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O naturalismo de Jürgen Habermas e de Philip Pettit

The naturalism of Jürgen Habermas and Philip Pettit

Resumos

As competências cognitivas pressupostas pelas atualizações sociais (relações, discursos, interpretações) significam a atribuição aos seres humanos de uma certa racionalidade. Essa racionalidade pode ser concebida seja na perspectiva de uma filosofia da história de tipo evolucionista (Habermas), seja numa perspectiva da filosofia da mente (Pettit). Nas duas perspectivas, o tipo de questionamento é quase transcendental, no sentido de que se trata de revelar as condições de possibilidade das operações cognitivas reais efetuadas pelos agentes. Em última instância, as condições de possibilidade devem ser entendidas como "natureza". A questão é a de saber se, metodologicamente, um monismo naturalista é possível, ou se um dualismo de perspectivas não seria imprescindível.

Habermas; Pettit; Naturalismo; Dualismo; (Quase)transcendental


Cognitive abilities presupposed by social performances (relations, speeches, interpretations) mean the attribution to human beings of a certain rationality. This rationality can be understood in terms of a type of evolutionary philosophy of history (Habermas), or in terms of the perspective of the philosophy of mind (Pettit). In both perspectives, the type of questioning is almost transcendental in the sense that it is able to reveal the possibility of cognitive operations performed by real actors. Ultimately, the conditions of possibility must be understood as "nature." The question is whether, methodologically, a naturalistic monism is possible, or if a dualism of perspectives would not be indispensable.

Habermas; Pettit; Naturalism; Dualism; (Almost)transcendental


ARTIGOS ARTICLES

O naturalismo de Jürgen Habermas e de Philip Pettit

The naturalism of Jürgen Habermas and Philip Pettit

André Berten

UERJ/CAPES, Centre de Philosophie du Droit, França

RESUMO

As competências cognitivas pressupostas pelas atualizações sociais (relações, discursos, interpretações) significam a atribuição aos seres humanos de uma certa racionalidade. Essa racionalidade pode ser concebida seja na perspectiva de uma filosofia da história de tipo evolucionista (Habermas), seja numa perspectiva da filosofia da mente (Pettit). Nas duas perspectivas, o tipo de questionamento é quase transcendental, no sentido de que se trata de revelar as condições de possibilidade das operações cognitivas reais efetuadas pelos agentes. Em última instância, as condições de possibilidade devem ser entendidas como "natureza". A questão é a de saber se, metodologicamente, um monismo naturalista é possível, ou se um dualismo de perspectivas não seria imprescindível.

PALAVRAS-CHAVE: Habermas. Pettit. Naturalismo. Dualismo. (Quase)transcendental.

ABSTRACT

Cognitive abilities presupposed by social performances (relations, speeches, interpretations) mean the attribution to human beings of a certain rationality. This rationality can be understood in terms of a type of evolutionary philosophy of history (Habermas), or in terms of the perspective of the philosophy of mind (Pettit). In both perspectives, the type of questioning is almost transcendental in the sense that it is able to reveal the possibility of cognitive operations performed by real actors. Ultimately, the conditions of possibility must be understood as "nature." The question is whether, methodologically, a naturalistic monism is possible, or if a dualism of perspectives would not be indispensable.

KEYWORDS: Habermas. Pettit. Naturalism. Dualism. (Almost)transcendental.

INTRODUÇÃO

Como pensar as condições de possibilidade de um conhecimento objetivo? Mesmo se essas condições, ultimamente, são condições naturais, o nosso acesso a essas condições é determinado pela particularidade de nossa natureza humana e pelo contexto cultural, histórico, isto é, pelo contexto que nos incentiva a colocar esse tipo de questão, que nos orienta para com uma procura de objetividade e de verdade. A questão é a de saber se podemos fazer abstração dessas condições culturais e garantir a objetividade do conhecimento a partir de uma "natureza" pura: uma constituição de nossas faculdades mentais como puras competências, independentemente de todo conteúdo ou de toda aprendizagem histórica ou evolucionária. Jürgen Habermas sustenta que não. Philip Pettit — como Kant aliás — faz "como se" essas condições culturais não fossem determinantes1 1 Embora pudessem ser "reguladoras", no sentido de dar orientação para com as finalidades da pesquisa. . Pelo menos, as suas hipóteses naturalistas vão nesse sentido.

O "naturalismo fraco" de Habermas se concilia com um método quase transcendental. Será que um naturalismo forte, como aquele de Pettit, pode ainda manter a diferença do transcendental e do empírico? Como veremos, essas questões fazem parte de um debate mais amplo a respeito do método da pesquisa científica, das relações entre filosofia e ciência, da crítica do cientificismo reducionista.

Vamos chamar de transcendental, num sentido kantiano, ou quase kantiano, as condições de possibilidade de um conhecimento objetivo da natureza (dos fenômenos), se essas condições de possibilidade são "faculdades humanas" ou faculdades da mente humana (sensibilidade, entendimento, juízo, razão...) e competências atribuídas a essas faculdades (por exemplo, intuições do espaço e do tempo, categorias de substância, de causalidade, princípios de julgamento, racionalidade inferencial etc.). Transcendental, no sentido forte, significa que essas condições são universais e necessárias, e garantem a objetividade de nossos conhecimentos absolutamente, isto é, independentemente de qualquer contexto, entre outros, histórico e cultural. Ninguém hoje defende essa perspectiva estritamente transcendental. Mas há várias maneiras de relativizar, eventualmente subverter, a ortodoxia kantiana2 2 Evidentemente, toda a metodologia da pesquisa científica como pesquisa teórico-empírica trabalha com pressuposições totalmente diferentes, perspectiva que não analisaremos aqui. .

Uma primeira maneira é, por exemplo, aquela de Habermas. É uma empreitada complexa. Em primeiro lugar, as performances da mente humana implicariam necessariamente a linguagem. Em outras palavras, não podemos compreender o funcionamento das faculdades mentais independentemente da linguagem dentro da qual as concebemos. Assim, por exemplo, falar de objetividade tem sentido somente se sabemos em qual linguagem (científica, jurídica, popular etc.) inserimos esse termo. Em segundo lugar, a linguagem não é uma estrutura abstrata, mas um "discurso", discurso pragmático, quer dizer, um discurso de comunicação. E, em terceiro lugar, é um fenômeno não somente histórico, mas evolucionário. Quando Habermas considera que o mundo da vida é uma das condições de possibilidade da objetividade de nossos conhecimentos, esse mundo da vida deve ser pensado como simultaneamente um conjunto de crenças adquiridas ao longo da história humana (ponto de vista semântico), e um quadro relacional ou comunicativo (ponto de vista pragmático). Isto implica uma historicização e portanto uma relativização das condições de possibilidade: é por isso que Habermas fala de "quase-transcendental". O caráter inevitável das suposições implicadas na prática do discurso

[...] precisa ser interpretado mais na linha de Wittgenstein que na de Kant, ou seja, não pode mais ser compreendido no sentido transcendental de condições da experiência possível, gerais, necessárias e inteligíveis, devendo ser encarado no sentido gramatical de uma "inevitabilidade" que resulta de correlações conceituais internas de um sistema de comportamento prático conduzido por regras, o qual é, "ineludível para nós". (HABERMAS, 2007, 35).

