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Apresentação

Com alegria, apresentamos o terceiro número do volume 43 da Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp. Do total de 12 artigos aqui publicados, dois são escritos em espanhol, um deles em francês e os demais na língua portuguesa. Este número também socializa uma entrevista com o filósofo francês Renaud Barbaras. Os autores brasileiros deste fascículo são oriundos de todas as regiões do Brasil, representadas pelo Distrito Federal e pelos estados da Bahia, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Já os estrangeiros estão vinculados a instituições da Argentina e do Chile.

Para este número, também foram produzidos 12 comentários para oito artigos, ou seja, quatro dos artigos são acompanhados de dois comentários. Conforme descrito em sua página, a Trans/Form/Ação tem como objetivo a socialização do conhecimento, buscando promover o debate e a interlocução de ideias. Em vista disso, uma prática inovadora e de bastante sucesso da revista é a modalidade denominada “comentários”. Consentidos previamente pelos autores dos artigos aprovados para publicação, tais textos são produzidos pelos pareceristas do manuscrito submetido. Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez que o processo avaliativo já foi ultrapassado. O comentador pode expor possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores, perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas, epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha argumentativa do artigo original, notas explicativas relevantes ou a posição do comentador a respeito da tese exposta. Nesse sentido, procuramos promover um diálogo entre ambos os textos, almejando o aprofundamento e a ampliação do conhecimento.

Os comentários também são uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico, oferecendo-lhes oportunidade de publicação de suas ideias e reflexões, as quais podem, inclusive, ter tido origem a partir da análise do manuscrito avaliado. A política de avaliação da revista, no entanto, continua sendo por pares duplo-cega. Apenas depois de o artigo ser aprovado para publicação, conforme as normas da revista, revisado e consentido pelos seus autores, solicitamos o comentário aos pareceristas, sendo-lhes facultativo o aceite da atividade.

Nos dois primeiros números de 2020, quando inauguramos essa modalidade de produção intelectual, foram produzidos quatro comentários em cada um deles. A diminuta quantidade deveu-se ao curto espaço de tempo disponível para a produção, dado o calendário de publicação da revista, além de ser uma atividade em teste. Observamos uma ótima recepção dessa proposta, seja por parte dos autores, seja por parte dos avaliadores e leitores da revista, o que nos impulsiona a dar continuidade ao projeto, ampliando a sua execução, com novidades para o ano de 2021.

Este número começa com uma entrevista com Renaud Barbaras, apresentada por Paulo César Rodrigues e realizada por Fabrício Rodrigues Pizelli e Gabriel Gurae Guedes Paes. Conforme lembra Paulo, Barbaras é professor de Filosofia na Sorbonne e autor de mais de dez livros sobre fenomenologia, inclusive estudos sobre Husserl, Merleau-Ponty e Jan Patočka. Nessa entrevista, o filósofo francês fala, dentre outros assuntos, das ideias desenvolvidas em seu mais recente trabalho, L’appartenance: vers une cosmologie phénoménologique, publicado em 2019. Nessa obra, ele aprimora teses cosmológicas a partir da fenomenologia, rompendo, em alguma medida, com os autores aos quais esteve profundamente ligado, tais como Husserl, Merleau-Ponty e Patočka.

Em seguida, iniciando o rol dos artigos deste fascículo, encontramos “Desfamiliarização e ficção científica: uma abordagem de base schrödingeriana à construção do objeto literário”, escrito por Caroline Elisa Murr, com comentário de Pedro Pricladnitzky. Caroline aborda a construção dos objetos literários na experiência humana, com base nas ideias de Schrödinger sobre a construção da realidade, publicadas entre 1928 e 1964. Segundo a autora, sugere-se relacionar a construção de tais objetos aos processos de resgate de invariantes e de construção de objetos científicos, na abordagem schrödingeriana. Contudo, segue ela, nota-se que essa abordagem não é suficiente para explicar certos casos. Assim, propõe-se adicionar a conceituação de desfamiliarização, concebida por Shklovsky, em 1917, e revisitada por Banes, em 2003. Essa concepção consiste basicamente em tornar estranho o que é familiar, provocando a atenção na sua direção e despertando a consciência, através de uma experiência marcante. A desfamiliarização mostra-se adequada para descrever momentos em que há quebra de expectativas e resgate de sensações. Esse trabalho explora, ainda, exemplos que ilustram esses processos, examinando trechos de obras de H. G. Wells e enfatizando os objetos científicos resgatados na ficção. Esta análise revela que tais objetos passam por desfamiliarização, embora de forma distinta dos objetos cotidianos. Além disso, alguns dos trechos examinados sugerem que a desfamiliarização é acentuada na leitura de ficção científica, conclui Caroline.

