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TRADUÇÃO

Saint-John Perse - Sécheresse (1974)

Tradução, introdução e notas de Bruno Palma* * Tradutor de Saint-John Perse desde 1959. Entre outras traduções publicadas: Poemas de Saint John Perse, Rio de Janeiro, Grifo edições, 1971 eAnábase, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979.

PERSE, Saint-John. Chant pour un equinoxe. Paris, Gallimard, 1975

"Disse alguém que o historiador é um profeta às avessas, um adivinho do passado; o poeta, poderíamos dizer, é um historiador que adivinha o que acontece"

(Octávio Paz)

Comemora-se, este ano (1987), o centenário do nascimento de Saint-John Perse.

Unindo-se às celebrações do aniversário daquele que é considerado um dos maiores poetas do século XX, a revista Trans/Form/Ação publica a tradução de ''Sécheresse", seu último poema.

Para facilitar a compreensão deste texto, proporemos 1) uns Elementos para uma leitura de Saint-John Perse1 1 - Servi-me-ei do meu estudo do mesmo nome, publicado em postfácio à minha tradução de Anabase (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979). , e 2) algumas notas à tradução, antecedidos de uma breve notícia sobre a vida e a obra do poeta.

Saint-John Perse é o pseudônimo literário de Alexis Saint-Léger Léger (Pointe-à-Pitre, Guadalupe, 1887 - Giens, França, 1975).

Poeta e diplomata francês, SJP é autor de uma obra poética relativamente pequena, embora extremamente importante: Éloges (1911), Anabase (1924), Exil (1942), Pluies (1944), Neiges (1944), Vents (1946), Amers (1957), Chronique (1960), Oiseuax (1963) e Chant pour un équinoxe (1975), que reúne quatro poemas, entre os quais "Sécheresse".

Em sua obra em prosa se destacam os dois discursos: Poésie ou Discours de Stockholm, quando da recepção, por SJP, do prêmio Nobel de literatura, em 10 de dezembro de 1960; e Pour Dante, discurso para a inauguração do congresso internacional, reunido em Florença, no VII Centenário de Dante, a 20 de abril de 1965, conhecido também por Discours de Florence.

"Disse alguém que o historiador é um profeta às avessas, um adivinho do passado; o poeta, poderíamos dizer, é um historiador que adivinha o que acontece. E suas imagens são mais verdadeiras do que aquilo que chamamos de documentos históricos. Assim, o espírito desejoso de saber o que, realmente, se passou na primeira metade do século XX, deverá dirigir-se, não ao testemunho duvidoso dos jornais, mas, ao contrário, a algumas obras poéticas. Uma dessas obras é a de Saint-John Perse". Octávio Paz2 2 - Octávio Paz, "Un Hymne moderne", in Honneur à Saint-John Perse, Paris, Gallimard, 1965, p. 254.

ELEMENTOS PARA UMA LEITURA DE SAINT-JOHN PERSE

1. O primeiro contato com o texto poético persiano pode deixar o leitor ao mesmo tempo fascinado e desnorteado: encantado pela eufonía das palavras e sua magnificência, mas desalentado ao esbarrar com algumas que lhe parecem difíceis ou bizarras.

De fato, o uso freqüente de termos que para nós são raros ou "exóticos" nos faria, à primeira vista, atribuir ao poeta uma tendência ao preciosismo ou ao hermetismo. Entretanto, a um olhar mais atento e sensível, percebemos que todos eles se acham no seu exato lugar, e muito a propósito, no edifício verbal.

De resto, aquelas palavras tidas por raras ou exóticas, correspondem a algo muito preciso na realidade cotidiana. E se para alguns são novas, difíceis, ou rebarbativas, para outros, são simples, belas e familiares.

Para o poeta, nomear o mundo é recriá-lo poeticamente. E dar a cada coisa, a cada realidade, seu nome exato, é uma maneira de lhes desvendar o mistério e mergulhar nele.

Saint-John Perse faria sua, invertendo-a, a fórmula de Novalis "quanto mais poético, mais verdadeiro"?

Não. O que o poeta buscava era a verdade poética dos elementos com que construía seus poemas. Se era atento à "propriedade" das palavras, "se a língua (era) seu primeiro cuidado". Perse queria atingir (como ele mesmo disse de Gide) essa "qualidade buscada além das palavras, da própria sintaxe, na substância primeira da obra e seu primeiro momento; essa vida alcançada na própria fonte da criação artística, como garantia do verdadeiro, do real, do justo - garantia também de uma necessidade, sem a qual a obra é vã"3 3 - "André Gide 'Face aux Lettres Françaises, 1909'", in Oeuvres Complètes de Saint-John Perse, Paris, Gallimard, 1972, p. 473. .

Perse prefere, algumas vezes, nomes fictícios - mas sempre afiançados na realidade da vida, da linguagem ou da arte. Aqui prevalece a veracidade da ficção. Não obstante, na maioria dos casos, prevalece o nome científico, posto que, para ele, é essa mesma exatidão ou veracidade que faz do real, ficção poética.

Desde as primeiras obras, SJP manifesta claramente seu prazer em empregar palavras, expressões, ou descrições de tipo científico, ou técnico, tidas comumente como "prosaicas".

E em "Sécheresse" chega a colocar aspas em alguns nomes científicos, acolhidos no próprio corpo do poema, além de fazer acompanhar de uma "definição" a palavra portadora desses realces: ... ses "Lucilies"ou mouches d'or de la viande, ses psoques, ses mites, ses reduves; et ses "Talitres", ou puces de mer, sous le varech des plages aux senteurs d'officine".

Entretanto, o que decide a pertinência da presença desses vocábulos no texto poético são razões lingüísticas e literárias.

2. A originalidade de SJP não se restringe, porém, ao uso de palavras raras ou difíceis. O poeta também tira partido das mutações semânticas e da polissemia dos vocábulos. Ajudado por seus amplos conhecimentos do grego e do latim, realiza um estupendo trabalho com as etimologias: remontando às raízes das palavras, devolve-lhes o frescor e o vigor perdidos, ou desgastados com o tempo; dá novo sentido a termos banais; estende o significado de termos simples, pondo em relevo aspectos neutralizados pelo uso, através de judiciosos enxertos ou transplantes; revelando com isso insuspeitadas significações, garantidas contudo por homologias verdadeiras; ou fazendo entrever outras, apenas sugeridas por meras homofonias. Em suma: aproveita-se de todos os recursos da língua, dando a seu texto essa extraordinária "vivacidade" que lhe conhecemos.

