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Ideais de conduta

TRADUÇÃO

Ideais de conduta*

Charles Sanders Peirce

Tradução e Introdução de Ivo Assad Ibri

Departamento de Filosofia - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - 01000 - São Paulo - SP

INTRODUÇÃO

A importância do texto "Ideais de Conduta" do filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (1838-1914) prende-se à data de sua escritura: 1903; é um texto de maturidade.

É nítido como, para quem tenha estudado o autor, o texto fornece uma articulação melhor acabada entre as ciências normativas - a lógica, a ética e a estética - quando comparado a outros anteriores, a exemplo daqueles referentes à classificação das ciências e, mais especificamente, à IV Conferência ("Os Três Tipos de Bem"), da série constante no volume 5 dos Collected Papers, todas referidas ao Pragmatismo.

O autor antecipa, de certo modo, na filosofia, uma "estética da inteligência" como o quer Jorge Luís Borges na literatura. A riqueza do texto reside no seu poder de síntese; trata-se de uma feliz reunião da fenomenologia e da metafísica às ciências normativas, sob a visão peirceana.

De outro lado, o texto é, também, uma instigante entrada na arquitetônica filosófica do autor - um convite ao leitor a uma versão contemporânea do ideal de amálgama entre o Belo, o Bom e o Verdadeiro, presente na filosofia antiga, fornecendo a dimensão deste autor até agora tão desconhecido e, quando não, tão mal compreendido entre seus próprios conterrâneos.

591. Todo homem tem certos ideais de descrição geral de conduta que convém a um animal racional em seu particular estágio na vida, a que mais concorda com sua natureza total e relações.

Se você considera esta afirmação muito vaga, direi, mais especificamente, que existem três modos nos quais estes ideais usualmente recomendam-se a si mesmos e apenas o fazem. Em primeiro lugar, certos tipos de conduta, quando o homem as contempla, têm uma qualidade estética. Ele considera aquela conduta bela; e embora sua noção possa ser grosseira ou sentimental, mesmo assim ela irá se alterar no tempo e deverá tender a ser levada em harmonia com sua natureza. De qualquer modo, seu gosto é seu gosto por enquanto; isto é tudo. Em segundo lugar, o homem se esforça por moldar seus ideais consistentemente com cada outro, pois inconsistência é odiosa para ele. Em terceiro lugar, ele imagina quais conseqüências acarretariam seus ideiais, e se pergunta que qualidades estéticas estas conseqüências teriam.

592. Estes ideais, entretanto, são em essência absorvidos na infância. Ainda, eles são gradualmente moldados à sua natureza pessoal e às idéias de seu círculo social precipuamente por um processo contínuo de crescimento que por atos distintos de pensamento. Refletindo sobre estes ideais, ele é levado a pretender fazer sua própria conduta ser conforme pelo menos a uma parte deles àquela parte na qual ele acredita completamente. Em seguida, ele usualmente formula, conquanto vagamente, certas regras de conduta. Ele pode ajudar muito fazendo isto. Além disso, tais regras são convenientes e servem para minimizar os efeitos da inadvertência futura e, o que corretamente são chamados, dos ardis do demônio dentro dele. A reflexão, sobre estas regras, como também sobre os ideais gerais atrás delas, tem um certo efeito sobre sua disposição, tanto que o que ele naturalmente se inclina a fazer, torna-se modificado. Sendo tal sua condição, ele freqüentemente prevê que uma ocasião especial está por ocorrer; assim, uma certa reunião de suas forças começará a se desencadear, e este trabalho de seu ser o levará a considerar como agirá, e de acordo com sua disposição, tal como ela agora é, ele é levado a formar uma resolução de como ele agirá sob aquela ocasião. Esta resolução é da natureza de um plano; ou como alguém poderia considerar, um diagrama. É uma fórmula mental já mais ou menos geral. Sendo nada mais que uma idéia, esta resolução não necessariamente influencia sua conduta. Mas agora ele se senta e se dirige através de um processo similar àquele de imprimir uma lição sobre sua memória, cujo resultado é que a resolução, ou fórmula mental, é convertida em uma determinação, pela qual eu quero dizer uma ação realmente eficiente, tal que se alguém sabe o que é seu caráter especial, pode-se prever a conduta do homem na ocasião especial. Não se pode fazer previsões que serão verdadeiras na maioria das tentativas por meio de qualquer ficção. Deve ser por meio de alguma coisa verdadeira e real.