Na minha opinião, a guinada linguística não invalida as formulações kantianas: somente as complementa3 3 Habermas determina claramente a sua filiação kantiana e a reformulação da problemática transcendental no longo ensaio "Agir comunicativo e razão destranscendentalizada" (2007, p. 31-90). . A suposição pragmática de um mundo objetivo comum está incluída como conteúdo das pretensões à verdade ou à objetividade. As intuições do espaço e do tempo, por exemplo, ficam condições necessárias dessas pretensões pressupostas na comunicação. As categorias de substância e de causalidade ficam da mesma maneira pressupostas nessas pretensões, mesmo se devemos reconhecer que sua interpretação pode depender da linguagem. Contudo, desde que a linguagem vem a ser tomada como um fenômeno evolucionário e tipicamente humano, há também uma relativização da contribuição da função linguística aos processos cognitivos — processos cognitivos que, nos termos de Philip Pettit, possuem uma racionalidade mínima pré-linguística. Pois, mesmo assim, a perspectiva ficaria transcendental, no sentido em que a racionalidade pressuposta nas prestações, por exemplo, dos animais superiores, pode ser considerada como uma característica da "mente" ou de "faculdades mentais".

Uma outra forma, mais radical, de subverter o transcendentalismo, seria "descer" aquém do nível chamado das "faculdades mentais" ou "mente". Esse ponto de vista não seria mais transcendental no sentido kantiano, mas entraria numa perspectiva empírica. Seria tentar, como nas ciências cognitivas, compreender as relações entre a neurofisiologia do cérebro e os estados mentais — por exemplo, na perspectiva "funcionalista" defendida por Pettit. Isso não significa que seria possível "construir" ou deduzir as prestações cognitivas, racionais, linguísticas etc., a partir das ciências biológicas — e ainda menos, a partir de uma física subatômica. Contudo, o conhecimento das leis da natureza — das leis da física — pode constituir, nesse caso, um "quadro" virtual, limitando o que pode ser afirmado a respeito do funcionamento mental, das regras do diálogo intersubjetivo ou até das leis sociológicas.

Gostaria de colocar essas questões a partir da obra de Jürgen Habermas e Philip Pettit, e verificar em que medida a questão de tipo quase transcendental remete, em última análise, a um fundo naturalista. Entendo naturalista no sentido amplo: uma referência a um quadro ontológico e metodológico onde os limites são dados pelas ciências naturais. Mostrarei que Habermas, adotando uma perspectiva regressiva ou transcendental, fica numa posição prudente a respeito do naturalismo, ao passo que Pettit, propondo um naturalismo radical como orientação metodológica na discussão da racionalidade básica sobre a qual se pode construir uma representação aceitável do comportamento dos sujeitos humanos, introduz, todavia, um certo dualismo interpretativo.

O NATURALISMO "SOFT" DE HABERMAS E A TENDÊNCIA MONISTA

UM DUALISMO INSUPERÁVEL

Lembremo-nos de que Habermas sempre fez críticas fortes a todas as formas de cientificismo, defendendo por vários meios uma ampliação do conceito de racionalidade, seja inscrevendo-a na perspectiva dos "interesses transcendentais" da humanidade (HABERMAS 1987), seja respondendo a pretensões à validade (HABERMAS 1981), e sempre ligada a uma forma ou outra de "agir". A crítica do cientificismo implica uma recusa de toda espécie de reducionismo ou de naturalismo, desde que pressupõe uma diferença tipológica entre a racionalidade científica — aquela das ciências da natureza ou da biologia — e a racionalidade manifestada pelas ciências humanas, ou entre o "explicar" (erklären) e o "compreender" (verstehen). Do mesmo modo, a arquitetônica da Teoria do agir comunicativo pressupõe uma diferença gramatical e pragmática entre as pretensões à verdade cuja institucionalização desemboca na ciência, e as pretensões à justeza ou justiça que determinam o domínio da moral ou do direito. Mais recentemente, a trilogia do uso, pragmático, ético e moral, da razão deixa clara a diferença de natureza entre o uso pragmático, de um lado, e os usos éticos e morais, do outro lado (HABERMAS 1991). Sempre também, e sob várias formas, Habermas defendeu a diferença entre o ponto de vista do observador e o do participante, entre o mundo e os objetos mundanos, entre o transcendental (até muito destranscendentalizado) e o empírico. Essas diferenças indicam claramente que o ponto de vista objetivante da ciência é radicalmente diferente do ponto de vista de um participante de uma discussão, quaisquer que sejam as relações entre ambos.

Essa mesma tese se reencontra no artigo onde Habermas faz um comentário da palavra de Adorno – "Eu mesmo sou um bocado da natureza" –, onde ele afirma claramente que o programa de uma redução naturalista

[...] fracassa, desde logo, pelo simples fato que a própria pesquisa do mundo objetivo depende de uma disputa, a qual, mesmo estando estribada num evento ao qual se tem acesso na perspectiva de um observador, também lança mão de recursos hermenêuticos, já que só pode ser decidida num foro argumentativo. (HABERMAS, 2007, p. 232).

Em outras palavras, não é possível situar-nos no nível de uma pesquisa objetiva sem aceitar, necessariamente, um contexto de discussão, isto é, uma forma pragmática de linguagem que não pode ser objetivada, à pena de um regresso infinito. Certo, o discurso científico se confronta com a experiência, uma sorte de instância de controle que pode falsificar os enunciados — teses ou hipóteses — e assim garantir uma certa objetividade. Porém, as experiências entram no procedimento objetivante da ciência somente ao contarem como argumentos, e os argumentos fazem parte de uma rede discursiva. A recusa de um modelo de verdade como representação implica com efeito que nenhum enunciado isolado pode "corresponder" termo a termo a um estado de coisa ou a um objeto.

Por isso, a perspectiva de um observador que, ao fazer experiências, assume um enfoque objetivador em relação a algo no mundo, não pode ser separada da perspectiva de alguém que participa de uma disputa teórica, isto é, de alguém que, à proporção que apresenta argumentos, refere-se a seus críticos assumindo um enfoque performativo. (HABERMAS, 2007, p. 232-233).

Assim, mantendo essas oposições, poderíamos afirmar que Habermas recusa toda forma de naturalismo, ou de monismo — pelo menos metodológico. Entretanto, aparece na sua obra a defesa de um naturalismo "fraco" ou "atenuado". Que significa isso?

