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Seria o Sujeito uma Criação Medieval? Temas de Arqueologia Filosófica

Resumos

O artigo visa analisar, em linhas gerais, a arqueologia do sujeito operada por Alain de Libera, o que será feito pela concentração no estudo de duas teses fundamentais: (a) Descartes chegou ao sujeito menos por reflexão e mais por refração, em seu debate com Hobbes e Regius, ao tentar escapar da redução do indivíduo à vida corporal e, portanto, à passividade; (b) Tomás de Aquino e Pedro de João Olivi teriam sido os responsáveis por dar certo acabamento a uma temática elaborada desde a Patrística, eminentemente por Agostinho de Hipona, que teria formulado um esquema compreensivo do eu como suporte e como agente.

Sujeito; Arqueologia; Subjectidade; Subjetividade; Atributivismo


This article aims to analyze the fundamentals of Alain de Libera’s archeology of the subject. Two central thesis will be investigated here: (a) Descartes arrived at his theory of the subject in a controversy with Hobbes and Regius, in order to avoid the reduction of the individual to bodily life and passivity; (b) Thomas Aquinas and Peter John Olivi were responsible for a mature approach to the theme of the subject, which had been elaborated by Patristic authors, eminently by Augustine of Hippo, who formulated a comprehensive scheme of the self as support and agent.

subject; archeology; subjectness; subjectivity


Em 2007, Alain de Libera publicou, pela editora Vrin (Paris), o primeiro volume de sua Archéologie du sujet. Com o subtítulo Naissance du sujet, o volume abria uma série de quatro ou cinco (a redação dos próximos dirá se haverá um quinto ou não, como esclarece o autor) que concretizarão o projeto ambicioso de tratar, se não exaustivamente, ao menos em seus momentos mais decisivos, da história da noção de sujeito.

O primeiro volume dedica-se aos fundamentos da arqueologia praticada por De Libera, tanto pelo esclarecimento de seu método como pela análise do papel de Agostinho, Tomás de Aquino e Descartes na história do sujeito2 2 O primeiro volume foi traduzido em português por Fátima Conceição Murad e publicado pela Editora FAP-UNIFESP, em 2013. Infelizmente, a tradução possui falhas de não pouca monta. . O segundo volume, publicado em 2008, leva o subtítulo La quête de l’identité e investiga o modo como o sujeito permanece nos subterrâneos dos debates atuais sobre o self, usando a máscara da pessoa. Nele, Alain de Libera parte das questões sobre a identidade pessoal na filosofia contemporânea (sobretudo Strawson e Rorty) e mostra como, já na Idade Média, houve um tratamento maduro do que Martin Heidegger chamará de subjectidade e do que David Armstrong denominará teoria da mente como atributo (do corpo) e que ele, De Libera, chama de atributivismo. Ainda no segundo volume, Alain de Libera explora casos que produziram acirrados debates em vários momentos da história da filosofia e da ciência e ilustram as teses da subjectidade versussubjetividade, bem como do atributivismo. Por exemplo, evoca o problema medieval do batismo de siameses, o problema lockeano das personalidades múltiplas ou dos corpos em multipropriedade, o caso das gêmeas da Boêmia etc. Passa por Tomás de Aquino, Henrique de Gand, Duns Escoto, Leibniz, Clarke, Butler, Reid, entre outros, para evidenciar que o sujeito, já na Idade Média, deixa o estatuto de simples receptor passivo e recebe a condição pessoal de agente, embora, a partir do século XVII, essa tenha sido considerada uma bandeira moderna.

No início de 2014, Alain de Libera publicou a primeira parte do terceiro volume. O terceiro volume chama-se L’acte de penser; sua primeira parte tem como subtítulo La double révolution; a segunda parte, ainda não publicada, será L’empire du sujet e voltará à Idade Média a partir da Modernidade. A problemática que guia o terceiro volume é o que se entende pelo pensar: o pensamento é um ato? Todo pensamento é consciente? É pessoal, subjetivo, imanente? Psíquico ou corporal? Nesse volume, De Libera trata longamente de Aristóteles e Descartes, sob a perspectiva da história do averroísmo (que concebia o pensamento como algo impessoal) e do antiaverroísmo. A tese mais polêmica do terceiro volume é certamente a de que a descrição heideggeriana, segundo a qual Descartes seria o inventor da subjetividade, não é suficiente para descrever a passagem da Idade Média à Modernidade, porque só apresenta um lado da história, a história alemã, idealista e transcendental – na verdade, a história kantiana do problema. De Libera recorre à outra fonte da Modernidade em psicologia e filosofia do espírito, a fonte empirista, passando por Locke e chegando a Brentano, Wittgenstein, Reid e Hamilton, sublinhando como certas teorias contemporâneas da mente não passam de formas averroístas de filosofia. Conforme anuncia Alain de Libera, o quarto volume abordará o sujeito “kantificado”, tratando de Kant, Schelling e Heidegger, o que talvez dê ainda ocasião a um quinto volume.

Um aspecto explorado no terceiro volume (aspecto, aliás, que perpassa todos os volumes) permite chegar às duas teses que pretendemos expor aqui. Trata-se das concepções de pensamento dos autores contemporâneos antissujeito, quer dizer, autores que não negam a experiência que chamamos em geral de pensamento, mas que negam sua dependência para com um suporte pessoal do pensar ou um eu pensante. Como mostra Alain de Libera, há uma tradição que nega o sujeito e prefere afirmar que “isso” ou “algo” pensa (Es denkt). Essa tradição parte, em linhas gerais, de Georg Christoph Lichtenberg e vai até Wittgenstein e Peter Strawson (que a ataca), passando por Schelling e Nietzsche. Basta pensar no § 17 de Além do bem e do mal, para lembrar o modo como Nietzsche denuncia a “superstição dos lógicos” e a “rotina gramatical”, as quais obrigariam a dizer que pensar é uma ação e a crer que ele supõe a existência de uma coisa que pensa, um sujeito para o predicado “pensa”; como toda ação, o pensar requereria um sujeito que a realiza. Se se evocam Freud e Lacan, com a teoria do inconsciente, ou Pierre Bourdieu, com seu conceito de campo (o campo em que se insere o indivíduo exerce uma pressão vinculadora que o constrange por sua posição social, sua educação, seu capital material e simbólico, fazendo dele um resultado desse campo), fica mais claro o que significa a tese central da tradição do Es denkt: o que se chama de pensamento seria algo que não depende de nós individualmente; não sou eu que penso, pois não sou o sujeito de meu pensamento. Essa tese encontra-se também nas posições fisicalistas duras (como a sustentada por Dennet e Armstrong), segundo as quais o pensamento não passa do resultado de conexões físicas, de sorte que o que tradicionalmente se chamou de psíquico não seria mais do que um atributo do corpo (teoria atributivista). Nas palavras de Alain de Libera, essa tradição é pesada, quer dizer, tem um impacto bastante forte e não é nada periférica; suas raízes remontam a Averróis. Ainda que os autores contemporâneos citados não afirmem a existência de um intelecto único e separado, ao modo do neoplatonismo averroísta, suas formas de teorizar reproduzem, guardadas as devidas proporções, a maneira como o pensador árabe punha o problema e o resolvia, transferindo da subjetividade para outra instância a responsabilidade pelo pensar.

Ocorre que, na historiografia filosófica hegemônica, a reação antissujeito moderna e contemporânea costuma ser considerada uma reação ao que se toma como a grande novidade de René Descartes: a criação do sujeito. É essencialmente esse costume historiográfico que Alain de Libera procura investigar, ao longo das cerca de 3000 páginas que pretende escrever (os três volumes publicados já perfazem um total de 1500). Ele não busca elaborar uma nova concepção de sujeito, mas estudar a história daquela que Paul Ricoeur denominou, pela primeira vez em 1969, “questão do sujeito”.

Com efeito, no texto “La question du sujet: le défi de la sémiologie”, publicado na obra Le conflit des interprétations, Paul Ricoeur dizia haver um conjunto de experiências que convergem para a formulação da questão sobre o que é o sujeito. Essas experiências podem ser tomadas como momentos da formulação da questão: num primeiro momento, temos uma experiência que, de certa maneira, engloba os momentos seguintes; trata-se da experiência da diferença, ou seja, do afastamento do sujeito com relação a todo o restante. Esse momento é o da experiência do sentido em que tudo aparece como significação a ser elucidada; e o sujeito mesmo aparece como força de simbolização de si e de toda e qualquer outra coisa. Um segundo momento é o da referência do sujeito a si mesmo, no ato de ligar-se ao mundo; constitui um momento em que há uma dissimulação de si e um despertar para si num devir em que se formam as ligações do existir e do sujeito. Nessa experiência de si mesmo, o sujeito desenvolve uma retomada de si que nunca acaba. Em face e atrás de si, ele descobre, na experiência da negatividade e do mal, o abismo de sua solidão e só se reconhece sobre um modo simbólico que põe a transcendência. Ricoeur não faz uma teoria do sujeito nem uma descrição científica da estrutura da consciência ou da mente; contudo, analisa este dado inegável que é o modo como aparecemos a nós mesmos ou o modo como cada um se vê, independentemente da explicação que dê para sua constituição antropológica, como polo ao qual refere tudo o que o circunda e tudo o que há em si mesmo. Isso é importante frisar para não se partir do falso pressuposto de que a questão do sujeito é apenas mais uma tentativa de explicar o psiquismo ou, se se quiser, o corporalismo/fisicalismo do pensamento. Em outras palavras, os dois aspectos da análise de Ricoeur (a autoposição do sujeito e a transcendência) não são teses sobre a existência, mas momentos em que a experiência inteira do sujeito se descobre; modos em que a coisa mesma, a experiência em sua totalidade, põe-se em perspectiva e – enigma dos enigmas, tanto para filósofos como para cientistas – torna-se presente para si mesma. No limite, a questão do sujeito, nos termos em que a formula Ricoeur, equivale a saber como a experiência aparece para si mesma e como ela pode ser vista de maneira inteligível3 3 Além, obviamente, da obra do próprio Ricoeur (em tradução brasileira: O conflito das interpretações. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago, 1978), vale consultar a obra de Páll Skúlason, Le cercle du sujet dans la philosophie de Ricoeur, Paris: Harmattan, 2001. .

