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Apresentação do Dossiê Rousseau1 1 http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000400002

O dossiê Rousseau publicado pela Revista Trans/Form/Ação apresenta algumas importantes conferências e palestras realizadas durante o VI Colóquio Internacional Rousseau: “Festa e Representação” do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau (CNPq) e do Grupo de Trabalho Rousseau e o Iluminismo (ANPOF). Organizado pela Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), na cidade de Pirenópolis (GO) em junho de 2013, o Colóquio reuniu cerca de 120 estudantes e pesquisadores brasileiros e estrangeiros, refletindo o trabalho acadêmico comprometido com a pesquisa e a formação de pesquisadores que vem sendo realizado há mais de 15 anos, bem como marcou também o encerramento das homenagens no Brasil aos 300 anos de nascimento de Jean-Jacques Rousseau.

O Colóquio propôs-se trazer a público, em primeiro lugar, reflexões e análises das obras de Rousseau pelo viés da teoria dos espetáculos que surge problematizando tanto o princípio da representação essencial aos espetáculos que conduzem à decomposição do corpo social, quanto o princípio da participação que se exprime no âmbito dos espetáculos republicanos, como a festa popular. Em segundo lugar, propôs-se também a acolher a multiplicidade do pensamento rousseauísta e propiciar um debate mais amplo em acordo com as linhas de pesquisa do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau: 1) moral, política e sociedade; 2) estética, literatura e subjetividade; 3) cultura e formação. Os artigos que agora trazemos a público, no Dossiê Rousseau da Revista Trans/Form/Ação, refletem estas temáticas e oferecem ao leitor uma pequena mostra das palestras e conferências apresentadas por pesquisadores durante o VI Colóquio.

Propomos ao leitor do Dossiê Rousseau iniciar a leitura pelo artigo de Luc Vincenti intitulado Rousseau e a ordem da festa. Ao destacar a natureza coletiva e política da festa na perspectiva do filósofo genebrino, Vincenti argumenta que a festa é “a oportunidade de expressar a legitimidade política profunda que se enraíza na unidade da natureza humana e de toda a natureza como ordem do mundo”, fazendo-a emergir como uma cerimônia à qual as pessoas se entregam e por meio da qual se conectam à ordem do mundo, o que se dá como uma manifestação coletiva do amor de si plenamente satisfeito.

O tema da festa é tratado também no artigo de Wilson Alves de Paiva, Da representação no processo educacional, na perspectiva das propostas pedagógicas exibidas no Emílio. Contra a pura representação da ordem social que degrada o homem, Paiva argumenta que a educação, que se vale da arte, da representação, da ficção e da brincadeira, pode contribuir para operar a restauração da natureza no homem e prepará-lo para o melhor convívio com seus semelhantes. Por essa razão, a vida campesina e suas festividades são valorizadas por Rousseau como ponto de partida da educação, a qual termina, no pleno turbilhão social, tirando proveito inclusive dos espetáculos.

Na sequência, o artigo de Maria Leone, Mundo real e mundo ideal em Rousseau, tematiza a ficção para pensar o político e argumenta que assim como o teatro possui os meios para perverter uma sociedade tida como virtuosa, o romance pode reeducar os povos corrompidos desempenhando, deste modo, um papel fundamental na determinação e realização do novo ideal político que se desenvolve nos textos de Rousseau desde Segundo Discurso, passando por A Nova Heloísa e os Diálogos.

Ainda no âmbito das reflexões sobre a literatura rousseauniana, o artigo de Luciano Façanha, A representação do amor nos quadros das paixões, estabelece um vínculo entre a Carta a d’Alembert e a Nova Heloísa para investigar a crítica de Rousseau aos romances que representam exageradamente as paixões humanas e levam os espectadores a se satisfazerem à revelia da virtude. Contudo, uma vez que o romance era o meio pelo qual ainda se podia falar às paixões, o autor mostra que eles constituíam-se como “a última instrução que resta dar a um povo suficientemente corrompido”.

Com o artigo de Pedro Paulo Côroa, Rousseau misantropo, passamos da crítica da literatura à crítica do teatro empreendida por Rousseau. Côroa aborda as objeções feitas pelo genebrino ao Misantropo de Molière, de maneira a colocar o autor da Carta a d’Alembert sobre os espetáculos em diálogo com Aristóteles e Platão no intuito de investigar a relação entre o teatro e a moralidade. O que se coloca em jogo é a questão de até que ponto o recurso a um personagem ficcional que, por amor aos homens, odeia os vícios e os males resultantes destes, permite ao teatro ser utilizado como meio alegórico de educação moral.

Também utilizando como fonte a carta escrita por Rousseau acerca dos espetáculos, o artigo de Israel Alexandria Costa, Por um novo estatuto temático da Carta a d’Alembert, busca ressaltar na obra aspectos para os quais os comentadores não costumam atentar, isto é, aqueles relativos às ideias sobre a religião expostas por Rousseau no texto. Para Alexandria, o estudo dessas ideias revela que a carta é uma integral e avançada Carta sobre a Tolerância. Além de abordar uma moral da tolerância no que diz respeito às questões religiosas, tendo como referência a resposta de Rousseau às observações de d’Alembert sobre os pastores de Genebra, a obra se mostraria como uma atualizada recusa multiculturalista ao etnocentrismo.

