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Política contemporânea e sociedade unidimensional

Contemporary politics and unidimensional society

Resumos

O tema principal deste trabalho é a análise de contradições da política brasileira contemporânea à luz da Teoria Crítica.

Teoria Crítica; fascismo; política; Adorno; Marcuse


The main theme of this paper is the analysis of the contradictions in the Brazilian contemporary policies in the light of Critical Theory.

Critical Theory; fascism; policies; Adorno; Marcuse


Política contemporânea e sociedade unidimensional

Contemporary politics and unidimensional society

Sinésio Ferraz Bueno 1 1 Professor do Departamento de Filosofia da FFC/UNESP/Marília.

RESUMO

O tema principal deste trabalho é a análise de contradições da política brasileira contemporânea à luz da Teoria Crítica.

Palavras-chave: Teoria Crítica; fascismo; política; Adorno; Marcuse.

ABSTRACT

The main theme of this paper is the analysis of the contradictions in the Brazilian contemporary policies in the light of Critical Theory.

Key words: Critical Theory; fascism; policies; Adorno; Marcuse.

Na década de 30 os pensadores do que mais tarde se convencionou denominar Escola de Frankfurt propunham como tema de pesquisa os motivos irracionais que levavam à deformação da consciência, em especial entre proletários. Sérgio Paulo Rouanet (1986, p.157) resume a interrogação da Teoria Crítica nessa época como o “enigma da aceitação voluntária, por parte da maioria, de condições de existência que deixaram de ser objetivamente necessárias, tendo em vista o estágio alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas”. Considerando insuficientes as respostas derivadas do marxismo ortodoxo, pensadores como Adorno, Horkheimer e Marcuse incorporaram o instrumental freudiano no sentido de compreender as condições subjetivas geradoras da “servidão voluntária”. Posteriormente, o estudo empírico sobre as tendências fascistas entre a personalidade norte-americana nos anos 40 do século passado levou Adorno (1965) a explicar a consciência alienada e reacionária a partir da existência de necessidades regressivas por parte de personalidades desprovidas de individualidade, verdadeiros átomos sociais ansiosos pela identificação irrestrita com a totalidade repressiva. A alienação subjetiva, por sua vez, seria gerada a partir de determinações materiais, historicamente caracterizadas pela emergência do capitalismo monopolista, configuração econômica cuja versão radical encontra expressão no neoliberalismo de nossos dias. Conforme Adorno e Horkheimer (1985, p.47):

É da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermaturidade da sociedade. Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito tempo foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz.

De maneira análoga, uma questão urgente apresenta-se hoje para a reflexão filosófica sobre a esfera política. Trata-se de pensar sobre o seguinte paradoxo: embora a subordinação da política à lógica do mercado seja insustentável mesmo em termos pragmáticos, na medida em que as conseqüências sociais nefastas do ajuste fiscal são reconhecidas pelos próprios órgãos responsáveis como FMI e Banco Mundial, como é possível que mesmo assim o pragmatismo se imponha como horizonte hegemônico na vida política? Em outras palavras: como é possível que a lógica do mercado capitalista permaneça fornecendo as próprias categorias que regem o pensamento político em nossos dias, uma vez que a concentração de renda e o empobrecimento cada vez maior da população mundial são indicadores visíveis da absoluta falsidade dos pressupostos assumidos pelo Consenso de Washington? Desde que o modelo de progresso ditado pela globalização econômica impôs-se a partir de um receituário comum baseado na apologia da lógica do mercado como critério exclusivo para a vida política, as opções que se apresentam para as escolhas eleitorais, bem como para a definição de estratégias na vida política, limitam-se, quase todas, a possibilidades restritas aos limites do status quo. Configura-se de maneira muito clara a unidimensionalização das opiniões políticas, na medida em que a própria política, subordinada ao mercado, orienta-se pela lógica da adaptação, recusando previamente modalidades críticas, negativas, não-operacionais de pensamento, que possam apontar outros rumos para a humanidade.

A opção pela Teoria Crítica como modelo teórico que possa orientar nossas reflexões fundamenta-se na fecundidade que seus referenciais apresentam para a compreensão das contradições presentes nas relações políticas em nosso mundo. Nesse sentido, a falsa consciência de nossos dias estrutura-se sobre condições materiais similares àquelas que geraram a personalidade fascista pesquisada por Adorno e Horkheimer. Da mesma forma, entendemos que a unidimensionalização estudada por Marcuse na sociedade capitalista dos anos 60 permanece válida como modelo teórico explicativo da sociedade capitalista globalizada.