No capítulo sobre "O realismo depois da guinada da pragmática lingüística", Habermas fala de "[...] um naturalismo atenuado — depois de Kant e Darwin" (HABERMAS 2001, p. 285). Ele situa, curiosamente, esse naturalismo entre "[...] o naturalismo rigoroso de Quine e o idealismo de Heidegger" (HABERMAS, 2001, p. 285). O naturalismo estrito corresponde a uma concepção cientificista de nossas faculdades de conhecer, para a qual todo conhecimento é redutível aos procedimentos das ciências empíricas. Desaparece nesse caso a diferença entre o transcendental e o empírico, entre as condições de possibilidade da constituição do mundo e os estados de coisa e acontecimentos que aparecem no mundo. As condições da constituição do mundo não podem ser descritas empiricamente, mas devem ser pensadas. Se dispusermos somente de uma linguagem empírica, na continuação naturalista da tradição empirista, como poderemos responder à questão: "[...] como traduzir o saber intuitivo dos sujeitos capazes de falar e de agir em termos compatíveis com a linguagem teórica das ciências empíricas nomológicas?" (HABERMAS, 2001, p. 286). Habermas comenta então a tentativa radical de Quine e conclui: "A ponta dessa estratégia teórica consiste em traçar, do ponto de vista do próprio participante, um caminho conduzindo a uma compreensão rigorosamente naturalista de seu próprio comportamento lingüístico." (HABERMAS, 2001, p. 287). Mas essa estratégia deve fracassar e a conclusão é uma recusa da posição empirista de Quine:

Os sujeitos capazes de falar e agir, engajados em práticas comunicativas, não podem evitar, no seu pensamento e sua ação, de obedecer a normas e de deixar-se afeitar por razões. Portanto, sob a descrição objetivante de Quine, é impossível para eles reconhecer-se. O naturalismo estrito fracassa em razão da dissonância cognitiva entre a maneira bem controlável dos falantes competentes compreenderem-se si mesmos e uma autodescrição contra-intuitiva, que submete essa compreensão a uma revisão radical. (HABERMAS, 2001, p. 287).

Por que, pois, falar de um naturalismo fraco ou atenuado?

UM DUALISMO EPISTEMOLÓGICO OU ONTOLÓGICO?

Será que é somente em razão do dualismo da linguagem que a redução naturalista fracassa? Nesse caso, o dualismo seria uma limitação epistemológica, deixando indeterminada a questão ontológica, num estilo parecido à Dialética da Crítica da Razão Pura. A questão ontológica do dualismo ou do monismo seria indecidível. Porém, parece-me que Habermas oscila entre a ideia de um dualismo originário (quase ontológico) e uma hipótese naturalista monista.

Em primeira aproximação, o dualismo poderia bem ser originário e não somente epistemológico. Habermas, voltando a uma certa perspectiva evolucionista, escreve:

A ineludibilidade do dualismo de linguagem impõe a ideia de que um cruzamento complementar entre perspectivas antropológicas de saber, profundas, surgiu junto com a própria forma de vida cultural. Uma emergência "co-originária" das perspectivas do observador e do participante poderia explicar, em uma visão evolucionária, porque os complexos de sentido acessíveis numa visão dirigida a segundas pessoas não podem ser objetivados nem esgotados totalmente por meios das ciências naturais. (HABERMAS, 2007, p. 233).

Desde então, o dualismo de linguagens, sendo considerado como "[...] uma característica emergente de formas de vida culturais, ele pode conciliar-se com um naturalismo 'menos rígido'." (HABERMAS, 2007, p. 234) Como devemos entender esse naturalismo "menos rígido"? Ele é atenuado porque, de nosso ponto de vista — do ponto de vista de nossa cultura contemporânea — não podemos manter-nos numa forma única de linguagem. Mas o dualismo pode também ser concebido não somente como uma limitação dependente do ponto de vista de nosso mundo da vida, mas também como um "acontecimento" que se situa na origem de nossa humanidade. Isso significaria que a cultura se tornou realmente independente dos mecanismos naturais. "Somente cérebros socializados, isto é, os que conseguem engate em um determinado meio cultural, tornam-se portadores de processos de aprendizagem cumulativos, extremamente acelerados, que se desengataram do mecanismo genético da evolução natural." (HABERMAS, 2007, p. 193). O que significa esse "desengatar"? Deve significar que, ao momento da emergência da humanidade, o fenômeno "cultura" se tornou (relativamente) independente dos determinismos da natureza. O dualismo se torna, por conseguinte, o produto de um acontecimento evolucionário — é um produto da natureza e é nesse sentido que se pode falar de um naturalismo — mas cujo resultado é simplesmente uma cisão dentro da natureza e uma autonomização real da "cultural". A cultura pode ser pensada como um fenômeno coletivo, ou social, inscrito nas estruturas da linguagem e, desde então, possuindo uma existência independente da base biológica dos homens. "É bem verdade que a própria neurobiologia faz jus ao papel da cultura e da socialização da cognição. Wolf Singer distingue entre o saber congênito, armazenado nos genes e incorporado nas circunvoluções do cérebro, geneticamente determinadas, e o saber adquirido individualmente, armazenado na cultura." (HABERMAS, 2007, p. 193). Embora a base neurocerebral seja a condição necessária da aquisição do saber, este tem uma existência independente. Esse saber "armazenado na cultura" constitui um "mundo objetivo" (o terceiro mundo de Popper)4 4 POPPER, Karl, R. Objective Knowledge. An Evolucionary Approach. Oxford: Oxford University Press, 1972, p. 106-152. que não poderia ser explicado a partir das ciências naturais5 5 Essa afirmação pode receber duas interpretações bem diferentes. A primeira seria que, do ponto de vista da teoria da evolução, o mundo objetivo, o mundo da cultura ou das ideias, se tornou independente das leis gerais da evolução natural; mas a segunda seria mais difícil de sustentar: que o mundo cultural objetivo poderia ser independente das leis da física em geral. Não acho que Habermas aceitaria essa segunda leitura, embora poderia aceitar a primeira. .

Apesar dessas hipóteses dualistas, parece-me que, finalmente, existe também uma tendência monista ou naturalista, pelo menos na medida em que Habermas sempre levou em conta que o modo de interpretação evolucionário devia dar conta dos processos que desembocaram no dualismo atual. É uma tendência que aparece mais claramente na conjunção entre o seu pragmatismo e uma teoria da aprendizagem que conecta as aprendizagens naturais e culturais.

