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O invisível como negativo do visível: a grandeza negativa em Merleau-Ponty

The invisibel as negative of visibel: the negative grateness in Merleau-Ponty

Resumos

Este texto pretende mostrar a crítica de Merleau-Ponty à ontologia do ser e do nada de Sartre. Contra o modelo da contradição, típica dessa ontologia, Merleau-Ponty retoma a noção kantiana de grandeza negativa e o seu modelo de oposição real.

Merleau-Ponty; ontologia; grandeza negativa; oposição real


The aim of this paper is to present Merleau-Ponty’s criticism of Sartre’s ontology of being and nothingness. Against the model of contradiction, typical of that ontology, Merleau-Ponty resorts to the Kantian notion of negative grateness and its model of real opposition.

Merleau-Ponty; ontology; negative grateness; real opposition


O invisível como negativo do visível: a grandeza negativa em Merleau-Ponty1 1 Este texto é uma versão levemente modificada de uma palestra proferida em maio de 2003, no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, por ocasião do I Encontro de Filosofia Francesa Contemporânea.

The invisibel as negative of visibel: the negative grateness in Merleau-Ponty

Luiz Damon Santos Moutinho2 2 Professor do Departamento de Filosofia da UFPR.

RESUMO

Este texto pretende mostrar a crítica de Merleau-Ponty à ontologia do ser e do nada de Sartre. Contra o modelo da contradição, típica dessa ontologia, Merleau-Ponty retoma a noção kantiana de grandeza negativa e o seu modelo de oposição real.

Palavra-chave: Merleau-Ponty; ontologia; grandeza negativa; oposição real.

ABSTRACT

The aim of this paper is to present Merleau-Ponty’s criticism of Sartre’s ontology of being and nothingness. Against the model of contradiction, typical of that ontology, Merleau-Ponty resorts to the Kantian notion of negative grateness and its model of real opposition.

Key words: Merleau-Ponty; ontology; negative grateness; real opposition.

I

Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty parece conceder um alcance inédito ao negativo. Em uma nota de trabalho de janeiro de 1960, ele chega a afirmar: “é o negativo que torna possível o mundo vertical (...) o ser de transcendência” (Merleau-Ponty, 1996, p.281). É a negatividade, diz ele em outra nota, “que faz que o corpo não seja fato empírico, que ele tenha significação ontológica” e, por isso, a negatividade não deve ser “minimizada” (idem, p.308). Aquele que se pretende “pela metafísica” e “contra a finitude em sentido empírico, existência de fato que tem limites” (idem, p.305), vai encontrar no negativo, na medida em que ele o leva para além do fato empírico, a condição para instalar-se na metafísica. Que esse tema tenha consumido boa parte das reflexões de Merleau-Ponty, isso pode ser vislumbrado pelas dimensões do manuscrito dedicado a desancar a concepção sartriana do negativo: trata-se do mais longo capítulo de O visível e o invisível, o “Interrogação e dialética”. Curioso é que, nessa retomada do conceito de negativo, e nesse embate contra Sartre, Merleau-Ponty retome um Kant pré-crítico (1763), o Kant do conceito de grandeza negativa e oposição real, duas vezes citado nas “Notas de trabalho” (idem, p.314, 318). Essa passagem por Kant, Sartre também a fez, e a anuncia explicitamente, ali mesmo onde a negação parece assumir em Kant, segundo Sartre, um papel posicional. Há realidades, diz ele, que são habitadas pela negação em sua intraestrutura, como se a negação se tornasse condição de positividade (Sartre, 1969, p. 57) – o que Kant teria sido o primeiro a vislumbrar. Não é questão aqui para nós retomar essa leitura.3 3 Tomamos a liberdade de indicar ao leitor um artigo nosso em que essa discussão é feita de modo mais detalhado. Cf. “Negação e finitude na fenomenologia de Sartre” in Revista Discurso, 2003, número 33. Basta-nos apontar alguns poucos elementos dessa leitura de modo a elaborar a noção de negativo em Sartre, diante de Kant, e as objeções de Merleau-Ponty, que pretende retomar, contra Sartre, a grandeza negativa kantiana.