593. Não sabemos por qual maquinaria a conversão de uma resolução em uma determinação se dá. Muitas hipóteses têm sido propostas; mas elas não nos concernem agora. É suficiente dizer que a determinação, ou ação eficiente, é algo escondido nas profundezas de nossa natureza. Uma qualidade de sentimento peculiar acompanha os primeiros passos do processo de formação desta impressão; mas mais tarde não temos consciência dela. Podemos nos tornar conscientes da disposição, especialmente se ela é confinada. Neste caso, nós a reconheceremos por um sentimento de necessidade ou desejo. Eu devo mencionar que um homem não tem sempre uma oportunidade de formar uma resolução definida antecipadamente. Mas em tais casos, existem determinações menos definidas mas bem marcadas de sua natureza, emergindo das regras gerais de conduta que ele formulou; e no caso de tal regra apropriada não ter sido formulada, seu ideal de adequar a conduta terá produzido alguma disposição. Finalmente, a ocasião antecipada de fato surge.

594. A fim de fixar nossas idéias, suponhamos um caso. No curso de minhas reflexões, sou levado a pensar que seria bom para mim falar com certa pessoa de um certo modo. Resolvo que o farei quando nos encontrarmos. Mas considerando como, no calor da conversação, eu poderia ser levado a adotar um tom diferente, eu procedo a imprimir a resolução em meu espírito; com o resultado que quando o encontro ocorrer, embora meus pensamentos estejam ocupados com o assunto da conversa, podendo nunca reverter à minha resolução, apesar de tudo a determinação de meu ser influencia minha conduta. Toda ação concordante com uma determinação é acompanhada por um sentimento que é aprazível; mas é uma questão de difícil solução se o sentimento é agradável no próprio instante, ou se tal reconhecimento se dá um pouco depois.

595. O argumento aponta para o sentimento de prazer e, portanto, é necessário, a fim de julgá-lo, ir de encontro aos fatos sobre este sentimento tão acuradamente quanto possamos. Iniciando-se uma série de atos que foram determinados antecipadamente, há um certo sentido de alegria, uma antecipação e início de uma relaxação das tensões da necessidade, da qual tornamo-nos mais cônscios agora do que antes estávamos. Pode ser que tenhamos consciência do prazer no próprio instante do ato, embora isto seja dubitável. Antes da série de atos ser feita, já iniciamos sua revisão, e nesta revisão reconhecemos o caráter aprazível dos sentimentos que acompanham aqueles atos.

596. Retornando ao meu encontro, tão logo ele tenha acabado eu procedo a revê-lo mais cautelosamente e então me pergunto se minha conduta foi conforme minha resolução. Aquela resolução, como concordamos, era uma fórmula mental. A memória de minha ação pode ser grosseiramente descrita como uma imagem. Eu contemplo esta imagem e coloco a questão a mim mesmo. Direi que tal imagem satisfaz as estipulações de minha resolução, ou não? A resposta a esta questão, como a resposta a qualquer questão interna é necessariamente da natureza de uma fórmula mental. Ela é acompanhada, entretanto, por uma certa qualidade de sentimento que está tão relacionada à fórmula quanto a cor da tinta com a qual qualquer coisa é impressa, está relacionada ao sentido daquilo que é impresso. E assim como primeiro tornamo-nos conscientes da cor peculiar da tinta, e depois perguntamos a nós mesmos se ela é agradável ou não, ao formular o juízo que a imagem de nossa conduta satisfaz nossa resolução prévia, estamos, no próprio ato de formulação, conscientes de uma certa qualidade de sentimento, o sentimento de satisfação e diretamente após reconhecemos que aquele sentimento foi aprazível.

597. Mas agora posso investigar mais profundamente minha conduta, e posso me perguntar se concordou com minhas intenções gerais. Aqui novamente haverá um juízo e um sentimento o acompanhando, e diretamente após, uma recognição de que aquele sentimento foi aprazível ou doloroso. Este juízo, se favorável, provavelmente proporcionará um prazer menos intenso que o outro; mas o sentimento de satisfação, que é aprazível, será diferente e, como dizemos, um sentimento mais profundo.