Em nosso poema temos, entre outros, os exemplos de ossète e de fascination. O termo ossète (osseto: língua indo-européia do Cáucaso) foi escolhido, em parte porque contém os (osso), a imagem-chave do poema, e porque é falado em "alguma vertente", sujeita a "grandes secas" e "esboroamentos rochosos". Ademais, (diz Charles Dolamore4 4 - "A propos de 'Sécheresse'", Cahiers du XXe. siècle, 7 (1976), p. 123. ) sendo primitiva e mais próxima do seu meio natural, essa língua "ainda não deixou crescer a distância entre a palavra e a coisa que ela significa".

Essa passagem termina por fascination au sol du signe et de l'objet, e fascination, aqui (continua Dolamore), "parece indicar não só a atração mútua de duas coisas, mas também a fusão das coisas numa só forma como numa "fascine" (feixe, faxina). A ligação entre fascination e fascine, embora etimologicamente falsa, se estabelece pela poesia das palavras".

3. Durante muito tempo, julgou-se que o texto poético de SJP fosse, na realidade, um texto em prosa - extremamente rica e sonora, mas prosa, ainda que "poética", onde se destacassem elementos de estruturação, "frases de apoio", que escandiam o texto.

Hoje, porém, sabe-se que tudo ali é metrificado5 5 - Emile Noulet (em "L'octossilabe dans Amers", in Honneur..., Paris, Gallimard, 1965, p. 316 e s.) mostrou que há na obra poética de SJP uma notável freqüência de metros pares: alexandrinos, decassílabos, mas sobretudo octossílabos, ora isolados, ora em insólitas combinações com outros metros, como o hexassílabo, alongado para quatorze sílabas, ora duplicados, estirando-se ainda mais, para dezesseis. Para um estudo mais aprofundado da métrica persiana, leia-se: Bateman, Jacqueline, "Questions de métrique persienne", Cahiers du XXe. Siècle, 7 (1976), m p. 27 ss. Favre, Yves-Alain, SJP. Le Langage et le sacré, Paris, Corti, 1977. Little, Roger, SJP, London, Athlone Press, 1973. Rutten, Pierre van. Le Langage poétique de SJP, Paris/La Haie, Mouton, 1975. , embora o poeta trate de modo original a métrica silábica tradicional, e alie a ela toda a riqueza e a flexibilidade da métrica tonal ou quantitativa greco-latina.

A respeito da estrutura métrica da sua obra, Perse dizia numa carta a Katherine Biddle6 6 - ... de 12.12.1955, OC p. 922. : "Falaremos um outro dia dessa questão de métrica interna, rigorosamente tratada na distribuição geral e na articulação das grandes massas prosódicas (em que são bloqueados, por estrofes ou laisses7 7 - A unidade de base da métrica persiana é o verset (versículo), verso poético de comprimento variável. O agrupamento de um certo número de versets (indicado por espaços, ou entrelinhas, interlignes, mais importantes) dá uma laisse. Evita-se o termo "estrofe", pois isso se prestaria a confusão. , numa mesma e larga contração, com a mesma fatalidade, todos os elementos particulares tratados como versos regulares - o que eles são na realidade). É fácil, evidentemente, para o leitor estrangeiro se enganar a respeito dessa economia geral de uma versificação precisa ainda que inaparente, o que não tem absolutamente nada em comum com as concepções correntes do "verso livre" ou da grande "prosa poética". Trata-se mesmo aqui de algo inteiramente contrário a isso".

4. Logo na primeira leitura de uma página de SJP, percebemos a reiteração constante de certos "módulos" ou "matrizes"8 8 - Roger Caillois, Poétique de Saint-John Perse, Paris, Gallimard, (1972). (Esta continua a ser a melhor obra sobre a poética persiana). , e, além desses procedimentos, é notável o emprego freqüente dos paralelismos sintáticos, semânticos e sonoros, que são, em grande parte responsáveis por essa tessitura tão firme quanto flexível do texto persiano.

Nessa trama verbal tão rica quão finamente acabada, tão cantante e fortemente entretecida, as reiterações dos moldes sintáticos ou os contrapontos prosódicos servem a associações semânticas, quer em surpreendentes correspondências e sinestesias, de formas, cores, odores e sentimentos, quer associados em imagens, isoladas ou múltiplas.

Madeleine Frédéric9 9 - Madeleine Frédéric, La répétition et ses structures dans l'oeuvre de SJP, Paris, Gallimard, 1984, p. 11. viu muito bem o papel desempenhado pela figura da repetição na obra poética persiana: "A importância considerável da repetição na poesia de SJP foi ressaltada pela crítica desde a origem. (Importância) não só quantitativa: ela aparece em quase todas as páginas; mas também pela extraordinária diversidade de elementos que ela faz intervir: quase todos os fatos repetitivos descobertos por ocasião do estudo lingüístico e retórico se acham convocados em graus variáveis pelo poeta. (...) Ao mesmo tempo que elas são o indício de uma construção muito serrada, essas diversas retomadas (reprises), ou melhor essas constelações repetitivas, conferem à obra seu ritmo - ritmo e não metro", porque seu uso é mais flexível que os da versificação tradicional.

5. Para recriar seu universo poético, Perse não desdenha nenhum recurso prosódico, ou retórico, busca o concurso das cadências e das assonâncias, das aliterações e das rimas, dos metaplasmos, das figuras, das imagens.

E que ele procurava aproximar-se dessa desejada "coincidência, entre a linguagem e o real, (porque para ele, a) função do poema é a de se tornar, de viver e de ser a coisa mesma, "conjurada", e não mais o tema, anterior ao poema"10 10 - Carta a Katherine Biddle, de 12.12.1955, OC 922. .

