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Apresentação

Com muita satisfação abrimos o ano de publicações de 2021 da revista Trans/Form/Ação. Neste primeiro fascículo, contamos com 31 colaboradores, distribuídos em 14 artigos, 15 comentários, além desta apresentação, totalizando 30 publicações. São cinco artigos escritos em língua estrangeira, quatro deles em Espanhol e um em Português de Portugal, com autores oriundos de instituições da Argentina, Chile, Espanha e Portugal. Os autores brasileiros são oriundos de instituições do Distrito Federal e dos estados do Acre, Bahia, Ceará, Goiás, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e São Paulo.

Conforme lembra Alves (2020ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 2, p. 9 - 16, 2020, p. 10), “ [...] a Trans/Form/Ação tem como objetivo a socialização do conhecimento, buscando promover o debate e a interlocução de ideias.” Em vista disso, desde o primeiro número de 2020 publicamos uma nova modalidade de textos, a qual consiste de comentários de artigos aprovados, consentidos previamente pelos seus autores. Anexados ao artigo original, eles são produzidos pelos pareceristas do manuscrito submetido. Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez que o processo avaliativo já foi ultrapassado. O comentador pode expor possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores, perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas, epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha argumentativa do artigo comentado, notas explicativas relevantes ou a posição do comentador a respeito da tese exposta. Nesse sentido, procuramos promover um diálogo entre ambos os textos, almejando o aprofundamento e a ampliação do conhecimento. Os comentários são ainda uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico, oferecendo-lhes oportunidade de publicação de suas ideias e reflexões, as quais podem, inclusive, ter tido origem a partir da análise do manuscrito avaliado.

“Heráclito, B 52 DK: contribuição à semântica do jogo” é o primeiro artigo deste número, escrito por André Pereira Leme Lopes e comentado por Maicon Reus Engler. Conforme Lopes, o fragmento B 52 DK de Heráclito define aiṓn (“tempo”, “vida”, ou “duração da vida”) como uma criança brincando/jogando. Qual é, no entanto, o jogo/a brincadeira dessa criança? A interpretação mais comum desqualifica o jogo heraclítico, elencando esse fragmento dentre aqueles nos quais o filósofo critica o conhecimento falho dos homens. Na contramão dessas, o autor propõe neste texto uma análise filológica que pode oferecer algumas sugestões para melhor identificar e compreender o jogo de B 52, acreditando que não se trate de uma brincadeira infantil, mas, de fato, de um jogo sério que ressoa com metáforas cósmicas e cívicas.

O segundo artigo, “Cibercultura e educação: pontos e contrapontos entre a visão de Pierre Lévy e David Lyon”, é de autoria de Angela Luzia Miranda. O artigo visa a confrontar o visível otimismo de Pierre Lévy sobre a cibercultura como espaço de produção da inteligência coletiva e da educação para a democratização social, com a postura crítica de David Lyon acerca da cultura da vigilância e seus efeitos sociopolíticos, na era da cibercultura. De cunho filosófico e qualitativo, cuja fonte de pesquisa é essencialmente bibliográfica, trata-se de um estudo comparativo que busca estabelecer as diferenças elementares entre a postura de Lévy e Lyon sobre a cibercultura. Em consequência, e reconhecendo as teses de Lyon sobre a ilusão do anonimato e os riscos do fim da privacidade, na era da cibercultura, a autora finaliza apontando alguns indicativos sobre as novas práticas educativas nesse contexto.

“Processo de trabalho como processo de valorização: determinação categorial particular em O Capital”, de Antônio José Lopes Alves vem em seguida. Alves pretende explicitar e discutir os principais elementos categoriais que integram a análise marxiana da atividade produtiva, em O Capital, intentando analisar o caráter da contradição imanente ao processo de trabalho levado a efeito como processo de valorização. Para tanto, o autor adota para exame a integralidade do Capítulo 5 - O processo de trabalho e o processo de valorização, buscando delinear as conexões internas da criação do valor valorizado como forma social historicamente determinada de produção da vida humana. A tensão interna da produção dos valores de uso como portadores do valor/mais-valor, existente como mercadoria, deverá ser esclarecida em sua tessitura própria, tendo em vista inclusive as implicações disto para as demais dimensões da interatividade social. A presente reflexão categorial objetiva também esclarecer as linhas fundamentais do modo de produzir e ser da vida social dos indivíduos que participam do processo, subsumidos nas suas diferentes funções.