598. Posso agora ir ainda mais adiante e perguntar como a imagem de minha conduta concorda com meus ideais de conduta ajustando-se a um homem como eu. Aqui se seguirá um novo juízo acompanhado por seu sentimento, seguido por um reconhecimento do caráter aprazívelou doloroso deste sentimento. Em qualquer ou em todos estes modos, um homem pode criticar sua própria conduta; e é essencial notar que não é mero louvor inútil ou censura, como os escritores que não são dos mais sábios freqüentemente distribuem entre os personagens da história. Não, de fato! é aprovação ou desaprovação do único tipo respeitável que trará frutos no futuro. Se o homem está satisfeito consigo mesmo ou insatisfeito, sua natureza absorverá a lição como uma esponja; e na próxima vez, ele tenderá a fazer melhor do que antes fez.

599. Adicionalmente a estas três auto-críticas de uma série simples de ações, um homem irá de tempos em tempos rever seus ideais. Este processo não é um trabalho que um homem se senta para fazer e o acaba. A experiência de vida está continuamente contribuindo com exemplos mais ou menos elucidativos. Eles são sumarizados primeiro, não na consciência do homem, mas nas profundezas de seu ser razoável. Os resultados vêm à consciência mais tarde. Mas a meditação parece agitar uma massa de tendências, e permitir que elas aflorem mais rapidamente para serem realmente mais conformadas àquilo que se ajusta ao homem.

600. Finalmente, em adição a esta meditação pessoal no ajustamento de seus próprios ideias, que é de uma natureza prática, existem estudos puramente teóricos dos estudantes de ética, que procuram determinar, como curiosidade, no que consiste o ajustamento de um ideal de conduta, e deduzir, de tal definição de ajustamento, o que a conduta deve ser. As opiniões diferem na totalidade deste estudo. Concerne apenas ao nosso propósito presente observar que, em si mesma, é uma investigação teórica, inteiramente distinta do trabalho de moldagem da própria conduta. Cuidando para que aquele aspecto não seja perdido de vista, eu mesmo não duvido de que o estudo é mais ou menos favorável à vida correta.

601. Tenho, assim, me esforçado para descrever por completo os fenômenos típicos da ação controlada. Eles não estão presentes em todos os casos. Assim, como já mencionei, não há sempre uma oportunidade de formar uma resolução. Especialmente enfatizei o fato de que a conduta é determinada pelo que a antecede no tempo, enquanto o reconhecimento do prazer segue-se após a ação. Alguns podem opinar que não é verdade o que é chamado a perseguição do prazer; e admito que existe espaço para suas opiniões, enquanto eu mesmo me inclino a pensar, por exemplo, que a satisfação de comer um bom jantar nunca é uma satisfação no estado presente, mas sempre se segue a ele. Insisto, de qualquer modo, que um sentimento como uma mera aparência, não pode ter um poder real de produzir qualquer efeito que seja, conquanto indiretamente.

602. Minha idéia dos fatos, você observará, deixa um homem em liberdade plena, não importando se adotamos tudo o que reivindicam os necessitaristas. Isto é, o homem pode, ou se quiser é compelido, a tornar sua vida mais razoável. Que outra idéia distinta senão esta, gostaria eu de conhecer, pode estar ligada à palavra liberdade?

603. Comparemos agora os fatos que enunciei com o argumento contra o qual me oponho. Aquele argumento repousa em duas premisssas principais; primeiro, que é impensável que um homem agiria por outro motivo senão o prazer, se seu ato for deliberado; e segundo, que a ação que se refere ao prazer não deixa espaço para qualquer distinção entre certo e errado.

604. Consideremos se esta segunda premissa é realmente verdadeira. Qual seria o requisito a fim de destruir a diferença entre conduta inocente e culpada? A única coisa que o faria seria destruir a faculdade de auto-crítica efetiva. Tanto quanto isto permaneceu, tanto quanto um homem comparou sua conduta com um padrão preconcebido e que, efetivamente, não faz muita diferença, se seu único motivo real fosse o prazer; pois tornar-se-ia desagradável para ele ficar sujeito à ferroada da consciência. Mas aqueles que enganam a si mesmos com aquela falácia, não estiveram atentos aos fenômenos de confusão do juízo, após o ato, que aquele ato satisfez ou não as exigências de um padrão, com um prazer ou dor acompanhando o ato em si mesmo.