O ponto de vista pragmatista, de um lado, obriga a situar, contextualizar o discurso ou os enunciados. É por isso que Habermas considera que uma tentativa reducionista fracassa desde logo, como se o pragmatismo fosse incluído dentre de um mundo da vida linguisticamente formado. Porém, do outro lado, o pragmatismo ultrapassa o quadro linguístico. A linguagem fica então ao serviço de um comportamento prático, ligado sem dúvida a funções vitais evolucionárias. Por exemplo, podemos dar uma interpretação pragmatista das intuições kantianas da sensibilidade. "Na dimensão do espaço, os conhecimentos são o fruto de um conjunto de decepções que superamos na nossa relação inteligente com um meio ambiente cheio de riscos; [...] na dimensão temporal, enfim, eles resultam dos processos de aprendizagem que tiram as conseqüências dos erros cometidos." (HABERMAS, 2001, p. 289). Pode-se tomar o conhecimento como uma função num tal dispositivo complexo. Sem dúvida nenhuma, os resultados evolucionários que chegaram à linguagem não somente enriqueceram o leque de respostas possíveis aos desafios práticos, mas introduziram a perspectiva reflexiva típica das obras de cultura. Não obstante, há uma continuidade evolutiva, já que, "[...] de um ponto de vista pragmatista, o processo do conhecimento se apresenta como um comportamento inteligente cuja função é resolver problemas e nos permitir engajar-nos em processos de aprendizagem, de corrigir erros e invalidar objeções." (HABERMAS, 2001, p. 289). E numa passagem já célebre, Habermas afirma que o seu naturalismo

[...] repousa sobre uma única hipótese metateórica: aquela segundo a qual "nossos" processos de aprendizado — tornados possíveis pelas formas de vida socioculturais — não fazem outra coisa que, de uma certa maneira, prolongar "processos de aprendizado evolucionários" prévios que, a sua vez, engendraram as estruturas de nossas formas de vida. Daí, as estruturas que, transcendentalmente, tornam possíveis processos de aprendizado do tipo de aqueles em que nós engajamo-nos, podem a sua vez ser consideradas come o resultado de processos de aprendizado histórico-naturais — e por isso mesmo essas estruturas mesmas adquirem um carácter cognitivo. (HABERMAS, 2001, p. 290-291).

Essa continuidade entre os processos naturais, descritíveis empiricamente nos termos da teoria da evolução, e os processos de constituição de nosso mundo vivido cultural, não implica, segundo Habermas, nenhuma forma de reducionismo, o qual pretenderia substituir a análise conceptual do mundo vivido por uma explicação neurológica ou biogenética. Mas é o reducionismo epistemológico que é afastado. A hipótese metateórica, pelo contrário, tem um alcance ontológico. Habermas fala de um "naturalismo atenuado", porque não é possível substituir o conhecimento das práticas do mundo vivido por uma "explicação científica". Todavia, podemos dizer que o nosso equipamento orgânico e o nosso modo de vida cultural do homo sapiens têm uma origem natural e que uma explicação dessa evolução é possível. Obviamente, o pano de fundo que torna possível essa explicação é nosso mundo vivido racionalizado atual. Devemos manter uma dualidade de ponto de vista. Porém, a hipótese de uma continuidade entre uma história natural (o mundo da legalidade da natureza) e uma história cultural (o mundo das interpretações ligadas à ação e ao mundo vivido) não implica uma ontologia ultimamente dualista, nem sequer pode ser deduzida de uma tal ontologia6 6 Veja-se também: BERTEN, André. A religião numa perspectiva evolucionista: Habermas e Weber. Tempo Brasileiro, 181-182, abril-setembro de 2010, número especial "Jürgen Habermas – 80 anos", p. 169-186 .

Sem dúvida, atualmente, no estado de desenvolvimento cultural contemporâneo, e talvez desde que apareceu o homo sapiens, a complexidade das relações entre o substrato "físico" e aquele em que vivemos fenomenologicamente, tornou impossível fazer o percurso construtivo (e não "reconstrutivo") que vai da física à química e da química à biologia etc. Mas isso não significa que esse percurso não exista. Ele pode ser uma hipótese de pesquisa interessante — ou talvez a melhor hipótese de pesquisa no sentido que pode negativamente excluir as posições metafísicas, afirmando a diferença ontológica entre natureza e liberdade, ou entre cérebro e mente. Hipótese de pesquisa, porque Habermas, em bom kantiano, aceitaria a impossibilidade de decidir se, ao nível ontológico, há ou não há uma diferença irredutível entre natureza e liberdade, por exemplo. Entretanto, talvez, como "ideia reguladora", a hipótese de um naturalismo forte seria a mais adequada para orientar as pesquisas7 7 Notemos, somente a título de confirmação, as tentativas anteriores de apoiar-se sobre as analogias entre a ontogênese e a filogênese, articular uma teoria evolucionista — uma filogênese — e uma teoria do desenvolvimento psíquico — uma ontogênese. Veja-se, no artigo "O materialismo histórico e o desenvolvimento das estruturas cognitivas" (1976) e na Teoria do agir comunicativo (1981). .

O NATURALISMO DECLARADO DE PHILIP PETTIT E O DUALISMO EXPLICATIVO

Gostaria de colocar a questão inversa a Philip Pettit: será que o naturalismo pode — ou deve — preservar a diferença do transcendental e do empírico? Pode o monismo naturalista fornecer uma interpretação satisfatória da intencionalidade humana? Se as condições de possibilidade de uma argumentação pública são agentes racionais, ou minimamente racionais, será que uma descrição naturalista pode dar conta dessas condições? Partindo de pressupostos materialistas, Pettit dá uma imagem detalhada da racionalidade em geral e, em particular, da racionalidade desses seres pensantes que são os humanos. No entanto, a questão da compatibilidade dessa apresentação com o naturalismo deve ser colocada. E talvez um certo dualismo, ultimamente, aparecerá inevitável. Mas esse dualismo guarda um ar objetivante e não corresponde à diferença entre o empírico e o transcendental.

No seu primeiro e inovador livro – The Common Mind: an Essay on Psychology, Society and Politics –, Philip Pettit propõe uma teoria que discute quais são os modelos políticos contemporâneos mais compatíveis com as pressuposições materialistas assumidas na sua perspectiva naturalista8 8 As teses políticas serão explicitadas em PETTIT, Philip. Republicanism. A Theory of Freedom and Government, Oxford, Clarendon Press, 1997. . Na verdade, o percurso é longo e complexo. Uma concepção simultaneamente normativa e realista da política apoia-se sobre uma descrição psicológica dos cidadãos (ou dos sujeitos), que, à sua vez, não pode contradizer as leis da natureza — as leis que as ciências contemporâneas nos ensinam. Minha intenção não é aqui defender o modelo republicano, discursivo e contestatório construído por Pettit, nem compará-lo com o modelo de democracia deliberativa de Habermas, mas interrogar o método e a função do naturalismo, nessa construção.

Segundo Pettit, uma teoria política deve apoiar-se sobre uma teoria social, e uma tal concepção, por sua vez, exige uma descrição do equipamento psicológico dos seres humanos. Isso significa que as descrições psicológicas são descrições dos sujeitos da ontologia social e é nesses sujeitos que devem ser encontradas as condições de possibilidade (necessárias, embora não suficientes) do que pode ser realizado nas instituições sociais e políticas. Essas condições de possibilidade, competências atribuídas aos indivíduos, não se reduzem a prestações linguísticas: o movimento regressivo implica remontar aquém dessas prestações, na medida em que a descrição psicológica atribui aos seres humanos uma racionalidade mínima pré-linguística (o "minimal mind"), racionalidade aliás que pode ser atribuída também aos animais – pelo menos aos animais superiores: os animais já são agentes intencionais, isto é, minimamente racionais.