É impossível não ver nas experiências que convergem para a questão do sujeito elementos que permitem considerá-lo como agente e produtor de ao menos uma parte de seu pensamento (ao menos a parte em que a experiência se põe a si mesma). Até em concepções fisicalistas da mente não é difícil encontrar um espaço, por menor que seja, no qual aparece o suporte do pensamento como dotado da possibilidade de voltar-se para si mesmo, pela experiência de si e da intersubjetividade4 4 Cf. o volume 1 (julho de 2011) do periódico The Phenomenological Mind (disponível em: http://www.phenomenologyandmind.eu/2012/07/1-the-online-journal-of-the-centre-of-phenomenologyand-sciences-of-the-person-n-1-2011- acesso em: 16 abr. 2015), especialmente os artigos de A. Gallese, “Neuroscience and Phenomenology”, e R. de Monticelli, “Phenomenology today: a good travel mate for analytic philosophy?”. Cf. também V. Gallese, “The Mirror Neuron Mechanism and Literary Studies: An Interview with Vittorio Gallese”. California Italian Studies, v. 2, n. 1, 2010. Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/56f8v9bv - acesso em 16 abr. 2015). , superando a mera determinação que o obrigaria a ser um autômato sem reflexão. Segundo a historiografia filosófica dominante, justamente essa concepção do sujeito como agente teria sido elaborada, pela primeira vez, por René Descartes, na sua inauguração da filosofia moderna. Essa crença (por vezes manipulada ideologicamente) implica um juízo sobre os filósofos anteriores a Descartes e pode ser resumida, em linhas gerais, pelo que Heidegger chamou de passagem da subjectidade à subjetividade.

A subjectidade concebe o indivíduo como suporte de atributos, assim como Aristóteles falava do hypokeímenon ou do suporte passivo de acidentes (condição de toda substância material, não exclusiva dos humanos) e os medievais latinos traduziram por subjectum. Já a subjetividade supõe a presença de um ego que irradia uma luz própria, a luz do conhecimento, incluindo certa crítica do conhecimento. Para que o sujeito se tornasse agente, era preciso que subjectum e ego se encontrassem, ou, como diz Heidegger, que Subjektität e Ichheit (sujectidade e egoidade) se identificassem. Para Heidegger (aliás também para Hegel), esse encontro é obra da filosofia moderna, especificamente de Descartes, em cuja metafísica a subjetividade é um modo da subjectidade. A passagem da subjectidade à subjetividade, que marca a entrada na Modernidade, deixar-se-ia pensar como o momento em que o eu ou o sujeito adquire o estatuto de ente mais verdadeiro. Nas palavras do próprio Heidegger, é com Descartes que “[...] a mens humana reivindica exclusivamente para si o nome de sujeito, de modo que subjectum e ego, subjetividade e egoidade, adquirem uma significação idêntica”5 5 HEIDEGGER, M. Die Metaphysik als Geschichte des Seins. In: Nietzsche. Tomo II. Pfullingen: Neske, 1962, p. 395. .

Alain de Libera, que há pelo menos vinte anos estuda diferentes formas de filosofia praticadas na Idade Média, é também um leitor assíduo da produção filosófica contemporânea e costuma dizer que, na historiografia filosófica dos últimos três séculos, a contribuição da Idade Média é extremamente mal avaliada, sobretudo no tocante à “questão do sujeito”. Seu interesse, todavia, não é apologético-religioso, como muitas vezes ocorre com estudiosos do pensamento medieval6 6 Ao que tudo indica, Alain de Libera não tem prática religiosa. Defende nitidamente a laicidade do Estado, adotando, inclusive, posições duras contra o interesse instrumental-religioso por formas medievais de pensamento filosófico. Cf., por exemplo, sua participação no que ficou conhecido como o “affaire” Aristote au Mont Saint-Michel, em torno do livro de mesmo título, escrito por Sylvain Gugenheim (Paris: Seuil, 2008). Para as posições de Alain de Libera, ver: BÜTTGEN, P.; DE LIBERA; A.; RASHED, M.; ROSIER-CATACH, I.Les Grecs, les arabes et nous. Enquête sur l’islamophobie savante. Paris: Fayard, 2009. ; pretende somente esclarecer o erro histórico-filosófico7 que, a seu ver, está na crença desenvolvida desde o século XVII e que interfere negativamente em debates atuais, não apenas de ordem historiográfica, mas também filosófica e cultural de forma geral.

1. O sujeito Cartesiano

Além da pseudo-obviedade da crença histórica segundo a qual Descartes seria o criador ex nihilo da subjetividade, há algo que incomoda Alain de Libera e move seu trabalho: a obsessão de alguns filósofos ditos analíticos e alguns historiadores da filosofia de tradição anglófona por ler Aristóteles em comparação com Descartes8 8 Cf. DE LIBERA, A. Archéologie du sujet – Vol. I: Naissance du sujet. Paris: Vrin, 2008, p. 169. . Essa operação, que no dizer de Alain de Libera não tem o menor interesse histórico ou conceitual (pelo contrário, faz uma projeção anacrônica do cartesianismo a Aristóteles), termina por produzir uma crença totalmente injustificada, qual seja, a de que, antes de Descartes, o sujeito era apenas concebido como suporte passivo de acidentes ou atributos (num dos sentidos do hypokeímenon ou subjectum).

Pelo incômodo com essa operação, Alain de Libera se deu conta de que Descartes não formulou sua concepção do sujeito por uma reflexão verdadeiramente centrada sobre o tema, mas por refração ou por reação ao debate com Hobbes e Regius. Na arqueologia praticada por De Libera, Hobbes aparece como um dos pilares da tradição anglófona segundo a qual Aristóteles defenderia a tese de que o corpo constitui a alma ou de que a alma não passa de um atributo do corpo.

Com efeito, é já bem conhecida a objeção de Hobbes ao que Descartes fizera na segunda das Meditações metafísicas: para o pensador inglês, era ilegítima a substancialização do cogito, pois, do fato de que eu penso ou de que eu tenho uma imagem só se pode inferir que eu tenho um pensamento ou que penso, nunca que eu sou uma inteligência, mente ou razão; afinal, por um raciocínio de mesmo tipo, seria possível sustentar que de “eu ando” se pode extrair “eu sou o andar”. Por corolário, nada, na opinião de Hobbes, permitiria dizer que, se eu penso, sou algo além de meu corpo. Essa afirmação seria gratuita, ao passo que afirmar que o pensamento se resolve no corpo pareceria algo mais natural, donde o atributivismo que interpreta o ser pensante como um corpo que pensa, o que equivale a dizer que o pensamento não passaria de um atributo do corpo. Descartes, como também já é bastante conhecido, reprovará à objeção vinda de Hobbes o fato de ela comparar o incomparável, afinal, entre o andar e o pensamento não há base para associação, visto que “andar” se refere a um ato, enquanto “pensamento” pode referir-se tanto ao ato de pensar, como à faculdade de pensar e ainda àquele que possui a faculdade de pensar. Para Descartes, aquele que pensa não é a mesma coisa que o pensamento, se por “pensamento” se entende a faculdade de pensar (restariam ainda os sentidos do ato de pensar e daquele que o exerce). Ele admite usar termos abstratos, a fim de indicar essa diferença, enquanto seu opositor escolhe apenas termos triviais e materiais, pois receia o que ele não receia, ou seja, ter de admitir que haja algo distinto do corpo.

O que interessa, aqui, não é propriamente o debate entre Descartes e Hobbes, mas o fato de que, antes do debate, Descartes não se preocupou em teorizar sobre o sujeito, como fará depois. Se se leem as Meditações, que são de 1641, vê-se Descartes falar de res cogitans. Aliás, em toda a sua obra, Descartes só empregou o termo sujeito no sentido de suporte ou substância, não no sentido do sujeito do conhecimento, como a posteridade lhe atribui. Todavia, nos Princípios de filosofia, de 1644 (portanto, depois de ter respondido às objeções de Hobbes), ele teoriza sobre a mens ou res cogitans como substantia; explicita-se, pois, sua necessidade de desenvolver, mesmo sem usar o termo sujeito, uma explicação que mostrasse como o ser pensante não é apenas um suporte material passivo, mas ativo, produtor de conhecimento.

Já na Resposta às segundas objeções, Descartes está às voltas com a necessidade de se haver com o problema do suporte ou sujeito, movido pelo teste de Hobbes. Enfatiza ele:

Chama-se substância toda coisa na qual reside imediatamente, como em seu sujeito [sujet] ou pela qual existe, algo que concebemos, quer dizer, alguma propriedade, qualidade ou atributo de que temos em nós uma ideia real. Afinal, não temos nenhuma outra ideia da substância tomada precisamente senão a de que ela é uma coisa na qual existe formalmente, ou eminentemente, aquilo que concebemos ou aquilo que é objetivamente em alguma de nossas ideias, assim como a luz natural nos ensina que o nada não pode ter nenhum atributo real9 9 DESCARTES, R. Réponses aux secondes objections, V. In: ______. Œuvres complètes. Ed. C. Adam e P. Tannery. Paris: L. Cerf, 1904, v. 9, p. 125. .

Essa definição de substância parece estar na base da substancialização do eu que Descartes fará explicitamente, por exemplo, nos Princípios de filosofia:

A substância corpórea e a mente (mens) ou substância pensante, criada, podem ser entendidas sob esse conceito comum [substância], porque são coisas que precisam tão-somente do concurso de Deus para existir. Contudo, a substância não pode vir a ser reconhecida simplesmente por ser uma coisa existente, uma vez que isso por si só não nos afeta. Mas facilmente a reconhecemos a partir de qualquer um de seus atributos, mediante aquela noção comum segundo a qual o nada não tem quaisquer atributos, isto é, quaisquer propriedades ou qualidades. Com efeito, pelo fato de percebermos que algum atributo está presente, concluímos que alguma coisa existente, ou uma substância, à qual pode ser atribuído, também está necessariamente presente10 10 DESCARTES, R. Princípios da filosofia (§ LII). Trad. de Guido Antonio de Almeida (Coord.). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002, p. 67-69. .