I

Atualmente, a hegemonia do capitalismo financeiro, ao impor um modelo extremamente concentrador de renda, principalmente aos países do Terceiro Mundo, nos aponta uma situação histórica ainda mais grave que aquela observada por estes pensadores. Marcuse (1969, p.23-4) caracteriza como unidimensional e totalitária uma sociedade “que parece cada vez mais capaz de atender às necessidades dos indivíduos através da forma pela qual é organizada”. Ou seja, tratava-se de uma sociedade que, por meio do Estado de Bem-estar Social, garantia a uma grande parte da população o acesso a serviços estatais de saúde e educação de boa qualidade, bem como o acesso a um nível de renda que possibilitava o consumo de bens essenciais e supérfluos. Entretanto, desde a emergência das políticas neoliberais no início da década de 90 no Brasil, já não é possível sequer a satisfação das necessidades básicas relativas ao alimento, vestuário, saúde e educação. Por outro lado, o padrão de vida das elites converge progressivamente para o consumo de bens supérfluos, ao mesmo tempo em que a carência das populações excluídas é cada vez mais explicitada, mediante o contraste entre sua precária condição social e o estímulo crescente ao consumo desses bens pela publicidade. Nesse sentido, estamos hoje, em um país como o Brasil, expostos a uma unidimensionalização em certa medida diferente daquela observada por Marcuse nos Estados Unidos dos anos 60, pois o marketing e a publicidade expõem a grande maioria da sociedade a uma extrema violência simbólica, que consiste na exposição a uma realidade que se apresenta como utopia realizada, sem que as necessidades básicas da vida sejam atendidas tal como o eram no Estado de Bem-estar. Concordando com Adorno (1998, p.25), para quem “não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas somente propaganda a favor do mundo”, Marcuse apontou para a absorção da ideologia pela realidade. Essa absorção exprime-se pela prescrição de atitudes, hábitos e reações intelectuais e emocionais por meio das quais os indivíduos aderem a uma totalidade que, embora pareça ser sinônimo absoluto do progresso, permanece sendo repressiva:

“Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida – muito melhor do que antes – e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa. Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais no qual as idéias, as aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação são repelidos ou reduzidos a termos desse universo. São redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua extensão quantitativa” (Marcuse, 1969, p.32).

Dessa forma, em um país com imensas carências sociais como o Brasil, os produtos, notadamente aqueles destinados à satisfação de falsas necessidades, permanecem doutrinando e promovendo um estilo de vida heterônomo, mas altamente desejado por todos. Ao mesmo tempo, dada a concentração de renda e o caráter descartável que lhes diminui a vida útil, esses produtos não estão disponíveis para a população como um todo, mas apenas para menos de 10% dela. Disso resulta que o desconforto emocional subjacente à sociedade unidimensional, ou seja, o fato de que a satisfação das falsas necessidades acarreta um estado de “euforia na infelicidade” (Marcuse, 1969, p.26) é ainda maior quando, bloqueada pela pobreza econômica, sequer essa falsa euforia é possível. Assim, se o esforço de cada um para se adaptar a um mundo falso já é enorme nas sociedades capitalistas do Primeiro Mundo, no caso de sociedades periféricas esse esforço é duplicado, pois o indivíduo é forçado a se adaptar a uma realidade que não fornece condições para a satisfação das necessidades heterônomas que ela cria. A ausência da “euforia” e a permanência somente de uma “infelicidade” a ser camuflada continuamente pela maior parte da população tende a intensificar os traços neuróticos da personalidade autoritária. Assim, o antiutopismo, o realismo pragmático exacerbado, o preconceito, a ligação libidinal com objetos técnicos, e sobretudo a frieza geradora desses comportamentos sintomáticos, são fenômenos que entendemos ainda mais intensos em nossos dias, uma vez que as condições que os geraram não só permanecem presentes, como ainda se radicalizaram nas últimas décadas.