Essas teses naturalistas aparecem claramente, quando Pettit explicita a definição do "common mind". A ideia de uma mente comum é defendida sob um triplo aspecto: fundada primeiro no naturalismo, a mente comum é também a mente que opera na "folk psychology" e, finalmente, é comum também num sentido social, no sentido do "individualismo holista". Veremos, porém, que as afirmações de um naturalismo decidido no nível das hipóteses teóricas devem ser matizadas, quando se trata da interpretação dos comportamentos humanos.

PRIMEIRO SENTIDO: NATURALISMO

O naturalismo de Pettit é franco e declarado. "Em primeiro lugar, [a mente] é comum ao não ser construída do material imaterial que diferentes tradições projetaram dentro do crânio humano. [...] [ela] pertence inteiramente a um universo construído do austero material desenhado pelas ciências..." (PETTIT, 1996, p. 341). Essa primeira tese é um postulado materialista, muito longe tanto no seu conteúdo como na sua forma de qualquer perspectiva dita transcendental. O naturalismo ou materialismo de Pettit é claro: ontologia materialista, imagem fisicalista da arquitetura das entidades empíricas. "Aceito a verdade do fisicalismo ou materialismo ou naturalismo, como é diferentemente chamado, e isso forma uma parte importante do pano de fundo de muitas das posições que defendo..." (PETTIT, 2007, p. 216) O fisicalismo é a tese de que tudo na existência é constituído de material físico, ultimamente o microfísico, ou o subatômico9 9 Pettit não discute as teorias físicas, e eu acho que não é necessário. A tese é principalmente metodológica ou negativa: não podemos conceber um mundo que contradiz as leis da física tais que as conhecemos, e se há várias interpretações da teoria física, a tese significa que o mundo mental ou social ou político não pode estar em contradição com (A ou B ou C). . Formalmente, significa que "[...] todas as leis e regularidades que vigem no mundo real são fixadas pelas leis e regularidades físicas" (ib.), inclusive as leis psicológicas ou sociológicas. Na perspectiva de uma teoria dos mundos possíveis, o fisicalismo "[...] significa que um duplicado físico mínimo do mundo real — um duplicado físico ao qual nada está acrescentado independentemente — seria um duplicado simpliciter, um duplicado sob todos os aspectos. [...] Isso significa que o caráter não-físico do mundo real é fixado supervenientemente sobre o físico." (PETTIT, 2007, p. 217). Num duplicado físico do mundo real, as realidades mentais, psicológicas, sociais, culturais etc. seriam exatamente as mesmas. Isso significa que não podemos nem devemos pensar uma independência dos fenômenos mentais a respeito dos fenômenos físicos. Mas essa exigência se traduz mais de maneira negativa que positiva: "pano de fundo" mais que esquema metodológico concreto para construir as teorias que interessam verdadeiramente a Pettit. Por exemplo, não devemos construir uma psicologia que esteja em contradição com o que sabemos da fisiologia. Isso não significa que temos uma explicação satisfatória dos estados mentais, a partir das configurações neurocerebrais, mas que uma explicação dos estados mentais que contradiria o que já sabemos desses mecanismos de base deve ser recusada.

Pettit reconhece que o fisicalismo é somente uma hipótese, pois é uma verdade contingente que o mundo real tem o caráter descrito. É, no entanto, uma hipótese econômica e atrativa, e tem a vantagem de afinar o desafio para a filosofia de tentar reconciliar o mundo vivido na experiência ordinária e o mundo descrito na ciência. Essa postura metodológica não pretende positivamente deduzir os fatos psicológicos dos fenômenos físicos, mas estabelece um limite às tentativas de dar explicações de nossos estados mentais, da liberdade e da responsabilidade pessoal, da objetividade do bem e do justo etc. O fato de nossas hipóteses psicológicas e sociológicas não estarem em contradição com as pressuposições fisicalistas "[...] é uma boa e interessante notícia..." (PETTIT, 2007, p. 217) Finalmente, significa que "[...] as leis de nível superior não entram em conflito com as subatômicas, [...] e não aproveitam de qualquer indeterminação ou parte solta que o subatômico deixaria." (PETTIT, 1996, p. 342-343).

Nesse primeiro nível, Pettit, claramente, quer assegurar uma base naturalista ao funcionamento mental elementar dos humanos, ao inscrevê-lo dentro de um modelo que contém indiferentemente sistemas mecânicos, robóticos, animais e humanos. Nessa perspectiva, a questão clássica, em filosofia da mente, da causalidade dos estados intencionais recebe uma resposta "funcionalista" que preserva o monismo naturalista:

A concepção desses estados que está mais de acordo com meu fisicalismo de fundo, e com minha perspectiva deflacionista do agir, é uma versão do "funcionalismo", como ele é chamado na filosofia da mente; o que não tem nada a ver com o "funcionalismo" como estratégia explicativa nas ciências sociais. Quando há uma crença ou um desejo de uma certa variedade, isto implicará sempre um estado físico de um certo tipo: digamos, uma configuração neural. E esse estado físico contará como o estado intencional exatamente na medida em que ele joga uma função ou um papel adequado. Ele terá que jogar ou estará perto de jogar um papel adequado, primeiro ao interagir causalmente com outros estados; segundo, ao agir causalmente com o mundo externo; e tertio, ao levar finalmente à ação por uma rota causal. (PETTIT, 2007, p. 230).

MENTE COMUM E PSICOLOGIA POPULAR

Na segunda etapa de sua construção, e num segundo sentido da "comunidade" da mente, Pettit defende o valor teórico da "folk psychology", da psicologia popular, ordinária ou comum. Essa defesa é interessante a vários títulos, não somente porque é uma tentativa de "[...] reconciliar o mundo como o conhecemos na experiência comum e a suposição do mundo com está descrito na ciência" (PETTIT, 2007, p. 217), mas porque corresponde a uma tendência mais geral da filosofia cognitiva contemporânea.

Poderíamos lembrar que um momento essencial no percurso de Habermas foi a introdução de uma pragmática fundada sobre o uso da linguagem ordinária. Em Conhecimento e Interesse, Habermas partia ainda de discursos elaborados (ciência natural, história, hermenêutica, crítica das ideologias). Na Teoria da ação comunicativa, os discursos formalizados (ciência, direito, estética) se constituem no prolongamento do uso ordinário da linguagem, como necessários para honrar as pretensões à verdade, à correção ou ao belo. Nessa perspectiva, o método transcendental de Habermas consiste em partir das prestações linguísticas reais e ordinárias, embora estas pudessem se tornar progressivamente racionalizadas. Essa atenção à linguagem comum cabe bem com uma preocupação transcendental. Devemos partir de "fatos", isto é, das performances da linguagem real e nos interrogar sobre as suas condições de possibilidade10 10 Veja-se, por exemplo: WEIL, Éric. Sens et fait. In: Problèmes kantiens. Paris: Vrin, 1963, p. 57-107. . A preocupação de Pettit de conciliar a experiência fenomenológica com o formalismo científico não é transcendental, mas também não está em contradição com o transcendentalismo fraco de Habermas.