Em seguida, Daniel Verginelli Galantin publica “A dimensão literária do diagnóstico do presente em Foucault”, seguido dos comentários de Elton Adverse e Adriano Correia. O autor desenvolve uma investigação sobre a definição foucaultiana do papel da filosofia enquanto a construção de um diagnóstico do presente. Ele sustenta que o pensamento de Foucault em torno à figura do diagnóstico incorpora algumas de suas considerações sobre a linguagem e literatura modernas. Busca destacar essa apropriação notadamente em função dos temas do apagamento do rosto, a relação entre linguagem e morte, e seu artigo sobre Georges Bataille. Para sustentar essa hipótese de leitura, Daniel elenca uma série de encadeamentos e deslocamentos de ideias, em textos de diferentes momentos de Foucault, o que sugere a existência de uma dimensão literária do diagnóstico. Ele finaliza, apresentando algumas repercussões ético-políticas de todas essas considerações, em alguns dos seus textos derradeiros. Com isso, sugere haver, da parte de Foucault, um prolongado diálogo e apropriação de certos elementos do pensamento literário. Esse diálogo e apropriação podem ser encontrados em meio às suas considerações sobre história e sobre o funcionamento de seus próprios livros, enquanto livros-experiência.

O artigo de número três é publicado na língua francesa, por Eric Pommier, seguido de comentário de Rodrigo Alvarenga. “La différence phénoménologique selon Barbaras et Marion (Projet, méthode et ligne de tension)” almeja oferecer condições para um confronto entre a fenomenologia da doação de Jean-Luc Marion e a ontologia da vida de Renaud Barbaras. O projeto da descrição do aparecimento como tal, o método, a concepção “evencial” (événementiale) do fenômeno e o sujeito podem constituir um plano de convergência anterior à ênfase dada à divergência entre eles sobre a questão do nascimento transcendental do sujeito. É esta a abordagem oferecida pelo autor desse artigo.

“A tese da mente estendida à luz do externismo ativo: como tornar Otto responsivo a razões?” é o proximo artigo, escrito por Eros Moreira de Carvalho. Conforme lembra o autor, a tese da mente estendida sustenta que alguns estados mentais e processos cognitivos se estendem para além do cérebro e do corpo do indivíduo. Itens externos ao organismo ou ações envolvendo a exploração ou manipulação do ambiente externo podem constituir, em parte, alguns estados mentais ou processos cognitivos. No artigo inaugural de Clark e Chalmers, “The Extended Mind”, essa tese recebe apoio do princípio da paridade e do externismo ativo. No artigo dos filósofos, é conferida maior ênfase ao princípio da paridade, apresentado como neutro em relação à natureza da cognição. Seria uma vantagem que as extensões propostas não envolvessem uma reforma da nossa concepção pré-teórica de cognição. Dado isso, Eros propõe, nesse artigo, que maior ênfase seja atribuída ao externismo ativo, o qual não é neutro em relação à natureza da cognição. A cognição é elaborada como adaptação bem-sucedida a uma tarefa específica. Embora esse movimento possa parecer desvantajoso, ele é necessário para a correta compreensão e defesa do caso Otto. Além disso, observa o autor, o princípio da paridade não dá conta da crítica de Weiskopf de que os registros no caderno de notas de Otto não são responsivos a razões. Para responder a essa crítica, o texto procura mobilizar o externismo ativo e a consequente compreensão da cognição que ele envolve.