Nesse sentido, julgamos apropriado o diagnóstico de Adorno sobre a pertinência da obra de Freud, Mal-estar na cultura, como referencial para a reflexão política. Segundo Adorno, a abrangência da análise de Freud sobre a psicologia de massas traduz-se na acentuação das tendências anticivilizatórias na sociedade capitalista. A imensa defasagem entre os sacrifícios pulsionais feitos por cada indivíduo para tornar-se civilizado e a mediocridade dos benefícios que a sociedade fornece a cada indivíduo em troca daqueles sacrifícios, potencializa a hostilidade de cada um frente à própria civilização. Em termos frankfurtianos, essa hostilidade manifesta-se sob a forma das tendências fascistas há pouco referidas. Quando pensamos na conjuntura política brasileira, os elementos anticivilizatórios presentes em nossa sociedade podem ser compreendidos a partir do desconforto inevitável provocado por uma sociedade que, por um lado, cultua delirantemente uma suposta boa vida, traduzida sob a forma de apelos à vida saudável, ao pensamento positivo em todas esferas e à necessidade do bom humor constante e, por outro, convive com o crescimento do crime organizado, dos grupos de extermínio, com a violência no trânsito e com a infelicidade sufocante de relações de consumo que permanecem irrealizadas para a maioria.

II

Não podemos prognosticar quanto aos limites do sistema capitalista em sua capacidade fecunda de converter a frustração dos indivíduos em elementos adicionais para sua reprodução. Nesse sentido, a “terceirização” da assistência social sob a forma do trabalho voluntário é um exemplo típico (Oliveira, 2002, p.100-1). No que se refere à conjuntura política, um caso exemplar daquilo que Marcuse denominou “fechamento do universo político” manifesta-se hoje sob a forma da política econômica adotada pelo maior partido de esquerda do Ocidente ao chegar ao poder no Brasil. Durante a última campanha eleitoral, com a estratégia política de “acalmar os mercados” – baseada na fidelidade à política econômica do governo anterior que se assentava no controle da inflação e no combate ao déficit público –, visando a manutenção da credibilidade da economia brasileira diante dos investidores internacionais, do FMI e do Banco Mundial, o discurso radical de esquerda foi substituído pelo exercício de uma modalidade de oposição que é a única admitida pelo todo unidimensional: aquela que se baseia em “exigir a aceitação dos seus princípios e instituições e reduzir a oposição à discussão e promoção de diretrizes alternativas dentro do status quo” (Marcuse, 1969, p.24). A notável incoerência entre o discurso de oposição exercido por políticos do PT em campanhas eleitorais anteriores, quando se criticava radicalmente a adesão às políticas neoliberais receitadas pelo “Consenso de Washington”, e o exercício no primeiro ano do governo Lula de uma política econômica atrelada ao neoliberalismo revela, antes de mais nada, o quanto a chamada globalização econômica é guiada pela lógica totalitária da unidimensionalização da realidade. Nesse sentido, o discurso crítico de campanhas eleitorais anteriores, favoráveis à redistribuição de renda, à reforma agrária e à justiça social efetiva, com todas as suas implicações no tocante ao conflito explícito entre as classes sociais, foi neutralizado em sua dimensão transcendente, e retraduzido de maneira a poder ser aceito pelas instituições e pela “opinião pública”. A validade teórica das teses de Marcuse sobre a sociedade unidimensional e sua extrema pertinência para a análise de nossa conjuntura política podem ser comprovadas pela similaridade entre esta e o processo político recente ocorrido na Europa Oriental após a queda do socialismo. A semelhança entre os dois casos ilustra o quanto a transformação social exige muito mais do que apenas a “vontade política” dos membros de um determinado partido político. Ilustra, igualmente, o poder de fogo do status quo capitalista no sentido de neutralizar e redefinir todo conteúdo de oposição a seus próprios termos:

Dentro destes moldes, em toda a Europa Oriental, depois da grande virada, desenrola-se um espetáculo socialmente trágico e politicamente cômico. A grande maioria aspira tão-somente à prosperidade do mercado e a novos empregos competitivos. Ninguém nem sequer imagina alternativas sociais e econômicas. E ninguém quer admitir que a própria miséria é parte de uma crise universal, que há muito atingiu também os países do núcleo ocidental. Esperanças irracionais na sociedade de mercado passam por cima do fato de que nenhum dos ‘Estados em reforma’ do Leste Europeu pode investir capital suficiente para reintegrar a maioria da população ao sistema industrial competitivo – muito menos a Albânia. Todo governo, não importa de que tendência, pode somente executar em seu próprio povo o surdo veredicto do mercado e, sob a égide do Fundo Monetário Internacional (FMI), implementar uma impiedosa política de ‘austeridade’. O partido do governo é tomado então como responsável pela gritante contradição entre esperança e realidade econômica, e a oposição é erguida ao poder por meio de protestos de massa, até que as frentes se invertam novamente e o mesmo jogo recomece do início, agora com sinais trocados (Kurz, 1997, p.257).