É preciso igualmente acrescentar que, de maneira geral, o interesse para a linguagem ordinária constituiu uma guinada importante no quadro da filosofia analítica, porque introduziu uma perspectiva pragmática dentro das análises conceituais11 11 Cf. AUSTIN, John Langshaw. How to do Things with Words. Oxford: Oxford University Press, 1962; GRICE, Paul. Utterer's Meaning, Sentence-Meaning, and Word-Meaning. In: Foundations of Language, 1968, vol. 4; SEARLE, John. Speech Acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1969. . É uma guinada parecida que manifesta o interesse para a psicologia ordinária, depois de muitas tentativas explicativas de tipo cognitivista. As concepções da folk psychology, defendidas na contemporânea philosophy of mind, atribuem aos sujeitos humanos uma "racionalidade mínima" que podemos deduzir de nossa capacidade de interpretar o comportamento de outrem e de prever (hipoteticamente) o seu comportamento futuro12 12 JACKSON, Frank; PETTIT, Philip. In Defense of Folk Psychology. In: JACKSON, Frank; PETTIT, Philip; SMITH, Michael. Mind, Morality, and Explanantion. Selected Collaborations. Oxford : Clarendon Press, 2004, p. 31. . Em outras palavras, é a atribuição a outrem de crenças e capacidades inferenciais mínimas13 13 Veja-se, por exemplo, o "princípio de caridade" de Quine ou Davidson. , tornando possível um comportamento intencional. Defendendo a psicologia popular, Pettit quer mostrar que não há contradição entre as teorias pragmáticas da linguagem ordinária e o que as ciências propõem (linguística, psicologia cognitiva, neurofisiologia do cérebro etc.), como também não há contradição entre a teoria da psicologia ordinária que utiliza o sistema de "crenças e desejos" e as teses cognitivistas sobre o funcionalmente da mente:

[...] uma abordagem funcionalista de senso comum para com nossa concepção ordinária [folk] das crenças e dos desejos mostra que é muito plausível que eles existem, quando o funcionalismo de senso comum é entendido como definido implicitamente por nossa prática de mover-nos, ida e volta, entre comportamento, situações, e crenças e desejos. Uma neurociência completada deve portanto fornecer uma história completa de quando e porque fazemos o que fazemos, e incorporar em vez de eliminar as crenças e os desejos nessa história completa. (JACKSON; PETIT, 2004, p. 34-35).

Essa referência à mente comum — como ainda à linguagem ordinária — está também na base da teoria da ação comunicativa de Habermas, na medida em que a linguagem ordinária reflete o funcionamento da mente e as suas capacidades. Essa convergência entre Habermas e Pettit, aliás, nos interessa, porque é no tratamento do discurso ordinário, da psicologia ordinária do mundo da vida, que surge a questão da possibilidade de uma verdadeira conciliação entre o ponto de vista científico e as descrições feitas do ponto de vista do participante.

MENTE COMUM E PENSAMENTO REFLEXIVO

Qualquer perspectiva naturalista deve enfrentar a questão da "diferença antropológica", isto é, o fato de que as prestações cognitivas humanas superam de longe as performances dos animais mais desenvolvidos. Uma posição naturalista estrita sempre privilegiará os índices de continuidade, tentando reconstruir passo a passo todas as etapas do desenvolvimento da vida até os estados atuais. Isso aparece, por exemplo, quando Habermas, na Teoria do agir comunicativo, interessa-se pelas sociedades primitivas e tenta entender a passagem de comportamentos já simbólicos à sua verbalização. No entanto, a compreensão das performances complexas do seres humanos resiste às explicações usuais das ciências naturais. A descrição da racionalidade elementar da mente mínima, compartilhada com os animais superiores, pode receber uma explicação funcional, mas esse tipo de explicação não pode dar conta imediatamente da totalidade do funcionamento mental humano. Segundo o próprio Pettit, uma das principais novidades de Common Mind é a distinção entre sistemas intencionais que "[...] crêem e desejam" e sistemas intencionais que "[...] podem também pensar" (PETTIT, 1993, p. viii), isto é, de sistemas intencionais que podem agir intencionalmente com uma concepção de suas crenças e de seus desejos, sistemas que manifestam uma reflexividade. É a distinção entre sistemas intencionais e sujeitos pensantes, entre sistemas que manifestam regularidades racionais nas suas interações com o seu meio ambiente, que realiza um certo grau de racionalidade pelo fato de terem crenças e desejos e sistemas intencionais, que, além disso, não somente realizam um certo grau de racionalidade no seu comportamento mas também têm atitudes reflexivas a respeito dos conteúdos de suas crenças e de seus desejos. Os sujeitos pensantes podem cuidar para a racionalidade de suas crenças e de seus desejos, lutar intencionalmente para aumentar a racionalidade das crenças e dos desejos14 14 É o que Pettit chama de "intentional ascent". , e são capazes de corrigir seu comportamento em função de novas informações. Essa reflexividade tem uma consequência essencial: os sujeitos pensantes são capazes de tratar alguns desses conteúdos de crença ou desejo como constrangimentos normativos, como regras de pensamento que eles são capazes de seguir. No nível metodológico, a explicação intencional "[...] fornece também o que descrevo como uma informação interpretativa: isto é, uma informação sobre o tipo de razões — ou, como pode ser, de razões aparentes — que são relevantes para a maneira dos agentes responderem." (PETTIT, 2002, p. 162).

O que Pettit insere aqui é um conjunto complexo de ideias: reflexividade, normatividade, interpretação. Ora, essa complexidade apela a uma abordagem metodológica diferenciada. A explicação intencional

[...] representa os seres humanos, não exatamente na imagem do homo rationalis — o agente racional — mas também na imagem do homo raciocinans: o agente raciocinans ou raciocinativo. E sendo uma explicação desse tipo, ela nos da uma entrée à mente da pessoa explicada. Nessa perspectiva, como provavelmente em outras, vale a pena de notar que se trata de uma forma de Verstehen que fica diferente do mais usual Erklären. (PETTIT, 2002, p. 163).

Pettit acrescenta que, se o interpretativo difere do simplesmente explicativo, é porque os humanos possuem a linguagem: "Ultimamente, porque somos uma espécie conversacional que pode entrar num intercâmbio discursivo com os outros — pode esperar os influenciar ao produzir razões que aceitarão — somente na medida em que vemos como suas mentes operam ao nível das razões." (PETTIT, 2002, p. 163).15 15 É interessante notar que a interpretação que Pettit dá de Hobbes segue, nos primeiros capítulos, exatamente o mesmo esquema: explicação materialista da mente humana como da mente animal, mas se diferencia quando se trata do pensamento ativo e reflexivo, o que é possível somente pela aquisição da linguagem. O título do livro é significativo: Made with Words. Hobbes on Language, Mind, and Politics (Princeton: Princeton University Press, 2008).

