tal movimento por vários séculos: recurso às fontes neo-platônicas, importância da matemática como chave do estudo da natureza, relevância da ótica como modelo de conhecimento matematizado do mundo material.
O texto que aqui apresentamos é de capital importância para a compreensão de Grosseteste e do movimento filosófico-científico por ele inspirado. Nele são lançadas as bases que sustentarão as especulações de Grosseteste, Rogério Bacon, João Pecham e muitos outros(2 (2 ) Lembramos que o tratado do mundo de Descartes ainda terá por título: Le monde ou traité de la lumière. ).
O Tratado sobre a luz, nos parece, ao primeiro contato, um texto estranho. Não é nem um texto científico nem filosófico, no sentido que estas palavras assumem na atualidade. Grosseteste parece no entanto considerá-lo um texto de "filosofia". É o que indicariam certas expressões como as seguintes:
Esta foi, como suponho, a percepção dos filósofos que afirmaram que tudo é composto de átomos e que disseram que os corpos são compostos de super fícies, as superfícies de linhas e as linhas de pontos (p. 53, lin. 36-p.54, lin. 1; grifo nosso)(3 (3 ) Como base para a tradução utilizamos o texto crítico do De luce publicado por L. BAUR, Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste, in Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters, IX (1912), pp. 51-59. Servimo-nos também da tradução inglesa de C. RIED L reproduzida em A. HYMAN e J. J. WALSH, Philosophy in the Middle Ages, N. York, Harper and Row, 1967, pp. 434-440. As referências indicam as páginas e linhas da edição Baur reproduzidas na margem de nossa tradução. ).
Todos porém que filosofam corretamente afirmam que a terra é imune deste movimento (circunrotação diurna) (p. 57, lins. 28-29; grifo nosso).
Ora, as frases em que estas expressões aparecem evocam para nós muito mais o domínio que costumamos reservar à ciência. Devemos portanto nos guardar de impor ao texto as categorias posteriores de ciência e filosofia. A "filosofia" de Grosseteste é um domínio que abarca indistintamente os setores distinguidos por estas categorias posteriores.
O assunto global do Tratado sobre a luz pode ser caracterizado sem muita infidelidade como sendo uma hipótese cosmogónica, uma tentativa de tornar inteligível ao nível da "filosofia" a gênese do universo. Na exposição mesclam-se análises de caráter predominantemente ontológico (p. 51, lin. 10-p. 52, lin. 21), considerações de ordem matemática (p. 52, lin. 32-p. 53, lin.35) e formulações que se aparentariam mais a uma hipótese científica sobre a origem do cosmos (p. 54, lin. 11-p. 57, lin. 8).
Conviria ainda notar o uso feito da matemática. Grosseteste faz apelo a razões matemáticas para explicar questões de ordem física. Mas a aplicação da matemática ao domínio físico se faz por uma espécie de aproximação comparativa ou por transposição ao domínio físico das relações verificadas na ordem propriamente matemática (cf. p. 52, lin. 32-p. 53, lin. 35 e p. 53, lin. 36-p. 54, lin. 10). Talvez esta maneira de transpor a matemática ao domínio físico não esteja longe da exegese alegórica que se faz notar a propósito da terra (p. 56, lins. 23-31). E assume caráter nitidamente numerológico na parte final do texto (p. 58, lin. 8-p. 59, lin. 2).