605. Consideremos se a outra premissa é verdadeira, que é impensável que um homem agiria deliberadamente, exceto com o objetivo do prazer. Qual é o elemento, na verdade impensável, que a ação deliberada careceria? É simples e claramente a determinação. Deixe a determinação permanecer, como é certamente concebível que ela deveria permanecer, embora o próprio nervo do prazer fosse cortado, tal que o homem fosse perfeitamente insensível ao prazer e à dor, e ele irá certamente perseguir a linha de conduta que intenciona. O único efeito seria tornar as intenções do homem mais inflexíveis - um efeito, a propósito, que freqüentemente temos ocasião de observar nos homens cujos sentimentos estão quase mortos pela idade ou por alguma perturbação no cérebro. Mas aqueles que raciocinaram deste modo falacioso, confundiram também a determinação da natureza humana, que é um, agente preparado previamente para o ato, com a comparação da conduta com um padrão, comparação esta que é uma fórmula mental geral subseqüente ao ato e, tendo identificado estas duas coisas expressamente diferentes, colocaram-nas no ato mesmo como uma mera qualidade de sentimento.

606. Se recorrermos ao argumento acusado sobre o raciocínio, encontraremos que ele envolve o mesmo tipo de confusão de idéias. Os fenômenos do raciocínio são, em seus aspectos gerais, paralelos àqueles da conduta geral. Pois raciocínio é essencialmente pensamento que está sob auto-controle, assim como a conduta moral é conduta sob auto-controle. De fato, o raciocínio é uma espécie de conduta controlada e, como tal, participa necessariamente dos aspectos essenciais da conduta controlada. Se vocês prestarem atenção aos fenômenos do raciocínio, embora eles não sejam tão familiares a você como aqueles da moral, pois não existe clérigo cujo trabalho seja colocá-los diante de suas mentes, vocês irão, no entanto, notar sem dificuldade, que uma pessoa que extrai uma conclusão racional, não apenas a pensa como verdadeira, mas pensa que um raciocínio similar seria apenas análogo. Se ele falha em pensar isto, a inferência não é chamada raciocínio. É meramente uma idéia sugerida à sua mente, que ele não pode resistir de a pensar como verdadeira. Mas não tendo sido submetida a qualquer revisão ou controle, não é deliberadamente aprovada e não é chamada raciocínio. Chamá-la assim seria ignorar uma distinção que mal se torna um ser racional para a contemplação. Para estar certo, toda inferência se força sobre nós irresistivelmente. Isto é dizer, é irresistível no instante em que ela primeiro se sugere. No entanto, todos temos em nossas mentes certas normas, ou padrões gerais de raciocínio correto, e podemos comparar a inferência com um deles e perguntar-nos se satisfaz aquela regra. Chamo-a uma regra, embora a formulação possa ser de algum modo vaga; porque ela tem o caráter essencial de uma regra, de ser uma fórmula geral aplicável a casos particulares. Se julgamos nossa norma de raciocínio correto como satisfeita, temos um sentimento de aprovação, e a inferência agora não apenas aparece como irresistível como o fez antes, mas provará ser adiante mais inabalável por qualquer dúvida.

607. Vocês vêem imediatamente que temos aqui todos os principais elementos de conduta moral: o padrão geral mentalmente concebido antecipadamente, o agente eficiente na natureza interna, o ato, a comparação subseqüente do ato com o padrão. Examinando os fenômenos mais de perto, encontraremos que nenhum elemento da conduta moral deixa de ser representado no raciocínio. Ao mesmo tempo, o caso especial naturalmente tem suas peculiaridades.

608. Assim temos um ideal geral de lógica sã. Mas não deveríamos naturalmente descrevê-la como nossa idéia de um tipo de raciocínio que convém a homens em nossa situação. Como deveríamos descrevê-la, então? Como se fôssemos considerar que o bom raciocínio é o que em todo estado concebível do universo os fatos estabelecidos nas premissas são verdadeiros, e o fato enunciado na conclusão será, deste modo, verdadeiro. A objeção a esta afirmação é que ela apenas cobre o raciocínio necessário, incluindo o raciocínio sobre probabilidades. Existe outro raciocínio que é defensável como provável, no sentido que enquanto a conclusão possa ser mais ou menos errônea, sendo o mesmo procedimento diligentemente persistido, ele deve, em todo universo concebível no qual ele leva a qualquer resultado, levar a um resultado indefinidamente aproximativo da verdade. Quando for o caso, faremos justiça seguindo este método, contanto que reconheçamos seu caráter verdadeiro, desde que nossa relação com o universo não nos permita ter qualquer conhecimento necessário dos fatos positivos. Você observará que, em tal caso, nosso ideal é moldado pela consideração de nossa situação em relação ao universo de existências.