A enorme distância entre os dois processos políticos, um referente a um país da América Latina recém-chegado à lógica neoliberal e que acaba de eleger um ex-sindicalista como presidente da república, e outro referente aos rumos econômicos de sociedades recém-chegadas ao próprio capitalismo demonstra a força de atração da globalização econômica e de seu pensamento único. Pois, em ambos os casos, vale a sentença de Kurz: “todo governo, não importa de que tendência, pode somente executar em seu próprio povo o surdo veredicto do mercado”. O poder persuasivo do pensamento único aparece, assim, como originado do poder da própria ideologia em sua modalidade contemporânea, que conforme vimos, segundo Adorno, deixa de ser “falsa consciência” para ser “propaganda a favor do mundo”. Entretanto, resta explicar de que modo populações recém-saídas do socialismo, como no caso descrito por Kurz, e uma população que já vem sendo sistematicamente espoliada há pelo menos uma década pela lógica financeira da globalização econômica aderem tão facilmente ao canto de sereia do mercado. Retomamos, assim, a questão sugerida na introdução deste artigo: como é possível que, malgrado sua desumanidade objetiva, o pragmatismo econômico se imponha como único horizonte a reger a prática política?

Ao recorrermos uma vez mais à Teoria Crítica, é possível que avancemos um pouco no esclarecimento desse problema crucial. Segundo Adorno (1998, p.20), a transformação do papel da ideologia que comentamos há pouco implica que “ninguém mais se preocupa com o conteúdo objetivo das ideologias, desde que estas cumpram sua função”. Marcuse (1969, p.70) expressa-se em termos similares, apontando que “as pessoas sabem ou sentem que os anúncios e as plataformas políticas não têm de ser necessariamente verdadeiros ou certos e, não obstante, os ouvem e lêem e até se deixam orientar por eles”. Ao referir-se à modalidade de linguagem que caracteriza a sociedade unidimensional, Marcuse (1969, p.107) acrescenta que a crença sobre a veracidade das locuções não é o aspecto decisivo: “o novo toque da linguagem mágico-ritual é, antes, o de as pessoas não acreditarem nela, ou não se importarem com ela, mas não obstante, agirem em concordância com ela”. Aprofundando a questão, Adorno (1991, p.135-6) nos leva a pensar que a explicação segundo a qual os meios de comunicação de massa moldam a opinião pública é insuficiente, pois se as massas se deixam enganar por uma propaganda claramente falsa, isso ocorre porque tais mensagens são adequadas a condições subjetivas heterônomas geradas pela irracionalidade objetiva. A falsidade evidente das mensagens não impede que indivíduos atomizados, condicionados ao sacrifício irracional e à servidão em face dos líderes, comportem-se de acordo com os slogans sistematicamente prescritos por seus senhores.

Assim, os processos emocionais e cognitivos por meio dos quais podemos explicar a eficiência das mensagens publicitárias e políticas parecem resumir-se à seguinte questão: a crença na veracidade das mensagens assume caráter secundário perante a força com que elas se impõem como modelo de comportamento. Embora os indivíduos não creiam efetivamente na veracidade do conteúdo da publicidade, da política, e de resto, no conteúdo de toda a indústria cultural, são levados, por profundas necessidades emocionais, a agir como se acreditassem nelas. Podemos, então, sugerir que o pragmatismo econômico pode dar-se ao luxo de não cumprir as promessas acenadas durante a campanha eleitoral, promessas nas quais ninguém verdadeiramente acredita, pois o que importa é que ele corrobore o realismo antiutópico2 2 Na pesquisa sobre o fascismo latente junto à população norte-americana nos anos 40, Adorno exemplifica o realismo utópico através da opinião de um dos entrevistados, para quem uma sociedade ideal deveria “ter trabalho para todos e nada de greves”. Ou seja, essa pessoa prefere viver “em uma sociedade que não admita mais greves, e não em uma sociedade na qual estas não sejam necessárias”(1965: 652). que preside a adesão de cada um à totalidade. A desumanidade objetiva do ajuste fiscal, com suas gravíssimas conseqüências sociais, assume caráter secundário diante do mandamento realista e pragmático segundo o qual os compromissos internacionais e a confiabilidade diante dos mercados deve ser obtida a qualquer preço.3 3 A falsidade objetiva da lógica pragmática do capitalismo financeiro é explicitada por Robert Kurz (1997, p.188): “O sistema financeiro é responsável por uma esquizofrenia estrutural: todos sabem que sua ação é destrutiva, mas todos mantêm os olhos vidrados nos rendimentos, assim como o coelho na serpente. Por que a opinião pública mostra-se tão indignada com os voluntários suicidas do Hamas, se ela aceita de bom grado o programa suicida global da economia de mercado?”.