Duas razões fundamentais são aventadas por De Libera para justificar sua afirmação de que Descartes não esperava ter de debruçar-se sobre o sujeito11 11 Cf. DE LIBERA, Archéologie – Vol. I, op. cit., p. 172. : (i) Descartes nunca atribuiu a Aristóteles [e poder-se-ia acrescentar: nem à Escolástica] a tese de que a alma é um atributo do corpo, nem a tese de que o corpo constitui a alma (aliás, De Libera não hesita em afirmar que Aristóteles nunca foi um anticartesiano); (ii) dado que Descartes nunca considerou Aristóteles um atributivista em nenhum sentido, ele não pôde ter enfrentado a questão do sujeito por causa do campo de presença aristotélico reinante na Escolástica e porque o tema do sujeito não oferecia por si mesmo nenhum problema. De Libera conclui que, tendo havido sem sombra de dúvida o debate com Hobbes e Regius, a única explicação plausível para a preocupação de Descartes com a questão do sujeito era a interpretação que lhe davam esses autores.

Os dois trechos de Descartes já citados permitem ver uma presença aristotélica na concepção do acidente como o que é em um sujeito12 12 Cf. ARISTÓTELES, Categorias 2, 1a20-1b10. , mas, tal como se encontra nas Categorias, essa concepção não exigiria todo o trabalho cartesiano de recorrer à luz natural para salientar que, como o nada não pode ter nenhum atributo real, então, “[...] se penso, sou uma coisa pensante”. É porque da mesma afirmação aristotélica Hobbes tira uma conclusão oposta à de Descartes que este se vê obrigado a esclarecer que o pensamento ou a alma não são um mero acidente, atributo ou modo do corpo. Em outras palavras, é tendo em vista seus interlocutores reais que Descartes aborda o tema do sujeito e formula a distinção precisa que se encontra, por exemplo, no § LIII dos Princípios de filosofia:

Certamente, é a partir de um atributo, não importa qual, que uma substância é conhecida, mas é uma só, no entanto, a propriedade principal de cada substância, a qual constitui a natureza e a essência da mesma e à qual todas as outras são referidas. A saber, a extensão em comprimento, largura e profundidade constitui a natureza da substância corpórea, e o pensamento constitui a natureza da substância pensante. Pois tudo o mais que pode ser atribuído ao corpo pressupõe a extensão e é apenas um certo modo da coisa extensa; assim como todas as coisas que encontramos na mente são apenas diversos modos de pensar. Assim, por exemplo, não se pode entender a figura a não ser numa coisa extensa, nem o movimento a não ser no espaço extenso; nem a imaginação, ou o sentido, ou a vontade, a não ser na coisa pensante. Mas, ao contrário, pode-se entender a extensão sem a figura ou o movimento e o pensamento sem a imaginação ou o sentido e assim por diante, como fica manifesto para quem quer que atente [para isso]13 13 DESCARTES, R. Princípios da filosofia (§ LIII), op. cit., p. 69. .

Entretanto, se se considera que Descartes insiste na imaterialidade da substância pensante não como uma absoluta novidade sua, mas em resposta aos seus objetores, sobretudo porque ele não via na ideia de substância a passividade vista por Hobbes e Regius, não se pode pretender que ele tenha sido o primeiro a fazer a subjectidade passar à subjetividade, como se antes dele só houvesse subjectidade e não subjetividade. Por conseguinte, outra insistência de Alain de Libera será a de que

[...] a questão do sujeito em Descartes não é a mesma do sujeito cartesiano; a produção do ‘sujeito cartesiano’ deve-se a uma história paralela ou parasitária, largamente ou mesmo puramente retrospectiva, que vai de Kant a Descartes, via Leibniz, e que concerne fundamentalmente ao uso que certos modernos fizeram dos princípios escolásticos”14 14 DE LIBERA, A., Archéologie – Vol. I, op. cit., p. 172. .

Aliás, o próprio Descartes mostrava ter consciência de que, antes dele, o sujeito visto como agente, dotado da capacidade de refletir (pensamento) e agir (vontade), já havia sido tematizado, por exemplo, por Santo Agostinho15. O bispo de Hipona, não por acaso, será tomado por Alain de Libera como objeto de estudo demorado, nesse no man’s land que separa Aristóteles de Descartes.

2. A refutação do atributivismo e da subjectidade em agostinho

A passagem por Santo Agostinho permitirá a Alain de Libera chegar a Tomás de Aquino e Pedro de João Olivi, pois, no seu dizer, foram Tomás e Olivi os responsáveis por formular, pela primeira vez e de maneira explícita, uma concepção do sujeito como suporte e como agente. Eles seriam herdeiros de um movimento teórico formado por dois dados que já haviam sido elaborados pelo bispo de Hipona e teriam permanecido, com maior ou menor evidência, nos autores medievais: (i) a formulação e a rejeição do atributivismo; (ii) a formulação e a rejeição da tese da subjectidade.

Antes de explorar o pensamento agostiniano, Alain de Libera enfatiza que nada conduz diretamente de Aristóteles a Descartes, nem para uma boa nem para uma má interpretação. Uma má interpretação seria considerar Aristóteles um simples atributivista, ao modo do que Hobbes faz com a relação entre atributo e substância. Porém, uma boa interpretação não consistiria necessariamente em fazer de Aristóteles um cartesiano. Algo do gênero teria sido tentado por Howard Robinson16 17 Cf. DE LIBERA, Archéologie, op. cit., v. 1, p. 264. , o qual denuncia a maneira como os materialistas eliminam o intelecto agente como uma entidade metafísica estranha à psicologia de Aristóteles e invoca, na contrapartida, um dualismo baseado na metáfora da alma como piloto de um navio, presente no livro I do De anima do Estagirita. De acordo com De Libera, há certos méritos no trabalho de Robinson, mas nenhum enraizamento na história, pois ignora as discussões antigas e medievais, como se fosse possível passar de Aristóteles aos modernos supondo um hiato entre eles. Seja como for, Aristóteles mereceria um estudo específico. Isso leva a afastar aqui, por bom senso, qualquer comparação entre um possível dualismo substancial em Aristóteles e o dualismo substancial cartesiano. Nada justifica que, para “fazer filosofia”, o possível dualismo aristotélico seja tirado de seu tempo e comparado ao dualismo de Descartes. De Libera, como bom lógico, lembra que, se muitas vezes a doença da filosofia continental é subvalorizar as posições filosóficas, o risco, aqui, é dar proeminência à estrutura interna das filosofias e subvalorizar as categorias historiográficas.

A investigação, a essa altura, move-se sobre o fio de uma navalha metodológica; resvalar para qualquer lado pode acarretar o desastre de falar de coisas que simplesmente não existiram. Se se quer entender como é possível passar de Aristóteles a Descartes, precisa-se encontrar uma regra de passagem garantida historicamente. Um primeiro aspecto dessa regra, ditado pelo senso agudo de quem está habituado a frequentar os textos dos filósofos e não ficções interpretativas ultrapassadas, consiste em desconfiar radicalmente da imagem dos filósofos que viveram entre o Estagirita e o pai da filosofia moderna como pensadores ingênuos que julgavam poder ler os textos aristotélicos e deles extrair uma tese tão vaga como a de que a alma é uma substância imaterial e independente do corpo. Do contrário, seria preciso supor que, desde as filosofias helenistas até o século XVI, os pensadores foram tão simplórios a ponto de resumir na afirmação de um corpo material e de uma alma espiritual separada do corpo tudo o que sabiam da antropologia aristotélica. Nem Descartes fez isso.

Outro aspecto da regra de passagem, aliás óbvio, consiste em frequentar os textos diretamente. É com essa prudência metodológica que Alain de Libera chega a Agostinho de Hipona, por ser ele o primeiro autor, entre Aristóteles e Descartes, a tratar explicitamente do atributivismo e a rejeitá-lo. No primeiro volume de sua Archéologie, De Libera baseia-se principalmente em dois textos de Agostinho, o De immortalitate animae e o De Trinitate, mas recorre também aos Solilóquios, às Confissões, ao De ordine e às Retractationes, entre outros. Para os propósitos do presente estudo, bastam as referências ao De Trinitate.

Agostinho enfrenta, inicialmente com relação a Deus, a aporia que Plotino já havia levantado a respeito da universalidade das categorias, qual seja, a questão de saber se os dez gêneros estão igualmente nos sensíveis e nos inteligíveis. Dada a concepção de Deus com a qual opera Agostinho, isto é, a de um ser cuja natureza, para ser pensada com coerência, deve ser vista como imaterial, eterna e imutável, então as dez categorias não estão em Deus como em um sujeito, pois ele não é corpóreo. Em outras palavras, não faz sentido pensar Deus como sujeito ou suporte de sua grandeza e de sua beleza, porque a grandeza e a beleza são ele mesmo. Aliás, Agostinho dirá, em De Trinitate V, 2, 3, que o melhor termo para referir-se a Deus é essência; só inadequadamente ou mesmo abusivamente diz-se que ele é substância. Do tratamento do discurso possível sobre Deus, Agostinho passa a analisar se faz sentido falar de substância a respeito do ser humano. Interessado em construir um discurso razoável sobre a Trindade, ele espera encontrar base na experiência humana para estabelecer analogias que possibilitem exprimir a realidade trinitária. É então que, conforme Alain de Libera, Agostinho produz uma tese revolucionária: a palavra substância, no sentido de suporte (hypokeímenon, subjectum), não se aplica nem à mens humana17 17 Cf. DE LIBERA, Archéologie, op. cit., v. 1, p. 264. . Três constatações fundamentais sustentam a tese agostiniana: (i) os atos mentais que se chamam de conhecimento e de amor não se explicam pelo corpo; pode-se dizer, então, que eles existem na alma e nela se desenvolvem numa involução íntima ou interpenetração mútua (pois não há separação nos componentes da alma, uma vez que ela não tem extensão); (ii) esses atos mentais permitem ser percebidos e distinguidos (uma coisa é conhecer; outra, amar); (iii) mas essa percepção e distinção são feitas essencialmente, quer dizer, inteligivelmente, e não como coisas observadas num sujeito ou suporte.

