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Carta de descartes a Elisabeth

TRADUÇÃO

Carta de Descartes a Elisabeth

Tradução e Introdução de Carlos Arthur R. do Nascimento

Departamento de Filosofia - Faculdade de Comunicação e Filosofia - Pontifícia Universidade Católica - 01000 - SP

De Descartes a Elisabeth

Egmond, setembro de 1646

Minha Senhora,

Li o livro do qual Vossa Alteza me ordenou que lhe escrevesse minha opinião e encontro nele vários preceitos que me parecem muito bons, como, entre outros, nos capítulos 19 e 20, que um Príncipe deve sempre evitar o ódio e o desprezo de seus súditos e que o amor do povo vale mais que as fortalezas. Mas há também nele vários outros que eu não poderia aprovar. Creio que aquilo em que o Autor mais falhou é que não estabeleceu bastante distinção entre os Príncipes que adquiriram um Estado por vias justas e aqueles que o usurparam por meios ilegítimos e que deu a todos, de maneira geral, os preceitos que só são próprios a estes últimos. Pois, assim como ao construir uma casa cujas fundações são tão más que não poderiam sustentar paredes altas e espessas, é-se obrigado a fazê-las fracas e baixas, também aqueles que começaram a se estabelecer por meio de crimes são obrigados ordinariamente a continuar a cometer crimes e não poderiam se manter se quisessem ser virtuosos.

É a respeito de tais Príncipes que ele pôde dizer, no capítulo 3.º, que eles não poderiam deixar de ser odiados por muitos e que eles têm freqüentemente mais vantagem em fazer muito mal do que em fazer menos, pelo fato de que as ofensas leves bastam para dar vontade de vingar e as grandes tiram o poder para tal. Depois, no capítulo 15, que se quisessem ser gente de bem, seria impossível que não se arruinassem no meio do grande número de maus que se encontra por toda parte. E, no capítulo 19, que é possível ser odiado pelas boas ações tanto quanto pelas más.

Sobre tais fundamentos ele apoia preceitos muito tirânicos, como querer que se arruine toda uma região a fim de permanecer senhor dela; que se exerça grandes crueldades contanto que seja prontamente e de uma só vez; que se esforce por parecer homem de bem mas que não o seja verdadeiramente; que se mantenha a palavra apenas durante o tempo em que ela for útil; que se dissimule; que se traia; enfim, que, para reinar, se despoje de toda humanidade e torne-se o mais feroz de todos os animais.

Mas trata-se de um péssimo tema para fazer livros, empreender dar aí tais preceitos que, no final das contas, não poderiam assegurar aqueles aos quais os dá. Pois, como ele próprio confessa, estes não podem resguardar-se do primeiro que queira negligenciar sua vida para vingar-se deles. Em lugar disso, para instruir um bom Príncipe, ainda que entrado de novo num Estado, parece-me se lhe deva propor máximas completamente contrárias e supor que os meios de que ele se serviu para estabelecer-se foram justos; como, de fato, creio que o são quase todos, quando os Príncipes que os praticam os julgam tais. Pois a justiça entre os Soberanos tem outros limites que entre os particulares e parece que nestas ocorrências Deus dê o direito àqueles aos quais dá a força. Mas, as mais justas ações se tornam injustas quando os que as fazem as pensam tais.

Deve-se também distinguir entre os súditos, os amigos ou aliados e os inimigos. Pois, a respeito destes últimos, tem-se como que permissão de fazer tudo, contanto que se tire disso alguma vantagem para si ou para seus súditos. Não desaprovo, pois, nesta ocorrência, que se acople a raposa com o leão e que se junte o artifício à força. Compreendo mesmo, sob o nome de inimigos, todos os que não são amigos ou aliados, pelo fato de que se tem direito de lhes fazer guerra quando nisto se encontra nossa vantagem e que, começando a tornar-se suspeitos e temíveis, tem-se motivo de desconfiar deles.

Mas excetuo uma espécie de engano, que é tão diretamente contrário à sociedade que creio que não seja jamais permitido servir-se dele, se bem que nosso Autor o aprove em diversas passagens e que esteja excessivamente em prática: trata-se de fingir ser amigo dos que se quer arruinar, a fim de poder surpreendê-los melhor. A amizade é uma coisa demasiado santa para dela abusar deste modo, e aquele que terá fingido amar alguém para o trair, merece que, aqueles que ele quererá amar verdadeiramente depois, não creiam em nada disso e o odeiem.