Existem ainda outras operações da mente para as quais o nome "raciocínio" é especialmente apropriado, embora não seja o hábito de linguagem predominante chamá-las assim. Elas são conjecturas, mas conjecturas racionais; sua justificação é que a menos que o homem tenha uma tendência de adivinhar corretamente, a menos que suas adivinhações sejam melhores que lançar uma moeda, nenhuma verdade que ele já não possui virtualmente poderia ser-lhe revelada, de tal modo que ele poderia desistir de toda tentativa de raciocínio; enquanto que se ele tem qualquer tendência determinada para adivinhar corretamente, como ele pode ter, então não importa quão freqüentemente ele erre, ele atingirá por último a verdade. Estas considerações certamente levam em conta a natureza interna do homem tanto quanto suas relações externas; tal que os ideais da boa lógica são verdadeiramente da mesma natureza geral que os ideais de boa conduta. Vimos que três tipos de considerações suportam os ideais de conduta. Foram, de início, que certa conduta parece bela em si mesma. Assim como certas conjecturas parecem plausíveis e fáceis em si mesmas. Em segundo lugar, desejamos que nossa conduta seja consistente. Assim como o ideal (do) raciocínio necessário é consistência simplesmente. Terceiro, consideramos que efeito geral teria acarretado nossos ideais. Assim como certos modos de raciocínio recomendam a si mesmos porque se persistentemente levados adiante, eles devem conduzir à verdade. O paralelismo é quase exato.

609. Há também algo como uma intenção geral lógica. Mas não é enfatizada pelo motivo que a vontade não entra tão violentamente no raciocínio, como na conduta moral. Já mencionei as normas lógicas, que correspondem às leis morais. Tomando qualquer problema difícil de raciocínio, formulamos para nós mesmos uma resolução lógica; mas aqui novamente, devido à vontade não estar em alta tensão no raciocínio, como freqüentemente está na conduta auto-controlada, estas resoluções não são fenômenos muito proeminentes. Devido a esta circunstância, a determinação eficiente de nossa natureza, que nos leva a raciocinar em cada caso, como fazemos, tem menos relação com as resoluções que com as normas lógicas. O ato em si mesmo é, no instante, irresistível em ambos os casos. Mas imediatamente após, ele é submetido à auto-crítica por comparação com um padrão prévio que é sempre a norma, ou regra, no caso do raciocínio, embora no caso da conduta externa contentarmo-nos em comparar o ato com a resolução. No caso da conduta geral, a lição de satisfação ou insatisfação é freqüentemente não muito incutida no coração, influenciando pouco a conduta futura. Mas no caso do raciocínio, uma inferência que a auto-crítica desaprova é sempre instantaneamente anulada, porque não é difícil fazer isto. Finalmente, todos os diferentes sentimentos que, como dissemos, acompanham as diferentes operações da conduta autocontrolada, igualmente acompanham aquelas do raciocínio, embora elas não sejam tão vividas.

610. O paralelismo é, assim, perfeito. Nem, repito, poderia falhar em sê-lo, se nossa descrição dos fenômenos da conduta controlada foi verdadeira, desde que o raciocínio é apenas um tipo especial de conduta auto-controlada...

611. No que consiste o raciocínio correto? Ele consiste no raciocínio que será condutivo ao nosso objetivo último. Qual, então, é nosso objetivo último? Talvez não seja necessário que o lógico responda esta questão. Talvez pudesse ser possível deduzir as regras corretas do raciocínio da mera suposição de que temos algum objetivo último. Mas não vejo como isto poderia ser feito. Se não tivéssemos, por exemplo, nenhum outro objetivo que o prazer do momento, poderíamos cair na mesma falta de qualquer lógica que o argumento falacioso nos levaria. Não teríamos ideal de raciocínio e, conseqüentemente, nenhuma norma. Parece-me que o lógico deve reconhecer o que é o objetivo último. Pareceria ser uma tarefa do moralista encontrá-lo, e que o lógico teria de aceitar o ensinamento da ética no que respeita a isto. Mas o moralista, tanto quanto posso compreendê-lo, meramente nos diz que temos um poder de auto-controle, que nenhum objetivo estreito ou egoísta pode eternamente se provar satisfatório, que o único objetivo satisfatório é o mais amplo, o mais elevado e o mais geral possível; e por nenhuma informação mais definida, como concebo o assunto, ele tem de nos referir ao esteta, cuja tarefa é dizer qual é o estado de coisas que é mais admirável em si mesmo, sem relação com qualquer razão ulterior.