II

É verdade, como nos mostra Lebrun, que a negação torna-se em Kant posicional, que encontramos nele a idéia de que a sombra é “inseparável daquilo que ela ensombrece”, e de que nisso “Kant difere dos clássicos” (Lebrun, 1993, p.261). A negação é posicional, isto é, ela torna-se uma “qualificação para o ser finito” (idem, p. 259): ainda que a realidade enquanto tal seja algo de positivo, a negação adquire o poder de limitar e determinar o grau de realidade, a sua finidade. Lebrun cita Considerações sobre o otimismo (1759):

se as realidades] devessem diferir umas das outras enquanto realidades, precisaria haver em cada uma algo de positivo que não estaria na outra: pensaríamos então em algo de negativo pelo qual ela se distinguiria da outra (...) Portanto, uma realidade e uma realidade só se distinguem uma da outra pelas negações, as ausências, os limites que afetam uma das duas – não em relação à sua natureza (qualitate), mas à sua grandeza (gradu) (idem, p. 259-60 e Lebrun, 1993, p.274).

A negação, certamente, não é uma qualidade; antes disso, ela tem o poder de qualificar, de pôr “pelo próprio fato de excluir” (Lebrun, 1993, p.259), de modo que os seres do mundo tornam-se “indissoluvelmente reais e negativos”: “a ‘parte’, malgrado o que ela comporta de positivo, não pode nunca ser despojada de sua ‘parcialidade’” (idem, p.261). Daí porque a carência não se reduz mais, como acontecia entre os clássicos, a uma mera fantasia, mas se torna, para nós, “a única maneira de distinguir a coisa” (idem, p.260). Surge aqui uma ruptura entre a realidade em si e a realidade finita e afetada por negações, isto é, uma ruptura entre o infinito e o finito.

Mas que é afinal uma grandeza negativa? No prefácio ao ensaio sobre as grandezas negativas, de 1763, Kant afirma: “as grandezas negativas não são negações de grandezas, como deixou supor a analogia da expressão, mas algo em si mesmo verdadeiramente positivo, que é simplesmente oposto ao outro” (Kant, 1972, p.16).4 4 Servimo-nos aqui também da tradução brasileira, ainda inédita, de Jair Lopes Barboza e Vinicius de Figueiredo. Por negativo, não se deve entender um negativo-em-si (o que acarretaria uma oposição por contraditoriedade), mas a simples oposição entre duas realidades positivas (o que não acarreta contradição): a oposição é dupla, diz Kant: “ou lógica, mediante a contradição, ou real, isto é, sem contradição” (idem, p.19). No primeiro caso, a conseqüência é nada (nihil negativum irrepraesentabile) (o mesmo corpo que está em movimento e não está em movimento ao mesmo tempo). No segundo, a conseqüência é algo (nihil privativum, repraesentabile) – mas então o que se opõem são duas determinações de mesma natureza, contrárias, não contraditórias. Assim, diz Kant, “a força motriz de um corpo que se dirige a uma região, bem como um esforço igual do mesmo corpo em uma direção oposta, não se contradizem um ao outro e, como predicados, são possíveis ao mesmo tempo em um corpo” (idem, p. 19-20). O repouso é aqui a conseqüência, e ele é algo: eu posso pensar a não-existência de um movimento, mas é impensável que ele seja e não seja ao mesmo tempo. O repouso então não é sinônimo de quietude, de imobilidade; ele é antes resultante de um jogo de forças contrárias, não-contraditórias. A grandeza será negativa apenas enquanto estiver ligada a outra grandeza por essa relação de oposição, fazendo desaparecer na outra uma grandeza igual a ela mesma. É só quando se referem a um mesmo objeto, opondo-se, que essas grandezas são negativas umas das outras.