Etelvina Pires Lopes Nunes assina o quarto artigo: “Consciência e temporalidade em Edith Stein: em diálogo com Heidegger”, comentado por Fabíola Menezes de Araújo e Martina Korelc. A autora lembra que o tema consciência e temporalidade é comum à filosofia fenomenológica e hermenêutica. Ela apresenta a teoria de Edith Stein sobre o tempo, com base na sua obra fundamental: Ser finito e ser eterno. Esta se constrói na esteira da fenomenologia de Husserl e como reação a Sein und Zeit, de Heidegger, ademais, apoiando-se na teoria do ato e da potência de Tomás de Aquino. Stein constrói uma teoria do tempo centrada no presente. Aplicando a fenomenologia às “unidades de vivência” e aos conceitos de “ato” e “potência”, de origem tomista, cria o conceito de “atualidade”, que compreende as três dimensões temporais. Criticando Heidegger, a autora sublinha que o “ser do ser finito” é “um ser recebido”, o qual se constitui na relação de “abertura” ao “ser eterno”. Na conclusão, Nunes propõe a possibilidade do reencontro com o passado (Heidegger) como análise preparatória para a “abertura” ao ser eterno.

O quinto artigo é escrito por Joaquim Braga, intitulado “Escândalo e corrupção: da recriação do invisível nos mass media”, seguido dos comentário de Rita de Cássia Biason. Conforme Braga, o fenômeno da corrupção não pode ser pensado sem a inclusão das suas potencialidades simbólicas. A informação que, pela ação dos mass media, aparece construída sob a forma de escândalo, acaba por determinar a própria construção da sua natureza factual. Logo, aqui impera a questão de saber por que é que as práticas corruptas favorecem o discurso do escândalo, bem como a legitimação dos mass media como instrumentos de objetivação dos comportamentos ilícitos. O autor busca ponderar essas questões, mediante a formulação de uma estética da “invisibilidade” inerente aos meios de comunicação, que é, por sua vez, reforçada pelas potencialidades discursivas das práticas corruptas.

Em seguida publicamos “Sobre valor moral e correção intelectual no Sofista de Platão”, de José Wilson da Silva. O autor lembra que Platão, no diálogo Sofista, argumenta que a vergonha tem a capacidade de fazer que um indivíduo mude sua opinião. Além disso, a vergonha não opera apenas uma mudança qualquer, mas o abandono de uma opinião falsa, retirando-a do caminho que leva ao conhecimento. Contudo, Silva argumenta que o erro intelectual é corrigido pelo ensino e não por um valor moral. Ele pretende explicar como a vergonha pode ter essa função de uma positiva mutação mental, contribuindo desta forma para a obtenção do conhecimento. A interação entre valor moral e capacidade cognitiva é possibilitada pelo conceito de imagem e fealdade.

O sétimo artigo é “Tecnologías para una sociedad abierta posthumana”, de Juan Bautista Bengoetxea, comentado por Jelson Oliveira. O autor divide o texto em duas partes. Na primeira ele apresenta o desenvolvimento do ciborgue como entidade cultural e tecnológica examinada do prisma da teoria da mente, onde se destaca a importância de vários elementos ficcionais e reais. Na segunda parte ele reflete sobre o futuro que a sociedade tecnológica e ciborgue pode trazer para o ser humano. Em particular, Bengoetxea busca mostrar que o ser pós-humano constitui uma realidade já consagrada que requer uma reflexão de cunho moral e social que aponte para o papel do especialista em relação às necessidades dos cidadãos não especialistas. A conclusão final preconiza a constituição de normas e regulamentos que permitam canalizar os avanços tecnológicos pós-humanos de acordo com a ética aplicada ao homem.