Tais atos autorizam aludir com mais precisão a três atos da alma: memória, inteligência e vontade. É pelo acionamento dos três que conhecemos e amamos; eles não poderiam interpenetrar-se e ser presentes uns aos outros se fossem simples acidentes ou atributos de um sujeito (quer se chame esse sujeito de alma ou de eu). Não poderíamos, ao mesmo tempo, lembrar-nos de algo e amá-lo, já que, se esses atos fossem separados como acidentes de um suporte, teríamos de obedecer às regras da extensão, primeiro lembrando, depois entendendo o que lembramos e só depois amando o que lembramos e entendemos. Com base na presença mútua da memória, da inteligência e da vontade, Agostinho exprime uma quarta constatação: (iv) os atos mentais chamados de conhecimento e de amor existem na alma (anima) como a alma (mens) mesma existe.

Hoje, porém, os hábitos linguísticos em filosofia são majoritariamente forjados pelos clichês da herança dualista atribuída a Descartes, chegandose mesmo, em muitos casos, à tentativa de reduzir toda a constituição humana a um mero suporte físico (como se o fato de o pensamento se dar numa estrutura material permitisse concluir que é essa estrutura material que produz o pensamento). Donde a dificuldade em compreender o que pretende Agostinho e a impressão de que ele se refere aos atos mentais como atos subjetivos, ou seja, que ocorreriam literalmente “dentro” do sujeito.

Requer-se, então, um esforço triplo aqui: (i) é preciso ver que, para o bispo de Hipona, os atos mentais não estão na alma como acidentes, disposições ou qualidades; uma contraprova disso é que, quando um deles se retira, não se deixa mais perceber, o que não seria o caso, se fosse um atributo da alma; (ii) os atos mentais não equivalem ao que Aristóteles chamava de conceitos ou intenções das afecções nem aos afetos ou paixões da alma; (iii) há uma imanência de três atos na alma, o conhecer, o lembrar e o amar. Essa imanência é intrigante, pois, ainda que não saibamos definir com precisão o que é o conhecer, o lembrar e o amar, mas só possamos concebê-los por contraposição entre os três e dos três com o corpo e as outras funções da alma, não podemos negar que eles não se confundem e simplesmente estão aí, interpenetrando-se.

A experiência do amor, por exemplo, auxilia a esclarecer um pouco melhor essa imanência intrigante. Segundo o final do livro VIII do De Trinitate (VIII, 9, 14), quando “eu amo”, me dou conta de que, em mim mesmo, há três realidades que enfeixo pelo nome do amor: há eu, que amo (amans); há aquilo que é amado (quod amatur); e há isso que chamo especificamente de amor (amor). No livro IX, 2, 2, Agostinho destaca essa tríade e declara: “Eisme” (Ecce ego!) ou “Eis-me eu, que procuro” (ecce ego qui hoc quaero). Ora, Agostinho esclarece que eu não amo o amor se não o amo amando, nem há amor quando nada é amado. Em outras palavras, Agostinho não fala do eu amante, do objeto amado e do amor mesmo como características, mas como atos. Assim, conhecer (ato do amante), rememorar (conter o objeto amado) e querer (amar) não serão faculdades da alma, mas atos dela. Isso é o que tira o discurso do campo da substância e o põe no campo do existir como alma. Saise do registro do suporte passivo e passa-se ao da plena ação. Alain de Libera não se contém e irrompe numa afirmação de retórica marcante:

Só falta uma coisa ao “sujeito agostiniano” para ser verdadeiramente moderno: ele tem os atos – e que atos! Amar e conhecer! –, ele se define como agir e não é considerado senão enquanto age, isto é, ele se ama e se conhece; só lhe falta... ser sujeito.18 19 Cf. idem, p. 303.

Ou seja, só falta aceitar esse nome, que, no entanto, Agostinho recusa.

Contudo, o contexto dado pela teologia trinitária poderia levantar um problema: falar que amamos algo pode significar sair da alma e ir para outro elemento, a fim de ter uma tríade. Então, conhecer e amar (ou conhecer, lembrar e amar) implicaria contar com um ser diferente do sujeito, o que inviabilizaria a tríade como analogia para exprimir o dado trinitário. Mas a análise do livro IX do De Trinitate é precisa: a própria operação pela qual a alma se ama a si mesma é uma operação que envolve três atos, dando a base para a analogia buscada: (i) quando a alma se ama, ela e seu amor são dois; (ii) quando a alma se conhece, a alma e seu conhecimento são dois; (iii) logo, a alma, seu amor e seu conhecimento são três, e esses três não passam de um; (iv) por fim, quando eles são perfeitos, eles são iguais. É o que torna a alma humana uma imagem ou um vestígio da Trindade.

Agostinho exclui, portanto, a noção de substância do discurso sobre a alma (dado o caráter de passividade da substância como mero suporte de acidentes ou atributos), tornando impossível não ver que, muito antes de Descartes, ele já superara a subjectidade e abrira o campo da subjetividade. A um só golpe, segundo De Libera, Agostinho pôs a tese da subjectidade e a refutou, passando à da subjetividade, porque essa passagem não é outra do que a passagem da passividade à atividade. Um cotejo das obras de Agostinho permite aceitar isso sem grande relutância, pois, ainda que ele defina a alma como substância (por exemplo, no De immortalitate animae), ele também se recusa a concebê-la como mero suporte de acidentes, segundo mostra o De Trinitate. No limite, ele sustenta uma dualidade substancial, não caindo num dualismo do tipo que será atribuído a Descartes.

Alain de Libera chamará o modelo agostiniano de modelo pericorético, servindo-se da palavra perichóresis, usada por João Damasceno, no século VII, para exprimir a imanência mútua das pessoas divinas na Trindade. Assim como ocorre no Deus Trino, há também pericorese na alma humana. Mas Alain de Libera mostra, ainda no volume I de sua Archéologie, que, embora a palavra perichóresis não circulasse antes do século VII, seu conceito já circulava, em maior ou menor grau, numa longa tradição que remontava aos textos dos Evangelhos. Essa tradição seria, portanto, também testemunha de uma elaboração teórica que, tomando o ser humano como imagem da Trindade, não reduzia a alma a mera portadora de acidentes. Ademais, os debates da Patrística grega em torno das duas vontades de Cristo operarão com uma concepção de interioridade humana dotada de inteligência e vontade, de sorte que Cristo, sendo verdadeiro homem e verdadeiro Deus, tinha de ser dotado de duas vontades ou dois princípios de ação. Como ele era perfeito, sua vontade humana seguia sua vontade divina livremente e com total sintonia. Não é sem motivo que Alain de Libera não receia em dizer que, se o leitor quiser proceder a uma historiografia não fictícia do sujeito, não deve ter medo de estudar a teologia do sujeito.

Como curiosidade histórica, vale lembrar que, na Idade Média, o termo perichóresis foi traduzido por inexistentia, inhabitatio e circumincessio. Séculos mais tarde, Franz Brentano e Edmund Husserl usarão termos como Inexistenz e Einwohnung (inhabitação) quando definem aquilo que faz a especificidade do mental ou do psíquico por oposição ao físico: a direção para um objeto ou uma objetividade imanente, a intencionalidade. Não se trata de dizer, obviamente, que Brentano e Husserl repetem a teologia da pericorese ou o modelo pericorético da psicologia agostiniana (o próprio Brentano, ao mencionar explicitamente a teologia de Agostinho e de Tomás de Aquino, esclarece que usa esses termos apenas por analogia), mas, como frisa Alain de Libera, também não faz sentido recusar-se a ver que há continuidades na história do pensamento, mesmo em meio a mudanças (e porque há mudanças). Para ele, é preciso perguntar como somos conduzidos às questões que cremos fazer por nós mesmos. A principal tarefa do pensador e do historiador da filosofia seria a de mostrar aquilo que, como assinalava Foucault, se impõe como que sob a forma de um anonimato uniforme aos indivíduos que querem falar em um certo campo discursivo. Essa preocupação de Alain de Libera faz ver que, muitas vezes, os filósofos se baseiam em fábulas historiográficas ou criam eles mesmos certas ficções a fim de construir suas filosofias. Para afirmar se esse procedimento é legítimo ou não, o debate é complexo. Não se pode, por exemplo, negar a importância da filosofia transcendental kantiana, mesmo que ela se tenha elaborado sobre uma visão do sujeito cartesiano nascida de certo aplainamento histórico. Também não se pode negar o impacto de vários aspectos do pensamento de Heidegger, embora ele tenha errado repetidas vezes do ponto de vista historiográfico em seus juízos sobre a Antiguidade, a Idade Média e a Idade Moderna. Outra questão, no entanto, é saber se os filósofos, quando constroem sua história particular da filosofia, colaboram ou não com a busca de uma “verdade” histórica.

3. o sujeito em Tomás de Aquino

Nesse trabalho arqueológico, Alain de Libera encontra base para sustentar que é especificamente no campo aberto por Tomás de Aquino e Pedro de João Olivi que operará Descartes, pois a força que o vocabulário do sujeito tinha perdido com Agostinho fora renovada por Tomás e Olivi, chegando até o pai da filosofia moderna.

Dois dados são incontornáveis na análise do que se pode considerar a emergência do indivíduo como sujeito-agente na Escolástica: (i) a relegitimação, por parte dos teólogos, da noção aristotélica de sujeito em psicologia e em epistemologia; (ii) a integração teológica dos atos mentais agostinianos (quando tomados seja como virtuais, seja como reais) em um dispositivo aristotélico governado por uma distinção entre sujeito, potência (faculdade) e ato (atividade)19 19 Cf. idem, p. 303. . O testemunho privilegiado dessa dupla operação vem de Tomás de Aquino. Com efeito, já pela refutação do averroísmo, o dominicano merece ser visto como momento essencial da história da subjetividade. Porém, em contraponto com a miopia da historiografia filosófica dominante, vale ressaltar outra de suas proezas teóricas, a de ter inserido, na esfera do mental, a noção de sujeito psíquico que Agostinho se esforçara por descartar. Numa palavra, Tomás de Aquino, no mesmo campo aberto por Agostinho, fez surgir a ideia de sujeito agente do conhecimento: o homem, ou, antes, o homem com/pela sua alma20. O texto-base investigado por Alain de Libera é o artigo 5 da questão 77 da Prima Pars da Suma de teologia.