III

Ora, certamente o negativo passa a ter aqui um “valor de realidade” (Lebrun, 1993, p.266) – ou, como diz Sartre, o negativo passa agora a habitar a realidade em sua intraestrutura –, mas o que é característico desse “conceito antidogmático” de oposição real é que o negativo só aparece “na interseção de realidades positivas” (idem, p.272). Ainda vale aqui, portanto, o axioma parmenídico: “a realidade é algo, a negação não é nada”. É que, se há de um lado uma oposição real, resta que, de outro, justamente porque cada um dos termos pode representar tanto o papel do “positivo” quanto do “negativo”, não há o “positivo em si” nem o “negativo em si”. Ora, se nos voltarmos agora a Sartre, vamos encontrar também nele a validade do axioma parmenídico e, mais ainda, o caráter posicional da negação. Ocorre que, ao contrário de Kant, Sartre não vai ao ponto de reconhecer uma oposição efetiva, de modo que a negação posicional não implica ali uma relação real. É uma negação que subjaz à determinação “tinteiro” (“é porque o tinteiro não é a mesa – nem o cachimbo, nem o copo, etc – que podemos apreendê-lo como tinteiro” (Sartre, 1969, p.235). No entanto, essa negação (“externa”, na terminologia de Sartre) nada mais é que a expressão idealizada pela qual o objeto aparece a um sujeito, sem exprimir nenhuma relação real, nenhum conflito, nenhuma oposição entre os seres. Esse nada, diz Sartre, permanece no ar, ele não remete a uma relação real. Tem razão Lebrun em, distinguindo Kant do “dogmatismo” pelo conceito de oposição real, colocar Sartre ao lado deste último: dizer que o tinteiro não é a mesa, nem o cachimbo, nem o copo, se assemelha antes a Malebranche quando falava dos “nadas”: “minha mão, dizia ele, não é minha cabeça, nem minha cadeira, nem meu quarto... (Lebrun, 1993, p.265 e 1972, p.278).

De onde vem essa nada intramundano que tanto aproxima Sartre dos clássicos? Ele é apenas um correlato – o que, por sua vez, já é suficiente para afastá-lo dos clássicos. Um correlato um tanto curioso porque, de modo inédito, ele remete a um duplo fundamento – de um lado, a um ser plenamente positivo, de outro, a um negativo mais originário do que ele; em suma, ele remete ao ser e ao nada (dessa vez, “nada puro”, distinto do nada intramundano). E aqui, mais que a ontologia do ser e do nada, vamos encontrar a retomada, para além de Kant e dos clássicos, da contradição. É a partir daqui, do ser, do nada e da contradição, que aquele nada intramundano e, com ele, a noção de fenômeno, serão pensados.

O em si, diz Sartre, é “plenitude absoluta e inteira positividade”, a tal ponto que a negação dele é inteiramente incapaz de atingir o seu núcleo. Pode-se apresentar o ser como pura indeterminação, a tal ponto que nada possamos apreender nele; mas isso, crê Sartre, é um puro golpe de prestidigitação, se por esse meio se pretende introduzir implicitamente a negação na definição de ser para dizer, a partir de então, que o ser puro é também nada e fazer “passar” o ser no nada. Pois, pode-se negar do ser toda determinação e todo conteúdo; e isto ainda exige a afirmação de que o ser é: “assim, que se negue do ser tudo que se queira, não se poderia fazer que ele não seja, pelo fato mesmo de que se nega que ele seja isto ou aquilo” (Sartre, 1969, p.50). O ser resiste como positividade e a negação aparece como incapaz de atingi-lo por dentro. Pode-se esvaziar o ser de toda determinação possível, de tudo quanto se queira – não, contudo, de sua identidade consigo mesmo. Aqui, a identidade do ser consigo mesmo exclui qualquer negatividade, qualquer passagem pela alteridade. Essa passagem, essa negação, vem à superfície do ser pela realidade humana, não por uma dialética própria ao ser; tais relações são portanto externas, não internas ao ser. O princípio de identidade implica, pois, “a negação de toda espécie de relação no seio do ser em si” (idem, p. 120). Daí porque, mais que afirmar uma identidade do ser consigo mesmo, Sartre prefere dizer que o ser é maciço, plena positividade, “demais para a eternidade” (idem, p. 34). Assim, o ser não “passa” no nada e o não-ser se afirma como seu contraditório: de um lado, o ser permanece como plena positividade; de outro, o negativo se afirma como pura negação do ser.