O imperativo do sacrifício irracional permanente impõe-se, portanto, como traço decisivo da personalidade fascista. Esta, em sua dinâmica sadomasoquista, caracteriza-se pela tendência de identificação com as elites, decorrente de uma identificação incompleta e superficial com a autoridade paterna. A internalização incompleta da figura do pai, decorrente de um processo de decadência da base econômica da individualidade (Horkheimer, 1976, p.149-152), típico do capitalismo monopolista, teve como conseqüência uma relação ambígua frente ao status quo. Os elementos anticivilizatórios, potencializados por uma sociedade incapaz de recompensar à altura o sacrifício pulsional que cada um realiza para a ela se adaptar, convertem-se em identificação com os grupos ou indivíduos poderosos e em defesa agressiva dos valores dominantes. A percepção da realidade objetiva, condicionada pelo realismo antiutópico, conduz o indivíduo “a uma adaptação que implica resignação perante a impossibilidade de lograr qualquer melhora essencial, que temos de abandonar todo sonho e moldar-nos até nos convertermos em um acessório a mais da máquina social” (Adorno, 1965, p.650).

A verdade é que a sociedade capitalista, desde que se tornou monopolizada pelos grandes grupos industriais e financeiros, produziu, juntamente com a dominação, os elementos emocionais que garantem sua reprodução. Trata-se de um processo que mantém a sociedade unida, nos termos definidos por Horkheimer nos anos 30 e posteriormente reafirmados por Adorno (1995b, p.161): “tendo em conta a divergência existente entre aquilo que a sociedade promete a seus membros e aquilo que lhes outorga, dificilmente poderia preservar-se o mecanismo se ela não o tivesse amoldado aos homens até em suas fibras mais íntimas a fim de que se conformassem a ele”. Portanto, é dessa forma que a adesão ao pensamento único do mercado permanece garantida mesmo diante da distribuição cada vez mais injusta da riqueza produzida pela globalização econômica. A servidão voluntária impõe-se, independentemente da veracidade das mensagens políticas, na medida em que o que verdadeiramente importa é o comportamento de sujeição exigido pela totalidade. Após as eleições, o descompasso entre o discurso político de oposição e uma prática política no poder, incoerente com esse discurso, é menos importante do que a sujeição subjacente a esse processo, como comenta Paulo Arantes (2003, p.22): “no final das contas, as conversões espetaculares de partidos de esquerda pesam bem menos no triunfo atual da contra-revolução capitalista do que o consentimento de massa gerado por tais práticas materiais”. Os motivos irracionais que conduzem a esse consentimento inserem-se no referido sadomasoquismo típico da personalidade fascista: “a dominação só pode perdurar na medida em que os próprios dominados transformarem suas aspirações em algo de odioso” (Adorno e Horkheimer, 1985, p.185-6). Amparada por necessidades irracionais geradas por um sistema cuja racionalidade é igualmente irracional, a ideologia pode aparecer, então, como “propaganda a favor do mundo”, pois o realismo antiutópico garante a adesão ao todo unidimensional.