A primeira formulação de Tomás, nesse texto, consiste em enfatizar que, se a alma mostra ter potências (faculdades), essas potências devem estar na alma como em um sujeito (suporte), pois, assim como se diz que o corpo é o sujeito das potências corporais, também faz sentido dizer que a alma é o sujeito das potências da alma; ademais, mesmo naquelas operações que são atribuídas conjuntamente ao corpo e à alma (as funções da sensação), é em função da alma que elas são atribuídas ao corpo, porque, conforme Aristóteles, em De anima 2, 414a12-14, a alma é, a título primeiro, aquilo pelo que sentimos, de sorte que os princípios próprios das operações da alma, mesmo nos casos de ativação do corpo, são suas potências; e essas potências devem estar nela. Tal assertiva exige um esclarecimento, aliás, feito por Tomás de Aquino na sequência: todas as potências psíquicas devem ter a alma por princípio, embora algumas delas tenham por sujeito só a ela mesma (a alma), enquanto outras têm por sujeito o composto de alma e corpo. Essa é a única maneira que lhe parece viável para descrever a constatação de que algumas potências psíquicas se resolvem apenas no suporte anímico (o pensamento e a vontade), ao passo que outras só se dão no composto humano de alma e corpo (a sensação). A esse respeito, é emblemática a exegese que, ainda no artigo 5, Tomás de Aquino faz de um texto de Agostinho sobre a sensação, tirado do Comentário literal ao Gênesis XII, 7, 24. Tomás resume o texto de Agostinho, destacando que (i) a alma não sente certos estados (certas coisas – em latim, quaedam) pelo corpo, mas sem o corpo, como é o caso do temor, ao passo que a outros estados ela sente pelo corpo; (ii) ora, a alma não poderia sentir algo sem o corpo se a potência sensitiva não estivesse apenas nela; (iii) então, a alma não é apenas o sujeito da potência sensitiva, mas, pela mesma razão, de todas as potências.

Em resumo, a tese agostiniana seria a de que a alma é o único sujeito das potências perceptivas e de todas as potências. Todavia, Tomás de Aquino a relativiza, demonstrando que, de uma perspectiva estritamente filosófica, uma ambiguidade deve ser corrigida aqui: há duas maneiras de interpretar a frase anima quaedam sentit non per corpus, immo sine corpore, ut est timor et hujusmodi; quaedam vero sentit per corpus (“a alma sente certos estados – ou certas coisas – não pelo corpo, mas, antes, sem o corpo, como é o caso do temor e similares; mas a outros estados a alma sente pelo corpo”). A primeira delas consistiria em explicar a frase “a alma sente ou com ou sem o corpo” em função do ato de sentir próprio da alma que sente. Quer dizer, prestando atenção no ato de sentir, percebemos que esse ato pode ser praticado pela alma ou com ou sem o corpo. A segunda maneira de interpretá-la consistiria em explicar a frase “a alma sente ou com ou sem o corpo” em função do objeto; quer dizer, dependendo do objeto sentido, a alma ou precisa ou não precisa do corpo. O problema está em assumir a primeira postura, já que dizer que a alma pode sentir ou com ou sem o corpo é um erro, uma vez que, embora seja sempre a alma que sente, ela, a rigor, não pode sentir nada sem o corpo (a ação de sentir é dela, mas sempre por meio de um órgão corporal). É preciso, por conseguinte, optar pela segunda interpretação, mostrando que “a alma sente ou com ou sem o corpo” é uma frase que só pode ser entendida corretamente em função do objeto que se apresenta à alma: se se trata de algo que ocorre no corpo, como uma ferida, por exemplo, a alma sente com o corpo (o sujeito da sensação é claramente o composto), mas, se se trata de algo que literalmente não existe no corpo, como a tristeza ou a alegria, então a alma sente sem o corpo.

A conclusão que Tomás tirará é a de que o vocabulário do sujeito é útil para escapar a certa vulgata platônica e para dizer que a alma, embora seja o princípio de todas as potências humanas, só é sujeito, propriamente falando, daquilo que ela mesma efetua por suas potências ou funções desprovidas de órgão corporal, a saber, o pensamento e a vontade. As funções que requerem o corpo têm ao composto de alma e corpo como sujeito ou suporte. É curioso notar, no texto de Tomás, seu esforço por não imputar um erro grosseiro a Agostinho (pela ambiguidade do comentário ao Gênesis); ele esclarece que Agostinho, ao longo de sua obra, cita muitas posições platônicas sem as afirmar necessariamente. Essa deferência, como explica De Libera, era uma espécie de fórmula passe-partout muito comum na época de Tomás, sendo usada inclusive nos casos contrários, quando, por exemplo, algum autor citava fórmulas peripatéticas.

A posição de Tomás de Aquino será considerada por Alain de Libera um tipo de teoria semelhante estruturalmente ao atributivismo, porém, mais próxima de um atributivismo*, quer dizer, da doutrina que faz dos atos e estados mentais propriedades atribuídas a um sujeito definido como ego (o asterisco servindo para esclarecer que, mantendo a lógica da atribuição, o termo não se refere, porém, à atribuição da alma ao corpo)21 21 Cf. idem, p. 309. . Em outras palavras, há, em Tomás de Aquino, uma equação entre “a alma é sujeito” e “a alma pensa e quer”, o que, por sua vez, corresponderia a admitir que “a alma é um sujeito puramente psíquico”, mas também que “a alma só é sujeito quando ela pensa e quer” ou “a alma só é sujeito quando ela age”, ou ainda, “a alma só é sujeito quando ela efetiva sua operação própria”.

Também é importante notar que, embora o subjectum de Tomás seja o hypokeímenon de Aristóteles, o Estagirita não usa esse termo nos dois textos aos quais recorre Tomás: o De anima 2, 414a12-14 e o De somno et vigilia 1, 454a8. Sem entrar no debate de saber se ao hypokeímenon de Aristóteles pode ser associada a subjectidade a que alude Heidegger, uma coisa é certa: o subjectum relegitimado por Tomás de Aquino contra a tese agostiniana da identidade da essência da alma à sua potência (a identidade essencial da alma e suas faculdades) também não é puramente aristotélico. Como afirma Alain de Libera, trata-se de um sujeito elaborado filosoficamente em um quadro que ultrapassa o aristotelismo e o agostinismo; é um quadro típico de Tomás de Aquino, o qual reinterpreta tanto Agostinho como Aristóteles, cruzando elementos que ele aprende na leitura de outros autores e no debate com alguns deles. Seria preciso evocar, no mínimo, Dionísio, o Pseudo-Areopagita, e São Boaventura22 22 Cf. idem, p. 310ss. . Para sintetizar, porém, o papel de Tomás na história da subjetividade, poder-se-ia dizer que ele introduziu a noção aristotélica moderna de sujeito pensante, pois, mais do que Averróis, ele levou ao extremo o modelo aristotélico e ofereceu ao mesmo tempo as bases para a contaminação desse paradigma, permitindo ao modelo agostiniano transplantar-se para dentro dele pela ideia de um sujeito agente que tem em si o princípio de sua ação (tese que estava em germe no De immortalitate animae de Agostinho, mas que o bispo de Hipona enfraqueceu no De Trinitate)23 23 Cf. idem, p. 222. .

4. O sujeito em Pedro de João Olivi

No que concerne a Pedro de João Olivi (que estudou na Universidade de Paris exatamente no momento em que a obra aristotélica fazia frisson e em que o ensino era marcado pela presença de Tomás de Aquino), ele será o responsável por formular claramente a primeira versão do atributivismo*.

Uma rápida observação do vocabulário de Olivi revela já algo impressionante: além de usar termos como personalitas, identitas e reflexivitas, ele lança mão de expressões como suitas sui ipsius (trata-se de uma substantivação do genitivo do pronome possessivo, simplesmente impossível de traduzir em português, mas cujo significado aproximado poderia ser expresso por “condição de ser aquilo que se tem como próprio a si mesmo”). No caso do hypokeímenon aristotélico, Olivi, em contexto epistemológico, prefere empregar suppositum activum24 24 Cf. PEDRO DE JOÃO OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarumq. 74. Na edição de B. Jansen (Roma: Quaracchi, 1922-1926, 3v.), v. 3, p. 126. Nesta apresentação de Pedro de João Olivi, vamos um pouco além do que diz Alain de Libera nos volumes já publicados de sua Archéologie. Apesar de conter alguns aspectos que mereceriam ser mais debatidos, um artigo de grande utilidade aqui é o de Sylvain Piron, “L’expérience subjective selon Pierre de Jean Olivi”, in: BOULNOIS, O. (Ed.). Généalogies du sujet. De saint Anselme à Malebranche. Paris: Vrin, 2007, p. 43-54. Devemos a Sylvain Piron a maior parte dos dados que aqui fornecemos a respeito da ética e da epistemologia de Olivi (embora tenhamos conferido os textos originais do filósofo). . Vemos esses termos serem usados com precisão tanto na ética como na epistemologia de Olivi. Seu contexto é também o de debate com os averroístas, mas agora não tanto a respeito da natureza do intelecto, como foi o caso de Tomás de Aquino, e sim da composição do ser humano25 25 Cf. DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 203-204. . Como ressalta Olivi, partindo-se de uma reflexão sobre a vontade, é possível provar que o corpo e a alma são consubstanciais, ainda que não o sejam formalmente.