Ora, mas como pode surgir daqui o fenômeno? Só há fenômeno se o ser disso que se manifesta permanecer irredutível às suas diversas manifestações, como ser em si. Mais: se na origem desse fenômeno houver uma relação negativa pela qual a consciência do objeto se distinga do objeto: só se pode ser consciência de algo se se é, de início, negação desse algo. O objeto é para mim, antes de mais nada, o que eu não sou, ele só pode existir para mim se ele é um não-eu. A negação deve ser dada de início como “fundamento a priori de toda experiência” (idem, p. 222). Eis aqui a negação do ser. Mas isso não pode ser tudo: seja do lado do objeto, seja do lado da consciência, há ainda algo mais. Quanto à consciência, há um mínimo recuo pelo qual ela não se identifica com essa negação que ela é e, por conta disto, ela é consciência não só do objeto mas também consciência (de) si; quanto àquilo que se manifesta (essa mesa, a cor dessa fruta), ele não se manifesta sozinho, mas em relação, em um mundo. Esses dois aspectos também remetem, como sempre, à negação, mas desta vez à negação voltada sobre si mesma. Como poderia ser diferente? Afinal, se uma negação deve separar o eu do não-eu, é preciso que o próprio eu esteja separado de si mesmo; do contrário, não haveria para ele “não-eu”, pois ele não se saberia distinto do objeto. Separado de si mesmo, um pouco além de si mesmo, eis aqui por onde Sartre descortina o “escapamento”, o “ultrapassamento de si mesmo”, em suma, a transcendência. Não se é consciência de um objeto senão em transcendência, para além de si mesmo. Assim, o eu é presença ao ser enquanto é presença a si, enquanto é distância a si, enquanto realiza a dispersão, a multiplicidade no seio de sua unidade - enquanto “totalidade”.

Daí porque jamais me será dado apenas um objeto, isto de que eu sou negação, um elemento simples, digamos assim; minha negação, embora localizada diante deste ser aqui, tende a ir adiante, a ultrapassá-lo, a transcendê-lo, e por isto eu estou sempre para além dele. Nascem então as relações do lado do ser e que vão perfazer o fenômeno, o mundo, uma nova espécie de “totalidade”. Não se é de início negação do “todo”, do mundo; o todo é uma determinação e enquanto tal remete à negação – à negação voltada sobre si mesma, origem da transcendência. Portanto, o mundo só aparece nesse movimento de ultrapassamento. E como a relação entre consciência e ser não é de constituição, mas apenas de negação, nada de real pode advir ao ser: negar o ser não o altera em uma vírgula. Toda determinação pela qual o “isto” aparece diante “daquilo”, do “todo”, não alcança o ser.