Pois, diz ele, ainda, no Discurso de Estocolmo11 11 - Poésie. Discours de Stockholm, OC 444. : "Se a poesia não é (...) o "real absoluto", é certamente a mais próxima cobiça e a mais próxima apreensão desse real, nesse limite extremo de cumplicidade em que, no poema, o real parece informar-se a si mesmo".

O que conta é o "real interior", ou essa "super-realidade"12 12 - "Pelo pensamento analógico e simbólico, pela iluminação da imagem mediadora e pelo jogo de suas correspondências, sobre mil cadeias de reações e de associações estranhas, enfim pela graça de uma linguagem em que se transmite o movimento mesmo do Ser, o poeta investe-se de uma super realidade que não pode ser a da ciência". Id. Ibid. p. 444. , que está para além ou "acima do saber", que é da ordem do Absoluto: "Por sua adesão total ao que é, o poeta mantém para nós ligação com a permanência do Ser"13 13 - Id. ibid., p. 446. .

O poeta, no poema, pela linguagem poética, exerce a função (ou a missão profética14 14 - Sobre a função profética do poeta, diz Henriette Levillain: "O desenrolar do ato poético de SJP corresponde (...) muito exatamente às fases sucessivas definidas por Heidegger: 'O dizer do poeta consiste em surpreender os sinais (signes) para fazer sinal (faire signe) a seu povo; depois a profetizar o Ainda-não-realizado (Non-encore-accompli)'. (...) Desde a origem, o poeta deve inclinar-se diante da sua função de profeta: o poema não proveio de um desejo pessoal ou de uma circunstância exterior, mas de uma eleição por um Poder (Puissance) superior". (Le Rituel poétique de SJP, Paris, Gallimard, 1977, p. 302-303). ) de mediador entre o "mundo inteiro das coisas" e a essência ou o "movimento mesmo do Ser".

Na obra de SJP a linguagem poética não é apenas o instrumento privilegiado dessa recriação (ou "invenção reveladora", como queria André Rousseau15 15 - Em "L'Empire des choses vraies" (Honneur..., p. 190), André Rousseau escreve: "A poesia de SJP é a celebração do intercâmbio entre esses dois segredos vitais: a verdade do homem e a verdade das coisas. Sobre o amontoado das escórias conservadas e conservadoras, ela proclama que o gênio do homem, sem ser, literalmente falando, criador, é o da invenção reveladora. Diante do império das coisas verdadeiras, o rei da terra tem a honra, não de lhes trazer e de lhes impor uma verdade que viria dele só, mas de extrair da profundeza delas para a luz universal a verdade de que as coisas vivem". ), não figura somente como tema ou imagem, mas, como os elementos naturais, é co-autora do poema.

Assim, a poesia de Perse não é uma poesia sobre os elementos, mas dos elementos: as chuvas, os ventos, os mares, a terra, não são temas mas co-participantes dessa "aliança" entre o mundo (das coisas e do homem) e o Ser, pela mediação do verso poético.

Contudo o tema fundamental dessa obra, que sintetiza a todos, nesse fulgurante universo, nesse "império das coisas verdadeiras", é o homem: "... Mas é do homem que se trata! (...) em sua presença humana; e de um alargamento do olho aos mais altos mares interiores16 16 - Vents, III, 4, OC 224. .

6. Para SJP o homem não apenas está só, mas ele é só. Little vê mesmo no exílio "a chave da poesia de SJP"17 17 - "Pour une lecture de SJP", Cahiers du XXe. Siècle,. 7 (1976), p. 14. .

Contudo, no exílio ele não vive o isolamento, mas a solidão, o que é muito diferente. E vence a "desolação do exílio", buscando, na solidão, encontrar essa parte "divina" que há nele, mergulhar nesse "Mar interior", que é a presença nele do Absoluto.

O poeta vive, porém, um dilema constante: é como que dilacerado, dividido entre dois apelos, ou duas atrações: a do relativo, do múltiplo, do universo das coisas e dos homens, na sua riqueza fascinante, na sua atordoante profusão, e o Absoluto, o Uno.

E ele resolve este problema escolhendo... a ambos, integrando tudo numa síntese mais rica, onde os contrários convivem em conflituosa harmonia.

Embora (continua Little) surja a todo momento "a tentação da satisfação em si mesmo, e da complacência, tentação à qual é preciso resistir para obedecer às exigências mais altas de valores mais ascéticos e mais duráveis. O homem só realiza suas virtualidades se tender sempre para além dos limites humanos, e a poesia de SJP nos arrasta até bordas que desafiam a imaginação. Ela implica num conhecimento aprofundado do espaço circunscrito pelas fronteiras de toda sorte e da situação precisa destas. Cumpre que os limites não sejam somente conhecidos e reconhecidos, mas transgredidos18 18 - O grifo é meu. ".

E o que faz o homem transpor esse limiar (seuil), é essa forma especialíssima de conhecimento e de ação, a poesia: "Toda barreira deve ser mudada em fronteira pela ação e o movimento poético" (Little).

Porém, essa "leitura" do mundo (leitura transformadora), na recriação poética, não é, como viu Gaetan Picon19 19 - Gaëtan Picon, "Le plus hautainement libre", in Honneur..., p. 58. , nem idealização do mundo, nem pura aceitação deste, mas sua consagração.

Se o poeta celebra o mundo, se se coloca diante dele na atitude de louvor (éloge), não deixa de integrar no poema esse elemento polêmico, conflituoso, que segundo ele é a causa das transformações e das regenerações.