A vontade é dotada de duas possibilidades, a de referir-se a si, visandose a si mesma e pondo-se em ação, e a de referir-se aos objetos desejados, visando-os e pondo-se em ação para atingi-los. Sua liberdade reside na distância entre essas duas possibilidades, distância que é interna à vontade mesma (distans a se ipsa) e graças à qual nós podemos sentir, quando agimos, o poder de interromper o que fazemos26 26 As inúmeras referências de Alain de Libera a autores contemporâneos – seja em filosofia, seja em ciência (especificamente em filosofia da mente ou mesmo em neurociência), sobretudo nos casos em que ele demonstra haver semelhanças estruturais entre formas de pensamento elaboradas em momentos históricos diferentes – possibilitam ser tomadas aqui como licença para citar o neurocientista norte-americano Benjamin Libet. Embora numa linha atributivista “dura”, Libet consegue defender, com base em experimentos e com formulações radicalmente semelhantes às de Olivi, a existência da liberdade de escolha ou do livre-arbítrio como poder de interrupção de ações iniciadas ou ao menos concebidas. No seu dizer, isso que se chama de livre-arbítrio corresponderia a um campo muito mais restrito do que supõe o uso do termo, confirmado sem dúvida, porém, pela experiência de, em alguns casos, poder-se interromper a série de desencadeamentos provocada por arranjos neuronais. A essa experiência Libet denomina “poder de veto”. Cf. LIBET, B. Mind Time – The temporal factor in consciousness. Harvard: Harvard University Press, 2005. . Essa experiência implica reflexividade e autoconhecimento, o que Olivi confirma ao falar de experimentum suae suitatis: experiência em que a alma toma conhecimento de si e reconhece sua identidade a si mesma. Numa única operação, intelecto e vontade mostram-se associados na referência da alma a si mesma ou na personalitas27 27 Cf. PEDRO DE JOÃO OLIVI, Quaestiones, op. cit., q. 54 e 57 (v. 2, p. 251 e p. 327). . É justamente a personalidade ou a posse de si pelo intelecto e a vontade que impedem, segundo Olivi, de afirmar que o ser humano é uma forma substancial única, pois toda forma subsistente numa matéria corporal extensa não pode refletir-se a si mesma, a não ser sobre uma forma contígua ou vizinha28 28 Cf. idem, q. 51 (v. 2, p. 111-113). . Assim, a dimensão intelectiva da alma deve ser a forma de uma matéria incorpórea, quer dizer, espiritual ou inextensa, o que, no caso do homem, se une ao corpo ou à extensão, produzindo uma consubstancialidade sem confusão nem identificação. Essa união ocorre na parte sensitiva da alma, porque é por ela que a alma informa simultaneamente as matérias espiritual e corporal. Ela faculta ainda constatar a natureza espiritual das funções intelectivas e a autonomia possível das funções corporais. O intelecto, entretanto, não percebe como suas apenas as funções do pensamento, mas também todos os atos das potências sensitivas, mesmo que na união com o corpo. Ao dizer isso, Olivi lança mão de uma expressão nada irrelevante para a história da subjetividade: ego qui intelligo, video, comedo (“eu, que penso, vejo e como” [eu, que penso, sou o mesmo que vê e come]). Só o intelecto pode dizer “sou eu que penso”, mas também pode acrescentar “também vejo e como”, o que revela sua íntima união com o corpo e a participação indispensável deste para a personalitas, embora esteja garantida a dualidade entre ambos, sem dualismo.

A epistemologia de Olivi decorre dessa compreensão da personalidade ou do si mesmo como sujeito dos próprios atos. Para ele, a experiência confirma que a eficiência dos atos cognitivos deve ser situada do lado do sujeito cognoscente, e não exatamente do lado do objeto conhecido. Nesse aspecto, Olivi segue uma tradição quase completamente ignorada pela historiografia filosófica hegemônica, mas cujas raízes são longas, deitando-se certamente nos platonismos dos séculos III-V. Uma manifestação clara dessa tradição é dada pelo misto de platonismo e aristotelismo de Boécio: o conhecimento não é compreensível em função do que é conhecido, mas em função daquele que conhece29. Todavia, esclarece Olivi, é necessário reconhecer certa contribuição dos objetos conhecidos, já que o conhecimento não poderia dar-se no vazio. Na posição de termos nos quais acabam os atos cognitivos, a causalidade dos objetos é chamada de “terminativa”. Ocorre, porém, que a experiência pode ser fonte de engano, o que reenvia a uma certa primazia do intelecto, o qual é o único a poder julgar o seu próprio juízo sobre a experiência. É nesse contexto que vemos Olivi tomar o ato cognitivo como ato que provém de nosso princípio cognitivo interno, ação nossa e forma de nosso agir proveniente de nós mesmos (actio nostra et quoddam agere nostrum a nobis exiens)30 31 PEDRO DE JOÃO OLIVI, op. cit., q. 74 (v. 3, 126). . Algumas páginas adiante, encontra-se sua tradução de hypokeímenon não como subjectum, mas como suppositum activum, ao lado da expressão suitas sui ipsius:

Quando alguém sente que sabe, que vê e que ama, sente então a identidade, e, se me é permitido dizer, a sua condição de si próprio (suitatem sui ipsius), como conhecido e como sujeito agente (suppositum activum), como atento a isso para si mesmo e senciente disso para si mesmo (ad se ipsum hoc advertentem et sentientem)31 32 PEDRO DE JOÃO OLIVI, Impugnatio quorundam articulorum, apud DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 225. .

A força dessas expressões e a inversão operada por Olivi na compreensão do conhecimento (transferindo a base do objeto para o sujeito) farão Alain de Libera chamá-lo de pensador “quase pré-kantiano”, por ter formulado o princípio de atribuição de acordo com o qual nossos atos e estados mentais são propriedades atribuídas a um sujeito definido explicitamente como ego. Com efeito, ao dizer que nossos atos não são percebidos por nós senão como predicados ou atributos (actus nostri non apprehenduntur a nobis nisi tamquam praedicata vel attributa32 32 PEDRO DE JOÃO OLIVI, Impugnatio quorundam articulorum, apud DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 225. ), Olivi faz ver que, do ponto de vista da percepção, o sujeito é percebido por primeiro, pois, segundo a ordem natural, o sujeito é percebido antes que o predicado lhe seja atribuído como tal. Com isso, ele enuncia uma das condições de possibilidade do atributivismo*. Impossível não notar a semelhança com a afirmação da Crítica da razão pura: não conhecemos o sujeito transcendental dos pensamentos x senão pelos pensamentos que são seus predicados (durch die Gedanken, die seine Prädikate sind, erkannt wird). Talvez Alain de Libera não tenha exagerado ao chamar Olivi de “quase prékantiano”. A comparação, para ele, é só a ponta do icebergmedieval.

Por outro lado, o próprio De Libera, como que fazendo um balanço do sentido de sua arqueologia, lembra que a reavaliação do papel de Tomás de Aquino, de Pedro de João Olivi ou dos pensadores não tomistas ou antitomistas do século XIV não deve ser superestimada33 33 Cf. DE LIBERA, A., Archéologie – V. 1, op. cit., p. 222-224. . Afinal, (i) a formulação do atributivismo* não significa já a invenção do sujeito moderno e, sim, uma etapa inaugural ou uma fase conceitualmente necessária, embora insuficiente com respeito ao pesado e muitas vezes contraditório rol de exigências da subjetividade (seja com sujeito, seja, como se diz majoritariamente hoje, sem sujeito); (ii) o sujeito moderno deixa-se definir não pela aplicação somente do princípio de atribuição em filosofia do espírito, mas pela aplicação conjunta de um princípio que poderíamos chamar de princípio de imputação (enquanto a atribuição vincula os atos e estados mentais a um sujeito concebido como eu, a imputação é uma atribuição de atos, efetuada do interior, supondo a consciência que chama para si os pensamentos e as ações)34 34 O texto tomado como base por Alain De Libera para provar que o sujeito de imputação é historicamente posterior ao sujeito de atribuição é: LOCKE, J. Philosophy Essay concerning human understanding II, 27, § 26. Cf. DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 99-100. . Entretanto, não se deve igualmente subestimar o papel de Tomás e de Olivi no contágio mútuo que promoveram entre os campos de presença aristotélico e agostiniano, formulando explicitamente a conjunção entre subjectidade e subjetividade, sem a qual não teria havido as várias modernidades sucessivas na concepção do sujeito.

5. Observações metodológicas a título de conclusão

O sentido do trabalho de Alain de Libera deixa-se melhor captar se compreendemos sua concepção de historiografia filosófica. Especificamente quanto à arqueologia do sujeito, seu ponto de partida histórico foi a constatação de que o exagero da afirmação da total originalidade daquilo que se chama de sujeito cartesiano ou primeiro sujeito moderno talvez tenha ocorrido em reação a outro exagero, o do pensamento neoescolástico fortalecido no século XIX e defensor do pensamento de Tomás de Aquino como filosofia acabada, sem levar em conta, no tocante à história da subjetividade, as diversas etapas do encontro entre aristotelismo e agostinismo. A reação contrária também não via essas diversas etapas e decretava um início absoluto do sujeito agente no século XVII.

Para obter clareza a esse respeito, Alain de Libera apoia-se no modelo de historiografia filosófica de Robin George Collingwood35 35 Cf. COLLINGWOOD, R. G. An Autobiography. Oxford: Oxford University Press, 1970; “Le relativisme historique: théorie des ‘complexes questions-réponses’ et ‘traçabilité’”. Les Études philosophiques, n. 4, p. 479-494, 1999; e “Archéologie et reconstruction. Sur la méthode en histoire de la philosophie médiévale”, in: VV.AA.Un siècle de philosophie – 1900-2000. Paris: Gallimard-Centre Pompidou, 2000, p. 552-587. , segundo o qual um mesmo complexo de questões e respostas pode subsistir em contextos intelectuais diferentes, quando as preocupações parecem não ser necessariamente idênticas ou mesmo bastante distantes. Isso permitia a Collingwood aceitar como coexistentes teses contraditórias, dado o fato de que elas não são essencialmente contraditórias quando respondem a questões distintas. Assim, para bem avaliar o sentido de uma tese qualquer, o procedimento básico mais indicado é não estudá-la apenas formalmente e em si mesma, mas perguntar a que questão precisa essa tese responde. Muito antes do debate entre estruturalismo e historicismo ou, para usar a expressão de V. Goldschmidt, entre método dogmático e método genético36 36 Cf. GOLDSCHMIDT, V., “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”. In: ______. A religião de Platão. Trad. Osvaldo e Ieda Porchat. São Paulo: Difel, 1968. , Collingwood havia concebido uma interdependência entre a filosofia e sua história, chegando à constatação de que, quando investigamos qualquer tema, buscamos nada mais do que respostas a questões precisas.