O ser permanece irredutível às suas manifestações, “transfenomenal”, como ser em si, como o contraditório que não “passa” no nada, que não conhece mudança, devir, relação, alteridade (idem, p.33-4). As relações que o para si traz ao ser são portanto externas a ele. E elas só se tornaram possíveis porque a negação também se voltou sobre si mesma. Tudo se passa como se a negação, para ser pura, devesse se autonegar; do contrário, ela “passaria” no ser, ela se afirmaria como ser negativo. É o que exige uma verdadeira contradição: que os contraditórios não “passem” um no outro, nem o ser no nada, nem tampouco o nada no ser, de modo que a exclusividade seja definitiva. O ser é “plena positividade” (idem, p.33) e o não ser é um puro não-ser – tão exclusivos um do outro, tão purificados, que não há mediação possível. Vem daqui, finalmente, desse negativo puro voltado sobre si, a origem do para si e do fenômeno. O para si se revela como transcendência e o fenômeno como um complexo de relações não inerentes ao ser, mas externas a ele. Essas relações nem são do para si, posto que o para si é apenas transcendência, nem são do em si, posto que o em si não tem nenhuma determinação; nem são subjetivas, nem são objetivas, no sentido em que não têm a realidade do ser em si. São apenas maneiras pelas quais o para si, como pura negação do em si, realiza o mundo. A cor dessa fruta me aparece em relação, como parte de um fenômeno, e nessa medida, essa relação implica o para si: não há mundo sem para si (e nisto o idealista tem razão). Mas o idealista erra porque não vê que do para si parte apenas uma negação, não uma projeção, não uma constituição: o mundo não vem ao ser pelo para si; antes, ao contrário, o ser vem ao mundo pelo para si. E, por outro lado, o mundo não é outro que o em si (nisto tem razão o realista), já que o mundo é alguma coisa que acontece ao em si, é um fenômeno. Mas o realista não viu que o fenômeno não é nada de real, é apenas um nada acrescentado ao em si, uma maneira pela qual o “hᔠé realizado.

IV

Que Merleau-Ponty tem a notar a essa ontologia do ser e do nada? Se quisermos reencontrar a zona pré-reflexiva de abertura ao Ser, diz ele, seremos conduzidos, de um lado, a uma coisa que é toda em ato, absolutamente estranha a toda interioridade e que repousa em si sem medida comum com nossos “pensamentos”; de outro lado, nada se interpõe entre o ser sujeito e a coisa, o sujeito está em ek-stase no mundo, de modo que nenhum “pensamento”, nenhuma “imagem”, nenhum “ego” se interpõe entre ele e as coisas, esvaziado que ele foi de todos os fantasmas com os quais a filosofia o esmagou (Merleau-Ponty, 1996, p.77). O sujeito é aqui pura negatividade (qualquer conteúdo implicaria uma forma de positividade e me faria crer que sou res cogitans, coisa) e a coisa é inteira positividade (que eu a perceba, isto não a altera em uma vírgula no seu ser de coisa). Ora, mas então, dessa purificação mútua (que, para Sartre, é o que implica uma verdadeira contradição), já não há, nota Merleau-Ponty, nenhuma interação: entre mim e o mundo não há ponto de encontro, nem ponto de retorno, pois ele é o ser e eu sou nada (idem, p.78). Seja isto diante de meus olhos. Para a “filosofia da negatividade” (idem, p.81), ele me é presente porque nada me separa dele, porque estou nele, não em mim, em minhas representações; em suma, ele me é presente porque eu sou nada. No entanto, eu não sou um nada absoluto; enquanto tenho diante de mim isto, eu sou um nada determinado; dir-se-ia que há aqui um começo de positividade, que meu nada é preenchido ou anulado. Mas essa pseudopositividade de meu presente, nota Merleau-Ponty com rigor, é apenas uma negação reduplicada, negação de si mesma: em um instante, enquanto eu falava, meu presente desapareceu e deu lugar a um outro isto (idem, p.79), e assim sucessivamente – é precisamente isso que Sartre denomina “transcendência”.