Com a finalidade de facilitar a abordagem do texto do Tratado sobre a luz propomos a sua divisão de seguinte maneira :
1. A luz, primeira forma corporal p. 51, lin. 10-p. 54, lin. 10
1.1 A luz como forma p. 51, lin. 10-p. 52,lin. 21
1.1.1 Primeiro argumento p. 51, lin. 10-p.52, lin. 9
1.1.2 Segundo argumento p. 52, lins. 10-16
1.1.3 conclusão p. 52, lins. 17-21
1.2 Processo de extensão da matéria pela luz p. 52, lin. 21-p. 54, lin. 10
1.2.1 Realizada por uma multiplicação infinita p. 52, lins. 21-31
1.2.2 Proporções encontradas nesta multiplicação p. 52, lin. 32-p. 53, lin. 35
1.2.3 Apêndice histórico p. 53, lin. 36-p. 54, lin. 10
2. Gênese do universo p. 54, lin. 11-p. 57, lin. 8
2.1 Formação do universo p. 54, lin. 11-p. 56, lin. 13
2.1.1 Generalidades p. 54, lins. 11-17
2.1.2 Formação do primeiro corpo (supremo) ou firmamento p. 54, lins. 18-30
2.1.3 Formação da segunda esfera p. 54, lin. 31-p. 55, lin. 22
2.1.4 Formação das esferas subseqüentes até a nona p. 55, lins. 23-30
2.1.5 Formação dos quatro elementos abaixo da nona e ínfima esfera p. 55, lin. 30-p. 56, lin. 13
2.2 Resumo sobre as treze esferas p. 56, lin. 14-p. 57, lin. 8
2.2.1 Em geral; o primeiro corpo p. 56, lins. 14-22
2.2.2 A terra p. 56, lins. 23-31
2.2.3 Os corpos intermediários p. 56, lins. 31-35
2.2.4 A luz como espécie e perfeição de todos os corpos p. 56, lin. 36-p. 57, lin. 4
2.2.5 Apêndice histórico p. 57, lins. 5-8
3. Movimento dos corpos do universo p. 57, lin. 9-p. 58, lin. 7
3.1 Movimento diurno das esferas p. 57 lins. 9-18
3.2 Movimento dos elementos p. 57, lins. 19-29
3.3 Participação das demais esferas no movimento da segunda p. 57, lins. 30-33
3.4 Distinção entre o movimento das esferas e dos quatro elementos p. 57, lin. 34-p. 58, lin. 7
4. Os quatro princípios de toda realidade p. 58, lin. 8-p. 59, lin. 2
4.1 No corpo supremo (primeira esfera ou firmamento) p. 58, lins. 8-28
4.2 Nos demais corpos p. 58, lin. 29 - p. 59, lin. 2
SOBRE A LUZ OU A GÊNESE DAS FORMAS
corporais, se assemelha mais do que todos os corpos às formas que existem separadas que são as inteligências. Portanto, a luz é a primeira forma corporal.
Portanto, a luz, que é a primeira forma criada na matéria prima, multiplicando-se infinitamente a si mesma por si mesma de todos os lados e estendendo-se igualmente por toda
- Portanto, a luz, que em si é simples, infinitamente multiplicada, necessariamente estende a matéria, igualmente simples, nas dimensões de uma grandeza finita.
É, no entanto, possível que um conjunto infinito de números mantenha com outro conjunto infinito todas as proporções racionais e mesmo todas as irracionais. Há infinitos
correspondentes a estes triplos. - O mesmo se evidencia de todas as espécies de proporção racional, pois, segundo qualquer uma delas, o finito pode relacionar-se com o infinito.
Se se supuser porém o conjunto infinito contínuo de todos os duplos a partir da unidade e o conjunto infinito de
infinito e o resto do conjunto metade infinito.
Posto isto, é manifesto que a luz, pela sua multiplicação infinita, estende a matéria nas dimensões finitas menores e nas dimensões finitas maiores, relacionando-se entre si se
demais proporções racionais e irracionais.
Esta foi, como suponho, a percepção dos filósofos que afirmaram que tudo é composto de átomos e que disseram que os
qual está contido infinitas vezes e, dela subtraído finitamente, não a diminui.