"A harmonia (diz André Claverie20 20 - André Claverie, "Une poésie de la célébration". Cahiers Saint-John Perse, 4(1981), p. 90-91. ) implica dissonância, ruptura e um constante reajustamento. (...) No coração do homem a poesia revela uma parte divina, uma vocação espiritual: ordem do pensamento, da moral e da metafísica, que escapa à apreensão dos sentidos e da razão. Porque, segundo ele, o apelo de um alhures e de um além é constitutivo da natureza humana, o poeta propõe (...) um humanismo da transgressão: "espiritualismo sem objeto nem fim religioso; no qual, tudo do ser humano, na impaciência da condição humana, é tão-somente vã irrupção, e tentativa de efração para além dos limites humanos" (Carta a Paul Claudel, OC 1017)21 21 - Dan-Ton Nasta vai mais longe: "Se não é excessivo falar de uma cosmologia da transgressão, a partir sobretudo da efervescência do universo "em marcha", será ainda menos ilegítimo falar de uma ética da transgressão. A pose violenta das figurações humanas que povoam as estrofes de Perse, seu paroxismo, parecem dizer respeito à (...) crueza da visão poética" (à "ferocidade do Ser sem pálpebra"). "O decálogo que se esboça através (desses) poemas (...) dá droit de cité ao erro, tolera os litígios, institue o desentendimento ("mésintelligence"), enaltece a discórdia enquanto força motora da evolução. Sem se aproximar do niilismo, nem mesmo soçobrar no heterodoxo, essa moral (...) exalta a força libertadora do erro, o impacto tonificante do ilogismo" (Saint-John Perse et la découverte de l'être, Paris, Presses Universitaires de France, 1980, p. 17-18.) Leia-se sobretudo o capítulo III, "La Transgression", p. 109 ss. .

E continua Claverie: "Há no homem mais do que o homem22 22 - "Poète, toujours, ce rebelle-né, qui revendique dans l'homme plus que l'homme". Pour Dante, Paris, Gallimard, 1965, p. 15.) , e a transcendência é, por assim dizer, imanente ao ser humano. Do trágico de nossa condição SJP tira uma epopéia do espírito eternamente insubmisso, em busca de uma Presença original, malgrado o silêncio da Divindade, experimentando a necessidade de se aproximar de Deus sem poder nomeá-lo. (...) A poesia, celebração pagã do desejo, substitui pois o reconhecimento de Deus pela procura do divino, a ponto do homem considerar uma honra sua própria insatisfação. (...) Poderíamos, sem forçar as palavras, chamar de descrença (incroyance) essa aspiração fervorosa a um Absoluto?" (... Ela é,) "antes, um agnosticismo ativo, nessa ardente perseguição que só finda com a morte".

Paul Claudel terminava assim seu estudo sobre Vents23 23 - "Un poème de SJP 'Vents' ", Les Cahiers de la Pléiade, X (1950), p. 67. : "Deus é uma palavra que SJP evita, como direi?, religiosamente".

Ao que o autor responde: "Obrigado pela palavra "religiosamente" que soubestes inserir ali. (...) A procura em todas as coisas do "divino" (du "divin"), que foi a tensão secreta de toda a minha vida pagã, e essa intolerância, em todas as coisas, do limite humano, que continua a crescer em mim como um câncer, não poderiam me habilitar a nada mais do que à minha aspiração (...) E a minha vida inteira que não cessou, simplesmente, de portar e de dilatar o sentimento trágico da sua frustação espiritual, às voltas, sem orgulho, com a necessidade mais elementar de Absoluto"24 24 - Carta a Paul Claudel, OC 1019-1020. .

E Claverie prossegue: "No fim do seu último poema, SJP tenta num último e desesperado impulso comungar Deus: 'Par les sept os soudés du front et de la face, que l'homme en Dieu s'entête jusqu'à l'os, ah! jusqu'a éclatement de l'os!... Songe de Dieu, sois-nous cómplice...' "

E conclui: "Há aqui ainda a distância entre o pensamento do poeta e o dogma cristão postulando que Deus descobre para o homem, do interior, sua liberdade e sua dignidade. SJP chega somente a esse ponto extremo do humano a partir do qual, no silêncio, a fé se torna possível: ponto para além do qual, segundo Santo Agostinho e Pascal, a questão se torna resposta, e a procura de Deus a marca da sua revelação"25 25 - Op. cit., p. 92-93. .

SECA

QUANDO a seca sobre a terra tiver estirado sua pele de asna1* 1* . peau d'ânesse: pele ou couro de asna. Lembra "peau d'âne", conto popular muito conhecido e significa pele enrugada. e cimentado a argila branca dos arredores da fonte, o sal rosa das salinas anunciara os rubros fins de impérios, e a fêmea cinza do moscardo, espectro de olhos de fósforo, se lançará como ninfômana sobre os homens despidos das praias... Lodo escarlate da linguagem, basta de enfatuação!

Quando a seca sobre a terra tiver assentado seus alicerces, conheceremos um tempo melhor para os afrontamentos do homem: tempo de jubilação e de insolência2* 2* . insolence: insolência. Como vimos, o uso paradoxal de imagens que associam termos negativos ou pejorativos a idéias positivas de pureza rigorosa, intransigência, negação radical de concessões a valores menos altos em qualquer plano da vida do espírito, é muito comum na poesia persiana. Neste poema temos ainda heresias, anátema, maldição, blasfêmia, impudência, etc, que exprimem essas ofensivas do espírito e essas piratarias do coração. para as grandes ofensivas do espírito. A terra abandonou suas gorduras e nos lega sua concisão. Cabe-nos, hoje, revezá-la! Recurso ao homem e livre corrida!

Seca, ó favor! honra e luxo de uma elite! diz-nos que eleitos escolheste... Sinistro de Deus, sê nosso cúmplice. A carne aqui esteve mais perto do osso: carne de locusta3* 3* . locuste: (locusta) gênero de gafanhotos. Guardei seu nome científico, seguindo o procedimento do poeta, - como adiante exoceto (peixe-voador), picanço (pica-pau), etc. ou de exoceto! O próprio mar nos devolve suas navetas de osso de siba e suas fitas de algas murchas: eclipse e carência em toda carne, ó tempo chegado das grandes heresias!

Quando a seca sobre a terra tiver retesado seu arco, seremos sua corda breve e a vibração distante. Seca, nosso apelo e nossa abreviação... "E eu, diz o Chamado4* 4* . l'Appelé: o Chamado. Reponta aqui a figura do poeta-profeta, do chamado para exercer a missão de mediador entre os homens e o Ser. Na raiz dessa função profética (como vimos), há uma vocação, um chamado. , tomei minhas armas entre as mãos: tochas erguidas em todos os antros, e que se aclare em mim toda a área do possível! Tenho por consonância de base esse grito distante de meu nascimento".