No que diz respeito aos aliados, um Príncipe deve manter exatamente sua palavra, mesmo quando isto lhe é prejudicial; pois não o poderia ser tanto quanto a reputação de não deixar de fazer o que prometeu lhe é útil; e ele só pode adquirir esta reputação por meio de tais ocasiões onde há para ele alguma perda. Mas naquelas que o arruinariam completamente, o direito das gentes o dispensa de sua promessa. Ele deve também usar de muita circunspecção antes de prometer a fim de poder guardar sempre sua fidelidade. Se bem que seja bom ter amizade com a maior parte de seus vizinhos, creio, no entanto, que o melhor é só ter alianças estreitas com aqueles que são menos poderosos. Pois, seja qual for a fidelidade que nos propusermos ter, não se deve esperar o mesmo dos outros, mas estar certo de que nisto se será enganado todas as vezes que eles aí encontrem sua vantagem e aqueles que são mais poderosos a podem encontrar nisto quando queiram, mas não os que são menos poderosos.

Quanto aos súditos, há duas espécies, a saber: os grandes e o povo. Compreendo, sob o nome de grandes, todos aqueles que podem formar partidos contra o Príncipe. Este deve estar muito assegurado da fidelidade daqueles ou, se não está, todos os políticos estão de acordo que deve empregar todos seus cuidados em rebaixá-los e que, na medida em que eles se inclinam a desorganizar o Estado, não os deve considerar senão como inimigos. Mas, no que toca a seus outros súditos, ele deve sobretudo evitar seu ódio e seu desprezo. O que, creio, pode sempre fazer, contanto que observe exatamente a justiça à moda deles (isto é, seguindo as leis às quais eles estão acostumados) sem ser muito rigoroso nas punições nem muito indulgente nas graças e que não se entregue de todo a seus Ministros, mas, deixando-lhes somente o encargo das condenações mais odiosas, testemunhe ter ele próprio o cuidado de todo o resto. Depois, que ele guarde também de tal modo sua dignidade que nada retire das honras e das deferências que o povo crê lhe serem devidas, mas não peça mais deste e só faça aparecer em público suas ações mais sérias ou aquelas que podem ser aprovadas por todos, reservando-se a gozar seus prazeres em particular, sem que seja jamais às expensas de ninguém. Enfim, que seja imutável e inflexível, não aos primeiros desígnios que terá formado em si próprio, pois, na medida em que não pode ter o olho por toda parte, é necessário que peça conselho e ouça as razões de muitos antes de se resolver, mas que seja inflexível no tocante às coisas que ele testemunhar ter resolvido, ainda mesmo que estas lhe sejam prejudiciais porque, dificilmente, podem elas sê-lo tanto quanto seria a reputação de ser leviano e instável.

Assim, desaprovo a máxima do capítulo 15: sendo o mundo muito corrompido, é impossível que não nos arruinemos se quisermos ser sempre homens de bem e um Príncipe, para se manter, deve aprender a ser malvado quando a ocasião o requiser. A não ser, talvez, que, por um homem de bem, ele entenda um homem supersticioso e simples, que não ousa ferir batalha no dia de Sábado e cuja consciência não possa estar em repouso se ele não mudar a religião de seu povo. Mas, pensando que um homem de bem é aquele que faz tudo que lhe dita a razão verdadeira, é certo que o melhor é esforçar-se por sê-lo sempre.