“O conatus imaginativo em Espinosa: a produção da contingência e da ideia de finalidade” de Juarez Lopes Rodrigues, seguido dos comentários de Daniel Santos da Silva e Fernando Dias Andrade é publicado em seguida. O escopo do artigo é explicitar a lógica da produção das paixões, através do conatus imaginativo em Espinosa. Essa lógica envolve a compreensão dos afetos primitivos de alegria, tristeza e desejo que irão compor as paixões pelas quais somos determinados a pensar e agir, e, ao mesmo tempo, produzem a ilusão da liberdade de escolha indeterminada. Será possível observar como essa lógica do conatus imaginativo, ao sofrer a flutuação do ânimo, produzirá as modalidades de contingente e possível, que são responsáveis pela ilusão da escolha indeterminada, isto é, da vontade livre. Rodrigues busca mostrar que a experiência da liberdade como poder dos contrários pela qual os homens acreditam determinar os fins pelos quais o apetite/desejo se modifica em paixões reduz-se à experiência da flutuação do ânimo. Essa ilusão da liberdade indeterminada surge porque os homens desconhecem a sua essência (conatus) de maneira adequada, fato que os leva a identificar as causas eficientes da produção dos afetos como causas finais.

O nono artigo é “Hacia una teoría jurídica sin género: feminismo, autonomía e igualdad relacional”, escrito em parceria por Luis Villavicencio Miranda e Cecilia Valenzuela Oyaneder e comentado por Caroline Marim. Os autores argumentam, inicialmente, que a teoria do direito tem sido subserviente ao gênero masculino do direito. Em seguida, delineam como essa teoria pode ser reformulada, levando em consideração novas categorias conceituais como o sujeito incardinado e o sujeito concreto. Feito isso, exploram como essa nova maneira de pensar a teoria do direito se conecta com as ideias de autonomia relacional, igualdade e respeito. Por fim, ilustram alguns dos problemas revisados por meio de um caso exemplar, apontando também as conclusões do artigo.

Em seguida publicamos “Comprensión como participación: dialéctica entre la particularidad y la generalidad en la hermenéutica de Gadamer”, de María del Rosario Gazmuri Barros, comentado por Pedro Karczmarczyk. A autora apresenta a noção gadameriana de compreensão como participação, com o objetivo de mostrar como ocorre o jogo entre a particularidade da interpretação e a pretensão de generalidade assumida no fato de toda interpretação pertencer a uma tradição. Partindo da perspectiva adquirida pela ontologia da obra de arte, especificamente da obra de arte teatral, Barros investiga as noções centrais da hermenêutica filosófica de Gadamer. Em primeiro lugar, as noções de representação e mediação, fundamentais para compreender o que é entendimento para o nosso autor. Em segundo lugar, apresenta o problema da temporalidade da representação, em terceiro lugar, expõe o que significa interpretação na hermenêutica gadameriana, em sentido próprio. Por fim, a autora aborda a questão da tarefa hermenêutica em meio à historicidade, na qual coincidem particularidade e generalidade.

O décimo primeiro artigo é “Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau”, de autoria de Mauro Dela Bandera e comentado por Gustavo Cunha Bezerra e Thomaz Kawauche. Conforme diz o autor, a dicotomia mundo físico/mundo moral é característica do século XVIII francês. Refere-se às dimensões biológicas naturais e às dimensões morais do homem. Muitos autores do Iluminismo desejaram retraçar a história conjectural ou as metamorfoses sucessivas que levaram à passagem do homem físico para o homem moral. Essa temática se faz também presente na obra de Rousseau, sendo percebida e traduzida por Lévi-Strauss como a passagem da natureza à cultura. A hipótese desenvolvida por Dela Bandera é de que a inscrição da interdição do incesto - presente na obra de Rousseau - ocupa uma função e uma significação muito próximas das reflexões de Lévi-Strauss, observadas nas Estruturas elementares do parentesco. Como em Lévi-Strauss, essa proibição marca para Rousseau o início do processo de formação cultural, o instante fundador da cultura. Ela explicita de maneira privilegiada o ponto por meio do qual os processos culturais se distinguem da esfera natural, o momento em que o homem deixa de seguir o mero instinto e passa a respeitar princípios morais construídos socialmente.