Assim, o monismo de Pettit não pode deixar, finalmente, de aceitar um certo "dualismo" explicativo e de reintroduzir uma distinção entre o Erklären e o Verstehen. A defesa da folk psychology, que corresponde bem à tentativa de reconciliar as intuições de senso comum e da linguagem comum com as formulações da ciência, pressupõe uma "[...] prática da racionalidade explicando as atitudes — crenças e desejos — que formamos e as ações que empreendemos." (PETTIT, 2002, p. 159). Ora, essa prática que torna os comportamentos humanos racionalmente inteligíveis foi, durante muito tempo, considerada como distinta, catalogada "[...] como Verstehen ou compreensão antes de mera Erklären ou explicação." (PETTIT, 2002, p. 159). Essa distinção não contradiz as pretensões naturalistas, pelo menos do ponto de vista epistemológico, desde que, "[...] se as crenças e os desejos invocados na explicação da ação são causalmente relevantes para a ação explicada, como provavelmente devem ser, são relevantes em virtude da relevância causal dos realizadores neurais mais básicos desses estados intencionais; os estados intencionais causam somente o que seus realizadores causam." (PETTIT, 2002, p. 159). No entanto, esse dualismo epistemológico significa, no meu modo de ver, que não podemos reconstruir sem falha a totalidade das pressuposições cognitivas de nossas performances reais. Devemos somente reconhecer que o materialismo ontológico de Pettit está afirmado mais fortemente que aquele que aparece mais como tendência em Habermas, que, em bom kantiano, não toma posição sobre a constituição ontológica última da nossa realidade humana.

MENTE COMUM E INDIVIDUALISMO HOLISTA

Parece-me que há também um terceiro aspecto da "mente comum" que impede a teoria de Pettit de manter-se num naturalismo estrito. Uma das teses mais originais de Pettit, em Common Mind, é sua defesa de um "holismo individualista" ou de um individualismo holista. É essa tese que lhe dá uma posição específica em filosofia política — um republicanismo liberal — que não quero discutir aqui, mas que resulta da sua descrição dos sujeitos da ontologia social. O individualismo holista repousa sobre uma dupla distinção fundamental, original e, a meu modo de ver, correta: a distinção primeiro entre individualismo e atomismo; e segundo, entre holismo e coletivismo. O individualismo significa que "[...] a compreensão psicológica de senso comum, ou compreensão intencional sobre a qual nós baseamos nossa vida social" é considerada como "fundamentalmente válida. Somos tais que aparecemos a nós-mesmos" (PETTIT, 2004, p. 3). Somos "[...] centros de pensamento, de sentimento e de ação" e "[...] não peões ou brinquedos manipulados por forças coletivas" (PETTIT, 2004, p. 3). Contudo, esse individualismo não implica qualquer forma de "atomismo", isto é, de negação das determinações sociais. Pelo contrário, se Pettit alude a individualismo "holista", é porque não podemos conceber as mentes individuais como entidades isoladas:

[...] a mente de meu título, escreve Pettit, é comum no sentido, realmente diferente, de ser uma mente compartilhada ou social, não uma mente isolada ou solipsista. Ela nasce nos indivíduos na base da interação e da comunidade entre eles — isso, na pressuposição que os conteúdos são "comuns e comunicáveis" ["commonable"] — e assim o fato que um indivíduo tem mente [is minded] implica que os outros também têm mente. Não há mente, nesse sentido comum, sem uma sociedade de mentes. (PETTIT, 1996, p. 342).

Notemos logo aqui a convergência com as teses do agir comunicativo: a constituição dos sujeitos não preexiste às prestações linguísticas, aos discursos, às trocas de palavras. Mas a questão que agora se coloca é a de saber se será possível prolongar sem descontinuidade o tipo de explicação funcionalista que Pettit defendeu, na sua explicação da racionalidade intencional dos indivíduos. De meu ponto de vista, se Pettit introduziu uma distinção metodológica entre o explicar e o compreender, é porque a interpretação de uma mente "holista", intimamente ligada ao caráter linguístico e social do pensamento, acarreta um modo diferenciado de explicação. Certo, e esse argumento deveria ser desenvolvido, Pettit defende o que ele chama um "ecumenismo" explicativo que não contradiz a posição naturalista de fundo, todavia, sem dúvida, conforta as teses habermasianas da impossibilidade de um reducionismo, no sentido de um modelo único e exclusivo de explicação, copiado da explicação das ciências naturais16 16 Para explicitações dessa pluralidade de tipos de explicação, veja-se, por exemplo, In Defense of Explanatory Ecumenism. In: PETTIT, 2004, p. 163-186, e Three Aspects of Rational Explanation. In: PETTIT, 2002, p.177-191. .

Aliás, parece-me que a afirmação do caráter social do indivíduo corresponde, de uma certa maneira, à aceitação das determinações que vêm do mundo da vida, e que os conteúdos sociais que constituem o sujeito individual devem determinar também as suas produções epistemológicas – tema que Pettit não integra na sua perspectiva epistemológica.

CONCLUSÃO

Colocar questões sobre o monismo ou o dualismo ontológico e epistemológico não impede de reconhecer que, pragmaticamente, a maioria de nossas pesquisas e interrogações não precisam de explicações materialistas ou naturalistas. Fazemos, por conseguinte, "como se" as leis da natureza, inclusive da natureza humana, funcionassem em todos os casos, com a suposição eventual de que somente um contraexemplo nos levaria a rever as nossas posições. De uma certa maneira, essas pressuposições de um funcionamento natural equivalem às pressuposições do mundo da vida em Habermas: são pressuposições que não precisamos geralmente tematizar, mas que estarão eventualmente contestadas ou interrogadas, na medida em que um acontecimento (natural ou cultural) parecerá andar de uma maneira não conforme essas leis da natureza ou do mundo da vida. Dessa perspectiva, o monismo ontológico seria somente uma ideia "reguladora" e nunca um conceito constituinte. No entanto, Pettit parece acreditar em uma estrutura a-histórica do mundo da vida: o individualismo holista não está apresentado como uma característica de nossa modernidade, mas como uma estrutura humana enquanto tal.

O breve percurso proposto nessa comparação das posições de Habermas e Pettit a respeito da questão do naturalismo, do monismo ou do dualismo, nos mostra que talvez a posição "kantiana" de Habermas não somente fica mais prudente, mas sobretudo mais realista. Pois o programa de Pettit, embora coerente na sua perspectiva final, encontra dificuldades que o fazem, de uma certa maneira, recuar, abandonar um naturalismo rígido, para dar uma "interpretação" conforme às intuições de senso comum a respeito de nossa capacidade de compreensão mútua. No entanto, tanto Habermas como Pettit concordariam com a tese de que, monismo ou dualismo, as explicações e interpretações do comportamento humano não podem contradizer as leis da natureza. Formulado positivamente, isso significa, como Pettit o tentou mostrar, que sempre é necessário deixar aberta a possibilidade de diminuir o "gap" entre as explicações científicas naturalistas e as interpretações ligadas ao fato de nossa participação social à elucidação das questões "humanas".