612. Assim, então, apelamos para o esteta para nos dizer o que é admirável sem qualquer razão para sê-lo, além de seu caráter inerente. Porque isto, ele replica, é o belo. Sim, frisamos, tal é o nome que você lhe dá, mas o que ele é? O que é o seu caráter? Se ele responde que consiste em uma certa qualidade de sentimento, um certo êxtase, eu, de minha parte, declino completamente para aceitar a resposta como suficiente. Eu lhe diria, meu caro senhor, se você pode provar-me que esta qualidade de sentimento de que fala, como um fato, liga-se ao que você chama de belo, ou que aquilo que seria admirável sem qualquer razão para o ser, estou bastante disposto a lhe acreditar; mas eu não posso, sem uma prova vigorosa, admitir que qualquer qualidade de sentimento particular é admirável sem uma razão. Pois é bastante revoltante para ser crido, a menos que alguém seja forçado a fazê-lo.

613. Uma questão fundamental como esta, conquanto práticos possam ser seus resultados, difere inteiramente de qualquer questão prática ordinária, naquilo que o que quer que seja aceito como bom em si mesmo deva ser aceito sem compromisso. Decidindo qualquer questão especial de conduta, é freqüentemente bastante correto permitir ponderar diferentes considerações conflitantes, e calcular sua resultante. Mas é acentuadamente diferente em relação àquilo que é o objetivo de todo esforço. O objeto admirável que é admirável per si deve, sem dúvida, ser geral. Todo ideal é mais ou menos geral; ele deve ter unidade, porque é uma idéia, e unidade é essencial a toda idéia e todo ideal. Objetos de tipos completamente distintos podem, sem dúvida, ser admiráveis, porque alguma razão especial pode fazer cada um deles assim. Mas quando ele se torna o ideal do admirável em si mesmo, a própria natureza de seu ser é ser uma idéia precisa; e se alguém diz que ele é isto ou aquilo, ou aquilo outro, eu lhe digo: "é claro que você não tem idéia do que precisamente ele é." Mas um ideal deve ser capaz de ser abarcado em uma idéia geral, ou absolutamente não é um ideal. Portanto, não pode haver compromissos entre diferentes considerações aqui. O ideal admirável não pode ser extremamente admirável. Quão mais completamente ele tenha o caráter qualquer que seja, que lhe é essencial, mais admirável ele deve ser.

614. O que seria a doutrina de que aquilo que é admirável em si mesmo é uma qualidade de sentimento se tomada em toda sua pureza e levada ao seu mais distante extremo - que seria o extremo da admirabilidade? Seria equivalente dizer que o único objeto admirável último é a irrestrita gratificação de um desejo, sem considerar qual a natureza deste objeto. Porém, isto é muito chocante. Seria a doutrina de que todos os mais altos modos de consciência com os quais estamos acostumados em nós mesmos, tais como o amor e a razão, são bons apenas enquanto subservem o mais baixo de todos os modos de consciência. Seria a doutrina de que este vasto universo da Natureza, que contemplamos com tal reverência, é bom apenas para produzir uma certa qualidade de sentimento. Certamente eu devo ser desculpado por não admitir esta doutrina, a menos que seja provada com a mais extrema evidência. Assim, então, que prova há que seja verdadeira? A única razão para ela que estou apto a aprender é que gratificação, prazer, é o único resultado concebível que satisfaz a si mesmo; e, portanto, desde que estamos buscando por aquilo que é belo e admirável, sem qualquer razão além de si mesmo, prazer, êxtase, é o único objeto que pode satisfazer as condições. Este é um argumento respeitável. Ele merece consideração. Sua premissa, de que o prazer é o único resultado concebível que é perfeitamente auto-satisfatório, deve ser admitido. Apenas, nestes dias de idéias evolucionárias que são traçáveis da Revolução Francesa como instigadora, e retornando ao experimento de Galileu na torre de Pisa, e ainda mais atrás, a todas as posições de Lutero, e mesmo de Robert de Lincoln contra as tentativas de ligar a razão humana a qualquer prescrição fixada avante - nestes dias, eu digo, quando estas idéias de progresso e crescimento cresceram tanto, de modo a ocupar nossas mentes como agora o fazem, como podem esperar que permitamos a pressuposição de que o admirável em si mesmo é qualquer resultado estacionário? A explicação da circunstância de que o único resultado que é satisfatório consigo mesmo é uma qualidade de sentimento, é que a razão sempre olha adiante para um futuro sem fim e espera infinitamente aperfeiçoar seus resultados.