E a terra emaciada gritava seu grandíssimo grito de viúva injuriada. E foi um longo grito de desgaste e de febrilidade. E foi para nós tempo de crescer e de criar... Sobre a terra insólita nos confins desérticos, onde o relâmpago muda para negro, o espírito de Deus sustinha seu fulgurante ardor, e a terra venenosa enfebrecía como um maciço de coral dos trópicos... Não havia mais cor no mundo que este amarelo de ouro-pigmento?

"Genebreiros da Fenícia", mais frisados que cabeças de Mouros ou de Núbias, e vós, grandes Teixos5* 5* . if: teixo. Árvore de folhas persistentes, símbolo da eternidade. If é também o nome de uma ilhota do Mediterrâneo, a dois quilômetros de Marselha, onde se encontra um castelo forte edificado por Francisco I e que servia de prisão de Estado. A lenda diz que ali foi aprisionado e morreu o Máscara de Ferro, que Alexandre Dumas Filho fez passar por filho de Ana d'Austria, irmão gêmeo de Luiz XIV. Daí o passo do poema que chama o teixo de guardião "de praças fortes e de ilhas cimentadas para prisioneiros de Estado mascarados de ferro". incorruptíveis, guardiães de praças fortes e de ilhas cimentadas para prisioneiros de Estado mascarados de ferro, sereis os únicos, todo esse tempo, a consumir aqui o sal negro da terra? Plantas de garras e espinheiros retornam às charnecas; o cisto e o escambroeiro são peregrinos da brenha... Ah! que nos deixem somente este fio de palha entre os dentes!

Ó Maia6* 6* . Maia: Maia. Deusa indiana, alternativamente a mesma que Sakti ou Parasitki, esposa de Brahma, Lackhmi ou Bhavani, esposa de Siva. É a natureza divinizada, a mãe universal de todos os seres, o princípio fecundador feminino, e como o mundo, segundo a crença dos indus, não é mais que aparência e ilusão. Maia, mãe do mundo, é a mãe das ilusões, ou a ilusão personificada. Outra interpretação: Maia seria a mãe de Hermes (Mercúrio), mensageiro dos deuses. , doce e sábia e Mãe de todos os sonhos, conciliadora e mediadora entre todas as facções terrestres, não temas o anátema e a maldição sobre a terra. Tornarão os tempos que trarão de volta o ritmo das sazões; as noites vão trazer de volta a água viva às tetas da terra. As horas caminham diante de nós com passo de alparcata, e, indócil, a vida remontará de seus abrigos sob a terra com seu povo de fiéis: suas "Lucílias" ou moscas de ouro da carne, seus psocos, suas traças, seus redúvios; e seu "Tálitros", ou pulgas-do-mar, sob o sargaço das praias com aromas de oficina. A Cantárida verde e a Licena azul nos trarão de volta o acento e a cor; e a terra tatuada de vermelho recobrará suas grandes rosas incrédulas, como trama de pano estampado para mulheres da Senegâmbia. Os dartros púrpura do lagarto já mudam, sob a terra, para o negro de ópio e de sépia... Também nos voltarão as belas cobras visitadoras que parecem descer de uma liteira com suas ondulações de ancas à Sanseverina7* 7* . Sanseverina: Nome de uma personagem de Stendhal, de A Cartuxa de Parma, Gina dei Gongo, que, depois de ter enviuvado do Conde de Pietranera, casa-se com o Duque de Sanseverina-Taxis. .

Abelheiros da África e Milhafres apívoros arrazoarão a vespa nas tocas das falésias. E a Poupa mensageira vai procurar ainda sobre a terra a espádua principesca onde pousar...

Rebenta, ó seiva não estancada! O amor jorra por toda parte, até sob o osso e sob a córnea8* 8* . corne: córnea. Pode significar substância córnea, chifre, e uma família de plantas também designada cornuáceas, que compreende árvores e arbustos de madeira dura. Nada tem a ver com a córnea do olho. . A própria terra muda de crosta. Venha o cio, venha a brama! e o homem ainda, todo abismo, se debruça sem queixa sobre a noite de seu coração. Escuta, ó coração fiel, esse palpitar sob a terra de uma asa inexorável... O som desperta e salva o enxame sonoro de sua colmeia; e o tempo engaiolado faz-nos ouvir ao longe seu martelar de picanço... Os gansos selvagens buscam seu grão nas margens mortas dos arrozais, e os celeiros públicos cederão uma tarde ao ímpeto das vagas populares?... Ó terra da sagração e do prodígio - terra pródiga ainda para o homem até em suas fontes submarinas honradas pelos Césares, quantas maravilhas ainda sobem para nós do abismo de tuas noites! Assim por tempo de incubação de tempestade - em verdade o sabíamos? - os pequenos polvos das profundezas remontam com a noite para a face tumefacta das águas...

As noites vão trazer de volta à terra o frescor e a dança: sobre a terra ossificada nos afloramentos de marfim ressoarão ainda sardanas e chaconas, e seu baixo obstinado9* 9* . basse obstinée: baixo obstinado, ou ostinato. Mus. "Melodia repetida continuamente no baixo, com os elementos musicais variando na parte de cima". já nos mantém o ouvido à escuta nas câmaras subterrâneas. No estralejar dos crótalos e do salto de madeira se faz ainda ouvir, através dos séculos, a dançarina gaditana que dissipava na Hispânia o tédio dos Procônsules romanos... As chuvas nômades, vindas do Este, tilintarão ainda no tamborim cigano; e as belas borrascas de fim de estio descidas do alto mar em trajes de gala, passearão ainda sobre a terra as orlas de suas saias bordadas de miçangas...

O movimento para o Ser e renascimento ao Ser! Nômades todas as areias... e o tempo silva ao rés do solo... O vento que desloca para nós a inclinação das dunas nos mostrará talvez na claridade o lugar onde foi moldada de noite a face do deus que ali jazia...

Sim, tudo isso será. Sim, retornarão os tempos que levantam o interdito sobre a face da terra. Mas por um tempo ainda é o anátema, e a hora ainda é da blasfêmia: a terra sob ataduras, a fonte debaixo de selos... Pára, ó sonho, de ensinar, e tu, memória, de engendrar.