Voltando portanto ao nosso assunto, digo que a luz, pela multiplicação infinita de si mesma, feita igualmente em todas as direções, estende a matéria igualmente por toda parte na forma de uma esfera. Segue-se necessariamente desta
extensão que as partes extremas da matéria são mais estendidas e mais rarefeitas do que as partes interiores e próximas do centro. Quando as partes extremas estiverem rarefeitas ao máximo, as partes interiores ainda serão suscetíveis de maior raref ação.
A luz, portanto, estendendo a matéria do modo como foi dito, numa forma esférica e rarefazendo as partes extremas
matéria pela forma primeira e da coarctação da matéria pela forma primeira.
Asim completando o corpo primeiro que é firmamento, ele irradia sua luminosidade de todas suas partes para o centro do todo. Pois, sendo a luz a perfeição do primeiro corpo, naturalmente se multiplica a partir deste, necessariamente
ulterior. Tal é o complemento e a perfeição da segunda esfera: com efeito, luminosidade é gerada pela primeira esfera e a luz que na primeira esfera é simples, na segunda é duplicada.
Assim como a luminosidade gerada pelo primeiro corpo completou a segunda esfera e, dentro desta, deixou uma massa
de si e, fazê-lo, separando suas partes mais afastadas, produziu a água e a terra. Como na água permaneceu mais força unitiva do que força separativa, a própria água permaneceu também pesada junto com a terra.
Deste modo foram trazidas ao ser as 13 esferas deste
dele proveniente,é a espécie e a perfeição do corpo seguinte. E assim como a unidade é potencialmente todo número seguinte, igualmente o primeiro corpo, pela multiplicação da sua luminosidade, é todo corpo seguinte.
A terra porém e todos os corpos superiores por agregação em si das luminosidades superiores. Por isso ela é chamada
todos os restantes.
A espécie e perfeição de todos os corpos é a luz: mais espiritual e simples quando se trata dos corpos superiores; mais corporal e multiplicado quando se trata dos inferiores.
Com esta explicação talvez fique clara a intenção dos que dizem que "tudo é uno por causa da perfeição da luz única" e a intenção dos que dizem que "o que é múltiplo por causa da multiplicação diversa da luz".
Visto os corpos inferiores participarem da forma dos corpos
diurno. Mas quanto mais inferiores forem tanto mais debilmente recebem este movimento, pois quanto mais inferior for a esfera tanto menos pura e mais débil é nela a primeira luz corporal.
Embora os elementos participem da forma do primeiro céu,
deste movimento.
Do mesmo modo as esferas que estão depois da segunda (que ordinariamente, segundo a enumeração feita de baixo para cima, é denominada oitava), visto participarem de sua forma, comungam no seu movimento, que lhes é atribuído, além do movimento diurno.
As esferas celestes por serem completas, não suscetíveis
e condensáveis, a luminosidade que neles está os faz pender, ou para fora do centro a fim de rarefazê-los, ou para o centro a fim de condensá-los. Por isso eles são naturalmente capazes de movimento seja para cima, seja para baixo.
No corpo supremo, que é o mais simples dos corpos, encontram-se quatro princípios: a forma, a matéria, a composição
o denário. Por isso o denário é o número dos corpos das esferas do mundo porque, embora a esfera dos elementos divida-se em quatro, é una pela participação da natureza terrestre corruptível.
Fica assim patente que o denário é o número perfeito da
tempos rítmicos.
Termina o tratado sobre a luz do Lincolniense.
- (1) Para uma informação de conjunto sobre Grosseteste pode-se consultar P. BOEHNER E. GILSON, História da filosofia cristã. Petrópolis, Vozes, 1970, pp. 363-376.
- (3) Como base para a tradução utilizamos o texto crítico do De luce publicado por L. BAUR, Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste, in Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters, IX (1912), pp. 51-59.
- Servimo-nos também da tradução inglesa de C. RIED L reproduzida em A. HYMAN e J. J. WALSH, Philosophy in the Middle Ages, N. York, Harper and Row, 1967, pp. 434-440.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Dez 2011 -
Data do Fascículo
1974