Em Rousseau e Genebra, Christopher Bertram, por sua vez, retoma o papel da cidade no contexto da filosofia política rousseauniana. Sem admitir que a política e a história de Genebra sejam irrelevantes ou essenciais à elaboração do pensamento do autor do Contrato Social, Bertram defende que a terra natal de Rousseau é uma presença constante que informa suas reflexões de modos diferentes. Distinguindo o filósofo do ativista, ele argumenta que Rousseau não foi tão ingênuo a ponto de pensar que Genebra encarnava seus princípios e, portanto, a julgou defeituosa; contudo, a julgou “remediável”, sustentando a esperança de que a degeneração futura poderia ser evitada. Esse juízo conferiria aos seus escritos sobre Genebra uma marca de conservadorismo que contrastaria com o conteúdo revolucionário de suas doutrinas políticas.

Com o objetivo de investigar algumas questões fundamentais dessas doutrinas, o artigo de Ligia Pavan Baptista, O paradoxo da origem do poder político em Rousseau, discute o aparente paradoxo segundo o qual alguém, tendo nascido livre, se escraviza voluntariamente, obedecendo a outro e não a si próprio. Contrastando o Contrato Social com as obras de Thomas Hobbes e John Locke, a autora argumenta que Rousseau procurou embasar o pacto social na vontade geral, de maneira que cada indivíduo, unindo-se a todos em vista do bem comum e não obedecendo a ninguém a não ser a si próprio, preserva sua liberdade ao se tornar detentor de uma parcela da soberania, enquanto membro do povo, e participar ativamente do direito de legislar para o Estado do qual é membro.

As relações entre esses cidadãos que compõe a república são debatidas no artigo de Renato Moscateli, Maquiavel versus Rousseau. Acompanhando o diálogo realizado pelo filósofo de Genebra com as obras de Nicolau Maquiavel, Moscateli procura mostrar que, embora Rousseau tenha elogiado explicitamente o escritor florentino e tentado ligar suas ideias republicanas às dele, não se pode deixar de notar diferenças importantes entre as teses dos dois pensadores, especialmente no que tange às divisões sociais e seu papel em uma república bem ordenada. Assim, se por um lado Maquiavel viu os conflitos resultantes da divisão entre os “grandes” e o “povo” como uma das principais causas da liberdade desfrutada pela exemplar república romana, Rousseau, por outro, elaborou princípios do direito político segundo os quais as divisões dentro do Estado seriam muito mais um perigo do que algo benéfico à liberdade dos cidadãos.

Igualmente na linha das análises comparativas, o artigo de Evaldo Becker, Críticas de Rousseau ao Jus ad bellum e ao Jus in bello de Hugo Grotius, apresenta algumas das principais objeções dirigidas por Rousseau às ideias de Grotius acerca do direito da guerra, buscando distinguir o que torna uma guerra vantajosa daquilo que a faz legítima. Becker recupera o argumento rousseauniano de que um adequado ordenamento político interno é fundamental na redução da belicosidade, porém insuficiente. Enquanto perdurar o estado de anomia nas relações internacionais, a guerra dominará a cena política externa. Assim, para o filósofo genebrino, é preciso estabelecer regras que rejam as ações empreendidas, mesmo no seio dos combates, para que se distingam as guerras das simples pilhagens.

Dessa reflexão sobre a justiça na política passamos, enfim, ao pensamento moral de Rousseau. Nesse sentido, o artigo de Marisa Alves Vento, O estatuto da pitié nas obras de Rousseau, defende o entendimento de que a piedade, sendo uma paixão decorrente das “primeiras e mais simples operações da alma humana”, não é um princípio antagônico ao amor de si. A autora questiona o dualismo radical entre esses dois princípios e propõe uma unidade representada por um duplo movimento: o de fixar-se ou aderir-se em si (amor de si) e o de expansão, que seria a expressão da piedade. Desse ponto de vista, defende Vento, seria sobre a expansão do amor de si que repousam as modalidades específicas da piedade, seja na condição de “virtude natural” que, no estado de natureza “nos leva, sem reflexão, a socorrer aqueles que vemos sofrer”, seja na condição de “virtude social” em que o transporte para fora de si permite a identificação com o outro e o desenvolvimento da dimensão moral do homem.

Completando o dossiê, o artigo de Telmir de Souza Soares, Considerações sobre a esperança em Rousseau, enfoca como as ideias morais e metafísicas do filósofo genebrino apontam para uma visão otimista sobre a existência humana. Soares toma a Carta a Voltaire sobre a Providência a fim de mostrar que o debate com Voltaire permitiu a Rousseau reafirmar sua crença na Providência e no otimismo, elementos fundamentais que são a base de sua esperança. Este sentimento é ligado pelo filósofo tanto às paixões quanto à razão, consolando os indivíduos em face das adversidades da vida e informando que “tudo vai bem com o todo”. Portanto, em Rousseau a esperança estaria vinculada ao presente e ao futuro, à razão e ao sentimento, e à própria busca pela felicidade possível para o ser humano.

A diversidade de todos esses temas tratados pelos artigos e as interrelações que surgem ao leitor, na medida em que passamos de um texto para o outro, mostra, ao mesmo tempo, a riqueza e a dificuldade de conhecer e interpretar o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. É na expectativa de contribuir com as discussões, que oferecemos aos leitores da Revista Trans/ Form/Ação o presente dossiê.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2015
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