Acessibilidade / Reportar erro
Este documento comenta:

Comentário ao artigo “Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica” Da liberdade democrática à vontade de potência: comentários ao texto de Gustavo Hessmann Dalaqua

Referência do texto comentado: DALAQUA, G. H. Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 213 -234, 2020.

O artigo de Dalaqua (2020) - Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica - propicia uma discussão sobre a noção de liberdade democrática, conforme Freire, Cabral e Boal, a partir de provocações que encontro numa perspectiva nietzschiana sobre luta de forças e vontade de potência.

A leitura é instigante e dá o que pensar, perguntar, desdobrar. Destaco o valor atribuído ao processo de conscientização - de entendimento de si e de sua condição - que contribui para que o oprimido tenha clareza das possibilidades de resistência e de ocupação de espaços justos. A conscientização é tomada como fator relevante ao processo de mudança e de prática de liberdade.

Uma provocação decorrente das ideias propostas no texto encontra-se relacionada ao risco de que o processo de conscientização e constituição de modos de resistência à opressão e à injustiça epistêmica e estética esteja, ainda, vinculado à lógica da relação de opressão. Uma vez que o oprimido dispõe da consciência do funcionamento hierárquico no qual está inserido e da dinâmica de desvalorização de seus saberes, interesses e características culturais, parece se equipar de mecanismos para a resistência. No entanto, teria esse movimento a radicalidade necessária para, de fato, fazer nascer relações democráticas e permitir a ocupação de espaços de liberdade?

Em seu pensamento sobre a constituição de si, Nietzsche trata de uma multifária arte de estilo (NIETZSCHE, 19951. DALAQUA Gustavo Hessmann. Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 213 –234, 2020.), de um corpo constituído de impulsos alimentados por vivências. Aponta para a nutrição de alguns impulsos e definhamento de outros, que recuam, como se sofressem de inanição. Assim, o vivente vai se constituindo - nunca pronto, pois sempre em processo de vir a ser -, vivendo e inventando (NIETZSCHE, 2004).

De acordo com o autor de Zaratustra, a Vontade é “o nome do libertador e mensageiro da alegria” (NIETZSCHE, 2011, p. 133), o que nos permite entender que a vontade de potência - vida que quer mais vida - impulsiona forças abertas a todas as possibilidades, até que a vontade lhe atribua sentido. Trata-se, aqui, do movimento de tornar-se o que se é, da plasticidade do desenvolvimento de si como obra de arte.

Das forças - impulsos - que nos constituem, destacam-se as nobres, em detrimento das baixas. Forças nobres constituem a moral capaz da criação de valores, da ampliação de perspectivas sobre os fenômenos e de fazer surgir o impensado. Opera com o novo, o inusitado. Assim, o vivente reconhece-se como a sede dos valores. As forças nobres não agem em detrimento do outro ou do coletivo, ao contrário, tomam a si e aos seus como referência para suas escolhas, para sua dieta, para seus modos de andar a vida. Não buscam a dominação sobre o outro, mas a expansão da vida mesma.

Em contraponto, forças baixas constituem uma moral escrava que, encharcada de ressentimento, segue o rebanho, repete os passos sempre caminhados, delibera pouco. Sentindo-se achatado, o homem do ressentimento se vê, quando muito, capaz de reagir e não de criar. Visto que compreende que o que exerce dominação pode ser julgado como mal, o escravo estabelece o bem, não como inauguração de um novo olhar para o fenômeno, porém, como um exercício de envenenamento do surgimento de uma valoração: um nascimento que ocorre sem originalidade, pois é feito por oposição.

Nessa lógica, o coletivo, o qual poderia servir como agregação protetora, pode achatar as singularidades, instigando uma pequenez. As massas definem valores vinculados ao ressentimento, que, no lugar de permitir forças de expansão, como vontade de potência, limitam as potências da vida de cada um, perpetuando - por outra via - a opressão.

A proposta nietzschiana (2011) é a de uma ética da transvaloração dos valores: uma superação dos ordenamentos e imperativos presentes nas tábuas kantianas, e um deslocamento para os encontros espinosanos. O homem, como sede dos valores, não se conforma com o destino, mas é capaz de amá-lo, transformá-lo, deliberar, ser plástico ao que se lhe apresenta, constituir-se, tornar-se.

Frente à opressão, parece ser necessário um saber de si, do outro e da coisa. No entanto, talvez, isso não seja suficiente. O corpo pode dar voz a forças baixas: diante da notícia da realidade dura, apertada, contida e opressiva, jogar-se ao chão, ranger os dentes, rasgar as vestes, lamentar e, por fim, conformar-se, ressentido. Por outra via, o corpo pode alimentar-se do que nutre forças nobres, inventivas. Criar um saber de si, capaz de valorar e valorar-se, expandir a vida, querer mais vida, ocupar espaços, produzir espaços, preservar-se.

É a partir desse cenário que retorno à palavra a Gustavo Hessmann Dalaqua, com destaque à importância da democracia como via para a pluralidade humana, para a arte de criar para si estilos de vida, para a abertura a espaços livres para o desenvolvimento de potências.

As ideias depreendidas dos trabalhos de Freire, Cabral e Boal suscitam a ampliação do debate acerca de como a conscientização pode contribuir para a resistência do oprimido, por uma via que evite o risco de mantê-lo, em última instância, ainda preso à lógica da opressão e exercendo apenas forças reativas. Suscitam, ademais, o aprofundamento da discussão sobre o valor da arte e da cultura como potências de liberdade, como possibilidades inventivas capazes de fortalecer e expandir a vida.

Referências

  • 1
    DALAQUA Gustavo Hessmann. Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 213 –234, 2020.
  • 1
    Nietzsche F W. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • 2
    Nietzsche F W. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • 3
    Nietzsche F W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2020
  • Aceito
    26 Jun 2020
Universidade Estadual Paulista, Departamento de Filosofia Av.Hygino Muzzi Filho, 737, 17525-900 Marília-São Paulo/Brasil, Tel.: 55 (14) 3402-1306, Fax: 55 (14) 3402-1302 - Marília - SP - Brazil
E-mail: transformacao@marilia.unesp.br