Essa solução, certamente, não satisfaz Merleau-Ponty. Importa-lhe notar que não há aqui imbricação entre as duas regiões de ser, não há mistura. A transcendência de que fala Sartre não é senão resultado de uma negação ainda mais profunda, pensada até o fim. Ela não envolve, portanto, mediação, compromisso, envolvimento. Daí porque, na pena de Sartre, “todos os problemas da filosofia clássica se volatilizam, porque eram problemas de ‘mistura’ ou de ‘união’, e mistura e união são impossíveis entre aquilo que é e aquilo que não é” (idem, p.81-2). Na ontologia do ser e do nada, a separação deve ser definitiva, mas também, e Merleau-Ponty não deixa de notá-lo, a união é absoluta, sem a mínima distância – e é mesmo por esse duplo jogo que Sartre pode dissolver os problemas da filosofia clássica. Afinal, se o sujeito é nada é apenas porque está inteiramente consagrado às coisas, sem a mínima distância, como presença imediata ao ser, em “ek-stase”, lá fora, junto às coisas: a negação vive do ser que nega. “Estritamente opostos e estritamente confundidos” (idem, p.78), eis o mote sartriano para dissolver as velhas antinomias entre o idealismo e o realismo: o ser me é dado sem distância, o mundo é o próprio ser, o ser está em toda parte e o realista tem razão, pois o para si nada acrescenta ao em si, em nada o modifica. Nada me separa desse ser que me investe mas, justamente por isto, ele é insuperável – porque é nada: o para si é presença imediata ao ser, mas está separado dele em uma distância infinita; se pretendo apreender o absoluto, sou remetido de volta a mim mesmo, já que esse nada, as relações, as determinações do ser são devidas ao para si e nisto tem razão o idealista. E justamente ali onde cada um tem razão, o seu adversário não a tem mais, de modo que ambos a têm e não a têm a um só tempo. Faltou-lhes, na sucessão de mal-entendidos que é o debate entre idealistas e realistas, pensar o negativo rigorosamente. Eis enfim o que se pode concluir de Sartre, arremata Merleau-Ponty. É por isso que essa “filosofia da negatividade absoluta” é, no mesmo movimento, uma “filosofia da positividade absoluta” (idem, p.81).

Ora, é verdade que na conclusão de O ser e o nada, Sartre coloca o problema de uma nova totalidade, de uma totalidade que envolveria, dessa vez, o em si e o para si. Mas é verdade também que ele se desespera dessa questão, relegando-a à “metafísica”, fora do escopo da ontologia, relegando-a portanto às hipóteses prováveis, fora do domínio da evidência intuitiva – um pouco como Descartes, que relegou ao “obscuro” a união do corpo e da alma lá no final das Meditações. E não é surpreendente que Sartre tenha chegado a esse resultado: uma vez posto o negativo absoluto e o positivo absoluto, já não há compromisso possível entre eles. Ora, mas é justamente essa questão – a da totalidade, a da imbricação entre o corpo e a alma, o Eu e o mundo, o Eu e os outros – que importa a Merleau-Ponty, e por isso ele pode dizer, em uma nota de trabalho de fevereiro de 1960: “eu tomo meu ponto de partida lá onde Sartre tem seu ponto de chegada, no Ser retomado pelo para Si. É nele o ponto de chegada porque ele parte do ser e da negatidade e constrói sua união (...). Para uma ontologia do dentro, não há que construir a transcendência, ela é de início, como Ser duplicado de nada” (idem, p. 290). Mas que pode ser esse “ser duplicado de nada”? Não será ele uma “mistura”, isto é, aquilo mesmo que Sartre se empenhou em distinguir? Aqui deve reaparecer o interesse por Kant: para além da contradição que norteou a ontologia sartriana, Merleau-Ponty pretende recuperar a oposição real kantiana. A partir dela, o “ser duplicado de nada” não será mistura (“a estrutura não é mistura”, diz Merleau-Ponty, e acrescenta: “para mim, o negativo não quer dizer absolutamente nada, e o positivo também não (eles são sinônimos) e isso não por um apelo a uma vaga ‘mistura’ do ser e do nada” (idem, p.290)). Vejamos isso mais de perto.

V

Em uma intervenção no célebre Colóquio de Bonneval, de 1959, consagrado ao tema do inconsciente, Merleau-Ponty teria afirmado, segundo o resumo redigido por Pontalis: “se uma grandeza negativa é uma grandeza de signo contrário, se Kant pode dizer que o ódio é um amor negativo, que o roubo por exemplo é um dom negativo, é preciso reconhecer aí uma articulação, uma simultaneidade da presença e da ausência” (Merleau-Ponty, 1998, p.175; grifos meus). É essa simultaneidade o “Ser duplicado de nada”: o nada não será então o contraditório do ser. Mas, que será ele?