O quinto artigo é intitulado “O tempo como critério de verificação da possibilidade do discurso filosófico”, escrito por Estevão Lemos Cruz e comentado por Augusto B. de Carvalho Dias Leite. O objetivo principal do autor é identificar o tempo como o critério de verificação da possibilidade de um discurso filosófico, isto é, de uma possibilidade discursiva ser capaz de falar adequadamente acerca das palavras fundamentais. Para tanto, interessará mostrar como o tempo é o elemento vinculador das condições de possibilidade do enunciado em geral e como este se fundamenta na estrutura imprópria da temporalidade. Tal prerrogativa é o que inviabiliza o enunciado tratar adequadamente qualquer palavra fundamental. Caberá, então, frisa Estêvão, afirmar que somente uma possibilidade discursiva que se fundamente na estrutura própria da temporalidade poderá ter um acesso adequado às palavras fundamentais.

Em seguida, vem, escrito em espanhol, “El iusnaturalismo frente a la ley de Hume: El caso de la New Natural Law Theory y sus críticos”. Felipe Widow Lira, autor do artigo, afirma que, segundo estudiosos como Grisez e Finnis, a teoria clássica do direito natural é imune à crítica contida no argumento da lei de Hume, porque tal teoria não procura derivar a ética da metafísica, nem as declarações práticas de declarações factuais. A autonomia da razão prática, argumentam esses autores, permite uma explicação da teoria do direito natural na qual não é exigido qualquer recurso à metafísica ou outro conhecimento teórico da natureza. Essa tese tem sido fortemente contestada por pensadores ligados ao neotomismo. Eles negam a validade da regra lógica expressa na lei de Hume e, ao mesmo tempo, afirmam que a teoria tomista do direito natural repousa apenas em seus fundamentos metafísicos. Essa discussão, no entanto, conclui Felipe, é indicativa do erro com o qual ambos receberam a lei de Hume e da falta de análise de suas suposições e do modo como essas suposições dialogam com a tradição clássica do direito natural.

O sétimo artigo é “Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica”, escrito por Gustavo Hessmann Dalaqua, seguido por dois comentários, assinados, respectivamente, por Emília Carvalho Leitão Biato e Neiva Afonso Oliveira. O artigo busca elaborar um conceito de liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica, mediante engajamento crítico com as obras de Paulo Freire, Amílcar Cabral e Augusto Boal. No pensamento dos três autores, democracia, liberdade e desenvolvimento de si constituem uma tríade de mútua influência, de sorte que o pleno exercício de quaisquer desses itens é impossível, na ausência de qualquer um dos outros dois. Além disso, Gustavo procura evidenciar a maneira pela qual a opressão é compreendida nos trabalhos dos três pensadores como o oposto da liberdade, e a injustiça epistêmica, como uma dimensão psíquica da opressão.

Em seguida, vem o texto “Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell”, de Ivan Ferreira da Cunha, também acompanhado de dois comentários, produzidos por Vinícius França Freitas e por Susana de Castro. Esse artigo apresenta um referencial pragmatista para compreender o estatuto epistêmico da valoração produzida na reflexão referente às consequências sociais de propostas científicas e tecnológicas. O problema é posto tendo em vista as considerações de Bertrand Russell sobre o impacto da ciência na sociedade. Russell argumenta que a valoração de arranjos sociais fica fora dos limites do conhecimento, porque valorações não podem ser verdadeiras ou falsas, em sentido correspondencial. Isso leva o pensamento social a um impasse, pois não se pode saber que dado arranjo social seria indesejável ou inadequado. Nesse artigo, Ivan esboça uma alternativa a partir dos trabalhos sobre valoração de Clarence Irving Lewis, tomados em continuidade com a teoria da investigação de John Dewey. Tal referencial alternativo assume noções epistêmicas de verdade e justificação, permitindo que valorações possam ser concebidas em contextos de investigação e, assim, como objetos de conhecimento.