615. Considere, por um momento, o que a Razão, tanto quanto possamos hoje concebê-la, realmente é. Eu não quero dizer a faculdade do homem que assim é chamada pela sua incorporação em alguma medida da Razão, ou Novç, como alguma coisa manifestando-se na mente, na história do desenvolvimento da mente, e na natureza. O que é esta Razão? Em primeiro lugar, é alguma coisa que nunca pode ter sido completamente incorporada. A mais insignificante das idéias gerais já envolve predição condicional ou requer para seu preenchimento que os eventos estejarq em fluxo, e tudo que sempre pode estar em fluxo, deve estar apto a completar suas exigências. Um pequeno exemplo servirá para ilustrar o que estou dizendo. Tome qualquer termo geral que seja. Afirmo que uma pedra é dura. Isto significa, tanto quanto a pedra permaneça dura, que todo ensaio destinado a riscá-la pela pressão moderada de uma faca, certamente falhará. Denominar uma pedra de dura é prever que não importa quão freqüentemente você tente o experimento, ele irá falhar toda vez. Aquela inumerável série de predições condicionais está envolvida no significado deste adjetivo despretencioso. O que quer que possa ter sido feito não começa a exaurir seu significado. Ao mesmo tempo, o próprio ser do Geral, da Razão, é de tal modo que este ser consiste, na verdade, nos eventos governados pela Razão. Suponha um pedaço de carborúndio que tenha sido feito e que, subseqüentemente, tenha sido dissolvido em água régia sem que ninguém, nenhuma vez, tanto quanto sei, tenha tentado riscá-lo com uma faca. Sem dúvida, eu posso ter boa razão, no entanto, de chamá-lo duro; porque algum fato real ocorreu, de tal modo que a Razão compele-me a fazê-lo, e uma idéia geral de todos os fatos do caso pode apenas ser formada se eu o chamo assim. Neste caso, chamá-lo duro é um evento real governado pela lei da dureza do pedaço de carborúndio. Mas se não houvesse nenhum fato real que fosse expressivo por dizer que o pedaço de carborúndio era duro, não haveria o menor significado na palavra duro, como a ele aplicada. O próprio ser do Geral, da Razão, consiste no fato de governar eventos individuais. Assim, então, a essência da Razão é tal que seu ser nunca pode ser completamente perfeito. Ele deve estar em um estado de incipiência, de crescimento. É como o caráter de um homem, que consiste nas idéias que ele irá conceber e nos esforços que ele fará, e que apenas se desenvolve quando surgem ocasiões reais. Pois em toda sua vida, nenhum filho de Adão jamais manifestou plenamente o que havia nele. Assim, então, o desenvolvimento da Razão requer, como uma parte dela, a ocorrência de mais eventos individuais do que continuamente possa ocorrer. Ela requer, também, toda a colocação de todas as qualidades de sentimento, incluindo o prazer em seu lugar próprio entre o restante. Este desenvolvimento da Razão consiste, você observará, na incorporação, isto é, na manifestação. A criação do universo, que não ocorreu durante certa semana atarefada do ano 4004 a.C, mas está em curso hoje, e nunca irá estar pronta, é este próprio desenvolvimento da Razão. Eu não posso ver como alguém possa ter um ideal mais satisfatório do admirável que o desenvolvimento da Razão assim entendido. A única coisa cuja admirabilidade não é devida a uma razão além, é a própria Razão, compreendida em toda sua plenitude, tanto quanto possamos compreendê-la. Sob esta concepção, a idéia de conduta será executar nossa pequena função na operação da criação por dar uma contribuição para tornar o mundo mais razoável, sempre que estiver ao nosso alcance fazêlo. Em lógica, será observado que conhecimento é razoabilidade; e o ideal do raciocínio será seguir os métodos que devem desenvolver o conhecimento o mais rapidamente...

  • * In: HARTSHORNE, C. & WEISS, P. ed. - Collected papers of Charles Sanders Peirce. Cambridge, Belknap Press of Harvard Univ. Press, 1974. Book 4, Chap. 4, I. 591-615.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2011
  • Data do Fascículo
    Jan 1985
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