Em uma nota de maio de 1960, Merleau-Ponty (1996, p.311) afirma: “o sensível, o visível, deve ser para mim a ocasião de dizer o que é o nada – o nada não é nada mais (nem nada menos) que o invisível”. A relação entre ser e nada é agora a relação entre visível e invisível – com a substancial diferença de que o visível não é aqui uma presença objetiva (idem, p.311), um positivo objetivo, e o invisível uma negação dele, como em Sartre. Isso levaria – e só poderia levar – ao esforço de construir a união. O visível não é nada de objetivo, da ordem do em si, ele é transcendente, e isto significa dizer, na pena de Merleau-Ponty, que ele é carregado de um sentido invisível. “O visível é pregnante de invisível”, e de tal modo que “para compreender plenamente as relações visíveis” (uma casa, por exemplo), “é preciso ir até a relação entre o visível e o invisível” (idem, p.269). Daí porque o invisível não pode mais ser “o contraditório do visível” (idem, p.269) – já que é necessário pensar aqui em termos de relação real, ou, mais profundamente, porque é necessário pensar a simultaneidade do ser e do nada. É esta simultaneidade que Sartre não pode pensar: é necessário que haja ali uma “posterioridade lógica do nada sobre o ser”, pois o ser deve ser posto para então ser negado (Sartre, 1969, p.50). Posterioridade, de resto, encontrada também em Bergson, e pelas mesmas razões, já que se trata, também ali, de uma forma de “ultrapositivismo” (Merleau-Ponty, 1996, p.249).

Na descrição de Merleau-Ponty, “o invisível está sem ser objeto” (idem, p.282), a tal ponto que os visíveis, no final das contas, estão “centrados nesse núcleo de ausência” (idem, p.283). É esse mundo carregado de negativo, centrado na ausência, que Merleau-Ponty denomina um “mundo vertical” (idem, p.281). O visível implica “uma membrura de invisível”, o invisível funcionando então como “a contrapartida secreta do visível, de modo que] só aparece nele” (idem, p.269). O invisível não é um não visível – no sentido, por exemplo, em que foi ou será visto, ou no sentido daquilo que é visto por outro e não por mim (idem, p.281, 310). Antes disso, o invisível é aquilo cuja ausência “conta no mundo” (idem, p.281). É assim que podemos pensar, até o fim, a simultaneidade de ambos. Dizer, por exemplo, que o invisível é apenas um outro visível “possível” (aquilo que ora não vejo), é “destruir a membrura que nos junta a ele” (idem, p.282) e, no limite, sua simultaneidade: há que romper aqui com a posição do ser e sua negação posterior, há que romper com toda forma de objetividade. Daí porque importa a Merleau-Ponty apontar a membrura – por exemplo, não há percepção sem impercepção, e isto por razões de princípio. “Ver é sempre mais que ver”, dirá ele, há “o invisível do visível”, toda visibilidade comporta, necessariamente, “não-visibilidade” (idem, p.300), etc. Que se pense ainda no punctum caecum, o ponto cego inerente à consciência: o que a consciência não vê, diz Merleau-Ponty em nota de maio de 1960, “é por razões de princípio que ela não vê (...), o que ela não vê é o que prepara a visão do resto (...), é o que faz que ela veja, é sua ligação ao Ser, é sua corporeidade, são os existenciais pelos quais o mundo torna-se visível” (idem, p.301). A alma é como o outro lado, o inverso do corpo, “não um não ser absoluto”, à maneira sartriana, “por relação a um Ser que seria plenitude e núcleo duro” (idem, p.286). Daí porque a metáfora merleau-pontiana de um oco (creux), contra a metáfora do vazio, do buraco (trou) (idem, p.249). “A alma está plantada no corpo”, como o outro lado do corpo, como o invisível – por isso, ela não é um não-ser à maneira do idealismo (idem, p.286).