Ávidas e mordentes sejam nossas horas novas! e perdidas também no campo da memória, onde nenhuma jamais serviu de respigadeira. Breve ávida, breve a corrida, e a morte nos espolia! A oferenda ao tempo não é mais a mesma. Ó tempo de Deus, sê-nos computável.

Nossos atos nos precedem, e a imprudência nos conduz: deuses e patifes sob a mesma estrígil10* 10* . étrille: estrígil. A estrígil era, na antiguidade, uma espécie de almofaça (raspadeira), com que se esfregava o corpo, especialmente no banho. Esses deuses e velhacos (que somos todos nós) vivem numa intimidade, que chega às raias da promiscuidade, "enredados'na mesma família"... , enredados para sempre na mesma família. E nossos caminhos são comuns, e nossos gostos são os mesmos - ah! todo esse fogo de uma alma sem aroma que leva o homem ao seu ponto mais exposto: ao mais lúcido, ao mais breve dele mesmo!

Agressões11* 11* . agressions: agressões. Note-se que agressão tem a mesma etimologia que transgressão. Aggredior (de gradior, caminhar, marchar): caminhar em direção a, dirigir-se a, ir contra, acometer, agredir; transgredior, transpor obstáculos, passar além de, violar. Delamore (op. cit., p. 120), depois de lembrar que agressões, significa, etimologicamente, "marcha para a frente" diz: "Trata-se de uma entrada numa terra desconhecida, mesmo interdita" daí a agressão, a "insolência" daquele que quer penetrar a "terra de Deus" - "a marcha agressiva leva â transposição das barreiras pela violência" - à transgressão, no sentido persiano. do espírito, piratarias do coração - ó tempo chegado de grande cobiça. Nenhuma oração sobre a terra iguala nossa sede; nenhuma afluência em nós estanca a fonte do desejo. A seca nos incita e a sede nos aguça. Nossos atos são parciais, nossas obras parcelares! Ó tempo de Deus, enfim nos serás cúmplice?

Deus se desgasta contra o homem, o homem se desgasta contra Deus. E as palavras à linguagem recusam seu tributo: palavras sem ofício e sem aliança, e que devoram cerce a folha vasta da linguagem como folha verde de amoreira, com a voracidade de insetos, de lagartas... Seca, ó favor, diz-nos os eleitos que escolheste.

Vós que falais o osseto sobre alguma vertente caucasiana, por tempo de grande seca e esboroamento rochoso, sabeis quão próximo do solo, ao longo da erva e da brisa, se faz sentir do homem o hálito do divino. Seca, ó favor! Meio-Dia, o cego, nos ilumina: fascinação no solo do signo e do objeto.

Quando a seca sobre a terra tiver descerrado seu amplexo, reteremos de seus crimes os dons mais preciosos: magreza e sede e favor de ser. "E eu, diz o Chamado12* 12* . l'Appelé: o Chamado. Reponta aqui a figura misteriosa do poeta-profeta, mediador entre os homens e o Ser. Na base da sua missão há um chamamento. , febricitava desta febre. E a avania do céu foi nosso ensejo". Seca, ó paixão! deleite e festa de uma elite.

E eis-nos agora nas estradas de êxodo. A terra ao longe queima seus arômatas. A carne crepita até o osso. Regiões atrás de nós se extinguem em pleno fogo do dia. E a terra posta a nu mostra suas clavículas gravadas de sinais ignotos. Aonde foram os centeios, o sorgo, fumega a argila branca, cor de fezes torrificadas.

Os cães descem conosco as pistas enganosas. E Meio-Dia, o Ladrador13* 13* . L'Aboyeur: o Ladrador. 1) Termo de caça. Sorte de cães que ladram à vista do javali, sem se aproximarem dele. 2) Fig. Aquele que procura ardentemente uma coisa. Em Amers (OC 373) encontramos "o Ladrador dos mortos à beira das fossas funerárias". , procura seus mortos nas valas atulhadas de insetos migradores. Mas nossas estradas estão alhures, nossas horas são demenciais, e, roídos de lucidez, ébrios de intempérie, eis que avançamos uma tarde na terra de Deus como um povo de famintos que devorou suas sementes.

Transgressão! transgressão! Decisiva nossa marcha, impudente nossa busca. E diante de nós por si mesmas crescem nossas obras por vir, mais incisivas e breves, e como que corrosivas.

Do agre e do acerbo conhecemos as leis. Mais que vitualhas de África ou que especiarias latinas, nossos acepipes abundam em ácidos, e nossas fontes são furtivas. Ó tempo de Deus, sê-nos propício. E de uma queimadura de alho nascerá talvez uma tarde a centelha do gênio. Onde corria ela ontem, onde correrá amanhã?

Nós ali estaremos, e entre os mais prontos, para cingir-lhe sobre a terra o esboço fulgurante. A aventura é imensa e dela cuidaremos. Eis aí esta tarde o que convém ao homem.

Pelo sete ossos soldados da fronte e da face, que o homem em Deus se obstine e se desgaste até o osso, ah! até o estilhaçamento do osso!... Sonho de Deus, sê nosso cúmplice...

"Símio de Deus14* 14* . Singe de Dieu: Símio (ou macaco) de Deus. Para Dolamore (Op. cit., p. 125), ele seria o "espírito criador no fundo do próprio poeta". Claverie (Op. cit., p. 101) vê de outro modo; "Se a poesia usurpa, voluntariamente, os poderes da religião, o poeta se arroga os privilégios de Deus, o que exprime a apóstrofe de SJP a si mesmo no termo da sua criação. Seria o poema, pois, o ídolo por excelência, o falso deus que mais se parece com a Divindade?" Símio de Deus é também uma expressão usada por alguns Padres da Igreja para se referir ao demônio. Esse macaco de Deus o imita, parodiando, não consegue ser seu exato reflexo; pretende se fazer passar por Deus, mas nada mais é do que sua contrafação... , basta de astúcias!"