Isso pode parecer banal, mas a historiografia de Collingwood ganha inteligibilidade quando se analisa um caso que ele mesmo confessava intrigálo desde sua infância: no momento em que um arqueólogo cava um terreno, dizendo simplesmente “vejamos o que tem aqui”, não aprende nada, a não ser que já tenha algumas questões em mente, por exemplo, perguntando-se: “esse bloco de terra preta seria uma porção de turfa ou um bloco do alicerce de uma casa?”. Olhando para uma ruína antiga, um arqueólogo (e Collingwood fala por experiência, pois, desde criança, participou da escavação de sítios arqueológicos com seu pai) só vê pedras, pode descrevê-las e não ir além disso. Todavia, se fizer perguntas do gênero “Houve neste lugar uma ocupação dos tempos de Flávio?”, poderá começar a dividir essa questão em outras menores (“esses artefatos e essas peças são da época flaviana?”, “se sim, têm relação com as ruínas?”, “pertencem ao mesmo período?” etc.) e a ganhar luz em sua compreensão, o que lhe possibilitará dizer, com base na interpretação do que antes só eram pedras, mas agora se tornaram indícios, que houve uma ocupação dos tempos de Flávio, que uma fortaleza fora construída naquele lugar, nos anos x etc. Estudando filosofia, Collingwood percebeu que, sem clareza sobre as questões visadas pelos textos, algumas posições não são realmente compreendidas; corre-se o risco de ficar no campo da ficção. Um de seus exemplos preferidos refere-se ao debate acalorado em sua época, sobre a refutação do idealismo. Collingwood observou que o texto mais impactante, no início de sua carreira, era o artigo de G. E. Moore, chamado justamente A refutação do idealismo. O texto era considerado uma crítica a Berkeley, mas a posição que de fato era criticada no artigo não era a de Berkeley, porém a exata posição que Berkeley havia criticado. Bastava comparar o artigo de Moore e o texto de Berkeley, para dar-se conta disso. Ora, quem não frequentasse o texto de Berkeley e não buscasse identificar no texto de Moore a pergunta à qual ele tentava responder, não compreendia o sentido do artigo de Moore e considerava Berkeley um real representante do que Moore criticava37 37 Cf. COLLINGWOOD, R. G. Toute histoire est histoire d’une pensée(Trad. francesa de An autobiography, por Guy Le Gaufey). Paris: EPEL, 2010, p. 46. .

Na linha de Collingwood, Alain de Libera defende que, antes de qualquer afirmação ou negação de caráter historiográfico, sejam montados com clareza os complexos de questões e respostas. Denuncia ainda outro equívoco da historiografia filosófica dominante, qual seja, o de operar com a falsa alternativa segundo a qual, na história do pensamento, os autores relacionam-se ou por continuidade ou por ruptura. É preciso notar que, para ser inteligível, uma estrutura intelectual que evolui deve mudar, mas sem que isso signifique mudar completa e bruscamente; sua inteligibilidade é possível quando, em meio à mudança, algo de idêntico persiste e continua. É verdade que os grandes filósofos costumam funcionar sobre o modo da projeção retrospectiva, ou seja, constroem ficticiamente uma tradição para separar-se dela. É o que faz, por exemplo, Descartes, ao remeter à Escolástica; Kant, à metafísica dita dogmática; Nietzsche, ao platonismo e ao cristianismo, chamando-os de formas ascéticas desprezadoras do corpo (e tantos outros casos, embora muitos deles já sejam hoje vistos como clichês superados). Assim como há uma licença poética, parece haver igualmente uma licença filosófica, que consiste em conceder aos pensadores o direito de referir-se ao que os precede conforme os interesses de seus pensamentos. Porém, mesmo quando um pensador se separa do que o precede, ele se define em relação a isso, donde uma coexistência entre ruptura e continuidade. Alain de Libera enfatiza, citando Jean-Luc Marion38 38 Cf. DE MOVALLIER, H. ; DE LIBERA, A. Pourquoi une archéologie du sujet? – Entretien avec Alain de Libera autour de l’Archéologie du Sujet. Actu Philosophia. 04 de janeiro de 2009. Texto disponível em: http://www.actu-philosophia.com/spip.php?article77. Acesso em: 10 maio 2014. , que, se se fala de “grandes filósofos”, talvez a tradição filosófica não passe de uma soma de rupturas e gestos inaugurais com relação a uma “tradição” projetada retrospectivamente pelos filósofos.

No caso da história da subjetividade, o problema cartesiano da união espírito- corpo e mesmo o atual mind-body problem não são, obviamente, os mesmos da teologia trinitária dos primeiros séculos da nossa era, nem o da união das duas naturezas de Cristo, com suas duas vontades. Todavia, esses complexos de problemas comunicam estruturalmente e conceitualmente. Isso é percebido pelo mesmo complexo de perguntas e respostas: “quem pensa?”; “qual é o sujeito do pensamento?”; “quem somos nós?”; “o que somos nós?”. Usando-se a expressão foucaultiana, há um campo de presença comum e inegável. No entanto, a arqueologia de Alain de Libera difere da de Foucault, pois o universo das técnicas e práticas de si não entra em sua pesquisa; apenas a reconstrução do conceito filosófico de sujeito39 39 Cf. DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 19-20. . Nesse sentido, a história da subjetividade de De Libera não é a mesma consagrada por Foucault nos anos 1980, principalmente em sua Hermenêutica do sujeito, mas a história da subjetividade como sujeito pensante, agente ou causa de seu pensamento.

Engana-se, porém, quem interpreta o trabalho de Alain de Libera como uma tradicional história das ideias ou dos autores. Ele recusa deliberadamente o que Bergson já denunciara, em La pensée et le mouvant, como a ilusão ou a falácia do “[...] movimento retrógrado do verdadeiro”40 40 Cf. BERGSON, H. La pensée et le mouvant. In: ______. Œuvres. Paris: PUF, 1963, p. 1264. , quer dizer, o hábito de atribuir um efeito retroativo a toda afirmação que hoje parece verdadeira. Assim, uma história da ideia de sujeito correria o risco de não ser mais do que a projeção sobre os antigos e medievais de algo que os pós-cartesianos atribuíram a Descartes. Em outras palavras, sem o sujeito naturalizado da historiografia moderna, talvez nunca se falasse, por exemplo, do cogito agostiniano. Não obstante, uma atenção mais refinada permite ver que uma arqueologia do sujeito pode e deve distinguir dois produtos distintos: um, na história; outro, na historiografia. Uma coisa é a entrada do sujeito em filosofia; outra, a invenção da figura do sujeito moderno.

Para operar com essa distinção, Alain de Libera tem sempre em vista a pergunta: “Faço a história de quê?” Não de doutrinas e autores, para não ceder à tentação da retrospecção, mas de teses e argumentos tomados em rede, porque essa é a única realidade ainda acessível. Nesse sentido, ele se serve menos dos métodos da arqueologia propriamente dita do que da filologia clássica e da edição crítica41 41 Cf. MOVALLIER; DE LIBERA, op. cit. , quer dizer, ele se inspira no trabalho de edição de textos antigos (estabelecimento de um texto com base em versões que contêm semelhanças e diferenças redacionais), para averiguar a possibilidade de refazer a árvore genealógica do que aparece nos “grandes” autores já estudados e mesmo ultraestudados, ultrainterpretados e ultraconstruídos na historiografia. O que distingue seu trabalho de uma simples história das doutrinas ou ideias é o fato de que ele se interessa pelo que conduz à formulação delas, sua condição de possibilidade ou seu a priori histórico, no sentido foucaultiano do termo. Aplicando procedimentos de anonimização a parcelas da história da filosofia já tidos como bem conhecidos, De Libera espera superar os esquemas historiográficos pré-estabelecidos ou as representações assentadas do pensamento medieval, com suas correntes, seus “ismos” e seu estoque de problemas “típicos”. Nesse trabalho, ele recorre à ideia de intriga (cujos protagonistas não seriam pessoas, mas conceitos, problemas, regras e argumentos), aprendida com Paul Veyne. Hoje talvez pudéssemos chamar o “modelo da intriga” de “complexo de questões e respostas tomados em rede”. Seja como for, Alain de Libera considera a arqueologia não como genealogia, mas como estudo de estruturas em um conjunto de tipo narrativo que induz precisamente uma narrativa na longa duração (ao modo do que afirmava Fernand Braudel). Seu objetivo, na esteira de Veyne, é introduzir esse modelo na história da filosofia, identificando estruturas para relativizá-las sob a ótica da intriga ou da rede: como todo historiador, o historiador da filosofia narra intrigas, que são tantos itinerários quantos se identificam em meio a um campo de eventos divisível ao infinito. Não se pode descrever a totalidade desse campo, pois um itinerário implica escolha e não pode ir em todas as direções. Ao mesmo tempo, nenhum dos itinerários é o “verdadeiro” ou a “história objetiva”, uma vez que não é um ente, mas um cruzamento de caminhos possíveis. Aliás, De Libera cruza o máximo possível de itinerários do sujeito.

Dessa perspectiva, sua arqueologia permite mesmo rever a crença em uma oposição clara entre história e estrutura. Frequentemente se recorre a Jean Hypollite e Martial Guéroult para fundamentar tal oposição. Todavia, ao menos no que concerne a Guéroult, De Libera sustenta que é um exagero tomá-lo como representante do estruturalismo em história da filosofia, pois, embora os autores que em geral se associam ao estruturalismo tomam muitas coisas de empréstimo a Guéroult, ele mesmo, no fim das contas, não opunha história e estrutura, mas preferia afirmar que as estruturas têm uma história, cuja gênese é possível escrever. Nesse sentido, as estruturas fazem a história ou, mais precisamente, “fazem história”.