Esse modelo vale para todo o visível: ele está centrado no invisível, em existenciais que não são “coisas espirituais”, mas apenas “estruturas do vazio” – estruturas que Merleau-Ponty procura “plantar (...) no Ser visível, mostrar que é o inverso dele” (idem, p.289), como a profundidade que se cava por trás da largura e da altura, como o tempo por trás do espaço. O invisível é um invisível de direito, não de fato: “o intocável não é um tocável inacessível”, “o inconsciente não é uma representação de fato inacessível: o negativo não é um positivo que está alhures, é um verdadeiro negativo” (idem, p.308): o intocável do tocar, o invisível da visão, são “o outro lado ou o inverso (a outra dimensionalidade) do Ser sensível” (idem, p.309). Se se diz que os existenciais são da ordem do inconsciente, é preciso acrescentar que esse inconsciente não está “no fundo de nós, por trás de nossas costas”, mas bem “diante de nós, como articulações de nosso campo”. Ele não é objeto porque “ele é aquilo pelo qual objetos são possíveis”, ele está entre os objetos, diz Merleau-Ponty, “como o intervalo das árvores entre as árvores”, ele é dado originariamente, e dado como não-presentável, como Nichturpräsentierbar, do mesmo modo que “outrem é dado em seu corpo como ausente” (idem, p.234): o invisível “é o Nichturpräsentierbar que me é apresentado como tal no mundo” (idem, p.269).

Ora, tudo isso remonta a um tipo de relação bastante distinta daquela pensada por Sartre, em que ser e nada não se imbricam, não se conjugam; é preciso pensar antes, como Kant o fizera, “a simultaneidade da presença e da ausência”, uma relação real pela qual ser e nada, visível e invisível, tocável e intocável se imbricam um no outro, pela qual um está em quiasma com o outro, em relação, segundo os termos kantianos, de “oposição real” (idem, p.314, 318). Daí a necessidade de superar o modelo sartriano da contradição, que se pretende ainda mais radical que o modelo da contradição dialética. Certamente, também Hegel parece insuficiente a Merleau-Ponty. Em uma nota de trabalho de novembro de 1960, ele afirma que o seu modelo “não realiza ultrapassamento dialético no sentido hegeliano”; seu ultrapassamento, sua transcendência se realiza sur place, por imbricação (idem, p.318) – quer dizer, por dentro, como se a ele interessasse descrever os existenciais, as junturas, as membruras, a nervura do real. Mas o debate com Hegel é assunto para outro momento.

  • KANT, I. Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur négative. Paris: Vrin, 1972.
  • LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. Săo Paulo: Martins Fontes, 1993.
  • LEBRUN, G. La patience du concept. Paris: Gallimard, 1972.
  • MERLEAU-PONTY, M. Le visible et linvisible. Paris: Gallimard, 1996.
  • MERLEAU-PONTY, M.Notes de cours sur Lorigine de la géométrie de Husserl. Paris: PUF, 1998.
  • SARTRE, J.-P. Lętre et le néant. Paris: Gallimard, 1969.
  • 1
    Este texto é uma versão levemente modificada de uma palestra proferida em maio de 2003, no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, por ocasião do I Encontro de Filosofia Francesa Contemporânea.
  • 2
    Professor do Departamento de Filosofia da UFPR.
  • 3
    Tomamos a liberdade de indicar ao leitor um artigo nosso em que essa discussão é feita de modo mais detalhado. Cf. “Negação e finitude na fenomenologia de Sartre”
    in Revista
    Discurso, 2003, número 33.
  • 4
    Servimo-nos aqui também da tradução brasileira, ainda inédita, de Jair Lopes Barboza e Vinicius de Figueiredo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2007
    • Data do Fascículo
      2004
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