III

Retomando novamente a interrogação proposta no início deste artigo, percebemos que a unidimensionalização da política, entendida como restrição dos horizontes de mudança aos limites do status quo, encontra ressonância em necessidades heterônomas geradas materialmente pelo capitalismo e acentuadas atualmente sob a lógica da globalização econômica. No interior desse processo, a constatação de Francisco de Oliveira (2003, p.147) sobre as “convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB”, que levam o governo Lula a radicalizar o programa de FHC, justificam a decepção dos intelectuais de esquerda que apoiaram Lula. Entretanto, essa afinidade, ao corroborar o pragmatismo do mercado, apresenta-se perfeitamente coerente com o realismo antiutópico, satisfazendo necessidades regressivas de submissão ao todo. A convergência entre “técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT” (idem), não é, conforme destaca o autor, uma questão moral, mas um ponto de partida para que se possa explicar a incoerência de ex-sindicalistas frente aos princípios fundadores do PT. Podemos acrescentar que tal afinidade pode ser vista também como parte de um processo material que gera as próprias condições subjetivas que limitam o horizonte da transformação a alternativas circunscritas à reprodução do que está instituído. Retomando Marcuse (1969, p.24), a sociedade unidimensional “pode, justificadamente, exigir a aceitação dos seus princípios e promoção de diretrizes alternativas dentro do status quo”. O fato de que atualmente, sob uma lógica neoliberal que aprofunda as desigualdades sociais, o termo “justificadamente” não possa se aplicar, ao contrário do contexto econômico analisado por Marcuse, somente aponta a intensidade das necessidades regressivas em nossa época.

Ao desenvolvermos este quadro pouco animador sobre as perspectivas de transformação da sociedade capitalista atual não pretendemos recair em uma perspectiva fatalista e passiva acerca do papel da política nesse processo. Pois a utilização da Teoria Crítica para refletirmos sobre os conteúdos a serem assumidos por um pensamento autêntico de esquerda implica, sobretudo, que os limites de uma “sociedade sem oposição” sejam superados. A própria Teoria Crítica aponta que o realismo antiutópico, em sua adesão irracional à ordem existente, contém os elementos que permitiriam a superação dessa ordem. Pois o ódio latente contra aqueles que representam a diferença em face dos padrões sociais (operários grevistas, judeus, homossexuais, indígenas e minorias em geral) consiste da projeção do desejo reprimido de destruição da ordem opressora. A compreensão da irracionalidade objetiva da ordem social, que poderia denunciar a irracionalidade dos sacrifícios subjetivos que cada indivíduo tem de realizar para se adaptar, é perpetuada como tabu para a consciência reificada. O sentimento insuportável de impotência resultante desse processo é expiado pelo preconceito, que “prepara a ação da exclusão do mais frágil por aqueles que não podem viver a sua própria fragilidade” (Crochik, 1997, p.23). Ou seja, a defesa agressiva dos valores dominantes, a identificação com as elites, a sujeição à lei do mais forte, encobrem seu oposto: o desejo reprimido de uma sociedade justa que pudesse recompensar os sacrifícios requeridos pela adaptação, e que permitisse a superação do estado de impotência geral. De maneira perversa, o protesto, cujo alvo legítimo deveria ser a sociedade de classes, reverte contra a própria esperança de emancipação: “a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir” (Adorno, 1995a, p.164).

A servidão voluntária contém, portanto, sua negação, ou seja, o desejo revolucionário, que poderia restituir a esperança de um mundo justo e solidário em nome do qual toda criança realiza seus primeiros sacrifícios. Entretanto, como sabemos, uma pedagogia semiformadora, que se inicia na família e na escola e se estende à indústria cultural, encarrega-se de neutralizar os elementos de oposição, convertendo-os em fatores adicionais que reforçam a reificação. Não sabemos quais poderão ser os limites históricos desse processo. Segundo Adorno, a emancipação nem por isso deixa de ser sua tendência imanente: “O sujeito tanto mais é quanto menos é, e tanto menos quanto mais crê ser, quanto mais se ilude em ser algo para si objetivo. Como momento, no entanto, ele é inextinguível” (1995b: 198).

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    Professor do Departamento de Filosofia da FFC/UNESP/Marília.
  • 2
    Na pesquisa sobre o fascismo latente junto à população norte-americana nos anos 40, Adorno exemplifica o realismo utópico através da opinião de um dos entrevistados, para quem uma sociedade ideal deveria “ter trabalho para todos e nada de greves”. Ou seja, essa pessoa prefere viver “em uma sociedade que não admita mais greves, e não em uma sociedade na qual estas não sejam necessárias”(1965: 652).
  • 3
    A falsidade objetiva da lógica pragmática do capitalismo financeiro é explicitada por Robert Kurz (1997, p.188): “O sistema financeiro é responsável por uma esquizofrenia estrutural: todos sabem que sua ação é destrutiva, mas todos mantêm os olhos vidrados nos rendimentos, assim como o coelho na serpente. Por que a opinião pública mostra-se tão indignada com os voluntários suicidas do Hamas, se ela aceita de bom grado o programa suicida global da economia de mercado?”.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2007
    • Data do Fascículo
      2004
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