O nono artigo é escrito por Leonardo da Hora, que o denomina “Capitalismo como prática social?: os potenciais e desafios de uma aproximação entre o practice turn em teoria social e a interpretação do capitalismo”. Este é mais um artigo com dois comentários, de autoria de Hernán Gabriel Borisonik e Cristobal Balbontin-Gallo. Leonardo procura expor e discutir tentativas recentes em filosofia social de analisar e interpretar o capitalismo, a partir de uma perspectiva praxeológica. O practice turn em teoria social procurou superar o dualismo entre agência e estrutura, ou entre ação e sistema, por meio da noção de prática social. Seria possível, então, pergunta-se o autor, interpretar o capitalismo como um tipo específico de prática social? Para tentar encaminhar essa questão, ele apresenta brevemente, em um primeiro momento, em que consiste o practice turn em teoria social. Num segundo momento, analisa e discute a proposta de Rahel Jaeggi de conceber a economia como uma rede de práticas sociais. Em seguida, expõe e avalia a tentativa de Christian Lotz em ver no dinheiro a chave para compreender aquilo que ele chama de esquema capitalista. O autor finaliza o texto, chamando a atenção para os potenciais e desafios ligados ao empreendimento de interpretar o capitalismo com base em uma teoria da prática, sugerindo que um aprofundamento na análise da imaginação especificamente capitalista, vinculando-a com a típica plasticidade e diversidade do capitalismo, possa ajudar a avançar nesse campo.

Na sequência, é apresentado “Esclarecimento e dominação masculina”, escrito por Patrícia da Silva Santos e comentado por Oneide Perius. Patrícia busca interpretar o livro Dialética do esclarecimento e seus principais argumentos, considerando a dominação masculina que perpassa a racionalidade moderna. Para isso, sugere uma interpretação do entrelaçamento entre mito e esclarecimento, durante o processo de civilização ocidental, indicando que os argumentos de Adorno e Horkheimer tomam a modernidade como um projeto fundamentalmente masculino.

“Morte impune, luto proibido: vida nua e vida precária em Giorgio Agamben e Judith Butler” é o décimo primeiro artigo publicado, com dois comentários, um de Raphael Guazzelli Valerio e outro de Carla Rodrigues. Segundo Reginaldo Oliveira Silva, autor desse artigo, Giorgio Agamben tece a genealogia da “vida nua”, no percurso que vai do homo sacer ao Muselmann, do primeiro paradigma da política ocidental à fabricação do morto-vivo, em Auschwitz, como vida insacrificável e impunemente matável. Judith Butler, informa o autor, segue argumento semelhante, ao desenvolver o conceito de “vida precária”, com o qual problematiza a separação entre vulnerabilidade universal e formas de produção da precariedade, a distinção entre vidas cujas perdas importam e as indignas de pranto e luto. Reginaldo busca aproximar as concepções dos dois autores, sob a hipótese de que, em ambos, se trata da fabricação de vidas matáveis, sobre as quais pesa a proibição do luto.

Fechando o rol de doze artigos deste número está o texto escrito em espanhol, “Las objeciones de Gassendi a las Meditaciones metafísicas de Descartes en su contexto filosófico”, de autoria de Samuel Herrera-Balboa. Em geral, salienta o autor, a disputa entre Gassendi e Descartes foi tratada a partir do ponto de vista cartesiano. É nesse contexto que ele aborda a filosofia de Gassendi. Samuel procura uma maneira de entender a lógica ou a estratégia das objeções gassendianas, tentando apontar os pressupostos filosóficos subjacentes à crítica cartesiana. Somado a isso, o autor busca mostrar a parte da recepção contemporânea da controvérsia e explicar os tópicos mais problemáticos adotados por Gassendi, em relação ao método e às suposições sobre a substância. Para cumprir esses objetivos, Samuel analisa as objeções de Gassendi a Descartes, nas Quintas Objeciones a las Meditaciones Metafísicas e na Disquisitio metaphysica seu dubitationes et instantiae adversus Renati Cartesii metaphysicam et responsa, obra publicada por Gassendi, em 1644.

Desejamos uma proveitosa leitura e reflexão crítica referente ao conteúdo dos textos aqui publicados. Que, ao socializar o conhecimento, seus autores, por meio da Trans/Form/Ação, possam auxiliar na produção de novos saberes e no aprofundamento da compreensão dos temas e problemas abarcados, com impacto social, na medida do possível.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2020
  • Aceito
    13 Jun 2020
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