Pablo Pérez Navarro assina “Ordem e perigo: superfícies do corpo político”, com os comentários de João Roberto Barros e Miguel Ângelo Oliveira do Carmo. Navarro desenvolve uma reflexão sobre a noção de ordem pública, do ponto de vista da biopolítica. Com esse objetivo, ele analisa a resposta autoritária aos protestos contra o ordenamento moral do espaço público, tomando como exemplo o caso do movimento 15-M, na Espanha. Feito isso, explora a noção de ordem pública no seu caráter de dispositivo, no sentido dado por Foucault a esse termo. Na sequência, faz uma breve aproximação genealógica às relações existentes entre a ordem pública e o ordenamento sexual e racial do espaço público. Por fim, explora, em diálogo com Sarah Ahmed e Mary Douglas, o lugar que as biopolíticas da ordem pública ocupam na constituição e policiamento das fronteiras físicas e morais, internas e externas, as quais defendem ao corpo político das diversas figuras da alteridade, da abjeção e da contaminação.

Em décimo terceiro lugar aparece “Uma questão de vaidade: relações entre Nietzsche e Mandeville”, escrito por Ricardo de Oliveira Toledo e comentado por Marco Antonio Sabatini. Toledo discute aspectos de relativa congruência entre as críticas da moral em Nietzsche e Mandeville, atentando principalmente para a questão da vaidade. Ele considera que Nietzsche e Mandeville, guardadas as devidas peculiaridades, foram imoralistas em suas respectivas épocas. Através de pesquisas nas obras publicadas e em fragmentos póstumos, diz o autor, sabe-se que Nietzsche conhecia o pensamento de Mandeville. Porém, não se pôde verificar a extensão das leituras que o filósofo alemão fez de seu antecessor. O livro pesquisado de Mandeville foi A Fábula das Abelhas: Vícios privados, benefícios públicos. Devido à extensão da obra de Nietzsche, a discussão filosófica nesse filósofo centrou-se nos dois volumes de Humano, demasiado humano, Aurora e A Gaia Ciência. Mandeville entendia que a existência e não a revogação dos vícios era a mola propulsora do enriquecimento da sociedade. Um dos traços da natureza humana é a vaidade. Não é a humildade que subjaz às ações virtuosas, mas o orgulho, bem como a vaidade. A virtude moral seria um artifício para a obtenção de benefícios individuais. Toledo aponta que, para Nietzsche, a vaidade é o que torna a visão do ser humano suportável, dissimulando paixões e emoções que moralmente são tidas como vergonhosas. A vaidade tem o papel de humanizar o indivíduo, para que seja mais sociável e cumpra as exigências de uma moralidade estabelecida.

O conjunto de quatorze artigos deste fascículo se encerra com “Monismo, relaciones, y los límites de la explicación metafísica”, de autoria de Sebastián Briceño e comentado por Marcos Amatucci. Briceño explora os limites de uma concepção de explicação metafísica baseada no Princípio da Razão Suficiente (PRS). Para isso, se concentra em uma das consequências contra-intuitivas que supostamente decorrem de uma aplicação irrestrita do PRS, a saber: Monismo Radical. Em primeiro lugar, o autor articula essa concepção de explicação metafísica. Em seguida, explica como é que, a partir de um famoso argumento baseado no PRS (o retorno de Bradley), o Monismo Radical parece ser efetivamente seguido. A seguir, argumenta contra a reação natural a tal argumento, a saber: aceitar o pluralismo e os relacionamentos como fatos brutos últimos. Finalmente, esboça uma versão qualificada do PRS, PRS*, que nos permite contornar o Monismo Radical sem ter que abrir mão do conteúdo essencial do PRS.

Assim está constituído este fascículo. Desejamos uma proveitosa leitura e reflexão crítica referente ao conteúdo dos textos aqui publicados. Que, ao socializar o conhecimento, seus autores, por meio da Trans/Form/Ação, possam auxiliar na produção de novos saberes e no aprofundamento da compreensão dos temas e problemas abarcados, com impacto social e internacionalização, na medida do possível.

Referência

  • ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 2, p. 9 - 16, 2020

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2021
  • Aceito
    05 Mar 2021
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