A arqueologia praticada por De Libera ajuda, assim, a dar nova vida ao conceito de sujeito (reativando a rede na qual, em determinado momento, ele se inscreveu e se inseriu) e a fazer sobressair sentidos negligenciados ou mal compreendidos por diferentes filósofos e historiadores. Não se trata de defender uma Problemgeschichte, menos ainda de crer na existência de arquiproblemas ou problemas originais e permanentes que seriam tratados de maneira distinta ao longo da história. Trata-se de identificar, à medida que redes conceituais o permitam, complexos de problemas e respostas que constituem campos de presença de caráter histórico.

Referências

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  • SKÚLASON, P. Le cercle du sujet dans la philosophie de Ricoeur Paris: Harmattan, 2001.
  • 2
    O primeiro volume foi traduzido em português por Fátima Conceição Murad e publicado pela Editora FAP-UNIFESP, em 2013. Infelizmente, a tradução possui falhas de não pouca monta.
  • 3
    Além, obviamente, da obra do próprio Ricoeur (em tradução brasileira: O conflito das interpretações. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago, 1978), vale consultar a obra de Páll Skúlason, Le cercle du sujet dans la philosophie de Ricoeur, Paris: Harmattan, 2001.
  • 4
    Cf. o volume 1 (julho de 2011) do periódico The Phenomenological Mind (disponível em: http://www.phenomenologyandmind.eu/2012/07/1-the-online-journal-of-the-centre-of-phenomenologyand-sciences-of-the-person-n-1-2011- acesso em: 16 abr. 2015), especialmente os artigos de A. Gallese, “Neuroscience and Phenomenology”, e R. de Monticelli, “Phenomenology today: a good travel mate for analytic philosophy?”. Cf. também V. Gallese, “The Mirror Neuron Mechanism and Literary Studies: An Interview with Vittorio Gallese”. California Italian Studies, v. 2, n. 1, 2010. Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/56f8v9bv - acesso em 16 abr. 2015).
  • 5
    HEIDEGGER, M. Die Metaphysik als Geschichte des Seins. In: Nietzsche. Tomo II. Pfullingen: Neske, 1962, p. 395.
  • 6
    Ao que tudo indica, Alain de Libera não tem prática religiosa. Defende nitidamente a laicidade do Estado, adotando, inclusive, posições duras contra o interesse instrumental-religioso por formas medievais de pensamento filosófico. Cf., por exemplo, sua participação no que ficou conhecido como o “affaire” Aristote au Mont Saint-Michel, em torno do livro de mesmo título, escrito por Sylvain Gugenheim (Paris: Seuil, 2008). Para as posições de Alain de Libera, ver: BÜTTGEN, P.; DE LIBERA; A.; RASHED, M.; ROSIER-CATACH, I.Les Grecs, les arabes et nous. Enquête sur l’islamophobie savante. Paris: Fayard, 2009.
  • 7
    Aliás, já denunciado por outros autores, embora não com uma obra tão detalhada e extensa como a de Libera. Os trabalhos de Étienne Gilson, de certa maneira, já iam nessa direção, ao destacar a dependência do pensamento filosófico e científico cartesiano para com elaborações medievais. De outra perspectiva, Marie-Dominique Chenu estudara o nascimento da consciência na Idade Média. Autores mais recentes também levantam, sob outros ângulos, problemáticas ligadas à questão do sujeito na Idade Média e na Antiguidade Tardia (é o caso de Anthony Kenny, Etienne Balibar, Olivier Boulnois, Anca Vasiliu, Kurt Flasch, entre tantos outros). Uma consulta à bibliografia citada nos volumes da Archéologie de Libera já basta para encontrar muitas referências que comprovam isso. Um caso estimulante de estudo “prático” da questão do sujeito é a aplicação do tema do eu, da vontade e do juízo no Direito medieval, tal como se pode encontrar na coletânea: FAGGION, L.; VERDON, L. Quête de soi, quête de vérité – Du Moyen Âge à l’époque moderne. Aix en Provence: P.U.Provence, 2007.
  • 8
    Cf. DE LIBERA, A. Archéologie du sujet – Vol. I: Naissance du sujet. Paris: Vrin, 2008, p. 169.
  • 9
    DESCARTES, R. Réponses aux secondes objections, V. In: ______. Œuvres complètes. Ed. C. Adam e P. Tannery. Paris: L. Cerf, 1904, v. 9, p. 125.
  • 10
    DESCARTES, R. Princípios da filosofia (§ LII). Trad. de Guido Antonio de Almeida (Coord.). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002, p. 67-69.
  • 11
    Cf. DE LIBERA, Archéologie – Vol. I, op. cit., p. 172.
  • 12
    Cf. ARISTÓTELES, Categorias 2, 1a20-1b10.
  • 13
    DESCARTES, R. Princípios da filosofia (§ LIII), op. cit., p. 69.
  • 14
    DE LIBERA, A., Archéologie – Vol. I, op. cit., p. 172.
  • 15
    Cf., por exemplo, DESCARTES, Lettre CCXIX, de 14 de novembro de 1640, in: ______. Œuvres complètes. Ed. C. Adam e P. Tannery. Paris: L. Cerf, 1899, v. 3, p. 247-248.
  • 16
    Cf. H. Robinson, Aristotelian dualism. In: ANNAS, J. (Ed.). Oxford Studies in Ancient Philosophy. Oxford: Clarendon, 1983, v. 1, p. 123-144.
  • 17
    Cf. DE LIBERA, Archéologie, op. cit., v. 1, p. 264.
  • 18
    Idem, p. 267-268.
  • 19
    Cf. idem, p. 303.
  • 20
    Cf. ibidem.
  • 21
    Cf. idem, p. 309.
  • 22
    Cf. idem, p. 310ss.
  • 23
    Cf. idem, p. 222.
  • 24
    Cf. PEDRO DE JOÃO OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarumq. 74. Na edição de B. Jansen (Roma: Quaracchi, 1922-1926, 3v.), v. 3, p. 126. Nesta apresentação de Pedro de João Olivi, vamos um pouco além do que diz Alain de Libera nos volumes já publicados de sua Archéologie. Apesar de conter alguns aspectos que mereceriam ser mais debatidos, um artigo de grande utilidade aqui é o de Sylvain Piron, “L’expérience subjective selon Pierre de Jean Olivi”, in: BOULNOIS, O. (Ed.). Généalogies du sujet. De saint Anselme à Malebranche. Paris: Vrin, 2007, p. 43-54. Devemos a Sylvain Piron a maior parte dos dados que aqui fornecemos a respeito da ética e da epistemologia de Olivi (embora tenhamos conferido os textos originais do filósofo).
  • 25
    Cf. DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 203-204.
  • 26
    As inúmeras referências de Alain de Libera a autores contemporâneos – seja em filosofia, seja em ciência (especificamente em filosofia da mente ou mesmo em neurociência), sobretudo nos casos em que ele demonstra haver semelhanças estruturais entre formas de pensamento elaboradas em momentos históricos diferentes – possibilitam ser tomadas aqui como licença para citar o neurocientista norte-americano Benjamin Libet. Embora numa linha atributivista “dura”, Libet consegue defender, com base em experimentos e com formulações radicalmente semelhantes às de Olivi, a existência da liberdade de escolha ou do livre-arbítrio como poder de interrupção de ações iniciadas ou ao menos concebidas. No seu dizer, isso que se chama de livre-arbítrio corresponderia a um campo muito mais restrito do que supõe o uso do termo, confirmado sem dúvida, porém, pela experiência de, em alguns casos, poder-se interromper a série de desencadeamentos provocada por arranjos neuronais. A essa experiência Libet denomina “poder de veto”. Cf. LIBET, B. Mind Time – The temporal factor in consciousness. Harvard: Harvard University Press, 2005.
  • 27
    Cf. PEDRO DE JOÃO OLIVI, Quaestiones, op. cit., q. 54 e 57 (v. 2, p. 251 e p. 327).
  • 28
    Cf. idem, q. 51 (v. 2, p. 111-113).
  • 29
    Cf. BOÉCIO, De consolatione philosophiae, livro V.
  • 30
    Cf. PEDRO DE JOÃO OLIVI, op. cit., q. 72 (v. 3, 38).
  • 31
    PEDRO DE JOÃO OLIVI, op. cit., q. 74 (v. 3, 126).
  • 32
    PEDRO DE JOÃO OLIVI, Impugnatio quorundam articulorum, apud DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 225.
  • 33
    Cf. DE LIBERA, A., Archéologie – V. 1, op. cit., p. 222-224.
  • 34
    O texto tomado como base por Alain De Libera para provar que o sujeito de imputação é historicamente posterior ao sujeito de atribuição é: LOCKE, J. Philosophy Essay concerning human understanding II, 27, § 26. Cf. DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 99-100.
  • 35
    Cf. COLLINGWOOD, R. G. An Autobiography. Oxford: Oxford University Press, 1970; “Le relativisme historique: théorie des ‘complexes questions-réponses’ et ‘traçabilité’”. Les Études philosophiques, n. 4, p. 479-494, 1999; e “Archéologie et reconstruction. Sur la méthode en histoire de la philosophie médiévale”, in: VV.AA.Un siècle de philosophie – 1900-2000. Paris: Gallimard-Centre Pompidou, 2000, p. 552-587.
  • 36
    Cf. GOLDSCHMIDT, V., “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”. In: ______. A religião de Platão. Trad. Osvaldo e Ieda Porchat. São Paulo: Difel, 1968.
  • 37
    Cf. COLLINGWOOD, R. G. Toute histoire est histoire d’une pensée(Trad. francesa de An autobiography, por Guy Le Gaufey). Paris: EPEL, 2010, p. 46.
  • 38
    Cf. DE MOVALLIER, H. ; DE LIBERA, A. Pourquoi une archéologie du sujet? – Entretien avec Alain de Libera autour de l’Archéologie du Sujet. Actu Philosophia. 04 de janeiro de 2009. Texto disponível em: http://www.actu-philosophia.com/spip.php?article77. Acesso em: 10 maio 2014.
  • 39
    Cf. DE LIBERA, A., Archéologie, op. cit., v. 1, p. 19-20.
  • 40
    Cf. BERGSON, H. La pensée et le mouvant. In: ______. Œuvres. Paris: PUF, 1963, p. 1264.
  • 41
    Cf. MOVALLIER; DE LIBERA, op. cit.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2014
  • Aceito
    10 Nov 2014
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