  • AUSTIN, John Langshaw. How to do Things with Words. Oxford: Oxford University Press, 1962.
  • BERTEN, André A religião numa perspectiva evolucionista: Habermas e Weber. Tempo Brasileiro, 181-182, abril-setembro de 2010, número especial "Jürgen Habermas 80 anos", p. 169-186.
  • GRICE, Paul. Utterer's Meaning, Sentence-Meaning, and Word-Meaning. Foundations of Language, 1968, vol. 4.
  • HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handelns Band 1-2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1981.
  • HABERMAS, Jürgen. Le matérialisme historique et le développement des structures normatives e Pour une reconstruction du matérialisme historique. In: Après Marx, Tr. par J.R. Ladmiral et M.B. de Launay. Paris: Fayard, 1985, p. 25-164.
  • HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. In: Técnica e ciência como ideologia Lisboa: Edições 70, 1987, p. 129-147.
  • HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik. Frankf./M., Suhrkamp, 1991.
  • HABERMAS, Jürgen. Vérité et justification. Tr. R. Rochlitz. Paris: Gallimard (Wahrheit und Rechtfertigung. Philosophische Aufsätze. Frankfurt/M: Suhrkamp Verlag, 2001.
  • HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião. Estudos filosóficos. Tr. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
  • JACKSON, Frank; PETTIT, Philip. In Defense of Folk Psychology. In: JACKSON, Frank; PETTIT, Philip; SMITH, Michael. Mind, Morality, and Explanation. Selected Collaborations, Oxford: Clarendon Press, 2004.
  • PETTIT, Philip. The Common Mind: An Essay on Psychology, Society and Politics. New York: Oxford University Press, 1993.
  • PETTIT, Philip. Republicanism. A Theory of Freedom and Government. Oxford: Clarendon Press, 1997.
  • PETTIT, Philip. Rules, Reasons, and Norms Oxford: Oxford University Press, 2002.
  • PETTIT, Philip. Penser en société. Essais de métaphysique sociale et de méthodologie. Paris: PUF, 2004.
  • PETTIT, Philip Joining the Dots. In: BRENNAN, Geoffrey; GOODIN, Robert; JACKSON, Frank; SMITH, Michael (Ed.). Common Minds. Themes from the Philosophy of Philip Pettit. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 215-338.
  • PETTIT, Philip. Made with Words. Hobbes on Language, Mind, and Politics. Princeton: Princeton University Press, 2008.
  • POPPER, Karl R. Objective Knowledge. An Evolucionary Approach Oxford: Oxford University Press, 1972, p. 106-152.
  • SEARLE, John. Speech Acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
  • 1
    Embora pudessem ser "reguladoras", no sentido de dar orientação para com as finalidades da pesquisa.
  • 2
    Evidentemente, toda a metodologia da pesquisa científica como pesquisa teórico-empírica trabalha com pressuposições totalmente diferentes, perspectiva que não analisaremos aqui.
  • 3
    Habermas determina claramente a sua filiação kantiana e a reformulação da problemática transcendental no longo ensaio "Agir comunicativo e razão destranscendentalizada" (2007, p. 31-90).
  • 4
    POPPER, Karl, R.
    Objective Knowledge. An Evolucionary Approach. Oxford: Oxford University Press, 1972, p. 106-152.
  • 5
    Essa afirmação pode receber duas interpretações bem diferentes. A primeira seria que, do ponto de vista da teoria da evolução, o mundo objetivo, o mundo da cultura ou das ideias, se tornou independente das leis gerais da evolução natural; mas a segunda seria mais difícil de sustentar: que o mundo cultural objetivo poderia ser independente das leis da física em geral. Não acho que Habermas aceitaria essa segunda leitura, embora poderia aceitar a primeira.
  • 6
    Veja-se também: BERTEN, André. A religião numa perspectiva evolucionista: Habermas e Weber.
    Tempo Brasileiro, 181-182, abril-setembro de 2010, número especial "Jürgen Habermas – 80 anos", p. 169-186
  • 7
    Notemos, somente a título de confirmação, as tentativas anteriores de apoiar-se sobre as analogias entre a ontogênese e a filogênese, articular uma teoria evolucionista — uma filogênese — e uma teoria do desenvolvimento psíquico — uma ontogênese. Veja-se, no artigo "O materialismo histórico e o desenvolvimento das estruturas cognitivas" (1976) e na
    Teoria do agir comunicativo (1981).
  • 8
    As teses políticas serão explicitadas em PETTIT, Philip.
    Republicanism. A Theory of Freedom and Government, Oxford, Clarendon Press, 1997.
  • 9
    Pettit não discute as teorias físicas, e eu acho que não é necessário. A tese é principalmente metodológica ou negativa: não podemos conceber um mundo que contradiz as leis da física tais que as conhecemos, e se há várias interpretações da teoria física, a tese significa que o mundo mental ou social ou político não pode estar em contradição com (A ou B ou C).
  • 10
    Veja-se, por exemplo: WEIL, Éric. Sens et fait. In:
    Problèmes kantiens. Paris: Vrin, 1963, p. 57-107.
  • 11
    Cf. AUSTIN, John Langshaw.
    How to do Things with Words. Oxford: Oxford University Press, 1962; GRICE, Paul. Utterer's Meaning, Sentence-Meaning, and Word-Meaning. In:
    Foundations of Language, 1968, vol. 4; SEARLE, John.
    Speech Acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
  • 12
    JACKSON, Frank; PETTIT, Philip. In Defense of Folk Psychology. In: JACKSON, Frank; PETTIT, Philip; SMITH, Michael.
    Mind, Morality, and Explanantion. Selected Collaborations. Oxford
    : Clarendon Press, 2004, p. 31.
  • 13
    Veja-se, por exemplo, o "princípio de caridade" de Quine ou Davidson.
  • 14
    É o que Pettit chama de "intentional ascent".
  • 15
    É interessante notar que a interpretação que Pettit dá de Hobbes segue, nos primeiros capítulos, exatamente o mesmo esquema: explicação materialista da mente humana como da mente animal, mas se diferencia quando se trata do pensamento ativo e reflexivo, o que é possível somente pela aquisição da linguagem. O título do livro é significativo:
    Made with Words. Hobbes on Language, Mind, and Politics (Princeton: Princeton University Press, 2008).
  • 16
    Para explicitações dessa pluralidade de tipos de explicação, veja-se, por exemplo, In Defense of Explanatory Ecumenism. In: PETTIT, 2004, p. 163-186, e Three Aspects of Rational Explanation. In: PETTIT, 2002, p.177-191.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      2013
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