NOTAS À TRADUÇÃO

  • 2- Octávio Paz, "Un Hymne moderne", in Honneur à Saint-John Perse, Paris, Gallimard, 1965, p. 254.
  • 3- "André Gide 'Face aux Lettres Françaises, 1909'", in Oeuvres Complètes de Saint-John Perse, Paris, Gallimard, 1972, p. 473.
  • 8- Roger Caillois, Poétique de Saint-John Perse, Paris, Gallimard, (1972). (Esta continua a ser a melhor obra sobre a poética persiana).
  • 9- Madeleine Frédéric, La répétition et ses structures dans l'oeuvre de SJP, Paris, Gallimard, 1984, p. 11.
  • 20- André Claverie, "Une poésie de la célébration". Cahiers Saint-John Perse, 4(1981), p. 90-91.
  • 1*
    .
    peau d'ânesse: pele ou couro de asna. Lembra "peau d'âne", conto popular muito conhecido e significa pele enrugada.
  • 2*
    .
    insolence: insolência. Como vimos, o uso paradoxal de imagens que associam termos negativos ou pejorativos a idéias positivas de pureza rigorosa, intransigência, negação radical de concessões a valores menos altos em qualquer plano da vida do
    espírito, é muito comum na poesia persiana. Neste poema temos ainda
    heresias, anátema, maldição, blasfêmia, impudência, etc, que exprimem essas
    ofensivas do espírito e essas
    piratarias do coração.
  • 3*
    .
    locuste: (locusta) gênero de gafanhotos. Guardei seu nome científico, seguindo o procedimento do poeta, - como adiante
    exoceto (peixe-voador),
    picanço (pica-pau), etc.
  • 4*
    .
    l'Appelé: o Chamado. Reponta aqui a figura do poeta-profeta, do chamado para exercer a missão de mediador entre os homens e o Ser. Na raiz dessa função profética (como vimos), há uma
    vocação, um chamado.
  • 5*
    .
    if: teixo. Árvore de folhas persistentes, símbolo da eternidade. If é também o nome de uma ilhota do Mediterrâneo, a dois quilômetros de Marselha, onde se encontra um castelo forte edificado por Francisco I e que servia de prisão de Estado. A lenda diz que ali foi aprisionado e morreu o
    Máscara de Ferro, que Alexandre Dumas Filho fez passar por filho de Ana d'Austria, irmão gêmeo de Luiz XIV. Daí o passo do poema que chama o teixo de guardião "de praças fortes e de ilhas cimentadas para prisioneiros de Estado mascarados de ferro".
  • 6*
    .
    Maia: Maia. Deusa indiana, alternativamente a mesma que Sakti ou Parasitki, esposa de Brahma, Lackhmi ou Bhavani, esposa de Siva. É a natureza divinizada, a mãe universal de todos os seres, o princípio fecundador feminino, e como o mundo, segundo a crença dos indus, não é mais que aparência e ilusão. Maia, mãe do mundo, é a mãe das ilusões, ou a ilusão personificada. Outra interpretação: Maia seria a mãe de Hermes (Mercúrio), mensageiro dos deuses.
  • 7*
    .
    Sanseverina: Nome de uma personagem de Stendhal, de
    A Cartuxa de Parma, Gina dei Gongo, que, depois de ter enviuvado do Conde de Pietranera, casa-se com o Duque de Sanseverina-Taxis.
  • 8*
    .
    corne: córnea. Pode significar substância córnea, chifre, e uma família de plantas também designada cornuáceas, que compreende árvores e arbustos de madeira dura. Nada tem a ver com a córnea do olho.
  • 9*
    .
    basse obstinée: baixo obstinado, ou
    ostinato. Mus. "Melodia repetida continuamente no baixo, com os elementos musicais variando na parte de cima".
  • 10*
    .
    étrille: estrígil. A estrígil era, na antiguidade, uma espécie de almofaça (raspadeira), com que se esfregava o corpo, especialmente no banho. Esses deuses e velhacos (que somos todos nós) vivem numa intimidade, que chega às raias da promiscuidade, "enredados'na mesma família"...
  • 11*
    .
    agressions: agressões. Note-se que
    agressão tem a mesma etimologia que
    transgressão. Aggredior (de
    gradior, caminhar, marchar): caminhar em direção a, dirigir-se a, ir contra, acometer, agredir;
    transgredior, transpor obstáculos, passar além de, violar. Delamore (op. cit., p. 120), depois de lembrar que
    agressões, significa, etimologicamente, "marcha para a frente" diz: "Trata-se de uma entrada numa terra desconhecida, mesmo interdita" daí a agressão, a "insolência" daquele que quer penetrar a "terra de Deus" - "a marcha agressiva leva â transposição das barreiras pela violência" - à
    transgressão, no sentido persiano.
  • 12*
    .
    l'Appelé: o Chamado. Reponta aqui a figura misteriosa do poeta-profeta, mediador entre os homens e o Ser. Na base da sua missão há um chamamento.
  • 13*
    .
    L'Aboyeur: o Ladrador. 1) Termo de caça. Sorte de cães que ladram à vista do javali, sem se aproximarem dele. 2) Fig. Aquele que procura ardentemente uma coisa. Em Amers (OC 373) encontramos "o Ladrador dos mortos à beira das fossas funerárias".
  • 14*
    .
    Singe de Dieu: Símio (ou macaco) de Deus. Para Dolamore (Op. cit., p. 125), ele seria o "espírito criador no fundo do próprio poeta". Claverie (Op. cit., p. 101) vê de outro modo; "Se a poesia usurpa, voluntariamente, os poderes da religião, o poeta se arroga os privilégios de Deus, o que exprime a apóstrofe de SJP a si mesmo no termo da sua criação. Seria o poema, pois, o ídolo por excelência, o falso deus que mais se parece com a Divindade?" Símio de Deus é também uma expressão usada por alguns Padres da Igreja para se referir ao demônio. Esse macaco de Deus o imita, parodiando, não consegue ser seu exato reflexo; pretende se fazer passar por Deus, mas nada mais é do que sua contrafação...
  • *
    Tradutor de Saint-John Perse desde 1959. Entre outras traduções publicadas:
    Poemas de Saint John Perse, Rio de Janeiro, Grifo edições, 1971