Não creio também no que se encontra no capítulo 19: que tanto podemos ser odiados pelas boas ações quanto pelas más; a não ser na medida em que a inveja é uma espécie de ódio; mas este nào é o sentido do Autor. E nào é costumeiro os Príncipes serem invejados pelo comum de seus súditos; eles o são somente pelos grandes ou pelos vizinhos aos quais as mesmas virtudes que lhes dão inveja, lhes dão também temor. É por isso que não devemos jamais abster-nos de fazer bem para evitar esta espécie de ódio. E não o há de modo nenhum que lhes possa prejudicar senão o que vem da injustiça e da arrogância que o povo julga estar neles. Pois vemos que mesmo aqueles que foram condenados à morte não têm costume de odiar seus juízes quando eles pensam tê-lo merecido; e sofre-se também com paciência os males que não merecemos quando se crê que o Príncipe, de quem os recebemos, é de algum modo obrigado a fazê-los e que ele tem desprazer nisto, pelo fato de que estima-se que é justo que ele prefira a utilidade pública à dos particulares. Há dificuldade somente quando se é obrigado a satisfazer dois partidos que julgam diferentemente a respeito do que é justo como quando os Imperadores Romanos tinham de contentar os Cidadãos e os Soldados. Neste caso, é razoável conceder alguma coisa a uns e outros e não se deve empreender fazer vir, de um só golpe, à razão aqueles que não estão acostumados a ouvi-la. Mas é preciso esforçar-se, seja através de escritos públicos, seja pela voz dos Pregadores, seja por outros meios determinados, por fazê-los concebê-la pouco a pouco. Pois, enfim, o povo suporta tudo o que se pode persuadi-lo de que é justo e ofende-se com tudo o que ele imagina que é injusto; e a arrogância dos Príncipes, isto é, a usurpação de alguma autoridade, de alguns direitos ou de algumas honras, que ele crê não lhes serem devidas, só lhe é odiosa pelo fato de que ele a considera como uma espécie de injustiça.

Apesar disso, não sou também da opinião deste Autor quanto ao que ele diz no seu Prefácio: que, assim como é preciso estar na planínie para ver melhor a forma das montanhas quando se quer traçar um esboço, também deve-se ser de condição privada para conhecer bem o ofício de um Príncipe. O esboço representa apenas as coisas que se vêem de longe; mas os principais motivos das ações dos Príncipes são muitas vezes circunstâncias tão particulares que, a não ser que se seja si próprio Príncipe ou então que se tenha sido por longo tempo participante de seus segredos, não se poderia imaginá-los.

É por isso que eu mereceria ser objeto de zombaria se pensasse poder ensinar alguma coisa a Vossa Alteza nesta matéria; por isso tal não é o meu desígnio, mas somente fazer com que minhas cartas lhe dêem alguma espécie de divertimento que seja diferente daqueles que me imagino que ela tem em sua viagem, a qual lhe desejo perfeitamente feliz. Como, sem dúvida, lhe será se Vossa Alteza se resolver praticar estas máximas que ensinam que a felicidade de cada um depende dele mesmo e que é preciso se manter de tal maneira fora do império da Fortuna que, se bem que não se perca as ocasiões de reter as vantagens que ela pode dar, não se pense, contudo, ser infeliz quando ela as recusa. E visto que, em todos os negócios do mundo há quantidade de razões a favor e contra, detenhamo-nos principalmente em considerar aquelas que servem para fazer com que aprovemos as coisas que vemos acontecer. Tudo o que estimo o mais inevitável são as doenças do corpo, das quais peço a Deus que vos preserve. Sou, com toda a dedicação que posso ter etc...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1. CHÂTELET, F. - A questão da história da filosofia hoje. In: ______ Políticas da filosofia Lisboa, Moraes, 1977. p.23-42.
  • 2. DESCARTES, R. - Oeuvres, Publiées par Charles Adan et Paul Tannery. Correspondence, Juillet 1643 - Avril 1647 . Paris, Léopold Cerf. 1901, Tome 4, 485-494.
  • 3. DESCARTES, R. - Oeuvres et Lettres Paris, Pléiade, Gallimard, 1953. p. 1236-1241 .
  • 4. NEGRI, A. - Descartes politico. O della ragionevole ideologia Milano, Feltrinelli, 1970.
  • 5. POLIN, R. - Descartes et la philosophie politique. In: ______ L 'A venture de I 'esprit, Mélanges Alexandre Koyré II Paris, Hermann, 1964. p. 381 -399.
  • 6. REGNAULT, F. - La pensée di prévu (Descartes et Machiavel) e Descartes et Elisabeth (Quatres lettres sur Machiavel). In: Cahiers pour I 'analyse 6 (La politique des philosophes) Paris, Seuil, p. 21-62 .
  • 1
    A expressão é de Châtelet (1, p. 29). É o que tentaria, por exemplo, A. Negri (4).
  • 2
    Ver a respeito (5) e (6).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Jan 1984
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