    eAnábase, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979.
  • 1
    - Servi-me-ei do meu estudo do mesmo nome, publicado em postfácio à minha tradução de
    Anabase (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979).
  • 2
    - Octávio Paz, "Un Hymne moderne", in
    Honneur à Saint-John Perse, Paris, Gallimard, 1965, p. 254.
  • 3
    - "André Gide 'Face aux Lettres Françaises, 1909'", in
    Oeuvres Complètes de Saint-John Perse, Paris, Gallimard, 1972, p. 473.
  • 4
    - "A propos de 'Sécheresse'",
    Cahiers du XXe. siècle, 7 (1976), p. 123.
  • 5
    - Emile Noulet (em "L'octossilabe dans
    Amers", in
    Honneur..., Paris, Gallimard, 1965, p. 316 e s.) mostrou que há na obra poética de SJP uma notável freqüência de metros pares: alexandrinos, decassílabos, mas sobretudo octossílabos, ora isolados, ora em insólitas combinações com outros metros, como o hexassílabo, alongado para quatorze sílabas, ora duplicados, estirando-se ainda mais, para dezesseis. Para um estudo mais aprofundado da métrica persiana, leia-se: Bateman, Jacqueline, "Questions de métrique persienne",
    Cahiers du XXe. Siècle, 7 (1976), m p. 27 ss. Favre, Yves-Alain,
    SJP. Le Langage et le sacré, Paris, Corti, 1977. Little, Roger,
    SJP, London, Athlone Press, 1973. Rutten, Pierre van. Le
    Langage poétique de SJP, Paris/La Haie, Mouton, 1975.
  • 6
    - ... de 12.12.1955,
    OC p. 922.
  • 7
    - A unidade de base da métrica persiana é o
    verset (versículo), verso poético de comprimento variável. O agrupamento de um certo número de
    versets (indicado por espaços, ou entrelinhas,
    interlignes, mais importantes) dá uma
    laisse. Evita-se o termo "estrofe", pois isso se prestaria a confusão.
  • 8
    - Roger Caillois,
    Poétique de Saint-John Perse, Paris, Gallimard, (1972). (Esta continua a ser a melhor obra sobre a poética persiana).
  • 9
    - Madeleine Frédéric,
    La répétition et ses structures dans l'oeuvre de SJP, Paris, Gallimard, 1984, p. 11.
  • 10
    -
    Carta a Katherine Biddle, de 12.12.1955, OC 922.
  • 11
    - Poésie.
    Discours de Stockholm, OC 444.
  • 12
    - "Pelo pensamento analógico e simbólico, pela iluminação da imagem mediadora e pelo jogo de suas correspondências, sobre mil cadeias de reações e de associações estranhas, enfim pela graça de uma linguagem em que se transmite o movimento mesmo do Ser, o poeta investe-se de uma super realidade que não pode ser a da ciência". Id. Ibid. p. 444.
  • 13
    - Id. ibid., p. 446.
  • 14
    - Sobre a função profética do poeta, diz Henriette Levillain: "O desenrolar do ato poético de SJP corresponde (...) muito exatamente às fases sucessivas definidas por Heidegger: 'O dizer do poeta consiste em surpreender os sinais (signes) para fazer sinal (faire signe) a seu povo; depois a profetizar o Ainda-não-realizado (Non-encore-accompli)'. (...) Desde a origem, o poeta deve inclinar-se diante da sua função de profeta: o poema não proveio de um desejo pessoal ou de uma circunstância exterior, mas de uma eleição por um Poder (Puissance) superior".
    (Le Rituel poétique de SJP, Paris, Gallimard, 1977, p. 302-303).
  • 15
    - Em "L'Empire des choses vraies"
    (Honneur..., p. 190), André Rousseau escreve: "A poesia de SJP é a celebração do intercâmbio entre esses dois segredos vitais: a verdade do homem e a verdade das coisas. Sobre o amontoado das escórias conservadas e conservadoras, ela proclama que o gênio do homem, sem ser, literalmente falando, criador, é o da invenção reveladora. Diante do império das coisas verdadeiras, o rei da terra tem a honra, não de lhes trazer e de lhes impor uma verdade que viria dele só, mas de extrair da profundeza delas para a luz universal a verdade de que as coisas vivem".
  • 16
    -
    Vents, III, 4, OC 224.
  • 17
    - "Pour une lecture de SJP",
    Cahiers du XXe. Siècle,. 7 (1976), p. 14.
  • 18
    - O grifo é meu.
  • 19
    - Gaëtan Picon, "Le plus hautainement libre", in
    Honneur..., p. 58.
  • 20
    - André Claverie, "Une poésie de la célébration".
    Cahiers Saint-John Perse, 4(1981), p. 90-91.
  • 21
    - Dan-Ton Nasta vai mais longe: "Se não é excessivo falar de uma
    cosmologia da transgressão, a partir sobretudo da efervescência do universo "em marcha", será ainda menos ilegítimo falar de uma
    ética da transgressão. A pose violenta das figurações humanas que povoam as estrofes de Perse, seu paroxismo, parecem dizer respeito à (...) crueza da visão poética" (à "ferocidade do Ser sem pálpebra"). "O decálogo que se esboça através (desses) poemas (...) dá
    droit de cité ao erro, tolera os litígios, institue o desentendimento ("mésintelligence"), enaltece a discórdia enquanto força motora da evolução. Sem se aproximar do niilismo, nem mesmo soçobrar no heterodoxo, essa moral (...) exalta a força libertadora do erro, o impacto tonificante do ilogismo"
    (Saint-John Perse et la découverte de l'être, Paris, Presses Universitaires de France, 1980, p. 17-18.) Leia-se sobretudo o capítulo III, "La Transgression", p. 109 ss.
  • 22
    - "Poète, toujours, ce rebelle-né, qui revendique dans l'homme plus que l'homme".
    Pour Dante, Paris, Gallimard, 1965, p. 15.)
  • 23
    - "Un poème de SJP 'Vents' ",
    Les Cahiers de la Pléiade, X (1950), p. 67.
  • 24
    -
    Carta a Paul Claudel, OC 1019-1020.
  • 25
    - Op. cit., p. 92-93.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Jan 1987
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